Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
675/11.5GBTMR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: TRIBUNAL SINGULAR
Data do Acordão: 06/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 16º Nº 3 CPP
Sumário: 1.- A faculdade de o Ministério Público usar do disposto no artigo 16º, nº 3, do CPP, não se restringe apenas ao momento da dedução da acusação pública;

2.- Tendo o Ministério Público requerido o julgamento do arguido perante tribunal singular, e havendo posteriormente a assistente deduzido acusação pela prática de dois crimes de injúria, a que o MP aderiu, alterados ficaram os pressupostos que levaram a justificar/fundamentar a posição do MP do julgamento do arguido perante o tribunal singular;

3.- Consequentemente, pode ainda fazer uso da faculdade do artigo 16º, nº 3, do CPP, requerendo a intervenção do tribunal singular em vez de deixar seguir os autos para o julgamento perante o tribunal coletivo;

4.- É que, pese embora o MP já tivesse requerido a intervenção do tribunal singular, tal juízo foi feito e apenas vincula quanto aos crimes pelos quais deduziu acusação;

5.- Impunha-se ao Ministério Público, caso mantivesse a posição de manter o julgamento do arguido perante o tribunal singular, de o manifestar expressa e fundadamente, perante o acréscimo de crimes imputados ao arguido.

Decisão Texto Integral:             Acordam em conferência na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I

1. Nos autos de processo comum nº 675/11.5GBTMR do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Tomar,

Pelo Ministério Público foi deduzida acusação contra o arguido A..., melhor id. nos autos, a quem foram imputados em autoria material e em concurso efectivo, os seguintes crimes:

• um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal, agravado nos termos do disposto no artigo 155.º, n.º 1, alínea a) do mesmo Código;

• um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c) e n.º 2 da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção actual, com referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea s) e 3.º, n.º 6, alínea c) do mesmo diploma legal (espingarda caçadeira não manifestada, nem registada);

• um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção actual, com referência aos artigos 2.º, n.º 3, alínea g) e 3.º, n.º 1 do mesmo diploma legal (cartuchos de caça);

• dois crimes de detenção de arma proibida, previstos e punidos pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea m) e 3.º, n.º2, alínea f) do mesmo diploma legal (punhais);

• um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção actual, com referência ao artigo 2.º, n.º 5, alínea l) do mesmo diploma legal (pólvora);

• uma contra-ordenação, previsto e punido pelo artigo 97.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção actual, com referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea aac) e 3.º, n.º 2, alínea n) da mesma Lei (reprodução de arma de fogo).

Todavia, usando da faculdade prevista no artigo 16.º n.º 3 do Código de Processo Penal, requereu o MºPº o julgamento do arguido perante o tribunal singular.

3. Entretanto, após a acusação do MºPº, veio a assistente B...deduzir acusação particular contra o mesmo arguido, imputando-lhe a prática de dois crimes de injúria, p. p. pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal.

4. O MºPº acompanhou esta acusação particular.

5. Cumpridas as notificações legais, o Ministério Público remeteu o processo para julgamento do arguido em processo comum e perante o tribunal singular.

6. Recebidos os autos em Juízo foi proferido despacho judicial ao abrigo do artigo 311º do CPP, no qual se ordenou a realização do julgamento perante o Tribunal Colectivo.

7. Não se conformando com este despacho que ordenou a intervenção do tribunal colectivo para a realização do julgamento, do mesmo recorre o Ministério Público formulando as seguintes conclusões:

1. O Ministério Público ainda pode usar da faculdade prevista no artigo 16º, nº3 CPP, no requerimento de adesão à acusação particular, mesmo que já tenha deduzido acusação por crimes de natureza pública e semi-pública com recurso ou não, ao disposto no artigo 16º, nº3 CPP.

2. Essa segunda manifestação por parte do Ministério Público, quando já na acusação pública requerera o julgamento perante tribunal singular, ao abrigo do artigo 16º, nº3 CPP, pode bastar-se com a indicação de que se acompanha a acusação particular, nada alterando quanto ao uso do 16º, nº3 CP determinando posteriormente a remessa dos autos a juízo, para julgamento em processo comum e perante tribunal singular”, o que significa a reiteração da decisão de que o arguido seja julgado em tribunal singular.

3. Não tem razão a M.ma Juiz ao não admitir a legalidade do recurso ao artigo 16º, nº3 CPP, após a dedução da acusação pública, na sequência do acompanhamento da acusação particular, ao não valorar os despachos posteriores à acusação como de reiteração da acusação para julgamento em tribunal singular.

4. A decisão violou pois o disposto no artigo 16º, nº3 CPP, pelo que deve ser declarada nula.

5. Ocorreu uma nulidade insanável, por violação das regras da competência do tribunal, prevista no artigo 119º CP, pelo que deverá declara-se inválido o despacho da Srª Juiz e ainda o subsequente, nos termos do disposto no artigo 122º, nº1 CPP.

6. Havendo em consequência que substituir essa decisão por outra que determine o julgamento mediante tribunal singular ao abrigo do artigo 16º, nº3 CPP e em seguida em cumprimento dos artigos 312º e 313º, CPP, designando data para julgamento.

8. Nesta Relação foi emitido parecer pelo Exmº Sr. PGA, no qual se pronuncia no sentido da revogação do despacho judicial recorrido, ordenando-se o julgamento perante o tribunal singular.

9. Foram os autos a vistos e procedeu-se a conferência.


II

Para além dos elementos já supra referenciados no relatório (acusação do MºPº pelos crimes enunciados e uso da faculdade do julgamento do arguido por tribunal singular ao abrigo do artigo 16º, nº 3, do CPP e posterior acusação particular da assistente por mais dois crimes de injúria, pp. e pp. pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal), constam dos autos com relevância para a apreciação da questão ainda os seguintes:

1. Face à acusação particular da assistente, o Ministério Público exarou em 03.09.12, a fls. 164-165, o seguinte despacho:

“O Ministério Público acompanha a acusação particular constante de fls.161 a 163,

deduzida pela assistente B... contra o arguido A..., filho de (...) e de (...), natural da freguesia de (...), concelho de Ourém, nascido a 2 de Agosto de 1952, divorciado e residente na Rua (...), Tomar, em que imputa ao arguido a prática dos factos descritos na aludida peça processual, os quais consubstanciam a comissão, pelo mesmo, de dois crimes de injúria, previstos e punidos pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal.

Prova:

A indicada na acusação particular.

Cumpra o disposto no artigo 277.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, aplicável, in

casu, ex vi do artigo 283.º, n.º 5 daquele mesmo código, remetendo cópia da acusação particular e do presente despacho ao arguido e à respectiva Ilustre defensora oficiosa.

Notifique, ainda, o teor do presente despacho à Ilustre mandatária da assistente.

Estatuto Processual do arguido

Nada a acrescentar ao já promovido na acusação pública.”

2. Cumpridas as notificações legais, em 12.10.12, a fls. 184, o Ministério Público despachou de novo nos termos seguintes:

“Visto. Remeta os autos a Juízo, para julgamento do arguido em processo comum e

perante o tribunal singular.”

            3. Os autos seguiram para distribuição como Processo Comum Singular e foram distribuídos ao 3º Juízo do Tribunal Judicial de Tomar.

Ao proferir o despacho a que alude o artigo 311º, do CPP, em 19.10.12, a Sr.ª Juiz exarou a seguinte decisão:

“Questão prévia:

O MP deduziu douta acusação pública contra o arguido, tendo feito uso do artigo 16.º, n.º 3 do CPP.

Posteriormente, veio a assistente deduzir acusação particular contra o arguido, imputando-lhe a prática de dois crimes de injúria, a qual foi acompanhada pelo MP.

Nos termos do artigo 16.º, n.º 3 do CPP, compete ao tribunal singular julgar os processos por crimes previstos na al. b) do n.º 2 do artigo 14.º, mesmo em caso de concurso de infracções, quando o Ministério Público, na acusação, ou, em requerimento, quando seja superveniente o conhecimento do concurso, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos.

In casu, após a prolação da acusação pública, ocorreu a dedução de acusação particular pela assistente, pelo que, não se verifica nenhuma das hipóteses enunciadas na norma.

Pode ler-se in “Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª ed., de Paulo Pinto de Albuquerque, págs. 88 e 89 que “Esta faculdade pode ser usada pelo MP “na acusação”, isto é, na acusação pública (por crimes públicos ou semi-públicos), não podendo ser usada no requerimento de adesão do MP à acusação particular.

Neste caso, nem o MP acusa, nem tem um conhecimento ulterior à acusação do concurso de infracções. Portanto, se a moldura penal abstrata dos crimes imputados pelo assistente na acusação particular for superior a 5 cinco anos de prisão, o tribunal competente é o tribunal coletivo e o MP não pode subtrair a acusação particular à competência do tribunal coletivo com base no artigo 16.º, n.º 3”.

Assim, tendo-se em conta os crimes imputados ao arguido na acusação pública e os imputados aquele na acusação particular, o moldura penal abstrata aplicável ao arguido é superior a 5 anos de prisão. Porquanto, a competência para o respectivo julgamento cabe ao Tribunal Colectivo, nos termos do disposto no artigo 14.º, n.º 2, alínea b), do C.P.P., sendo o tribunal singular incompetente para o julgamento, o que se declara, sendo competente o tribunal colectivo.

Pelo exposto, autue como Processo Comum com intervenção do Tribunal Colectivo, fazendo-se a correspondente autuação e dando-se baixa dos mesmos como processo comum com intervenção de Tribunal Singular.

§

O M.P. tem legitimidade para acusar bem como a assistente. Inexistem outras questões prévias ou incidentais que obstam ao conhecimento do objecto do processo.

Recebo a acusação pública de fls. 147 a 155 deduzida pelo Ministério Público contra A... pelos factos e Direito nela descritos e que aqui dou por reproduzidos.

Recebo a acusação particular de fls. 161 a 163, deduzida pela assistente contra A..., acompanhada pelo MP, pelos factos e Direito nela descritos e que aqui dou por reproduzidos.

§

Para sugerir datas para a realização da audiência de julgamento vão os autos ao Exmo. Senhor Dr. Juiz Presidente do Tribunal Colectivo.

§

Requisite-se C.R.C. do arguido.

A fim de ser tido em consideração na determinação da sanção que eventualmente possa vir a ser aplicada ao arguido, desde já se determina, nos termos do disposto no artigo 370.º, n.º 1 do CPP a realização de relatório social àquele, devendo no pedido, ser indicada a data para a realização do julgamento.

§

Medidas de coacção: o arguido aguardará os ulteriores termos processuais sujeito ao T.I.R. já prestado a fls. 74, uma vez que não se mostram reunidos os pressupostos a que alude o art. 204º do C.P.P.

§

Admito liminarmente o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente

contra o arguido. Notifique-se nos termos do art. 78º do C.P.P.”

            4. Por sua vez, pelo Sr. Juiz de Círculo (Juiz Presidente do Tribunal Colectivo), face à apresentação dos autos, foi proferido o seguinte despacho:

            Há que considerar o seguinte quanto à questão prévia da fixação da competência do Tribunal:
            Como tantas vezes sucede nas alterações do objecto dos processos, nomeadamente motivadas pela conexão subjectiva, compete ao Ministério Público usar ou não da faculdade que a lei consagra no art. 16º.°, n.° 3, do Código de Processo Penal.
            Nos casos em que a assistente vem a deduzir acusação particular, só com a apresentação deste libelo é que se evidencia o concurso de infracções. Até à prolação ou apresentação da acusação não há a formalização de qualquer concurso de infracções. Haverá, quando muito, notícia de uma pluralidade de infracções. A função do despacho de acusação é precisamente a definição do objecto do processo, sujeito a confirmação judicial através do despacho de pronúncia ou do despacho que recebe a acusação.
            Só quando foi deduzida a acusação particular que se evidenciou o concurso de infracções, o qual será sempre um conhecimento superveniente à acusação

            Quando o Ministério Público usa a faculdade do artigo 16°, n°3, na acusação ou em requerimento posterior, fá-lo apenas em relação aos crimes imputados e respectivas molduras penais, que já existem no processo. Apenas em relação a essa situação tem validade o seu requerimento de que ao caso concreto não deve ser aplicada pena de prisão superior a cinco anos.
            Se, posteriormente, surgir na nova acusação particular, como ocorreu no caso em apreço, para poder manter-se a competência do tribunal singular, o Ministério Público tem de manifestar tal pretensão, em requerimento, como estabelece o citado artigo 16°, n°3, do CPP’.

            Considerando, no entanto, que a Digna Magistrada do Ministério Público não reiterou, até ao momento, o judicioso critério que exprimiu aquando da prolação do despacho de acusação, requerendo o julgamento perante o Tribunal Singular, nem a Exma. Colega suscitou tal questão junto do Ministério Público, entende-se que se impõe a designação de datas para a realização da audiência.

            Por conseguinte, sugiro que:
            - Se designe o próximo dia 25 de Fevereiro, às
9,30 horas, para a realização da audiência;
            - Se designe o próximo dia 18 de Março, às 9,30 horas, caso seja necessário proceder a eventual adiamento da audiência.

            5. Conforme informação do ofício de fls. 61, os autos em primeira instância encontram-se suspensos aguardando decisão deste TRCoimbra para definição do tribunal competente para julgamento (tribunal singular ou tribunal colectivo).

                                                                                  III

            Questão a apreciar:

            Apurar se in casu, o julgamento do arguido deve ocorrer perante o tribunal singular ou perante o tribunal colectivo.


IV

Cumpre decidir:

1. Sem prejuízo da questão supra equacionada e que efectivamente cumpre apreciar, o recorrente Ministério Público, na sua motivação define como objecto do recurso, o seguinte:
a) se o Ministério Público ainda pode usar da faculdade prevista no artigo 16º, nº3 CPP, no requerimento de adesão à acusação particular mesmo que já tenha deduzido acusação por crime de natureza pública e semi-pública;
b) se essa manifestação por parte do Ministério Público, quando já na acusação pública requerera o julgamento perante tribunal singular, ao abrigo do artigo 16º, nº3 CPP, se basta com a indicação de que  “se acompanha a acusação particular” e posteriormente, num outro despacho onde se determina a remessa dos autos a juízo, para julgamento do arguido em processo comum e perante tribunal singular, significam a reiteração da decisão de que o arguido seja julgado em tribunal singular.
c) ou se essa faculdade prevista no artigo 16º, nº3 CPP, se esgota aquando da dedução de acusação pública e apenas pode vir a ser exercida já durante a audiência perante tribunal singular ou na Instrução, em ambas as situações face a uma perante alteração substancial de factos, ou ainda, numa terceira hipótese, aquando da apensação de um novo processo.

2. Estas questões assim colocadas são pertinentes e a elas se responderá ou dará solução, fazendo-se, no entanto, umas observações prévias sobre a matéria em apreço.

            2.1. E começamos por dizer que aceitamos uma interpretação ampla ou alargada do disposto no actual artigo 16º, nº 3, do CPP.       

            Querendo com isto significar que a faculdade de o Ministério Público usar do disposto no artigo 16º, nº 3, do CPP, não se restringe apenas ao momento da dedução da acusação pública.

            Ou seja, pode acontecer que face à moldura penal de cada um dos crimes constantes da acusação, ao Ministério Público não se coloque a questão de o julgamento decorrer perante o tribunal singular ou o tribunal colectivo, pois face às regras processuais vigentes, a competência, num dado caso concreto, sempre será do tribunal singular.

            Outro tanto não se verificará se eventualmente suceder um dos casos previstos pelo recorrente na supra alínea c) – depois de deduzida a acusação, já durante a audiência perante tribunal singular ou na Instrução, em ambas as situação, surgir uma alteração substancial de factos, ou ainda, numa terceira hipótese, aquando da apensação de um novo processo.

            Temos para nós como solução assertiva que, numa dessas situações, o Ministério Público poderá usar da faculdade do artigo 16º, nº 3, do CPP.

            Solução que vai de encontro à letra do próprio preceito quando aí se prevê actualmente que o Ministério Público possa vir a entender a não aplicação de uma pena superior a cinco anos, numa fase posterior à acusação, se o conhecimento do concurso for superveniente. Situação em que fará uso dessa faculdade, por meio do dito requerimento.

            Há já algum tempo, nos autos de recurso nº 4024/06.6TDPRT.P1[1], (Processo de 1ª instância nº 4024/06.6TDPRT), em que fomos relator, decidimos sobre esta matéria que:
            “O artigo refere-se à situação de conhecimento do concurso de crimes. Mas entendemos que se deve aplicar também ao conhecimento superveniente de uma alteração da qualificação jurídica, maxime quando é da conjugação dessa nova qualificação jurídica e do concurso de crimes, que se poderá justificar a aplicação do disposto no artigo 16º, nº 3, do CPP, pois um dos crimes, só por si, não justificaria o uso daquela disposição, o que já não acontece quando se está perante um concurso de 4 crimes, como é o caso[2].

Pelo que, o nosso entendimento vai no sentido de, ainda que durante a audiência se constate uma alteração da qualificação jurídica dos factos que implique uma alteração da competência do tribunal singular para o tribunal colectivo, nada impede que, ouvido o Ministério Público – e desde que não haja oposição do arguido – aquele possa fazer uso, ainda neste momento, do disposto no artigo 16º, nº 3, do CPP”.

2.2. Temos para nós também como assente que a ratio do artigo 16º, nº 3, do Código de Processo Penal, visa descongestionar os tribunais colectivos de processos que, em abstracto, cairiam na sua esfera de competência – v. Simas Santos/Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, I vol., 2ª edição, em anotação ao artigo 16º, fls. 143.

Mas como o próprio recorrente reconhece e aceita, citando Germano Marques da Silva, Curso de Proc. Penal, I, pág. 183, a faculdade prevista no artigo 16º, nº3 do CPP, “trata-se de um poder-dever do Ministério Público, e não de uma faculdade arbitrária, que deve ser usada quando “…entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a cinco anos”.

Faculdade (não arbitrária) ou poder-dever que é todavia, sindicável:

- Pelo superior hierárquico do magistrado do Ministério Público que pode controlar a legalidade substantiva e processual do juízo do magistrado que fez uso desta faculdade do art. 16º, nº 3, do CPP[3].

- Pelo juiz do tribunal singular que pode controlar a legalidade processual do juízo do magistrado que fez uso desta faculdade do art. 16º, nº 3, do CPP – v. sobre a questão, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do CPP, UC, 2ª Edição, fls. 88 a 89v.

2.3. Ora, tratando-se de um poder/dever do Ministério Público, sindicável nos termos supra referenciados, faz todo o sentido que, ao usar desta faculdade, na acusação, como o fez na acusação pública, por vários crimes, o MºP. tenha fundamentado o uso do disposto no artigo 16º, nº 3, do CPPP, nos seguintes termos:

“Neste despacho, é imputada ao arguido a prática, em concurso efectivo, de um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal, agravado nos termos do disposto no artigo 155.º, n.º 1, alínea a) do mesmo Código, punível, em abstracto, com pena de prisão até 2 anos, dois crimes de detenção de arma proibida, previstos e punidos pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção vigente, puníveis com pena de prisão até 5 anos, dois crimes de detenção de arma proibida, previstos e punidos pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção vigente, punível com pena de prisão até 4 anos e um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea a) da citada Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro punível com pena de prisão até 8 anos.

Considerando a moldura legal abstracta resultante do cúmulo de penas a efectuar, deveria a audiência de julgamento ter lugar perante o tribunal colectivo, por ser este o materialmente competente, à luz da regra contida no artigo 14.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal.

No entanto, ponderando as circunstâncias específicas da factualidade vertida no presente inquérito, nomeadamente:

• a circunstância de o arguido nunca ter sido condenado pela prática dos crimes que ora lhe vão ser imputados;

• o facto de o arguido estar socialmente integrado;

• a circunstância de os ilícitos imputados ao arguido serem puníveis, em alternativa, com pena de multa ou de prisão e de a pena de prisão que lhe cabe não exceder individualmente cinco anos, o Ministério Público entende que, atentos os critérios da escolha e medida da pena constantes dos artigos 70.º e seguintes do Código Penal, não deverá ser aplicada, em concreto, ao arguido uma pena de prisão superior a 5 anos.

Daí que se utilize a faculdade prevista no artigo 16.º n.º 3 do Código de Processo Penal, requerendo o julgamento do arguido perante o tribunal singular”

            2.4. Mas como é óbvio, esta fundamentação do MºPº para o julgamento do arguido perante o tribunal singular sofreu uma alteração com a dedução da acusação particular da assistente. Ou seja, não se pode dizer que a situação permaneceu inalterada com a dedução desta acusação. Na verdade, a assistente poderia ter tido duas condutas:

            - Não deduzir qualquer acusação, mantendo-se a situação inalterada, na medida em que permanecia apenas a acusação deduzida pelo Ministério Público.

            - Deduzir acusação, como deduziu, pelos crimes que em seu entender, se verificavam.

Tendo a assistente usado desta última faculdade (deduzido acusação pela prática de dois crimes de injúria, p. p. pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal), com certeza que a situação dos autos passou a ser diferente, tendo-se alterado os pressupostos que levaram a justificar/fundamentar a posição do Ministério Público do julgamento do arguido perante o tribunal singular.

A questão que se pode colocar é se, a simples adesão do MºPº à acusação particular da assistente nada mais dizendo neste momento e acto sobre o julgamento do arguido perante tribunal singular e posterior remessa dos autos, em despacho autónomo parta julgamento em tribunal singular, satisfaz os requisitos pegais para intervenção do tribunal singular ao abrigo da fundamentação do Ministério Público usada a quando da formulação da acusação pública.

Temos para nós como posição mais correcta e assertiva que o Ministério Público em situações desta natureza ou análogas (v. caso em que existe apenas acusação particular a que o MºPº adere mas que, em abstracto seria de intervir o tribunal colectivo, dada a soma total das penas abstractas aplicáveis) pode ainda fazer uso da faculdade do artigo 16º, nº 3, do CPP, requerendo a intervenção do tribunal singular em vez de deixar seguir os autos para o julgamento perante o tribunal colectivo.

Mas esta faculdade, que continua a tratar-se de um poder-dever e não uma mera questão arbitrária, deve ser justificada e fundamentada.

Queremos com isto dizer que, no presente caso, pese embora o MºPº já tenha requerido a intervenção do tribunal singular, tal juízo foi feito e apenas vincula quanto aos crimes pelos quais deduziu acusação.

Ao fazê-lo, não sabia nem podia o MºPº adivinhar se a assistente iria ou não deduzir qualquer outra acusação.

Ao fazê-lo (a assistente) e ao facto de o MºPº ter aderido a tal acusação, alteraram-se os pressupostos que justificaram a posição do MºPº em requerer a intervenção do Tribunal singular, na medida em que aos crimes até então imputados ao arguido, acresceram outros.

Impunha-se ao Ministério Público, caso mantivesse a posição de manter o julgamento do arguido perante o tribunal singular, de o fundamentar (como já o fizera antes), perante o acréscimo de crimes imputados ao arguido. Quer se queira quer não, a situação do arguido passou a ser diferente porque o número de crimes por que iria (irá) ser julgado, é diferente. Pelo que, o Ministério Público, face à acusação particular, (que poderia ser de apenas de um, de dois - crimes particulares -, como foi o caso ou de vários - que só por si justificariam a intervenção do tribunal colectivo), tinha o dever de formular novo juízo de oportunidade sobre a intervenção do tribunal singular ou colectivo. Pois poderia muito bem acontecer que a posição do MºPº se alterasse face ao número e gravidade dos crimes entretanto imputados na acusação particular.

Ao que tudo leva a crer, nos presentes autos, o MºPº entendeu (implicitamente), que o arguido poderia continuar a ser julgado perante o tribunal singular, em nada alterando a sua posição a acusação particular.

Só que, o uso da faculdade de intervenção do tribunal singular nos termos do artigo 16º, nº 3, do CPP, deve ter uma manifestação expressa e fundamentada.

2.5. A este propósito o recorrente MºPº verteu na sua motivação o seguinte:

“A decisão ora posta em crise não considera este último despacho. Talvez o caminho houvesse sido outro, se se desse a este último despacho do Ministério Público, a virtualidade que a lei lhe consente, no artigo 16º, nº3 CPP, quanto ao conhecimento superveniente do concurso.

Ora, salvo mais esclarecido olhar sobre os autos, deve atentar-se no despacho de fls. 164-165, em que Ministério Público acompanha a acusação particular constante de fls.161 a 163, deduzida pela assistente B... contra o arguido.

Deve ainda atentar-se no despacho de fls. 184, mediante o qual o Ministério Público ordena a remessa dos autos a Juízo, para julgamento do arguido em processo comum e perante o tribunal singular.

O despacho de acompanhamento da acusação particular não alude à composição do Tribunal.

Não retira todavia nada ao despacho de acusação mediante o qual se fixara a competência do tribunal singular, ao abrigo do artigo 16º, nº3 CPP.

E, se tal não bastasse, temos o despacho de fls. 184, o despacho final esse sim em que o Ministério Público reitera a sua posição de que o julgamento do arguido deve ainda assim ser levado a cabo por tribunal singular.

Não se repetem de facto os argumentos da fundamentação dessa decisão anteriormente expendidos.

Não é possível retirar a este despacho o seu conteúdo intrínseco de uma reiteração da decisão do Ministério Público em que o arguido seja julgado mediante tribunal singular”.

2.6. Ou seja, o próprio recorrente acaba por reconhecer que o caminho mais correcto (e legal, acrescentamos nós), teria sido o uso da faculdade do artigo 16º, nº3, no momento em que acompanhou a acusação particular.

A invocação do recorrente do despacho de fls. 184 em que simplesmente ordena a remessa dos autos para julgamento em processo singular, não substitui, em nosso entender, a necessidade e obrigatoriedade legal de, face à acusação particular da assistente, por novos crimes, reiterar expressamente a aplicação do artigo 16º, nº 3, na medida em que esta aplicação se trata de um poder-dever e tem que ser devidamente fundamentada. Aquele despacho de fls. 183, trata-se de um despacho de mero expediente, que não pode ter nem tem a virtualidade de substituir o despacho vinculado ao abrigo do artigo 16º, nº 3, do CPP. A lei prevê esta possibilidade, em requerimento autónomo, quando o conhecimento é superveniente. Este requerimento autónomo ajustava-se plenamente ao momento em que o MºPº acompanha a acusação particular.

Temos a noção de que se trata de uma solução formal, mas legalmente exigível. Em processo penal funciona o princípio da legalidade. E, como tal, pretendendo o MºPº usar de uma faculdade que a lei lhe faculta, tem de o dizer expressamente, pelos meios próprios e adequados, não se podendo ficar por meras interpretações implícitas ou dar sentido a despachos (estamos a referir-nos ao de fls. 184), que só por si não substituem o requerimento expresso do MºPº para fazer intervir o tribunal singular em vez do tribunal colectivo. É certo que a intervenção do tribunal singular se traduz numa poupança de meios, num racionalizar da funcionalidade dos tribunais mas também é verdade que a intervenção do tribunal colectivo se traduz numa maior garantia para o arguido.

Daí que nos mereça concordância o que o Sr. Juiz de Círculo, Presidente do tribunal colectivo, disse a propósito desta matéria, quando afirma:

            “ Só quando foi deduzida a acusação particular é que se evidenciou o concurso de infracções, o qual será sempre um conhecimento superveniente à acusação

Quando o Ministério Público usa a faculdade do artigo 16°, n°3, na acusação ou em requerimento posterior, fá-lo apenas em relação aos crimes imputados e respectivas molduras penais, que já existem no processo. Apenas em relação a essa situação tem validade o seu requerimento de que ao caso concreto não deve ser aplicada pena de prisão superior a cinco anos.
            Se, posteriormente, surgir na nova acusação particular, como ocorreu no caso em apreço, para poder manter-se a competência do tribunal singular,
o Ministério Público tem de manifestar tal pretensão, em requerimento[4], como estabelece o citado artigo 16°, n°3, do CPP’.
            Considerando, no entanto, que a Digna Magistrada do Ministério Público não reiterou, até ao momento, o judicioso critério que exprimiu aquando da prolação do despacho de acusação, requerendo o julgamento perante o Tribunal Singular, nem a Exma. Colega suscitou tal questão junto do Ministério Público, entende-se que se impõe a designação de datas para a realização da audiência.

2.7. Com certeza que se aceitaria a solução da Srª. Juíza que proferiu o despacho ao abrigo do artigo 311º, do CPP, ter ouvido previamente o Ministério Público sobre o uso ou não da faculdade do artigo 16º, nº 3, do CPP[5] – perante a dedução da acusação particular.

A verdade é que esta faculdade não foi usada nem a lei obriga a tal convite. Pelo que,  como cautela e segurança, impunha-se antes ao Ministério Público usar dessa faculdade, nos termos expressos, já anotados. E do mesmo modo como o juiz de julgamento não pode sindicar o Ministério Público do uso da faculdade do artigo 16º, nº 3, do CPP (a não ser em termos meramente processuais), também não se pode impor ao juiz de julgamento que convide o Ministério Público a pronunciar-se expressamente sobre o uso de tal faculdade, como seria possível neste caso. Ou seja, entende-se que seria possível e nada repugnaria o uso desta faculdade. Mas a mesma não é obrigatória nem acarreta qualquer nulidade ou irregularidade, pelo que não merece censura, nem o despacho da Sr.ª Juíza do processo nem do Sr. Juiz de Círculo.

2.8. Pelos fundamentos aduzidos, entendemos que se respondeu, por esta forma, às questões ou objecto do processo, inicialmente definido pelo recorrente Ministério Público que, como se vê, embora tenha alguma coincidência parcial (uso da faculdade do artigo 16º, nº 3, do CPP após dedução da acusação particular), diverge no que respeita concretamente à solução para os presentes autos.


V

Decisão:

Por todo o exposto, decide-se negar provimento ao recurso do recorrente Ministério Público e, consequentemente, decide-se manter o julgamento do arguido perante ou com a intervenção do tribunal colectivo.

Sem custas.

            (Relator, Luís Teixeira)

            (Adjunto, Calvário Antunes)


[1] Tribunal da Relação do Porto.
[2] O caso dos autos onde se fez aquela afirmação e não a dos presentes autos em análise.
[3] Podendo ordenar a revogação do despacho que determina a competência do tribunal singular nos termos do artigo 16º, nº 3, até ao momento do recebimento dos autos pelo tribunal singular – uma vez que é enviada cópia do despacho do requerimento do MºP ao superior hierárquico nos termos e para os efeitos do ponto VI.3 da directiva nº 1/2002, anexo à circular 6/2002, publicada no DR, II série de 4.4.2002 de 21
[4] Sublinhado nosso.
[5] Queremos com isto dizer ou significar que não existe impedimento legal nem se cometeria qualquer ilegalidade, se a Sr.ª Juíza “convidasse” o Ministério Público a esclarecer a sua posição quanto à intervenção do tribunal singular ou do tribunal colectivo.