Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
74/07.3TAMIR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: PENA DE MULTA
CONVERSÃO DA MULTA EM PRISÃO
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
Data do Acordão: 07/03/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CANTANHEDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 49º CP E 61º CPP
Sumário: 1.- O despacho que, ao abrigo do art. 49º do Código Penal, converte a pena de multa não paga em prisão subsidiária configura uma alteração superveniente do conteúdo decisório da sentença de condenação;

2,.- Estando em causa a liberdade, antes de ser proferida aquela decisão, deve o juiz ouvir o arguido;

3.- A notificação, que tem que ser pessoal, configura uma formalidade essencial, cuja violação gera nulidade, de conhecimento oficioso, nos termos do art. 119º, al. c), do C.P.P., por violação do art. 61º, nº 1, al. b).

Decisão Texto Integral: Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO


1.

Nos presentes autos foi o arguido A... condenado na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 10 €, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, do art. 107º, nº 1, do RGIT.

O arguido não pagou a multa em que foi condenado e por despacho de 7-11-2012 foi decidido converter aquela multa em 133 dias de prisão subsidiária.

Em 29-11-2012 o arguido veio requerer o pagamento da pena de multa em 18 prestações mensais.

Por despacho de 14-12-2012 o pedido foi indeferido, por extemporaneidade.

2.

Notificado desta decisão o arguido recorreu, retirando da motivação as seguintes conclusões:

«I - A nosso ver, e se é certo que o pedido para pagamento da multa em prestações deve ser feito, em princípio, até 15 dias depois da notificação da conta (com a liquidação da multa e das custas), não é menos certo, por outro lado, ponderando os interesses em jogo e visto o espírito da lei, que deve ser admitido requerimento nesse sentido, pelo menos antes da fase de cobrança coerciva (como acontece no caso em apreço, onde o requerimento para pagamento em prestações foi apresentado antes da instauração da execução).

II - Isto é, o decurso do prazo de 15 dias após a notificação para proceder ao pagamento da multa não preclude, só por si e sem mais, a possibilidade de requerer o pagamento dessa mesma multa em prestações, pois não se trata de um prazo peremptório.

III - Aliás, e bem vistas as coisas, o prazo de cumprimento da pena de multa não é, afinal, nem de 15 dias, nem é, sequer, o equivalente ao tempo que abrange o vencimento das prestações fixadas.

IV - É o que resulta, claramente, do disposto no artigo 49º do Código Penal, onde, sob a epígrafe "conversão da multa não paga em prisão subsidiária", se estatui:
"1. Se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão (…).
2. O condenado pode a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa a que foi condenado.
3.

4. O disposto nos nºs 1 e 2 é correspondentemente aplicável ao caso em que o condenado culposamente não cumpra os dias de trabalho pelos quais, a seu pedido, a multa foi substituída (…)".

V - Mais se diz que, e em caso de incumprimento da pena de multa, segue-se, diz a lei, a sua "execução patrimonial" - artigo 491º do C. P. Penal, o qual, sob a epígrafe "não pagamento da multa", preceitua:
"1. Findo o prazo de pagamento da multa ou de alguma das suas prestações sem que o pagamento esteja efectuado, procede-se à execução patrimonial.
2. Tendo o condenado bens suficientes e desembaraçados de que o tribunal tenha conhecimento ou que ele indique no prazo de pagamento, o Ministério Público promove logo a execução, que segue os termos da execução por custas.
3. A decisão sobre a suspensão da execução da prisão subsidiária é precedida de parecer do Ministério Público, quando este não tenha sido o requerente".

VI - Por conseguinte, quando a lei fala em "execução patrimonial" refere-se a processo executivo, que se inicia se forem conhecidos bens ao condenado, suficientes e desembaraçados.

VII - Nos presentes autos nunca foi instaurado qualquer processo executivo, referindo-se o despacho constante de fls. 835, tal como ora recorrido, apenas a "inviabilidade de cobrança coerciva", sem qualquer suporte probatório ou procedimento executivo.

VIII - Manifestando o recorrente a vontade e propósito de efectuar o pagamento da multa em que foi condenado, e certo que esta pena que lhe foi aplicada realiza de forma eficaz as finalidades de prevenção geral e especial, não se vislumbra, qualquer necessidade e utilidade de transformar o arguido num pesado encargo para o estado, com consequências irreversíveis.

IX - Pelo que, atento às considerações apresentadas, salientando-se que a sua maior parte constituem já argumentação expedita na nossa jurisprudência vide Ac. R. Evóra 597/08.7CBTVR-B.El (praticamente transcrito), cujo sumário de conclusão diz: "O decurso do prazo de 15 dias, após notificação para pagamento da multa, não preclude a possibilidade de requerimento desse pagamento em prestações."

X - Há por isso erro na interpretação e aplicação do Direito.

XI - Na sequência do nosso modesto raciocínio, consideramos que o Senhor Juiz a quo violou os artigos 47º, 49º do C.P e 491º do C.P.P, entre outros.

XII - Indicam-se como violados os artigos 47º, 49º do C.P e 491º do C.P.P, entre outros».

3.

O Ministério Público respondeu, defendendo a manutenção do decidido.

Nos mesmos termos se pronunciou a Exmª P.G.A. junto desta relação.

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..

5.

Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.

Realizada a conferência cumpre decidir.

 


*

*


FACTOS PROVADOS

6.

Dos autos resultam os seguintes elementos, relevantes à decisão:

1 – por sentença de 2-2-2011 foi o arguido condenado na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 10 €, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, do art. 107º, nº 1, do RGIT;

2 – a sentença condenatória foi confirmada por acórdão desta relação de 25-1-2012, que transitou em julgado em 20-2-2012;

3 – o arguido não procedeu ao pagamento da multa no prazo legal;

4 – por despacho de 7-11-2012 foi proferida a seguinte decisão:

«nos termos dos autos, foi o arguido A...condenado na pena de 200 dias de multa à razão diária de € 10, o que perfaz € 2.000, por sentença transitada em julgado.

O arguido não procedeu ao pagamento de tal multa.

Cumpre apreciar e decidir.

O art. 49º, nº 1, do CP dispõe que “se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntaria ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão, não se aplicando, para o efeito, o limite mínimo dos dias de prisão constante do nº 1 do artigo 41º”.

Conforme se referiu, o arguido não procedeu ao pagamento da multa, sendo que também não requereu a substituição da multa por trabalho, nem lhe são conhecidos quaisquer bens, mostrando-se inviabilizado o pagamento coercivo.

Face ao exposto converto a pena de multa não paga pelo arguido A...em 133 (centro e trinta e três) dias de prisão subsidiária 2/3 de 200).

Notifique …»;

5 – previamente a este despacho o arguido não foi notificado para se pronunciar;

6 – em 29-11-2012 o arguido veio requerer o pagamento da multa em prestações mensais e sucessivas de 111,11 € mensais;

7 – por despacho de 14-12-2012 foi o pedido indeferido, nos seguintes termos: «… Da conjugação dos artigos 47º, nº 3, do CP e 498º, nº 2 e 3 do CPP resulta que o prazo para requerer o pagamento em prestações da pena de multa é o do pagamento voluntário, ou seja, dentro dos quinze dias seguintes ao da notificação para o efeito … Verifica-se, assim, que o requerimento do arguido é manifestamente extemporâneo, porquanto o mesmo foi apresentado muito depois de decorrido o prazo para o pagamento voluntário da pena de multa, quando, inclusivamente, esta já havia sido convertida em prisão subsidiária.

Face ao exposto, indefere-se o requerido, por extemporaneidade …».


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DECISÃO

Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação a questão a decidir respeita à tempestividade do pedido de pagamento em prestações da multa em dívida e à violação do disposto nos art. 49º do Código Penal e 491º do C.P.P.


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Como se disse, em 20-2-2012 o arguido foi condenado na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 10 €.

            Nos termos do art. 489º, nº 1 e 2, do C.P.P. o prazo de pagamento da multa é de 15 dias após o trânsito em julgado da sentença, a menos que tenha sido requerido e deferido o seu pagamento fracionado, o que não sucedeu.

            Apenas em 29-11-2012, depois de ter sido notificado da decisão que converteu esta multa na prisão subsidiária, o arguido veio requerer o pagamento da multa em que fora condenado em prestações.


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            O nº 5 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa, para além de consagrar o princípio do acusatório como princípio estruturante do nosso processo criminal, diz que a audiência e os actos instrutórios que a lei determinar estão subordinados ao princípio do contraditório.

Este princípio consagra o direito inalienável do arguido de intervir no processo, de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos e demais elementos de prova ou argumentos jurídicos, sobre questões que lhe digam respeito.

O contraditório tem sido interpretado como exigência de equidade, no sentido em que ao acusado deve ser proporcionada a possibilidade de expor a sua posição e de apresentar e produzir as provas em condições que lhe não coloquem dificuldades ou desvantagens em relação à acusação. O princípio do contraditório tem, portanto, uma vocação instrumental da realização do direito de defesa e do princípio da igualdade de armas: numa perspectiva processual, significa que não pode ser tomada qualquer decisão que afecte o arguido sem que lhe seja dada a oportunidade para se pronunciar.

Sobre a extensão processual do princípio do contraditório, ele abrange todos os actos susceptíveis de afectar a posição do arguido, desde o início até ao final do processo.

Umbilicalmente ligado ao princípio do contraditório está o princípio da audiência, expressão do direito do cidadão à justiça, na medida em que confere a todo o participante processual o direito de, através da sua audição, influir na declaração do direito.

Este direito encontra-se genericamente atribuído ao arguido no art. 61º, nº 1, al. b), do C.P.P., que se reporta aos direitos e deveres processuais do arguido, quando estabelece que o arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo do direito de «ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente os afecte».

O despacho que, ao abrigo do art. 49º do Código Penal, converte a pena de multa não paga em prisão subsidiária configura uma alteração superveniente do conteúdo decisório da sentença de condenação, alteração esta no sentido negativo, pois que tem como efeito a privação da liberdade do arguido condenado.

Estando em causa a possibilidade de conversão da pena de multa em prisão subsidiária, é evidente que se trata de decisão que pessoalmente afeta o arguido.

Podemos dizer, portanto, que estando em causa a liberdade, antes de ser proferida decisão que a retire, nomeadamente por via da substituição de pena não detentiva por pena detentiva, deve o visado ser informado para se poder pronunciar sobre essa possibilidade, querendo.

Aquela notificação, que tem que ser pessoal [1], configura uma formalidade essencial, cuja violação gera nulidade, de conhecimento oficioso, nos termos do art. 119º, al. c), do C.P.P., por violação do art. 61º, nº 1, al. b).

           


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DECISÃO

Pelos fundamentos expostos revoga-se o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que, previamente à conversão da pena de multa em prisão subsidiária, determine a notificação do arguido para se pronunciar.

            Sem custas.

Olga Maurício (Relatora)

Luís Teixeira


[1] Sem preocupações exaustivas e indicando apenas as decisões mais recentes vide os seguintes acórdãos: da relação de Coimbra, processos 334/07.3PBFIG, de 7-3-2012, e 141/08.6GBTNV, de 14-7-2010; da relação do Porto processos 662/05.2GNPRT-A.P1, de 19-1-2011; da relação de Lisboa processo 518/09.0PGLRS.L1-9, de 15-9-2011.