Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
771/15.0PAMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA BOLIEIRO
Descritores: FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO;
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA;
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA;
IMPUGNAÇÃO AMPLA DA MATÉRIA DE FACTO;
IN DUBIO PRO REO;
RECURSO DA PARTE CÍVEL
Data do Acordão: 06/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (J C GENÉRICA DA MARINHA GRANDE – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 127.º, 374.º, 400.º, 410.º E 412.º DO CPP; ARTS. 32.º E 205.º DA CRP
Sumário:
I – O imperativo constitucional da fundamentação (artigo 205.º, n.º 1, da CRP) assume no processo penal uma função estruturante das garantias de defesa do arguido.
II – Pela fundamentação da decisão da matéria de facto, é assegurado o conhecimento das razões factuais e jurídicas por que foi tomada uma decisão e não outra, de modo a facultar a opção reactiva (impugnatória ou não) adequada à defesa dos seus direitos e revelando-se, assim, essencial para o exercício do direito ao recurso.
III – A indicação e exame crítico da prova que serviu para formar a convicção, num formato tanto quanto possível completo, deve dar a conhecer com suficiência bastante o percurso lógico e racional efectuado pelo julgador em sede de apreciação e valoração da prova que conduziu à demonstração da factualidade objecto da decisão recorrida.
IV – No erro notório da apreciação da prova está em causa, não o conteúdo da prova em si, nomeadamente do que foi dito no depoimento ou nas declarações prestadas, cujo teor se aceita, mas a utilização que foi dada à referida prova, no sentido de a mesma suportar a demonstração de um determinado facto.
V – O princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º do CPP, determina que, salvo existência de prova vinculada ou tarifada (como é o caso da pericial, face ao valor que lhe é reconhecido no artigo 163.º, n.º 1, do CPP), o tribunal decide quanto ao mais de acordo com as regras da experiência e a livre convicção.
VI – Na motivação da decisão de facto é bastante a fundamentação da sentença recorrida quando o tribunal a quo elencou as razões da valoração que efectuou, identificando a prova por declarações, testemunhal, pericial e documental que relevou na formação da sua convicção e indicando os aspectos da mesma que conjugadamente o levaram a concluir no sentido de considerar demonstrada a factualidade da acusação, para além de ter assinalado de forma lógica e racional os fundamentos que no seu entendimento justificam a credibilidade que reconheceu e peso probatório que conferiu às citadas declarações e depoimento.
VII – A impugnação especificada da matéria de facto não só exige a menção dos pontos de facto concretos em relação aos quais a recorrente entende haver erro de julgamento, como a indicação das provas concretas que na sua perspectiva impõem uma decisão em sentido diverso da tomada pelo tribunal a quo.
VIII – Em sede de recurso, o uso feito do princípio in dubio pro reo afere-se pelo texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo que quando daí resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, optou pelo sentido desfavorável ao arguido, se impõe concluir que ocorreu violação daquele princípio.
IX – O recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
I – Relatório
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo de Competência Genérica da Marinha Grande - Juiz 2, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal singular, da arguida A…, com os demais sinais dos autos, pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal.
O ofendido B… deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida, requerendo a condenação desta no pagamento da quantia de 1 045,00 €, sendo 1 000,00 € a título de danos não patrimoniais e 45,00 € a título de danos patrimoniais, acrescida de juros legais desta a notificação até efectivo e integral pagamento.
A Administração Regional de Saúde do Centro, I.P., veio deduzir pedido de condenação da arguida no pagamento das despesas decorrentes da prestação de cuidados de saúde ao ofendido B…, no montante de 36,00 €, acrescido de juros de mora à taxa legal.
Realizou-se a audiência de julgamento e foi proferida sentença em que o tribunal a quo decidiu:
– Condenar a arguida pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de 6,00 € (seis euros), num total de 600,00 € (seiscentos euros).
– Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante B...e, em consequência, condenar a demandada a pagar àquele a quantia de 321,00 € (trezentos e vinte e um euros), a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora à taxa legal, e, no mais, julgar improcedente o referido pedido de indemnização civil, dele absolvendo a demandada.
– Julgar totalmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante Administração Regional de Saúde do Centro, I.P., contra a arguida, condenando esta a pagar àquela o montante de 36,00 € (trinta e seis euros), acrescido de juros de mora à taxa legal.

2. Inconformada com a decisão, dela recorreu a arguida que finalizou a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
“1. Existe contradição entre as versões que são apresentadas pelas testemunhas de acusação ouvidas em sede de audiência de julgamento.
2. Uma testemunha descreve os factos de um modo, a outra descreve-os de outro.
3. Na douta sentença é reconhecida a divergência de versões.
4. Não é dado como provado ou feita qualquer re­ferência ao modo como os factos terão tido lu­gar, remetendo-se os factos provados para o re­sultado.
5. Era essencial que o tribunal se tivesse pronun­ciado quanto ao modo como os factos tiveram lugar para que se percebesse de que modo o re­sultado ocorreu.
6. O tribunal não esclarece de que modo dá credi­bilidade a uma testemunha que diz ter visto o ofendido ser "atacado" por trás e o nariz aparece arranhado!
7. A douta sentença, ao não ter feito qualquer menção ao modo como os factos terão tido lu­gar e ao modo como o ofendido terá sido alega­damente agredido, encontra-se ferida de nulidade.
8. A contradição entre depoimentos deveria ter le­vado a que o tribunal tivesse ficado com dúvi­das, que são insanáveis.
9. As dúvidas que existem relativamente ao que se terá passado e como terá passado deveriam ter levado o tribunal a aplicar o principio do in dú­bio pro reo, absolvendo a arguida.
10. A indemnização que foi atribuída é excessiva.
11. A douta sentença encontra-se ferida de nulidade, tendo sido violado o disposto no artigo 374º do CPP, e um erro notório na apreciação da prova, violando o disposto no artigo 127º do CPP.
12. Só revogado a douta sentença e proferindo decisão que absolva a arguida se fará JUSTIÇA!”.

3. Admitido o recurso, veio a Digna Magistrada do Ministério Público apresentar resposta em que pugna pelo seu não provimento e formula as seguintes conclusões (transcrição):
“1º − A arguida A... foi condenada pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples.
2º − Cumpriria à arguida indicar quais os concretos pontos do elenco de factos dados como provados ou como não provados que a recorrente entende terem sido incorrectamente julgados; o que não ocorreu.
3º − O recurso apresentado pela arguida não cumpre os requisitos impostos pelo art.412º, n.º 3 CPP, pelo que não deve ser apreciado no que respeita à matéria de facto nem deve o Tribunal ad quem reapreciar a prova produzida.
4º − O erro notório na apreciação da prova não pode resultar da reapreciação da prova gravada, mas tem que ser patente da simples leitura da decisão impugnada (art. 410º, n.º 2, al. c) CPP).
5º − Analisado o texto da sentença recorrida, não resulta do mesmo nenhum juízo ilógico, contraditório ou contrário às regras da experiência comum; tendo o juiz de julgamento expressado o seu pensamento de forma clara e coerente.
6º − Estando em causa a prática de um crime de ofensa à integridade física simples apenas é necessário provar que existiu uma agressão, em que consistiu a mesma e que a mesma implicou uma lesão do bem jurídico protegido, uma vez que este tipo de crime é de execução livre (art. 143º, n.º 1 CP).
7º − Nenhum elemento dos autos impunha que o juiz de julgamento se pronunciasse sobre o modo como o ofendido foi arranhado”.

4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.° do Código de Processo Penal (doravante CPP), emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não foi apresentada qualquer resposta.
6. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre agora decidir.
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II – Fundamentação
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do CPP que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões formuladas na motivação, as quais delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar Na doutrina, cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág.113. Na jurisprudência, cf., entre muitos, os Acórdãos do STJ de 25-06-1998, in BMJ 478, pág.242; de 03-02-1999, in BMJ 484, pág.271; de 28-04-1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193. , sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso Cf. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28-12-1995.

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Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência da recorrente com a decisão impugnada, são as seguintes as questões suscitadas no recurso:
- Nulidade da sentença por falta de fundamentação.
- Erro notório na apreciação da prova.
- A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto provada, a consequente modificação daquela decisão e necessária absolvição do recorrente.
- Violação do princípio in dubio pro reo.
- Admissibilidade do recurso da sentença, na parte em que decidiu o pedido de indemnização civil deduzidos contra a recorrente.
- O excessivo montante indemnizatório fixado (se admissível o recurso interposto quanto a esta parte da sentença).
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2. A sentença recorrida.
2.1. Na sentença proferida pelo tribunal a quo foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
“1 – No dia 17 de Dezembro de 2015, cerca das 19h50, a arguida A... encontrava-se em artéria cujo nome não foi apurado, em (…), juntamente com o menor D… e a progenitora do mesmo (C…) quando surgiu B….
2 – Motivada por existir uma divergência entre a arguida e C… relativamente à entrega do menor à sua progenitora e pelo facto de B… ter pegado no menor e o ter entregado à progenitora, a arguida, sem que nada o fizesse prever, arranhou B… no nariz e no pescoço.
3 – Como consequência directa e necessária da conduta da arguida, B...sofreu dores e mal-estar, para além de uma escoriação na asa esquerda do nariz com 0,2 x 0,1cm e uma escoriação na face lateral esquerda do pescoço com 9cm.
4 – Tais lesões determinaram a B...e foram causa adequada de seis dias para a cura sem afectação da capacidade para o trabalho geral e para o trabalho profissional.
5 – Agiu a arguida com o propósito concretizado de molestar fisicamente B…, infligindo-lhe lesões, dores e mal-estar.
6 – A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
7 – Do Certificado do Registo Criminal da arguida nada consta.
8 – Em consequência da conduta da arguida, o ofendido recebeu tratamento no Centro de Saúde E… e, durante cerca de uma semana, teve de tomar antibiótico e aplicar pomada, tendo despendido cerca de € 21 (vinte e um euros) em medicação.
9 – O ofendido ficou desgostoso e angustiado.
10 – Os ferimentos que sofreu mostravam-se à vista e o arguido trabalha numa empresa onde tem por função atender clientes e fornecedores.
11 – Como consequência da conduta da arguida, a Administração Regional de Saúde do Centro, IP prestou cuidados de saúde a B… no dia 17 de Dezembro de 2015, que importaram num custo total de € 36 (trinta e seis euros).
(…)

2.2. Por sua vez, em relação a factos não provados, escreveu-se na sentença recorrida que (transcrição):
“Não resultaram provados quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa, designadamente que:
- a arguida é pessoa calma e estimada por todos aqueles que a conhecem;
- o demandante trata-se de pessoa educada, pacífica, paciente, respeitador e respeitado por todos que com ele convivem”.

2.3. A sentença recorrida apresenta a seguinte motivação da decisão de facto (transcrição):
“Nos termos do disposto no artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, o Tribunal deve indicar os motivos de facto e de direito que fundamentam a sua decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção.
Em sede de valoração de prova, dispõe o artigo 127.º do Código de Processo Penal que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do Tribunal.
A convicção do Tribunal sobre a factualidade considerada provada e não provada baseou-se na análise crítica e ponderada dos seguintes elementos de prova:
Para dar como provados os factos constantes da acusação e do pedido de indemnização civil que efectivamente resultaram provados, o Tribunal fundou a sua convicção nas declarações do demandante B…, que as prestou de forma coerente, escorreita e espontânea.
Tais declarações foram ainda corroboradas pelo depoimento prestado pela testemunha C…, quer em audiência, quer em sede de inquérito (o qual foi lido na audiência, conforme resulta da respectiva acta). O depoimento em causa revelou-se coerente, escorreito e espontâneo, tendo-se entrosado e articulado com as declarações prestadas pelo arguido.
De referir que, não obstante esta testemunha ter declarado em sede de audiência que apenas viu a arguida e o ofendido agarrados e, em sede de inquérito, que viu a arguida a arranhar o ofendido no pescoço, a mesma, confrontada com tal divergência, optou pela versão apresentada em inquérito, invocando o lapso de tempo entretanto já decorrido e o facto de as declarações prestadas em inquérito terem-no sido pouco após os factos, justificação que se nos afigura totalmente plausível e verosímil. Acresce que tal facto confere ao referido depoimento, a nosso ver, maior credibilidade, uma vez que se a testemunha C… tivesse procurado favorecer o ofendido, seu companheiro, teria desde logo, em sede de audiência, apresentado a mesma versão referida pelo ofendido, o que não sucedeu.
O Tribunal considerou ainda os seguintes elementos probatórios:
- relatório médico-legal de fls. 5, com base no qual foi dado como provado os pontos 3) e 4) da matéria de facto provada;
- certidão de dívida de fls. 9, com base na qual foi dado como provado o ponto 11) da matéria de facto provada;
- informação clínica de fls. 60, elaborada pelo Centro de saúde E… na ocasião referida nos pontos 8) e 11) da matéria de facto provada.
Assim, face à conjugação dos referidos elementos probatórios, que se revelaram credíveis, nos termos já apontados, o Tribunal formou a sua firme convicção no sentido de que os factos se passaram tal como descritos em sede de matéria de facto provada, não tendo merecido crédito a versão apresentada pela arguida, que, de resto, não foi corroborada por qualquer outro meio de prova.
Quanto aos antecedentes criminais, o Tribunal baseou-se no Certificado do Registo Criminal da arguida e relativamente à sua situação pessoal, familiar e económica, mereceram crédito as suas declarações.
Quanto aos factos não provados, quanto a eles não foi produzida qualquer prova”.
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3. Apreciando.
3.1. Diz a recorrente que a sentença recorrida padece de nulidade por falta de fundamentação, nos termos do disposto nos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a), ambos do CPP, por nela não se fazer qualquer menção ao modo como os factos terão tido lugar e ao modo como ofendido terá sido alegadamente agredido, para além de que não esclarece a credibilidade dada à testemunha de acusação nem explica qual a opção que tomou perante as versões divergentes fornecidas pela prova pessoal que o tribunal a quo considerou relevante.
Ou seja, a recorrente invoca falta de fundamentação da sentença recorrida ao nível da enumeração dos factos (provados e não provados) e do exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal a quo.
Pois bem.
O imperativo constitucional da fundamentação (artigo 205.º, n.º 1 da CRP) assume no processo penal uma função estruturante das garantias de defesa do arguido, uma vez que assegura o conhecimento das razões factuais e jurídicas por que foi tomada uma decisão e não outra, de modo a facultar a opção reactiva (impugnatória ou não) adequada à defesa dos seus direitos e revelando-se, assim, essencial para o exercício do direito ao recurso. Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 147/00, de 21-03-2000, disponível na Internet em <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/>.
Consequentemente, serve um propósito intraprocessual voltado para a reapreciação das decisões no âmbito do sistema recursório, permitindo ao tribunal superior conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico contido em tais decisões, para efectuar o seu próprio juízo no âmbito da sindicância que lhe cumpre realizar. Cf. Acórdão do STJ de 16-03-2005, proferido no processo n.º 05P662 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>.
Conforme resulta do disposto no artigo 374.º, n.º 2 do CPP, a fundamentação da sentença consiste na enumeração dos factos provados e não provados, bem como na exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
No âmbito da decisão sobre a matéria de facto, para além da indicação do que se considera provado e não provado, a exigida fundamentação destinada à explicitação do processo de formação da convicção do julgador pressupõe que, a par da indicação dos meios de prova utilizados, o tribunal proceda à enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas produzidas, dos motivos que sustentam determinada opção por um ou outro dos meios de prova, dos fundamentos da credibilidade reconhecida às declarações e depoimentos e do valor dos documentos e exames, ou seja, de tudo o que o julgador privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio que seguiu e das razões da sua convicção. Cf. Acórdão do STJ de 16-03-2005, atrás indicado.
Ou seja, o já referido exame crítico das provas que, no fundo, corresponde à indicação das razões pelas quais e em que medida o tribunal valorou determinados meios de prova como idóneos e credíveis e entendeu que outros em sentido diverso não era atendíveis, explicitando os critérios lógicos e racionais que utilizou na sua apreciação valorativa, e que permite, assim, aferir a concreta utilização que o julgador fez do princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º do CPP, tendo em vista a verdade prático-jurídica baseada na convicção pessoal, mas em todo o caso objectivável e motivável e, portanto, capaz de se impor aos outros Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I vol. reimp., Coimbra Editora, 1984, págs.202-205..
Para satisfazer as finalidades processuais que o justificam, o dever de fundamentação não impõe ao julgador que proceda a uma relacionação exaustiva de cada um dos meios de prova em que se baseou para considerar provado cada um dos factos que assim considerou. Ponto é que a indicação e exame crítico da prova que serviu para formar a convicção, num formato tanto quanto possível completo, mas conciso, conforme estipulado na lei, permita cumprir as apontadas finalidades, dando a conhecer com suficiência bastante o percurso lógico e racional efectuado pelo julgador em sede de apreciação e valoração da prova que conduziu à demonstração da factualidade objecto da decisão recorrida.
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In casu, conforme se alcança da transcrição supra efectuada em 2.1. o tribunal a quo fez constar no ponto 2 da sentença recorrida a factualidade relativa à actuação levada a cabo pela arguida e que configura ofensa à integridade física. Tendo presente que o tipo incriminador do artigo 143.º do Código Penal fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente de esta causar marca física, dor, mal-estar corporal, sofrimento ou incapacidade para o trabalho, como também não relevam para a tipicidade os meios utilizados pelo agressor ou a duração da agressão, se bem que todas essas circunstâncias devam ser tidas em conta na determinação da medida da pena (cf. Acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 18 de Dezembro de 1991 Proferido no processo n.º 41618 e publicado no Diário da República n.º 33/1992, Série I-A, de 08-02-1992.), verificamos que a factualidade indicada no citado ponto 2 descreve com clara suficiência o acto ofensivo [arranhou B...no nariz e no pescoço], sendo certo que, de acordo com as regras da experiência, a normalidade da vida e a capacidade de entendimento do cidadão comum, é sabido que “arranhar” corresponde ao acto ferir com as unhas, o que, aliás, coincide, como não podia deixar de ser, com o significado que aquele verbo apresenta em qualquer dicionário. Acresce que, não obstante não sejam exigidos para o preenchimento do apontado tipo, os ferimentos, dores e mal-estar identificados no ponto 3 da sentença recorrida que, como ali consta, foram consequência directa e necessária da conduta da arguida, contribuem para a concretização do acto descrito no ponto anterior, especificando com maior detalhe as partes do corpo atingidas com a ofensa e que já aí haviam sido referidas.
Temos, assim, que a descrição factual contida nos aludidos pontos cumpre as exigências de fundamentação impostas pela citada norma do artigo 374.º, n.º 2 do CPP, contendo materialidade bastante para preencher elementos objectivos do referido tipo incriminador.
Por outro lado, conforme se pode ler em 2.3., na sentença recorrida o tribunal a quo expôs a motivação quanto à decisão de facto, da qual consta a indicação da prova em que se baseou para formar a sua convicção, identificando a testemunha inquirida em audiência cujo depoimento assim relevou (C…) e o demandante que prestou declarações (B…), explanando a razão de ciência de cada um, o valor do depoimento e das declarações que produziram e os motivos da credibilidade que lhes foi reconhecida, assinalando ainda os esclarecimentos prestados pela referida testemunha, quando confrontada com o seu depoimento anterior no inquérito, e as razões pelas quais daí concluiu que a espontaneidade revelada só vinha reforçar a credibilidade do seu relato. Da fundamentação aduzida na sentença recorrida retira-se ainda que o tribunal a quo entendeu que aquele depoimento corroborou o teor das declarações do ofendido no elemento essencial de que a arguida o arranhou [fazendo-se menção expressa a que o atingiu no pescoço].
Para além da prova pessoal, o tribunal a quo indicou ainda os resultados da perícia que suportaram a demonstração da matéria dos pontos 3 e 4, bem como os documentos que também relevaram em sede probatória.
Verificamos, pois, que o tribunal a quo, reportando-se às concretas provas consideradas, efectuou uma exposição em que deu conta de forma perceptível para quem a lê do processo lógico e racional seguido na formação da sua convicção, indicando a prova analisada, a valoração que fez da mesma, o grau de credibilidade que lhe reconheceu e a demonstração de factos que logrou alcançar através daquela.
Permitindo, assim, aos destinatários da decisão, a terceiros e bem assim a este tribunal de recurso conhecer de forma bastante as provas e as razões que estiveram na base da formação da convicção quanto à sustentação probatória daquela factualidade.
O que nos leva a concluir que a fundamentação que o tribunal a quo fez constar da sentença recorrida é suficiente para satisfazer as exigências e finalidades contidas na lei, nos termos acima expostos, não havendo, pois, razões que determinem a verificação da nulidade suscitada no recurso, que assim deve improceder.
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3.2. Como é sabido, a decisão sobre a matéria de facto é susceptível de ser sindicada por duas vias: por um lado, no contexto mais restrito dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2 do CPP e, por outro, no âmbito da impugnação ampla regulada no artigo 412.º, n.os 3, 4 e 6 do mesmo diploma.
3.2.1. No que respeita à primeira via, os vícios decisórios elencados no citado artigo 410.º, n.º 2 devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão.
Neste contexto, conforme se assinala no Acórdão do STJ de 20-04-2006, o erro notório na apreciação da prova previsto na alínea c) do referido normativo “consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto, quando a conclusão deveria manifestamente ter sido a contrária, já por força de uma incongruência lógica, já por ofender princípios ou leis formulados cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas, ou contrariar princípios gerais da experiência comum das pessoas, já por se ter violado ou postergado um princípio ou regra fundamental em matéria de prova. Existe erro notório na apreciação da prova quando, «pelo menos, a prova em que se baseou a decisão recorrida não poderia fundamentar a decisão do tribunal sobre essa matéria de facto»”. Aresto proferido no processo n.º 06P363 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>.
No erro notório da apreciação da prova está em causa, não o conteúdo da prova em si, nomeadamente do que foi dito no depoimento ou nas declarações prestadas, cujo teor se aceita, mas a utilização que foi dada à referida prova, no sentido de a mesma suportar a demonstração de um determinado facto.
In casu, da análise do texto da decisão recorrida, em conjugação com as regras da experiência comum, não se detecta qualquer erro ostensivo que evidencie o desacerto da opção tomada quanto à matéria que o tribunal considerou provada.
Com efeito, conforme já se assinalou supra (cf. 3.1.) na fundamentação quanto à matéria de facto dada como assente, acima transcrita (cf. 2.3.), o tribunal a quo elencou as razões da valoração que efectuou, identificando a prova por declarações, testemunhal, pericial e documental que relevou na formação da sua convicção e indicando os aspectos da mesma que conjugadamente o levaram a concluir no sentido de considerar demonstrada a factualidade da acusação, bem como assinalando de forma lógica e racional os fundamentos que no seu entendimento justificam a credibilidade reconhecida às declarações do demandante B… ao depoimento da testemunha C…, tendo considerado que ambos foram escorreitos, coerentes e espontâneos e que a segunda explicou de modo plausível e verosímil as razões da divergência relativamente ao depoimento que antes prestara em sede inquérito e que fundamentalmente se prendem com o lapso de tempo entretanto decorrido.
Como resulta da posição assumida no recurso, as razões da divergência da recorrente em relação ao que concluiu o tribunal a quo prendem-se com a diferente valoração da prova produzida, sendo que aquela pretende substituir a sua própria convicção à que foi alcançada pelo tribunal que julgou a causa.
Sucede que nesta matéria vigora o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º do CPP, nos termos do qual, salvo existência de prova vinculada ou tarifada (como é o caso da pericial, face ao valor que lhe é reconhecido no artigo 163.º, n.º 1 do CPP), o tribunal decide quanto ao mais de acordo com as regras da experiência e a livre convicção.
Livre apreciação que, embora não sujeita a regras legais que pré-determinem o valor das provas, tem de se traduzir “em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão”. Cf. Acórdão n.º 1165/96 do Tribunal Constitucional de 19-11-1996, disponível na Internet em <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/>.
Daí a relevância da fundamentação (neste caso de facto) que obrigatoriamente deve constar da sentença, nos termos previstos no artigo 374.º, n.º 2 do CPC e conforme atrás apreciámos (cf. 3.1.).
Como acabámos de dizer, na motivação da decisão de facto que fez constar na fundamentação da sentença recorrida o tribunal a quo elencou as razões da valoração que efectuou, identificando a prova por declarações, testemunhal, pericial e documental que relevou na formação da sua convicção e indicando os aspectos da mesma que conjugadamente o levaram a concluir no sentido de considerar demonstrada a factualidade da acusação, para além de ter assinalado de forma lógica e racional os fundamentos que no seu entendimento justificam a credibilidade que reconheceu e peso probatório que conferiu à citadas declarações e depoimento.
Neste contexto, no que respeita a circunstância invocada no recurso que se prende com a credibilidade dada ao depoimento da testemunha C… quando esta diz ter visto o ofendido a ser “atacado” por trás e o nariz aparece arranhado, pese embora o apontado conteúdo do depoimento extravase o âmbito do texto da decisão recorrida, sempre se dirá que se enquadra dentro da normalidade dos acontecimentos e, portanto, é conforme às regras da experiência comum lograr arranhar alguém que se “ataca” por trás, servindo os braços para assegurar o comprimento bastante para que as mãos e, na sua extremidade, os dedos que arranham, atinjam o nariz (e o pescoço) da pessoa visada.
Assim, por tudo quanto foi dito, conclui-se que do quadro descrito na motivação quanto à matéria de facto provada e do teor global da decisão recorrida não se verifica qualquer erro na valoração probatória resultante da violação das regras da experiência comum que seja patente aos olhos de qualquer observador que lê a decisão, pelo que forçoso se torna concluir que a sentença recorrida não padece do vício de erro notório na apreciação da prova invocado pela recorrente.
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3.2.2. A segunda via indicada remete-nos para a impugnação ampla da matéria de facto, regulada no artigo 412.º, n.os 3, 4 e 6 do CPP, em que a recorrente invoca razões de ordem probatória que no seu entendimento impõem decisão diversa da tomada pelo tribunal a quo.
Neste caso a sindicância não se limita ao texto da decisão, estendendo-se à análise da prova produzida em audiência, dentro dos limites resultantes do que foi fornecido pela recorrente, em cumprimento do ónus de especificação estabelecido no citado artigo 412.º, n.os 3 e 4.
Não se trata, contudo, da realização de um novo julgamento, como se o da 1.ª instância não tivesse ocorrido, antes constituindo um remédio jurídico destinado a dar resposta às situações em que a prova produzida impõe decisão diversa da alcançada.
Como sublinha, pois, o STJ, em Acórdão de 12-06-2008, embora a sindicância da matéria de facto operada através da impugnação ampla se debruce sobre a prova produzida em audiência de julgamento, “há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação”. Aresto proferido no processo n.º 07P4375 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>.
No âmbito da impugnação ampla compete exclusivamente ao recorrente fixar o objecto do recurso, através da indicação precisa e especificada dos elementos previstos no citado artigo 412.º, n.os 3 e 4, ou seja, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. Por outro lado, quando as provas tenham sido gravadas, a especificação deve ser feita por referência ao consignado na acta, com a concreta indicação das passagens em que se funda a impugnação, indicação essa que terá de poder deduzir-se das conclusões formuladas (cf. artigos 412.º, n.º 4 e 417.º, n.º 3, ambos do CPP).
In casu, no corpo da motivação, partindo da afirmação de que “a matéria dada como provada não é condizente com a prova produzida em sede de julgamento, impondo-se que se faça uma reapreciação da mesma”, a recorrente apresenta uma súmula dos relatos em que o tribunal a quo se baseou para formar a sua convicção para de seguida concluir que a forma como os factos foram descritos leva a que exista a dúvida relativamente ao modo como tiveram lugar, se é que aconteceram, fazendo depois apelo à aplicação do princípio in dubio pro reo.
Ora, para além de não ter indicado os factos que considerou incorrectamente julgados, a recorrente não especificou as provas que no seu entendimento impõem decisão diversa da recorrida e quanto às declarações e depoimentos sintetizados no corpo da motivação, não indicou com clareza bastante as pertinentes referências de gravação efectuada no sistema Citius, de modo a que tal se possa deduzir das conclusões do recurso.
Assim, não só não indica a concreta factualidade que pretende pôr em crise como a referência às provas que no seu entendimento impõem decisão diversa da proferida pelo tribunal a quo não obedece à especificação exigida pelo citado artigo 412.º, n.os 3, alínea b), e 4 do CPP, estando, pois, em falta tais elementos essenciais para a observância do ónus da impugnação ampla da matéria de facto.
É que, como se assinala no Acórdão da Relação Évora de 26-02-2013 Aresto proferido no processo n.º 605/10.1PALGS.E1 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>., não basta ao recorrente enunciar a sua pretensão quanto a um determinado resultado final, nomeadamente, que a prova produzida é insuficiente para a demonstração dos factos que indica, de tal modo que haja o tribunal ad quem de oficiosamente retirar conclusões sobre quais as provas concretas que se ajustariam àquela pretensão final e, dentro delas, quais as passagens relevantes, depois de ouvir na íntegra a prova gravada, tanto mais que o recurso da matéria de facto não é um novo julgamento feito na 2.ª instância.
Ora, como se disse antes, a impugnação especificada da matéria de facto não só exige a menção dos pontos de facto concretos em relação aos quais a recorrente entende haver erro de julgamento, como a indicação das provas concretas que na sua perspectiva impõem uma decisão em sentido diverso da tomada pelo tribunal a quo, o que no caso não foi cumprido, limitando-se aquela a analisar toda a prova e valorá-la de forma diferente, apontando ao tribunal de recurso o sentido extraído da valoração assim feita para que este decida de acordo com a sua versão.
Assim, uma vez que não satisfaz os requisitos do artigo 412.º, n.os 3 e 4 do CPP, deve ser rejeitada a impugnação da matéria de facto com base em erro de julgamento, improcedendo, pois, a pretensão que a tal respeito foi deduzida no recurso.
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3.3. O in dubio pro reo constitui decorrência do princípio da presunção da inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, e dá resposta às situações de dúvida quanto à verificação de determinado facto, impondo que o non liquet em matéria de prova seja valorado a favor do arguido.
Em sede de recurso, o uso feito do princípio in dubio pro reo afere-se pelo texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo que quando daí resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, optou pelo sentido desfavorável ao arguido, se impõe concluir que ocorreu violação daquele princípio.
Ora, lida a sentença recorrida, em particular o que nela se escreveu quanto à motivação de facto, não resulta que o tribunal a quo tenha ficado num estado de dúvida – dúvida razoável, objectiva e motivável – quanto aos factos constantes dos pontos referidos no recurso e que a partir desse estado tenha considerado os mesmos demonstrados.
Aliás, na aludida motivação o tribunal a quo não só indicou as razões que de modo lógico e coerente justificam a opção probatória que tomou, como assinalou que da conjugação dos elementos probatórios que referiu e que se lhe afiguraram credíveis, formou a sua firme convicção no sentido de que os factos se passaram tal como descritos em sede de matéria de facto provada.
Não se detecta, pois, qualquer estado de dúvida na explanação efectuada na sobredita motivação, antes nela se manifesta a convicção segura baseada na indicada prova, pelo que não havia que lançar mão do princípio in dubio pro reo, destinado, como vimos, a fazer face aos estados dubitativos do julgador e não a dar resposta às dúvidas da recorrente sobre a matéria de facto, no contexto da valoração probatória por ela efectuada e com base na qual pretende ver substituída a convicção formada pelo tribunal a quo.
Fica, deste modo, afastada a invocada violação do princípio in dubio pro reo.
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3.3. Considerando-se definitivamente fixada a matéria de facto, nos termos em que o foi pela 1.ª instância, conclui-se que os factos provados preenchem os elementos objectivos e subjectivos do crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigos 143.º, n.º 1 do Código Penal, por cuja prática foi a recorrente condenada, nada havendo a apontar quanto ao enquadramento jurídico a esse respeito efectuado na sentença recorrida.
Por sua vez, a pena aplicada – pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 6,00 € (seis euros), num total de 600,00 € (seiscentos euros) –, respeita os critérios estabelecidos nos artigos 40.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal, sendo que as operações de determinação da medida da pena observaram um correcto procedimento, indicando e sopesando os factores relevantes para a dosimetria concreta, a qual foi fixada dentro dos parâmetros estipulados na lei e sem que se verifique violação das regras de experiência ou desproporção da quantificação efectuada Cf. Acórdão do STJ de 14-05-2009, proferido no processo n.º 19/08.3PSPRT e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>., não merecendo, pois, qualquer censura a decisão tomada pelo tribunal a quo.
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3.4. Nos presentes autos o ofendido B...deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida, requerendo a condenação desta no pagamento da quantia global de 1 045,00 €, acrescida de juros legais desde a notificação até efectivo e integral pagamento.
O tribunal a quo julgou parcialmente procedente o pedido assim deduzido, condenando a recorrente pagar ao demandante B...a quantia de 321,00 € (trezentos e vinte e um euros), a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora à taxa legal.
Quanto à presente matéria civil a arguida invoca no recurso que a indemnização atribuída ao demandante é excessiva (cf. conclusão 10).
Pois bem.
Conforme dispõe o artigo 400.º, n.º 2 do CPP, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
Assim, para que o recurso seja admissível é necessário que se mostrem preenchidos dois pressupostos cumulativos: 1) o valor do pedido deve ser superior à alçada do tribunal recorrido e 2) a sucumbência do recorrente há-de ser superior a metade do valor daquela alçada.
Por seu turno, segundo estabelece o artigo 403.º, n.º 3 do CPP, a limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida.
Ora, considerando os montantes em causa na decisão impugnada e que o valor da alçada a atender corresponde a 5 000,00 € (cf. artigo 44.º, n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto – Lei da Organização do Sistema Judiciário), forçoso se torna concluir que, face ao que dispõe o artigo 400.º, n.º 2 do CPP, o recurso da sentença na parte relativa aos citados pedidos de indemnização civil é inadmissível.
Por outro lado, tendo em vista o preceituado no artigo 403.º, n.º 3 do CPP, no presente recurso não foi tomada qualquer decisão em sede de enquadramento jurídico-penal que se repercuta ao nível da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, previstos no artigo 483.º do Código Civil (ex vi artigo 129.º do Código Penal), de modo a colocá-la em crise, uma vez que a factualidade apurada foi mantida nos precisos termos em que havia sido fixada pela 1.ª instância.
A decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior, pelo que nada obsta a que esta instância conheça e aprecie os pressupostos de admissibilidade da impugnação, nos termos previstos no artigo 414.º, n.º 3 do CPP.
Assim, face ao que ficou dito supra, deve o recurso ser rejeitado, em conformidade com o disposto nos artigos 420.º, n.º 1, alínea b), segunda parte, e 414.º, n.º 2, ambos do CPP, resultando, pois, prejudicado o conhecimento da questão suscitada que respeita à referida decisão indemnizatória.
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III – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em:
a) Negar provimento ao recurso, na parte respeitante à matéria criminal, confirmando, em consequência, a sentença recorrida.
b) Rejeitar o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil em que foi condenada a recorrente.
Custas da parte criminal pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (artigos 513.º, n.os 1 e 3 do CPP e 8.º, n.º 9 do RCP e Tabela III anexa), sendo as custas relativas ao pedido de indemnização civil também a cargo daquela.

Coimbra, 13 de Junho de 2018
(O presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela primeira signatária – artigo 94.º, n.º 2 do CPP)

Helena Bolieiro (relatora)
Brízida Martins (adjunto)