Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1407/19.5T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: DOAÇÃO
INCUMPRIMENTO CONTRATUAL DO DONATÁRIO
ENCARGO MODAL
INDEMNIZAÇÃO
FIXAÇÃO EM INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
Data do Acordão: 06/01/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 966º C. CIVIL; 609º, Nº 2 DO NCPC.
Sumário: I – Há violação de um dever lateral ou acessório imposto no contrato de doação de bens móveis do designado “acervo hereditário” / “Espólio do Dr. ...’, por parte do doador ora Autor, a que correspondem as consequências do incumprimento contratual pelo donatário, se transcorridos mais de 12 anos sobre a data da doação, o Município Réu, em lugar de proceder em conformidade com o encargo de criação de um museu ao qual estavam destinados os bens, e pagar uma remuneração ao Autor como compensação pela doação desses bens, nada fez.

II – Não conferindo a violação do encargo modal o direito à resolução do contrato de doação, por esse direito não ter sido expressamente previsto (cf. art. 966º do C.Civil), resta sempre o direito do doador a obter uma indemnização.

III – Aquela obrigação de indemnização, sendo impossível a restituição in natura, configura uma típica dívida de valor, em que o dinheiro intervém como um meio de liquidação da prestação, não sendo o dinheiro, em si mesmo, o objeto da prestação, a qual é constituída por um valor patrimonial.

IV – Estando-se perante uma dívida de valor, tem de ser restituído o valor correspondente à prestação em falta, a definir de forma objetiva e atual, devendo a indemnização a arbitrar colocar o doador na situação em que estaria se não se tivesse verificado o facto que obriga à indemnização.

V – Não se detendo todos os elementos que permitam apurar aquele valor, dever-se-á relegar a sua fixação para ulterior incidente de liquidação, a processar nos termos dos arts. 358º a 361º do n.C.P.Civil, por tal se mostrar exequível – art. 609º, nº 2, do mesmo n.C.P.Civil.

VI – Isto porque quando não estão determinadas as “balizas” dentro das quais vai funcionar o juízo de equidade – os “limites mínimo e máximo” – deve optar-se pela condenação «no que vier a ser liquidado», no quadro previsto no art. 609º, nº 2 do n.C.P.Civil.

VII – Sendo certo que só quando for de antever que a prova pericial, ou outras diligências que possam ser ordenadas, oficiosamente, não surtam efeito útil, o Tribunal deve decidir com base na equidade e, assente em tal critério, fixar desde logo a indemnização devida.

Decisão Texto Integral:








Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

1 – RELATÓRIO

R..., divorciado, residente na ..., intentou a presente ação de condenação sob a forma de processo comum, contra MUNICÍPIO DE ..., alegando para tanto e em síntese:

Autor e Réu, Município de ..., celebraram um contrato de doação modal, por escritura pública de 17 de Maio de 2006; o objeto desse contrato foram os bens móveis constantes do clausulado; o Autor era dono e legítimo possuidor dos bens constantes das 567 fichas devidamente identificadas e apensas em dois dossiers rubricados pelas partes (livros, jornais, revistas e mapas, cadernos constituídas por material filatélico e numismático, medalhístico, objetos vários, revistas, jornais e outros), bens esses, na sua maioria enorme relevância histórica e elevado valor material atendendo ao facto de neles se incorporar parte do “acervo hereditário de ...”.

O contrato de doação obedeceu a condições essenciais: o doador transferiu a propriedade dos bens ao donatário para que este edificasse um futuro museu, sendo que o donatário aceitou a doação com dois encargos: a criação de um museu e a garantir uma remuneração mensal ao doador a partir de finais de 2007, no valor de €24.000,00 (vinte e quatro mil euros) por ano a pagar ao Autor, em parcelas de € 2.000,00 (dois mil euros) mensais, o que foi reciprocamente aceite pelos Autor e Réu, tendo o Autor entregue os referidos bens ao Réu e o A. doou ao Réu 1/3 da herança indivisa de ...

Mais alega que, até hoje, e apesar do doador autor ter cumprido com a sua palavra, o Réu não cumpriu os encargos da doação; o Autor por diversas vezes e de formas diferentes interpelou o R., para que este cumprisse os encargos, não o tendo feito.

Refere o Autor que foi levado a aceitar as condições do contrato sempre de boa-fé, atendendo a uma preocupação altruística por um lado e por outro lado egoística, com vista à perceção das referidas contraprestações e que seria incompaginável que alguém pudesse doar um acervo composto de relevante interesse histórico sem ter como assente uma contrapartida séria, justa e aprazada, pelo que, com a falta de cumprimento dos encargos por banda do réu, sofreu o autor um prejuízo que se pode quantificar e qualificar pela expectativa e pela certeza que se verteram no referido contrato, não se tendo conferido à violação do encargo modal o direito à resolução do contrato de doação, assistindo assim ao autor o direito de obter uma indemnização, nos termos do disposto nos artigos 801º e 966º do Código Civil, indemnização essa que ascende a €288.000,00 (duzentos e oitenta e oito mil euros), cujos cálculo se efetua da seguinte forma: €2.000,00 x 12 = €24.000,00 x 12 anos = €288.000,00, acrescidos dos juros legais.

Conclui que a conduta do réu causou ao autor enorme transtorno pessoal, social e tem afetado a sua saúde, pugnando assim, e na procedência da ação por provada, pela condenação do Réu a pagar ao Autor a quantia de €288.000,00 (duzentos e oitenta e oito mil euros) acrescido de juros à taxa legal desde a citação e na procuradoria condigna.

                                                                          *

Citado para contestar, o Réu ofereceu contestação, por exceção e por impugnação.

Excecionou desde logo a incompetência do Tribunal em razão da matéria do tribunal em razão da matéria, com os fundamentos constantes da contestação apresentada, pugnando pela absolvição do Réu. da instância, nos termos do nº 2 do artigo 576º e nº 1 do artigo 99º todos do Código do Processo Civil.

Excecionou ainda o Caso Julgado, alegando ter corrido termos neste juízo, ação com o nº ... finda e já transitada em julgado por transação homologada por sentença; que tal ação foi intentada pelo aqui Autor contra o Réu Município de ..., peticionado a resolução do negócio que configurou a doação do “Espólio do ...”, definindo o seu objeto pela referência aos bens entregues constantes dos cadernos juntos na referida ação e que, por não ter sido concretizado o fim a que se destinaria tal doação viria o negócio a ser resolvido por devolução dos bens, o que se operou em conformidade com a sentença, vindo agora o Autor, com nova ação, sustentada na mesma causa de pedir mas dela pretendendo extrair outras consequências que não peticionou na anterior ação, apesar de ter transigido no sentido de que a questão do “espólio entregue/doado”, ficava definitivamente resolvida, verificando-se assim a exceção de caso julgado prevista nos artigos 576º, 577º alínea i) , 580º, todos do Código de Processo Civil, importando assim a absolvição da instância.

Em sede de impugnação, veio arguir a nulidade do contrato de doação, alegando que o aludido contrato não é escritura pública nem tão pouco poderá ser considerado como contrato de doação modal, tal com configurado pelo Autor; que as declarações subscritas pelo então Presidente do Município de ... e o Autor, sem qualquer deliberação prévia do órgão competente e sem posterior ratificação do órgão competente para tal, põe em crise toda a validade jurídica que daí se possa ou pretenda extrair por via da presente ação, uma vez que atuou o então Presidente da Câmara de ..., sem poderes para tal, agindo de modo próprio em representação do Município, aceitando a dita doação e aí consignando uma obrigação “modal” cujo conteúdo não poderia vincular então ou para o futuro, o Réu.

Alegou ainda que é inquestionável que o autor quis transferir gratuitamente para o domínio e posse do Município bens de sua pertença em momentos distintos, e que alguns deles se mantém na posse do Município, nomeadamente os que se reportam à entrega de 2002, doação manual que se consumou com a traditio, sem que tivesse sido outorgado qualquer contrato ou outra formalização, para além do inventário realizado por A. e os serviços do R. e que o que se pode e deve extrair das declarações negociais em causa é que o A. doou os bens que entendeu doar, por transmissão gratuita ao R., para que este os destinasse a um futuro museu que e se viesse a edificar e tal condição apenas se teria por incumprida pelo R. se tal museu já tivesse sido edificado e aos bens em causa tivesse sido dado destino diferente, o que não ocorreu, nem se tendo o R. vinculado perante o A. a levar a cabo tal edificação, não sendo ele o titular do direito subjetivo inerente a tal edificação, pois que a opção de tal obra caberia estritamente no âmbito dos poderes de gestão do interesse público, definidas pelos órgãos colegiais próprios (Câmara Municipal e Assembleia Municipal).

Impugnou ainda alegando que a doação do quinhão hereditário nos bens imóveis teve por base a sua incapacidade de manutenção dos mesmos e a evidência da sua degradação.

Mais alega, e em conclusão, que a opção de edificação de um museu sempre dependeria de variáveis que o Réu por si só não poderia garantir, nomeadamente as que se prendem com a colegialidade dos órgãos decisores e os ciclos políticos que lhes estão subjacentes, e bem assim por força das regras de tutela administrativa do interesse público, no que tange a opções orçamentais e de tesouraria, em cada momento e que o valor histórico e material do espólio em causa não revestia de facto o interesse e dimensão com que o Autor “o quis cunhar”, pelo que existiria um enorme desvalor entre a doação e o encargo pelo que, para além de ter sido devolvido ao Autor parte do espólio, aqui peticionado como parte da causa de pedir e que veio a revelar-se de nenhum valor, o demais fora já entregue em 2002 sem qualquer condição à data da traditio, que o Réu aceitou.

Conclui assim pela procedência das exceções invocadas, com a consequente absolvição do Réu da instância, ou, assim não se entendendo, julgada a ação totalmente improcedente e o Réu absolvido dos pedidos.

                                                                          *

O autor apresentou resposta às exceções.

Procedeu-se realização de audiência prévia, julgando-se improcedente a arguida exceção de incompetência do Tribunal em razão da matéria, relegando-se para momento ulterior o conhecimento das exceções de caso julgado e a arguida nulidade do contrato objeto dos presentes autos, fixando-se o objeto do litigio e selecionando-se os temas da prova.

Procedeu-se à realização de audiência de julgamento, com observância de todas as formalidades legais, com observância de todas as formalidades legais aplicáveis, conforme resulta das atas respetivas.

Na sentença, depois de se declarar que improcediam ambas as exceções que restavam por apreciar [a do caso julgado e a da nulidade do contrato], considerou-se, em suma, verificado o incumprimento culposo do contrato de doação modal por parte do Réu Município, já que era obrigação deste promover a constituição da sociedade nos termos ali constantes e provou-se que, o não cumprimento dessa condição causou prejuízos ao Autor na medida da sua expectativa quanto às consequências do negócio, pelo que, passando ao arbitramento de indemnização por esse incumprimento do contrato de doação modal, entendeu-se que tal devia ter lugar através da equidade, fixando-se assim o valor da indemnização a que o A. tinha direito em €150.000,00, a que acresciam juros, nestes termos se dando procedência à ação, o que tudo se traduziu no seguinte concreto “dispositivo”:

«Decisão

Face ao exposto, julgando improcedentes as exceções arguidas e julgando parcialmente procedente por provada a presente ação, decido:

1– Condenar o Réu Município de ... a pagar ao autor R... a quantia total de €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, a contar desde a presente data, até efetivo e integral pagamento.

2 – No mais, absolver o Réu do pedido.

3 - Custas da ação a cargo do autor e réu, na proporção do respetivo decaimento, nos termos do artigo 527º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que beneficia o autor.»

                                                                          *

               Inconformado com essa sentença, apresentou o R. recurso de apelação contra a mesma[2], terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

...

Pelo exposto:

a)-deve a decisão recorrida ser substituida por outra que dê por verificada a exceção de caso julgado, com base na ação já transitada no mesmo Juízo Instância e Trribunal sob os sinais de processo nº ..., assim ficando prejudicada a decisão de mérito com as legias consequências.

c)-Não se decidindo pela reversão da decisão, ao abrigo do caso julgado formal, sempre deveria ser proferida decisão que atendesse à autoridade do caso julgado daquela outra ação, por forma a não ser decidido nesta que um negócio que foi objeto de resolução e de represtinação, em termos substantivos, pelo menos do lado do Autor, se mantivesse com efeitos e condições de validadade, para ainda ser suporte e causa de pedir noutra ação, assente na mesma relação material controvertida e mesma causa de pedir, numa vertente indemnizatória, pelo incumprimento do recorrente, por via da equidade.

Ao reverter-se a doação naquela ação, com devolução dos bens e entrega dos cadernos que a suportavam, tendo sido tido por global a entrega e o encargo, ficou o recorrente desapossado do seu lado da contraprestação do doador, por via daquela ação e tendo sido declarado extinto o direito deste último a ser indemnizado” a indemnizar nos bens que se encontrem deteriorados ou em falta em quantia a liquidar em execução de sentença”

d)-Devendo ser alterada a matéria de facto, em conformidade com o aqui concluído, quanto à reapreciação da prova, nomeadamente pelas certidões extraídas destes autos e peças processuais reproduzidas, por confronto com as declarações prestadas pelo Autor, enquanto depoente e declarante.

e)- Por se reputarem eventualmente prestadas em contravenção com o disposto no artigo 359º do Códgo Penal e bem assim pela eventual adulteração dos documentos que haviam estado na posse do recorrente e

à guarda do tribunal e suportaram nesta ação a versão do Autor, quanto à matéria do conteúdo e verificação dos bens entregues, pela pessoa do então assessor do Presidente do recorrente em 2006, o que inquinou a decisão recorrida, com as consequêncais previstas no nº 1 do artigo 639º do CPC.

f)-Quando assim não se entenda deverá ser a decisão recorrida alterada e substituída por outra que decida da improcedência da ação por modificabilidade da matéria provada e não provada por insufiência de suporte probatório dos pedidos do Autor.

g)- Em qualquer dos casos, o que por cautela de mandato se peticiona, sempre em alternativa ao peticionado de a) a f) devendo ser proferida nova decisão que reaprecie o suporte probatório que redundou em condenação no montante excessivo e desproporcionado de 150.000,00€ de indemnização fixada segundo as regras de equidade.

Assim se decidindo, por ser de integral Justiça.»                                                              

                                                                                         *

               Por sua vez, apresentou o A. contra-alegações a esse recurso, das quais extraiu as seguintes conclusões:

               ...

                                                                                        *

               Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

               2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelos RR. nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

               - rejeição desse recurso por não apresentação de conclusões e por não indicação das normas jurídicas violadas? (como questão prévia suscitada nas contra-alegações do A., relativamente ao recurso do R.);

               - erro de decisão quanto à improcedência da exceção de caso julgado;

- erro na decisão da matéria de facto, quanto aos pontos de facto “provados” sob “1.4.”, “1.6.” e “1.7.” [relativamente aos quais pugna por que sejam julgados como “não provados” ou por uma distinta redação];

- incorreto julgamento de direito [pois que ainda que se formulasse uma condenação, essa condenação errou no juízo de equidade].

               3 – QUESTÃO PRÉVIA

Cumpre começar pela apreciação da invocada rejeição do recurso do Réu, por não apresentação de conclusões e por não indicação das normas jurídicas violadas (como questão prévia suscitada nas contra-alegações do A., relativamente ao recurso do R.).

Sustenta, em síntese, o A./recorrido nas suas contra-alegações, que «(…) neste caso as conclusões perfazem outro tanto das alegações recurso apresentadas pelo Apelante; não sendo propriamente a reprodução ipsis verbis das alegações, estão longe de ser conclusões. Entendendo-se por isso que esta circunstância equivale à não apresentação de conclusões, pelo que o recurso deve ser rejeitado nos termos do art.º 641.º, n.º 2, al. b), do CPC. Sem prescindir, é certo que não obstante o ónus que lhe é imposto pelo art.º 639.º, n.º 2, al. a), do CPC, o Recorrente no seu requerimento de Recurso não indica as normas jurídicas violadas».

Será assim?

Salvo o devido respeito, não assiste qualquer razão, nesta parte, ao A./recorrido.

Em primeiro lugar porque, ao invés do aduzido, não é pelo facto de as conclusões eventualmente constituírem a reprodução parcial e substancial da alegação propriamente dita que reconduz a situação à de “não apresentação de conclusões”.

Com efeito, tem sido doutamente entendido quanto a esse particular que «“a falta de conclusões” a que se refere a alínea b), parte final, do n.º 2 do artigo 641.º do CPC, como fundamento de rejeição do recurso, deve ser interpretada num sentido essencialmente formal e objetivo, independentemente do conteúdo das conclusões formuladas, sob pena de se abrir caminho a interpretações de pendor algo subjetivo.»[3] 

Donde, o dito vício constituiria, quando muito, um caso de conclusões complexas ou prolixas, mas a “sanção” para tal seria então a de dirigir convite ao recorrente para aperfeiçoar as conclusões, no sentido de lhes conferir maior concisão – cf. art. 639º, nº 3, do n.C.P.Civil.

Acontece que, quanto a nós, essa opção deve ser fruto de adequada ponderação, em ordem ao seu uso ficar reservado a situações em que tal efetivamente seja imprescindível, designadamente por tal dificultar objetivamente a apreensão/compreensão das questões recursivas [a sua “inteligibilidade”] ou quando se detete o risco de o eventual vício ter coartado/impedido o exercício do contraditório pela contraparte[4], o que não cremos ser o caso, tanto mais que compulsando as contra-alegações recursivas é possível constatar que esta entendeu o que havia sido suscitado e deu-lhe cabal resposta.

Assim, porque, não obstante a extensão e prolixidade das conclusões do recurso em apreciação, ainda assim não ficou em causa a possibilidade de delimitação do objeto do recurso por parte deste tribunal, pelo que, dando-se prevalência ao princípio da celeridade processual, entende-se que não é de dar acolhimento a este argumento suscitado nas contra-alegações, antes sendo de prosseguir, sem mais, com a apreciação do recurso.

Depois, também porque ao invés do aduzido, foram clara e profusamente indicadas as normas jurídicas violadas – ainda que de forma um pouco “indisciplinada”, por demasiado dispersa ao longo das conclusões [cf. arts. 963º, 945º, 334º, 473º do C. Civil e arts. 579º, 580º, 637º, 639º e 662º do n.C.P.Civil].

A esta luz, a invocação nos termos em que foi operada por parte do A./recorrido só se compreende como fruto de qualquer lapso.

Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, improcede o suscitado nesta questão prévia.

4 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

4.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade.   

               Tendo presente esta circunstância, consignou-se o seguinte na 1ª instância em termos de “FACTOS PROVADOS”:

               ...

               4.2 – A primeira ordem de questões que com precedência lógica importa solucionar é a que se traduz no alegado erro de decisão quanto à improcedência da exceção de caso julgado, isto relativamente ao processo nº ..., que correra termos no mesmo Juízo Central Cível (J1) onde tramitaram os presentes autos, aquele com decisão final já transitada em julgado, e no qual eram partes recorrente e recorrido, com as mesmas posições processuais [Autor e Réu], «cuja causa de pedir dimanava da mesma factualidade e documentos que a suportaram».

               Com efeito, na alegação do Réu/recorrente, existe coincidência ou repetição do objeto do processo nº ... e do que agora se discute (neste processo nº 1407/19.5T8VIS), por em ambos estar em causa o “espólio do ...”, que havia sido doado pelo Autor ao Réu, sendo que naquele processo nº ... resultou transação entre as partes que pôs termo ao processo [homologada por sentença no dia 26 de Outubro de 2017], pelo que resulta do disposto no artigo 580º do n.C.P.Civil a exceção do caso julgado – a qual pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, tendo por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior.

               Contrapôs o A./recorrido que a causa que o mesmo trouxe a este juízo não tem nada que ver com a parte do “espólio” referido pelo Réu, mas com outra que nunca foi objeto de julgamento, isto é, que que foi com base nos factos em causa nesse dito processo nº ... (diversos da ação que ora se discute) que integravam a causa de pedir, que chegaram ambas as partes a um acordo, acordo esse que excluía – porque não suscitado à apreciação do julgador – a parte do “espólio” que se debate nos presentes autos.

               Na sentença recorrida entendeu-se, para o que ora releva, o seguinte:

«Dos elementos de prova juntos aos autos constata-se que correu termos neste juízo ação de processo comum nº ..., finda já transitada em julgado por transação homologada por sentença.

Da prova produzida em sede de audiência de julgamento e da análise do objeto dos processos em causa, designadamente quanto aos bens que foram objeto de doação nestes e naqueles autos, pese embora resulta de forma clara que a identificada ação de processo comum nº ... foi intentada pelo aqui A. R... contra o aqui R. Município de ... tendo em vista a resolução de um contrato configurou a doação do “Espólio do ...”, definindo o seu objeto pela referência aos bens entregues constantes dos cadernos juntos na aludida ação e objetos ali identificados.

Alega o Réu que vem o A., com nova ação, sustentada na mesma causa de pedir mas dela pretendendo extrair outras consequências que não peticionou na anterior e identificada ação, na qual livremente transigiu no sentido de que a questão do “espólio entregue/doado”, ficava definitivamente resolvida.

Antes do mais, e quanto à transação efetuada e homologada por sentença no âmbito do processo nº ..., e tal como decorre das regras processuais, designadamente do disposto no artigo 283º, n.º 2 do Código de Processo Civil, é lícito às partes, em qualquer estado da instância, transigir sobre o objeto da causa. Daqui resulta desde logo, e na falta da referência, na transação apresentada no âmbito do processo n.º ... a qualquer outro objeto, que a transação ali homologada por sentença e que colocou um fim ao litígio apenas pode abranger o concreto objeto ali discutido e os concretos objetos doados e ali identificados, que não têm coincidência com os objetos identificados nos presentes autos, correspondendo, tal como resultou da análise quer da prova documental, quer da prova testemunhal, a negócios jurídicos distintos, celebrados em alturas distintas, tendo os objetos sido devidamente identificados, não havendo coincidência quanto ao objeto concreto do processo nem tendo havido qualquer renúncia por parte do autor a reclamar o que quer se fosse quanto a outros negócios jurídicos celebrados com o Município de ..., designadamente outros contratos de doação.

Tal como decorre do artigo 580º do Código de Processo, a exceção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário.

Por todo o exposto, não se verifica assim a exceção dilatória de caso julgado prevista nos artigos 576º, 577º alínea i) e 580º, todos do Código de Processo Civil, improcedendo assim a requerida absolvição da instância.»

Que dizer?

Consabidamente, verificando-se a tripla identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, a decisão goza de força obrigatória, no processo e fora dele, não podendo o mesmo tribunal ou um outro ser colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir a decisão (cf. arts. 580º e 581º do n.C.P.Civil).

Assim sendo, é precisamente por referência ao concreto objeto discutido no processo nº ..., ou melhor, os concretos objetos doados e ali identificados, e na sua eventual coincidência com os objetos identificados nos presentes autos que reside a decisão da presente questão.

Isto é, tudo passa por se conseguir alcançar uma conclusão e certeza sobre essa coincidência, ou não.

               Ora, relativamente a tal, apesar do enfaticamente alegado e mais uma vez posto em causa pelo Réu nesta sede recursiva, quanto a nós, compulsados os autos e tudo o que deles consta, designadamente os elementos relativos ao dito processo nº ..., é possível obter uma conclusão com a suficiente certeza e segurança quanto a esse particular.

               Senão vejamos.

               Compulsada a p.i. desses autos de processo nº ..., logo se constata que foi alegado no art. 1º da mesma o seguinte:

«Em 9 de Novembro de 2007, 20 de Dezembro de 2007 e 19 e 24 de Setembro de 2008 e 27 e 28 de Janeiro de 2009 o Autor entregou ao Réu, com o intuito de os doar, entre outros, os bens a seguir identificados, que faziam parte do espólio do ... que se encontram descritos em (3) três cadernos manuscritos pelo Autor, numerados no caderno n.º 1, da página 852 à página 1011, no caderno n.º 2, da página 1012 à página 1139, e no caderno n.º 3, da página 1012 à página 1199, que se encontram na posse do Réu e que se passam a descrever: (…)» [sublinhados nossos]

A “descrição” que foi enunciada de seguida nesse mesmo art. 1º da p.i. vai da verba nº1 à verba nº 263, sendo que o A. alega, na sequência, que não consegue “identificar” os demais bens que constam nesses três cadernos [porque não tem cópia dos mesmos e sem essa cópia «não os consegue identificar»], mais aduzindo que nunca chegou a ser formalizada a doação correspondente ao Município Réu, por as partes não terem logrado acordar quanto aos termos/formulação dessa doação, sendo que foi por o Réu Município não ter concretizado o projeto da Construção do Centro de Estudos e Museu do ... a que se havia obrigado, e no qual estava destinada a integração dos bens doados, é que ele A. veio reivindicar através dessa ação a sua devolução.

Por outro lado, está assente nos autos que essa ação / processo nº ... veio a terminar por transação homologada por sentença [cf. pontos de facto “provados” sob “1.15.” e “1.16.”], o que mais concretamente se traduziu nos seguintes concretos termos literais:

«(…)

Consideram as partes resolvida a doação efetuada pelo Autor ao Município de ... de bens pertencentes ao ... --- ------------------------------------------------

Em consequência de tal resolução, o Município devolverá ao Autor todos os bens que constituem o acervo descriminado no CD que se encontra a fls. 159, que constitui o espólio existente, no prazo máximo de 90 dias, assumindo o R. o transporte desde o local onde se encontram ao local a indicar pelo Autor, sito na localidade do ... –-------------------------------------------------------------------------

3º.

Com a celebração do presente acordo, as partes consideram definitivamente encerrado o litígio relativo ao denominado espólio do Sr. Prof. ...----------------------------------

                             4º

As custas serão suportadas em partes iguais, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário concedido ao Autor. -----------------------------------------------------------------------------------------------------

                                                                                     ***

Seguidamente, pela Mmª Juiz foi proferida a seguinte: --------------------------------------------------

=SENTENÇA=

Na presente Ação de Processo Comum, que R... propôs contra o Município de ..., homologo, por sentença, a transação que antecede, atento o seu objeto e a qualidade dos intervenientes, condenando as partes a cumprirem o acordado nos seus precisos termos e declarando extinto o direito pretendido fazer valer na parte sobrante do pedido formulado nos autos – artºs 283º, 289º a contrario sensu e 290º do C.P.C.. -----------------------------------------------------------------

As custas serão suportadas em partes iguais, nos termos acordados - artº 537º nº2 do C.P.C.. ----

Tendo em consideração a postura de colaboração das partes na composição amigável do litígio-dos autos, e a fase processual em que colocam, por acordo, termo à presente ação, bem como-o objeto do processo e o valor da ação, dispenso as partes do pagamento da taxa de justiça-remanescente, nos termos do nº 7 do artº 6º do R.C.P.. --------------------------------------------------------------------------------------------

Em consequência, dou sem efeito a audiência para hoje agendada. ------------------------------------

Registe e notifique.»

               Por sua vez, é do seguinte concreto teor o “Termo de Entrega” que foi lavrado nesses autos:

                                                                «Termo de entrega

               Aos vinte e nove dias do mês de Janeiro de 2018, na residência do Autor do processo nº ... R..., procedeu o Município de ... à devolução e entrega de todo o Espólio reclamado em tal ação em conformidade com a sentença proferida naqueles autos nada mais sendo devido o reclamável a esse ou outro título por força de tal sentença, considerando-se assim aquela integralmente cumprida por este meio.

               A presente entrega foi verificada pelas mandatárias nos autos em causa que assim a julgando conforme o vão assinar.

                                            ...., 29 de janeiro de 2018» [sublinhados nossos]

               De referir que se seguem as assinaturas manuscritas das mandatárias mencionadas, e bem assim do próprio Autor.

Assente isto, importa agora ter em consideração que nos presentes autos foi alegado e estava em causa uma doação de bens móveis formalizada por escritura pública a 17 de Maio de 2006, que alegadamente integrou ou complementou uma doação verbal anterior [do ano de 2002].

Ora se assim é, parece-nos clara e inequívoca a conclusão de que naquele  processo nº ... e nos presentes autos, ainda que ambos reportados a bens que compunham o “Espólio do Dr. ...”, estavam em causa bens móveis distintos – sublinhe-se, mais uma vez, no primeiro bens doados em 9 de Novembro de 2007, 20 de Dezembro de 2007 e 19 e 24 de Setembro de 2008 e 27 e 28 de Janeiro de 2009, e, neste segundo, bens doados em 17 de Maio de 2006 (e no ano de 2002).

Sendo certo que a “transação” alcançada no processo nº ... apenas abrangeu, na sua literalidade, os bens em causa nesse processo, o que foi confirmado pelo “termo de entrega” constante desses mesmos autos, no qual também ficou expresso, literalmente falando, que apenas se visaram os bens móveis em causa nesses autos…

Assim se confirmando o decidido neste particular pela sentença recorrida, com a consequente improcedência, sem necessidade de maiores considerações, deste argumento recursivo.

4.3 – A segunda ordem de questões traduz-se no invocado erro na decisão da matéria de facto, quanto aos pontos de facto “provados” sob “1.4.”, “1.6.” e “1.7.” [relativamente aos quais o Réu/recorrente pugna por que sejam julgados como “não provados” ou que lhes seja conferida uma distinta redação]

Esta é efetivamente a subsequente questão a que importa dar solução.

Importa começar por referir que a seleção destes pontos de facto como sendo os visados pela impugnação à decisão sobre a matéria de facto assenta em alguma incerteza/dúvida, na medida em que o Réu/recorrente não primou pela clareza na tarefa de especificação dos mesmos, mas ainda assim, se o ponto de facto “provado” sob “1.4.” era o único expressamente indicado, os outros dois [“1.6.” e “1.7.”] foram suficientemente referenciados como estando em causa para este efeito.

Vejamos, então, um por um, cada um desses pontos de facto, rememorando, sempre, o teor literal respetivo.

«1.4. Tais bens revestem na sua maioria enorme relevância histórica e elevado valor material atendendo, não só, mas também, que neles se incorpora parte do acervo hereditário de ...»

Quanto a este ponto de facto, o Réu/recorrente manifesta a sua discordância quanto ao teor/redação do mesmo, assente na argumentação recursiva de «sem que em momento algum destes autos se tivesse demonstrado a real e efetiva conexão entre esses bens, essa conclusão e um seu efetivo valor».

Que dizer?

Salvo o devido respeito, tal não constitui um válido e proficiente modo de impugnar a correspondente decisão sobre a matéria de facto em causa.

Na verdade, tanto quanto é dado perceber, o Exmo. Juiz a quo formou convicção positiva nesse particular assente na conjugação de toda a prova produzida, no que assumiu decisivo relevo e preponderância a prova testemunhal produzida.

Ora se assim é, desde logo avulta que nesta parte não se mostra minimamente observado o prescrito legalmente para uma impugnação fundada em meios de prova constantes do processo que nele tenham sido registados através de gravação áudio.

Com efeito, é consabido que por força do estatuído no art. 640º do n.C.P.Civil, o recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto encontra-se adstrito à realização de vários ónus previstos nos nºs 1 e 2 desse preceito, sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte.

Na verdade, lê-se em tais disposições:

«1 — Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 — No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.»

Tendo presentes estas legais prescrições, e revertendo à situação sub iudice, ao confrontar as alegações recursivas, desde logo se pode constatar que não se observou nos moldes exigidos o estatuído na al.b) supra transcrita, na sua conjugação com o constante do nº2 desse dito normativo.

De facto, tendo em conta que houve prova produzida em sede de julgamento, não especifica nem explicita o Réu/recorrente a concreta razão da discordância, isto é, em que termos é que se evidencia o invocado erro de julgamento na apreciação dos ditos meios de prova e, em contraponto, qual o mais correto modo da sua apreciação.

Senão vejamos.

«1. Para se proceder à reapreciação de provas gravadas em caso de recurso sobre a matéria de facto, o recorrente tem de indicar os pontos de facto concretos que considera incorrectamente julgados e apontar, com exactidão, as passagens da gravação em que se funda o recurso, sob pena de imediata rejeição do mesmo no que se refere à impugnação da matéria de facto.

2. Fundamentando-se o recurso de facto na desconformidade entre a prova documental e a factualidade que veio a ser demonstrada, não basta remeter para o teor do documento, recaindo sobre o recorrente o ónus de indicar eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito, especificando os fundamentos da sua discordância, os motivos que justificam que o documento conduza a um juízo diferente do efectuado pelo juiz.»[5]

Temos assim que ao referir-se a “concretos meios probatórios” a lei está a colocar a exigência de que se alegue o porquê da discordância, que se apontem as passagens precisas dos depoimentos que fundamentam a concreta divergência, que se explique em que é que os depoimentos contrariam a conclusão factual do tribunal recorrido.

Exigência esta também imposta pelo princípio do contraditório, pela necessidade que a parte contrária tem de conhecer os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, para os poder contrariar…

Sucede que se o Réu/recorrente não indicou qualquer passagem da gravação a atender para efeitos desta sua impugnação, muito menos indicou “com exatidão” as passagens da gravação relevantes em que se fundava…

Por outro lado, o Réu/recorrente invocou igualmente nesta sede e para este efeito a “documentação” junta aos autos.

Mas quais os documentos que em concreto poderão assumir relevo decisivo?

E em que é que consistiu ou se revela a incorreção na apreciação dos mesmos?

Eis novas interrogações sem resposta.

Com efeito, o Réu/recorrente sustenta a incorreção/desacerto quanto a todo este particular unicamente assente em argumentos vários de teor opinativo e conclusivo.

Assim sendo, a não ser de optar pela liminar rejeição da impugnação e do escrutínio da decisão sobre a factualidade constante deste ponto de facto “provado”, sempre estamos reconduzidos a uma situação em que a incontornável deficiência com que foi deduzida conduz à manifesta improcedência da mesma, o que tem o mesmo efeito prático.

                                                                          ¨¨

«1.6. O contrato de doação em causa obedeceu a condições essenciais: o doador transferiu a propriedade dos bens ao donatário para que este edificasse um futuro museu, sendo que o donatário aceitou a doação com dois encargos, a criação de um museu e a garantir uma remuneração mensal ao doador a partir de finais de 2007, no valor de €2.000,00 (dois mil euros) mensais, correspondente a € 24.000,00 (vinte e quatro mil euros) por ano, a pagar ao Autor, o que foi reciprocamente aceite pelos A. e R. e tendo o A. entregue os referidos bens ao Réu.»

Relativamente a este ponto de facto, o Réu/recorrente discorda em concreto do segmento em que consta ter-se ele Réu obrigado a “garantir uma remuneração mensal ao doador”, pois que, mais precisamente, tal se teria traduzido antes em garantir “um lugar remunerado em sociedade que viesse a ser constituída”.

Que dizer?

Quanto a nós que assiste efetivamente razão ao Réu/recorrente nesta parte, na medida em que a redação literal dada a este ponto de facto pode significar um sentido que não corresponde ao que resulta textualmente da escritura do contrato de doação em causa [junta a fls. 8-9].

Por outro lado, compulsados os autos, também não foi alegado por qualquer das partes que o sentido do acordado fosse diverso do que foi consignado literalmente na dita escritura.

Assim sendo, importa efetivamente que este ponto de facto reproduza com fidelidade o que resulta do acordado e vertido na escritura, pelo que, operando a reapreciação dos meios de prova dos autos, determina-se que este ponto de facto figure doravante com a seguinte redação:

«1.6. O contrato de doação em causa obedeceu a condições essenciais: o doador transferiu a propriedade dos bens ao donatário para que este edificasse um futuro museu, para o qual seria constituída uma sociedade da qual o Município deveria ser detentor da maioria do capital social, sendo que o donatário aceitou a doação com dois encargos: a criação do dito museu e, após a constituição daquela sociedade “que, em princípio, deverá iniciar a sua actividade até ao final do ano de 2007”, se obrigava “a garantir ao doador um lugar remunerado na futura sociedade, no montante anual de €24.000,00, a pagar em duodécimos de €2.000,00 mensais, actualizáveis anualmente por aplicação do Índice do Preço do Consumidor, sem habitação”, o que foi reciprocamente aceite pelos A. e R. e tendo o A. entregue os referidos bens ao Réu.»

                                                                          ¨¨

«1.7. Até hoje, e apesar do Autor doador ter cumprido com a sua palavra, o R. não cumpriu os encargos da doação.»

Quanto a este ponto de facto, o Réu/recorrente manifesta a sua discordância, pugnando por ser dado como “não provado” «Que à data da propositura da ação o Autor ainda mantivesse a sua palavra (facto 1.7) (uma vez que pelo menos desde 2014 já peticionara a resolução da respetiva declaração negocial e viu ser-lhe devolvido o Espólio” e o inventário de todos os cadernos correspondente à totalidade dos bens entregues que lhes corresponderiam em Janeiro de 2018.»

Será assim?

Salvo o devido respeito, não se vê como conferir tutela a esta pretensão do Réu/recorrente.

É que, ao invés do que está pressuposto na alegação, olvida seguramente o Réu/recorrente que o ponto de facto “provado” em referência expressa a realidade relativa aos bens doados que estão em causa nestes autos, e apenas essa, isto é, não se cuida de noticiar ou sinalizar o que se passou relativamente a outros bens doados, designadamente aqueles a que se reportaram o processo nº ...

Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, igualmente improcede a impugnação quanto a este ponto de facto.

5 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre agora entrar na apreciação da última questão igualmente supra enunciada, esta já diretamente reportada ao mérito da sentença, na vertente da fundamentação de direito da mesma, a saber, ter havido incorreto julgamento de direito [pois que ainda que se formulasse uma condenação, essa condenação errou no juízo de equidade].

Que dizer?

Nesta parte – e releve-se o juízo antecipatório! – assiste alguma razão ao Réu/recorrente, embora se conclua em termos diversos do por ele pretendido.

Na verdade, impõe-se começar por afirmar que, quanto a nós, face ao quadro fáctico apurado – e que subsistiu face à improcedência da impugnação à decisão sobre a matéria de facto pretendida pelo mesmo Réu/recorrente! – a condenação do Réu/recorrente afigura-se incontornável, apenas se discordando dos termos em que ela foi operada, pois que, quanto a nós, essa condenação terá que ser a liquidar em decisão ulterior.

Com efeito, a prova, ou melhor, a não prova pelo Réu de não ter incumprido com o que se havia vinculado [face à presunção de culpa do incumprimento], tem a consequência jurídica que lhe está consabidamente associada, isto é, a obrigação de ressarcir/indemnizar os prejuízos sofridos pela contraparte.

De referir ab initio que, em nosso entender, apenas está validamente em causa nestes autos a indemnização pelo incumprimento da cláusula modal constante da escritura de 17.05.2006 relativamente aos bens móveis, na medida em que, tendo sido celebrada nessa mesma data e entre as mesmas partes, uma escritura de doação de bens imóveis, independentemente da conexão objetivamente temporal e até lógica entre as duas doações, relativamente à da doação de bens imóveis não existe qualquer cláusula modal que tenha sido incumprida e que por essa via possa conferir ao Autor a indemnização reclamada nos autos.

Sem embargo do vindo de dizer, isto é, operando a ressalva respeitante à situação dos bens imóveis igualmente doados, até subscrevemos o segmento da sentença recorrida que procedeu ao enquadramento geral neste particular, a saber

«No caso concreto, como referido, está-se perante uma situação de incumprimento contratual, consistente no incumprimento do encargo ou modo aposto na doação, respeitante ao fim a que se destinavam os imóveis doados, por parte do réu Município de ... e remuneração a pagar ao autor, como compensação pela utilização desses bens, considerados de valor histórico relevante, para fins de utilidade pública e de utilização do Município, encarregue de os preservar.

Nos termos do disposto no artigo 798º do Código Civil, o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação, “ou mesmo quando está em causa, não a obrigação principal, mas os deveres secundários e ou deveres laterais ou deveres acessórios de conduta, como é o caso da cláusula modal aposta à doação em apreço” torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor.

Não tendo o réu ilidido a presunção de culpa, conforme lhe competia, tal como decorre do disposto no artigo 799º do Código Civil, o réu Município de ... incumpriu, culposamente, o encargo que havia assumido perante o autor, causando prejuízos ao autor, como aos demais munícipes e, a todos aqueles que assim ficaram privados da análise dos móveis doados (e imóveis) como integrantes de um relevante valor histórico e patrimonial, o que se traduz, no caso concreto do autor, numa desvantagem patrimonial, pois que se frustrou um propósito real – concreto e efetivo – de auferir uma remuneração como contrapartida da utilização do réu dos bens doados.

Tal como decorre do disposto no artigo 566º do Código Civil, sendo impossível a restauração natural, o que o é por força do contrato, a indemnização é fixada em dinheiro, calculando-se o seu “quantum” de harmonia com a chamada “teoria da diferença” – ou seja, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que ocorreria nessa data se não existissem danos.

A obrigação indemnizatória só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (artigo 563º do código Civil, que consagra a teoria da causalidade adequada) e o dever de indemnizar compreende não apenas “o prejuízo causado” (dano emergente), mas também “os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão” (lucros cessantes) (artigo 564º n.º 1 do citado diploma legal), e configura uma “típica dívida de valor, em que o dinheiro intervém como um meio de liquidação da prestação, não sendo o dinheiro, em si mesmo, o objecto da prestação, a qual é constituída por um valor patrimonial”.

Assim, sendo impossível a restauração natural, a indemnização é fixada em dinheiro, indemnização que só integra os danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.

Não se trata de uma obrigação pecuniária propriamente dita, não tem diretamente por objeto o dinheiro em si mesmo considerado, mas a prestação correspondente ao valor de certa coisa. E o dinheiro, a repor pelo respetivo devedor, constitui a medida do valor necessário para a liquidação da prestação em dívida, isto é, o meio de compensação da sua não restituição em espécie, e não o objeto da efetiva obrigação em causa.

“Na dívida de valor, tem de ser restituído o valor correspondente à prestação em falta, a definir de forma objetiva e atual, devendo a indemnização a arbitrar colocar o doador na situação em que estaria se não se tivesse verificado o facto que obriga à indemnização”.

No apuramento daquele valor, o que está em causa é a violação do fim a que o bem doado se destinava e a que o Município expressamente se vinculou.

Assim, e como passados vários anos, desrespeitou o réu essa finalidade, a reposição no património do doador há de traduzir-se no valor correspondente à prestação em falta, atribuindo-se uma indemnização que colocará o doador na situação em que estaria se não se tivesse verificado o facto que obriga à indemnização – a não utilização do fim a que se destinava o objeto da doação e a consequente e assuma remuneração.

Para o cálculo do quantum indemnizatório, deverá ter-se em conta a condição em causa que foi incumprida, por refletir o aumento de valor que acresceria ao Município a utilização dos bens, e o valor da doação, que estabelecerá o seu limite máximo.»

Sucede que assente isto, já discordamos de que a solução passava pelo imediato recurso ao juízo de equidade – como operado pela sentença recorrida! – ao que acresce a discordância quanto ao valor/montante indemnizatório fixado, em si mesmo.

É que, em nosso entender, à data da prolação da sentença no Tribunal a quo, este não dispunha dos elementos indispensáveis para sequer fazer funcionar o juízo de equidade, pelo que, tendo-o operado nesse contexto e circunstancialismo, formulou em grande medida um juízo arbitrário, sancionando – indevidamente, já se vê! – a superação da falta de prova de factos que podiam ainda ser provados.

Atente-se que, quando não estão determinadas as “balizas” dentro das quais vai funcionar o juízo de equidade – os “limites mínimo e máximo”[6] – deve optar-se pela condenação «no que vier a ser liquidado», no quadro previsto no art. 609º, nº2 do n.C.P.Civil.

Isto porque, como já foi doutamente sublinhado, «a equidade é a resposta àquelas perguntas em que está em causa o que é justo ou o que é mais justo. E funciona em casos muito restritos, algumas vezes para colmatar as incertezas do material probatório; noutras para corrigir as arestas de uma pura subsunção legal, quando encarada em abstracto… A equidade, exactamente entendida, não traduz uma intenção distinta da intenção jurídica, é antes um elemento essencial da jurisdicidade… A equidade é, pois, a expressão da justiça num dado caso concreto… não equivale ao arbítrio; é mesmo a sua negação… é uma justiça de proporção, de adequação às circunstâncias, de equilíbrio. Quando se faz apelo a critérios de equidade, pretende-se somente encontrar aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa; a equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal».[7]

Na verdade, o princípio geral nesta temática é o de que «Se for de antever que a prova pericial, ou outras diligências que possam ser ordenadas, oficiosamente, não surtam efeito útil, o Tribunal deve decidir com base na equidade e, assente em tal critério, fixar a indemnização devida ao credor/exequente.»[8]

Ou, dito de outra forma:

«A condenação ilíquida, que tanto é possível no caso de se ter formulado pedido genérico, como no de se ter formulado pedido especifico, pode ser objeto de subsequente liquidação ainda que não se tenha conseguido fazer prova da especificação na ação, não resultando, assim, impedida, em função do fracasso da prova nessa ação, só assim não se devendo proceder quando um juízo de razoabilidade implique que se anteveja como impossível conseguir-se a prova em falta, caso em que se deve desde logo recorrer à equidade.»[9]

Revertendo estes ensinamentos para o nosso caso, temos que, carecem e devem ser apurados, antes de mais, um conjunto de factos e elementos, tendo em vista a liquidação da quantia devida/valor exato, sendo que, tal não se logrando, então o que mais singelamente se tiver apurado virá a funcionar como as “balizas” para a fixação do valor segundo a equidade, isto é, se, nessa liquidação, a prova produzida pela partes for omissa ou insuficiente, e/ou a prova pericial não seja concludente para os fins pretendidos, aí então, mas só então, a liquidação deverá ser efetuada segundo a equidade.[10]

Atente-se que, como preceitua o art. 566º do C.Civil, nos seus nos 1 e 2, sendo impossível a restauração natural, a indemnização é fixada em dinheiro, calculando-se o seu “quantum” de harmonia com a chamada “teoria da diferença” – ou seja, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que ocorreria nessa data se não existissem danos.

Sendo certo que a obrigação indemnizatória “só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão” [cfr. art. 563º do mesmo C.Civil, onde se consagra a teoria da causalidade adequada) e que o dever de indemnizar compreende não apenas “o prejuízo causado” - dano emergente -, mas também “os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão” - lucros cessantes [cfr. art. 564º nº1 do dito C.Civil], e configura uma típica dívida de valor, em que o dinheiro intervém como um meio de liquidação da prestação, não sendo o dinheiro, em si mesmo, o objeto da prestação, a qual é constituída por um valor patrimonial.

Dito de outra forma: o art. 609º, nº 2 do n.C.P.Civil estipula que «Se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida»; a aplicação desta norma depende da verificação, em concreto, de uma indefinição de valores de prejuízos; mas como pressuposto primeiro de aplicação do dispositivo, deverá ocorrer a prova de existência de danos; este preceito tanto se aplica no caso de se ter inicialmente formulado um pedido genérico e de não se ter logrado converter em pedido específico, como ao caso de ser formulado pedido específico sem que se tenha conseguido fazer prova da especificação, ou seja, quando não se tenha logrado coligir dados suficientes para se fixar, com precisão e segurança, a quantidade de condenação.[11]

Concretizando.

Importa ter presente que deve a indemnização a arbitrar colocar o doador aqui Autor/recorrido na situação em que estaria se não se tivesse verificado o facto que obriga à indemnização, sendo certo que no apuramento desse valor, o que está em causa é a violação do fim a que os bens doados se destinavam e a que o Município expressamente se vinculou – a não utilização do fim a que se destinava o objeto da doação e a consequente e assumida remuneração.

Por outro lado, para o cálculo do quantum indemnizatório, não poderá deixar-se de ter em conta a primeira condição em causa que foi incumprida, por refletir o aumento de valor que acresceria ao Município a utilização dos bens, e o valor da doação, que estabelecerá o seu limite máximo.

Ora se assim é, temos desde logo o aspeto do valor dos bens móveis doados, que objetivamente se encontra por definir.

Impõe-se, assim, ser apurado o valor real e efetivo do conjunto dos bens doados, mormente o que passariam a ter com a sua prevista catalogação e exposição museológicas, no âmbito do museu a ser edificado [cf. factos “provados” sob “1.6.” e “1.13.”], sendo certo que a alusão vaga e generalista de que o conjunto desses bens móveis doados [“acervo hereditário” / “Espólio do Dr. ...”] tinha «enorme relevância histórica e elevado valor material» [cf. factos “provados” sob “1.4.”, “1.11.” e “1.12.”] carece de ser materialmente concretizada, nomeadamente com recurso a prova pericial, em ordem ao apuramento da diferença entre o seu valor no estado atual [enquanto meramente arquivados/armazenados] e o que teria nesse outro estado.

Depois, temos que foi previsto atribuir «ao doador um lugar remunerado na futura sociedade, no montante anual de €24.000,00, a pagar em duodécimos de €2.000,00 mensais (…)» [cf. facto “provado” sob “1.6.”]

Sucede que a quantificação deste montante remuneratório não poderá ser dissociada do apuramento de o “lugar” do doador e aqui Autor/recorrido ser num plano representativo [ao nível dos órgãos de administração], num plano executivo/gestão ou num plano de desempenho de trabalho manual ou intelectual sob subordinação.

Na verdade, se é certo que não teve lugar qualquer contraprestação da parte do mesmo em qualquer uma dessas categorias/funções, também cremos que corresponderá a uma diferente avaliação o prejuízo real e efetivo a considerar para o próprio, nomeadamente pelo nível de envolvimento/assiduidade que para si implicaria cada uma das distintas possibilidades dessa contraprestação, sendo que não tendo essa contraprestação tido lugar da sua parte, também não poderá tal deixar de ser descontada em alguma medida no apuramento do valor a atribuir-lhe [mensalmente ou anualmente].  

Acresce que também carece de ser apurada e definida a idade desse mesmo doador e aqui Autor/recorrido, pois que para além de não nos parecer que se possa acriticamente aderir ao entendimento de que se tratava de um cargo/função vitalícia, sempre importa aferir da possibilidade legal do exercício do “lugar remunerado” por um total de 12 anos [desde o ano de 2007 a 2019], nomeadamente em função do quadro legal previsto pelo regime que seja aplicável [v.g. a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas].

Assim como finalmente importa assentar no que estava no espírito das partes quando estabeleceram tal valor remuneratório, mais concretamente se se tratava de um valor líquido ou antes ilíquido [por sujeito ou não aos descontos e contribuições legalmente previstos].

Tendo sempre presente que no caso ajuizado tem de ser restituído o valor correspondente ao prejuízo efetivo do Autor/recorrido, a definir de forma objetiva e atual.

O que tudo serve para dizer que à luz do critério e determinante de que a indemnização a arbitrar terá de colocar o aqui Autor/recorrido na situação em que estaria se não se tivesse verificado o facto que obriga à indemnização, tal tarefa não pode olvidar a diretriz indicada pelo já referido art. 566º, nº 2, do C.Civil, mas precisamente por isso, por não se deterem, neste momento, todos os elementos que permitem apurar aquele valor, dever-se-á relegar tal fixação para ulterior incidente de liquidação, a processar nos termos dos arts. 358º a 361º do n.C.P.Civil, por tal se mostrar exequível – art. 609º, nº 2, do mesmo n.C.P.Civil.

Nestes termos procedendo o recurso.

                                                                          *

6 - SÍNTESE CONCLUSIVA

I – Há violação de um dever lateral ou acessório imposto no contrato de doação de bens móveis do designado “acervo hereditário” / “Espólio do Dr. ...”, por parte do doador ora Autor, a que correspondem as consequências do incumprimento contratual pelo donatário, se transcorridos mais de 12 anos sobre a data da doação, o Município Réu, em lugar de proceder em conformidade com o encargo de criação de um museu ao qual estavam destinados os bens, e pagar uma remuneração ao Autor como compensação pela doação desses bens, nada fez.

II – Não conferindo a violação do encargo modal o direito à resolução do contrato de doação, por esse direito não ter sido expressamente previsto (cf. art. 966º do C.Civil), resta sempre o direito do doador a obter uma indemnização.

III – Aquela obrigação de indemnização, sendo impossível a restituição in natura, configura uma típica dívida de valor, em que o dinheiro intervém como um meio de liquidação da prestação, não sendo o dinheiro, em si mesmo, o objeto da prestação, a qual é constituída por um valor patrimonial.

IV – Estando-se perante uma dívida de valor, tem de ser restituído o valor correspondente à prestação em falta, a definir de forma objetiva e atual, devendo a indemnização a arbitrar colocar o doador na situação em que estaria se não se tivesse verificado o facto que obriga à indemnização.

V – Não se detendo todos os elementos que permitam apurar aquele valor, dever-se-á relegar a sua fixação para ulterior incidente de liquidação, a processar nos termos dos arts. 358º a 361º do n.C.P.Civil, por tal se mostrar exequível – art. 609º, nº 2, do mesmo n.C.P.Civil.

VI – Isto porque quando não estão determinadas as “balizas” dentro das quais vai funcionar o juízo de equidade – os “limites mínimo e máximo” – deve optar-se pela condenação «no que vier a ser liquidado», no quadro previsto no art. 609º, nº2 do n.C.P.Civil.

VII – Sendo certo que só quando for de antever que a prova pericial, ou outras diligências que possam ser ordenadas, oficiosamente, não surtam efeito útil, o Tribunal deve decidir com base na equidade e, assente em tal critério, fixar desde logo a indemnização devida.

                                                                                         *

7 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, dando procedência à apelação, revogar a sentença recorrida, determinando agora a condenação do Réu a pagar ao Autor o valor pecuniário equivalente à quantia, a liquidar, que resultar da diferença entre o valor atual dos bens móveis doados pela escritura de 17.05.2006 se lhe tivesse sido, integralmente, dado o destino de catalogação e exposição museológicas, no âmbito do museu a ser edificado pelo Réu, tal como constante dessa escritura de doação, e o valor atual que esses bens têm enquanto meramente arquivados/armazenados, valor esse acrescido do montante total, também ele a liquidar, definido de forma objetiva e atual,  correspondente ao período máximo de 12 anos (entre 2007 e 2019), a título de remuneração mensal a que o Autor teria legalmente direito pelo lugar a ocupar na sociedade que seria detentora do já referido museu, como igualmente previsto nessa escritura, que seja o prejuízo efetivo para o mesmo, que nada recebeu, mas também não exerceu qualquer cargo ou função correspondente.  

               Fixam-se as custas, provisoriamente, na proporção de metade para cada uma das partes, sem prejuízo daquilo que resultar apurado no ulterior incidente de liquidação.

                                                                                         Coimbra, 1 de Junho de 2021

Luís Filipe Cravo

                                                                     Fernando Monteiro

                                                                          Ana Márcia Vieira

                                                


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[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Ana Vieira

[2] De referir que também foi deduzido um recurso “per saltum” para o STJ pelo A., mas na medida em que houve também recurso de apelação deduzido pelo Réu [o supra aludido, de cuja apreciação se vai cuidar de seguida], encontra-se impedida a imediata intervenção do STJ quanto àquele, como, aliás, logo foi determinado pelo despacho oportunamente proferido pelo Tribunal a quo.
[3] Assim, inter alia, o acórdão do STJ de 16.12.2020, no proc. nº 2817/18.0T8PNF.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[4] Cf., para além do aresto citado na precedente nota, o acórdão do mesmo STJ de 11.07.2019, proferido no proc. nº 334/16.2T8CMN-G.G1.S2, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[5] Assim o acórdão do TRC de 03-03-2015, no proc. nº 1381/12.9TBGRD.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.

[6] Neste sentido vide J. LEBRE DE FREITAS / ISABEL ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 3ª ed., Livª Almedina, 2017, a págs. 717.
[7] Cf. DÁRIO MARTINS DE ALMEIDA, in “Manual de Acidentes de Viação”, 2ª ed., a págs. 103/105.
[8] Citámos o acórdão do TRP de 31.01.2005, proferido no proc. nº 0457249, acessível em www.dgsi.pt/jtrp.
[9] Assim no acórdão do TRL de 22.11.2012, proferido no proc. nº 434/03.9TBBNV.1.L1-2, acessível em www.dgsi.pt/jtrl.
[10] Neste sentido o acórdão do TRL de 16.12.2009, proferido no proc. nº 3327/07.7TTLSB.L1-4, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtrl.
[11] cfr. ALBERTO DOS REIS, in “Código de Processo Civil Anotado”, vols. I pág. 614 e segs. e V pág. 71; VAZ SERRA, in “RLJ”, ano 114.º, pág. 309 e RODRIGUES BASTOS, in “Notas ao C.P.C”, vol. III, pág. 233.