Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
31/13.0GBLMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
INSTRUMENTO PERIGOSO
ABERRATIO ICTUS
Data do Acordão: 03/09/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (INSTÂNCIA LOCAL DE LAMEGO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 14.º, 15.º, 16.º, 143.º, 145.º E 148.º DO CP
Sumário: I - O crime de ofensa à integridade física, é um crime comum, de resultado, de dano e de execução livre, tutela o bem jurídico integridade física – que compreende a integridade corporal e a saúde física.

II - Tem como elementos constitutivos do respectivo tipo (art. 143º, nº 1 do C. Penal):

[Tipo objectivo]

- Que o agente ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa;

[Tipo subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, em qualquer uma das modalidades previstas no art. 14º, do C. Penal.

III - A utilização de uma sachola para produzir uma ofensa à integridade física significa o uso de um instrumento que, pelas suas específicas características – utensílio de ferro, encabado, para cavar e revolver a terra e outros trabalhos agrícolas, enxada pequena – dificulta de forma muito relevante a capacidade de defesa da vítima e é susceptível de criar perigo para a sua vida ou seja, significa a utilização de meio particularmente perigoso na prática da ofensa.

IV - É pois da natureza deste utensílio que resulta a especial censurabilidade do agente e daí que esteja verificada a circunstância prevista na alínea h) do nº 2 do art. 132º do C. Penal.

V - Ocorre um erro na execução, uma aberratio ictus isto é, o agente atinge um objecto diferente do que projectou atingir, quis ofender a integridade física do assistente e veio efectivamente a atingir a integridade física da assistente.

VI - Assim, sendo inequívoco que o arguido agiu de forma negligente relativamente à ofensa à integridade física que veio a causar à assistente, resta concluir que praticou ainda – em concurso efectivo com o crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada que tem por ofendido o assistente – um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º, nº 1 do C. Penal.

Decisão Texto Integral:



Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

No Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Lamego – Instância Local – Secção Criminal – J1, o Ministério Público requereu o julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, do arguido A... , com os demais sinais nos autos, a quem imputou a prática, em autoria material e concurso efectivo, de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, sendo que um, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 73º, 143º, nº 1 e 145º, nº 1, a), do C. Penal, com referência ao art. 132º, nº 2, h), do mesmo código.

Os assistentes C... e B... deduziram pedido de indemnização civil contra o arguido com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 6.500, à primeira, e de € 3.000, ao segundo, pelos danos causados.

O Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, EPE, deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 51, acrescida de juros à taxa legal, desde a ‘citação’ e até integral pagamento, pela assistência hospitalar prestada a C... .

Em 15 de Dezembro de 2013 faleceu a assistente.

Por sentença de 27 de Abril de 2015, depositada no dia imediato, foi o arguido condenado pela prática dos imputados crimes, nas penas de 10 meses de prisão [crime tentado] e de 18 meses de prisão [crime consumado] e em cúmulo, na pena única de 24 meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período, condicionada ao dever de pagar, no mesmo período, a uma instituição de solidariedade social, a quantia de € 750.

Mais foi condenado no pagamento da quantia de € 1200 e juros sobre o montante de € 1.000, aos herdeiros da assistente, a quantia de € 500, acrescida de juros, ao assistente, e a quantia de € 51, acrescida de juros ao Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, EPE.


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 Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            1ª O arguido, ora recorrente, não cometeu os crimes por que foi condenado.

                2ª Em todo o caso, importa referir que, relativamente ao pretenso crime cometido na pessoa do assistente B..., da acusação não consta matéria de facto suficiente para lhe ser imputada a prática do crime de que acusado, dado que em relação a ele apenas nela se refere que o arguido levantou a sachola na direção da sua cabeça.

3ª E, no que diz respeito ao crime pretensamente cometido na pessoa da assistente C... , os factos dados como provados não constavam da acusação, e daí que tenha sido violado o princípio do acusatório.

4ª Além disso, nesta parte, da matéria de facto dada como provada não é possível concluir-se que o arguido tivesse agido com dolo em qualquer das suas modalidades, designadamente com dolo eventual, não resultando, de resto, provado que o arguido previu ou podia prever o pretenso comportamento da assistente, nem isso constando da acusação, o que, de igual modo, consubstancia violação do princípio do acusatório.

5ª Em todo o caso, o Tribunal recorrido julgou incorretamente a seguinte matéria de facto, a qual deu

A) como provada e, contrariamente, devia ter dado como não provada:

-os factos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 11, 13, 14, 16, 16, dados como provados na douta sentença recorrida;

B) como não provada e devia, antes, ter dado como provada:

-os factos das alíneas d), e), f), h) e i), dados como não provados na sentença recorrida.

                6ª O Tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento, dando como provados esses factos sem que em relação a eles tenha havido prova, não se colocando em causa, por isso, no presente recurso, o princípio da livre convicção do julgador, mas salientando-se que os factos não são a pura subjetividade, nem resultam ex nilhilo nihil, antes se traduzem numa realidade objetiva que é apreendida pelo sujeito que conhece.

7ª Na verdade, não houve ninguém, testemunha alguma ou declarante, que tivesse dito que o arguido "elevou a sachola no ar em direcção à cabeça do assistente" e que "Nessa altura, a assistente C... , que se encontrava ao lado do assistente B..., colocou-se à frente deste para o proteger, tendo a sachola balido, com força com a parte cortante da sachola na sua mão direita. a qual ficou logo a sangrar", nem há quaisquer outras provas que permitam concluir pela ocorrência destes factos.

8ª O Tribunal recorrido deu como provada esta matéria com base nas declarações prestadas pelo arguido B..., não tendo sido isso que ele disse, nem se podendo inferir das suas declarações ou de qualquer outra prova esses factos.

9ª Contudo, se tivesse sido provada semelhante matéria de facto, e nem sequer essa matéria de provou, era a mesma ainda insuficiente para condenar o arguido, pois que o Tribunal recorrido insiste em referir que o arguido "levantou a sachola no ar em direção à cabeça do assistente" com o significado de apontar com a sachola para a cabeça do assistente B..., e nada mais dá como provado de relevante.

10ª E quanto à falecida assistente C... , por forma contraditória, na fundamentação da matéria de facto, afirma, primeiro, que a mãe do assistente B... "se interpôs para o proteger e acabou por ser atingida na mão pela sachola", e, depois, que o assistente B... "se desviou e a sua mãe foi atingida".

11ª As declarações do assistente B... em que o Tribunal recorrido sustentou a matéria de facto são claramente contraditórias e não se revelam minimamente credíveis.

12ª No entanto, o que ele essencialmente afirmou é que quando estava voltado de costas para o arguido, este lhe atirou com a sachola, mas que não sabia o que ele pretendia fazer com esse gesto, tendo atingido a sua mãe, e que nem sequer o viu atirar com a sachola.

13ª O assistente B... prestou declarações na sessão de audiência de julgamento que ocorreu no dia 11 de fevereiro de 2015, com início 15 horas e 46 minutos, tendo sido as suas declarações gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido, dando-se, aqui, por integralmente reproduzidas a transcrição dessas declarações que constam do ponto 2 que antecede estas conclusões.

14ª O Tribunal recorrido deu, assim, como provados, incorretamente, os referidos factos, tendo incorrido em erro de julgamento.

15ª Importa, ainda, referir que o declarante e as demais testemunhas nada disseram para dar como provados, como fez o Tribunal, esses factos referidos no ponto 1. A) destas alegações, devendo, por isso, ser ouvidas todas as declarações do assistente B... e os depoimentos de todas as testemunhas.

16ª Além disso, o Tribunal recorrido incorreu em erro na apreciação da matéria de facto, uma vez que as testemunha do arguido afirmaram, por forma credível e isenta, que, no dia, hora constantes da acusação, o arguido se encontrava em Baltar, diferente lugar daquele onde pretensamente ocorreram os factos.

17ª A M.ma Juíza recorrida descredibilizou inteiramente as testemunhas arroladas pelo arguido, mas não justificou, como devia, por que assim concluiu, chegando mesmo fazer afirmações inexatas.

18ª Designadamente, não é exato que a testemunha I... tivesse, como refere a douta sentença nas pags. 10 e II, dito alguma vez que, no dia da ocorrência dos pretensos factos, não foi a Parafita com a mulher, razão por que não se compreende, onde se possa encontrar contradição no seu depoimento como assevera o Tribunal recorrido.

19ª Como também não é exato que alguma vez tenha dito que não foi a sua mulher que preencheu a nota de compra n.º 74.

20ª Refira-se que esta testemunha manteve o seu depoimento apesar de, por promoção do Ministério Público, ser advertida de que incorria em prática de crime de falsas declarações se faltasse à verdade, mas que retratando-se não sofreria quaisquer consequências.

21ª Esta testemunha prestou depoimento no dia 23 de Março de 2015, com início às 16 horas 46 minutos, ao minuto 0:10 minuto a 2:33 minutos, como resulta da respetiva ata, dando aqui por integralmente reproduzido o excerto da transcrição do seu depoimento que consta do ponto 3 que antecede estas conclusões.

22ª Relativamente à testemunha B..., não se conhecem razões para se dizer, como consta da douta sentença recorrida, que a mesma foi hesitante e parcial, o que não vem minimamente justificado e tendo sido o seu depoimento coerente, isento e credível.

23ª Deve, por isso, ser ouvido o depoimento que prestou na sessão de audiência de julgamento que ocorreu no dia 13 de abril de 2015, com início 15 horas e 8 minutos, tendo sido as suas declarações gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido.

24ª E, de igual modo, devem ser ouvidas as demais testemunhas arroladas pelo arguido, a seguir designadas:

- J... que prestou declarações na sessão de audiência de julgamento que ocorreu no dia 23 de março de 2015, com início 16 horas e 25 minutos e, também, início às 17 hora e 7 minutos, tendo sido as suas declarações gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido.

- M... que prestou declarações na sessão de audiência de julgamento que ocorreu no dia 13 de abril de 2015, com início 16 horas e 16 minutos, tendo sido as suas declarações gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido.

25ª Em todo o caso, os factos dados como provados não se conciliam com a acusação deduzida contra o arguido, deles resultando alteração não substancial dos factos da acusação.

26ª Na verdade, da acusação consta apenas que o arguido "elevou a sachola no ar em direção à cabeça do assistente'', o que não é matéria suficiente para lhe poder imputar a prática do crime em que foi condenado.

27ª E consta, também, que "Acto contínuo, o arguido, em vez de cessar a sua conduta. continuou, e agrediu a assistente", mas não se provou que assim tivesse sido, que o arguido, num primeiro momento levantasse a sachola daquele modo, e num segundo momento, agredisse a assistente C... , sendo, por isso, que, também, nesta parte, o que se dá como provado não consta da acusação deduzida pelo Ministério Público.

28ª Deste modo, o Tribunal recorrido, não tendo dado cumprimento ao disposto no n.º 1 artigo 358.º do C. P. Penal, deu lugar à nulidade da sentença, uma vez que condenou por factos diversos dos descritos na acusação, pondo em causa o direito de defesa do arguido, violando, por isso, o artigo 379º, nº 1, alínea b) do mesmo diploma legal e o artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.

29ª Sobre a medida da pena, há que referir que a pena que foi aplicada ao arguido é manifestamente exagerada.

30ª Quanto ao pedido de indemnização cível, não há lugar a qualquer indemnização, porque o demandado não praticou os crimes em que foi condenado, não tendo cometido danos.

31ª De resto, no que diz respeito ao demandante B..., este, por um lado, nem sequer no pedido cível que deduziu alegou os factos que fundamentaram a acusação, e, por outro lado, foi ele próprio, nas declarações que prestou em audiência de julgamento, a negar que se tivessem verificado.

32ª Relativamente à demandante C... , falecida antes do julgamento, extinta a sua personalidade jurídica e consequente capacidade judiciária e por não ter sido habilitados os seus herdeiros, não há fundamento, para além das razões apontadas, para condenar o demandado no pedido cível.

33ª De qualquer modo, são manifestamente exageradas as importâncias em que foi condenado o demandado.

34ª Ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 358.º n.º 1, 379.º n.º 1, alínea b), 410.º n.º 2 do Código do Processo Penal, artigos 71.º, 72.º e 73.º do Código Penal, artigos 68.º n.º 1 e 2024.º do Código Civil, artigos 5.º n.º 1 e 351.º do Código de Processo Civil e artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.

NESTES TERMOS e nos demais de direito, que mui doutamente serão supridos, deve o presente recurso obter provimento e, consequentemente, absolver-se o arguido/demandado civil dos crimes em que foi condenado e dos pedidos de indemnização civil pelas razões que foram expostas.

Assim, Vossas Excelências Senhores Desembargadores, farão a habitual e sempre esperada JUSTIÇA!


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            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, alegando que a sentença não enferma de nulidade, não havendo sido omitida qualquer comunicação de alteração não substancial de factos porque ela não existiu, que vigorando o princípio da livre apreciação da prova, tendo o julgador explicitado lógica e coerentemente a valoração da prova e mostrando-se observadas as regras da experiência comum, não pode proceder a impugnação da matéria de facto deduzida, que não houve condenação em pena acessória mas apenas a fixação de um dever condicionante da suspensão da execução da pena de prisão, e que esta se mostra adequada, e concluiu pela manutenção da sentença.

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando a contramotivação do Ministério Publico e concluiu pela improcedência do recurso.

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Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.


Colhidos os vistos e realizada a conferência, foi decidido comunicar ao arguido uma alteração não substancial de factos e da qualificação jurídica, nada tendo sido requerido.

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Cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A nulidade da acusação;

- A nulidade da sentença;

- Os vícios da decisão;

- A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto e o não preenchimento do tipo dos crimes de ofensa à integridade física qualificada;

- A excessiva medida da pena;

- A falta de fundamento para a condenação nos pedidos de indemnização.


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            Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

            A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

            “ (…).

            1. No dia 21 de Fevereiro de 2013, pelas 13 horas, no Lugar de Perafita, em Lazarim Lamego, quando o assistente B... ia levar as vacas a pastar, o arguido, munido de uma sachola, aproximou-se dele, elevou a sachola no ar em direcção à cabeça do assistente e, ao mesmo tempo, disse-lhe “hoje é o fim da tua vida”.

2. Nessa altura, a assistente C... , que se encontrava ao lado do assistente B..., colocou-se à frente deste para o proteger, tendo a sachola batido, com força com a parte cortante da sachola na sua mão direita, a qual ficou logo a sangrar.

3. Na sequência dos factos referidos em 2. a assistente foi assistida no Hospital de Lamego, no dia em que os factos ocorreram.

4. Em consequência dos factos referidos em 2., e tendo sido submetida a exame médico-legal no dia 25 de Fevereiro de 2013, a assistente apresentava no membro superior direito “ferida corto-contusa de 5cm de comprimento no punho, suturada com pontos de linha preta”.

5. As mencionadas lesões demandaram oito dias para a cura, com afectação da capacidade de trabalho geral (4 dias) e sem afectação da capacidade de trabalho profissional.

6. O arguido actuou com a intenção de atingir corporalmente o assistente B..., o que só não logrou conseguir em virtude de a assistente C... se ter colocado à frente do assistente.

7. O arguido actuou representando como consequência possível da sua conduta a lesão da integridade física da assistente, o que fez, e agiu conformando-se com essa realização.

8. Sabia que a sachola que utilizou era um meio particularmente perigoso, nomeadamente quando infligido no corpo de pessoas com a parte cortante, podendo quando utilizada desta forma causar ferimentos graves e atentar contra a integridade física, a saúde corporal e até a própria vida do atingido.

9. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

10. O Demandante CHTMAD presta cuidados e serviços de saúde integrados no Serviço Nacional de Saúde.

11. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, aqui demandado, descrita na acusação, a ofendida, C... , foi admitida no Serviço de Urgência do Demandante no dia 21-02-2013.

12. O episódio de urgência da citada ofendida orçou na quantia de € 51,00.

13. A demandante C... sentiu-se envergonhada.

14. A demandante C... à data dos factos tinha 81 anos de idade.

15. A demandante C..., teve despesas médicas e medicamentosas, tendo efectuado várias deslocações ao Hospital de Lamego, e ao Centro de Saúde, pelo menos no valor de € 113,03.

16. A demandante C... sentiu dores na mão e braço direitos, e sentia receio de sair de casa para ir trabalhar nas terras.

16. O demandante B... sentiu receio e envergonhado.

17. Os assistentes e arguido já andavam de relações cortadas à data dos factos.

18. O arguido é tido como uma pessoa de bem, trabalhador, pacata, respeitadora por quem o conhece.

19. O arguido não tem antecedentes criminais.

20. O arguido trabalha na agricultura; recebe um subsídio relativo aos animais (cabras e ovelhas) no valor de cerca de € 2.500,00 anuais; vive com a esposa e duas filhas menores; em casa própria.

(…)”.

B) Nela foram considerados não provados os seguintes factos:

“ (…).

a) - que o arguido tenha proferido a expressão “Vou-te dar cabo da cabeça”.

b) - que o arguido tenha em acto contínuo, em vez de cessar a sua conduta, continuou, tenha agredido, novamente a assistente.

c) - apesar de o arguido ter visto a assistente derrubada e a sangrar, em vez de parar e afastar-se do local, prosseguiu com os seus intentos, continuando a agredi-la, até que, virando-se para o assistente B..., voltou a erguer a mesma enxada, só parando quando gritaram por socorro.

d) - nas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido encontrava-se a almoçar em Baltar, Castro Daire.

e) - o arguido, no dia 21 de fevereiro, pelas 11 horas saiu de Lazarim com I... , proprietário de uma sucata em Castro Daire, que lhe veio comprar e carregar para ferro velho uma carrinha.

f) - chegados à dita sucata, encontraram aí J... .

g) -após isso, o referido J... deu uma boleia ao arguido até ao lugar de Baltar, localidade ali próxima, dado que este tinha combinado encontrar-se aí com E....

h) - o arguido manteve-se nessa localidade até cerca das 13h00 saindo depois com o E... para Viseu, onde estiveram algumas horas, regressando depois ambos a Baltar, aí permanecendo um com o outro até cerca da 17h00, altura em que a mulher do arguido o veio buscar no seu veículo para ir para casa, em Lazarim.

i) - o arguido tem sido alvo de várias queixas infundadas apresentadas na GNR pela assistente, C... , tendo sido tais queixas arquivadas.

(…)”.

C) Dela consta a seguinte motivação de facto:

“ (…).

A prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente (artigo 127º, Código Processo Penal).

O Tribunal norteou a sua convicção, quer quanto à matéria de facto provada quer quanto à matéria de facto não provada, pelo princípio da livre apreciação da prova, entendido como o esforço sério e empenhado para alcançar a verdade material, analisando dialecticamente os meios de prova que teve ao seu alcance e procurando harmonizá-los e confrontá-los criticamente entre si de acordo com os princípios da experiência comum, pois, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador, inexistindo, portanto, quaisquer critérios pré-definidores do valor a atribuir aos diferentes elementos probatórios, salvo quando a lei dispuser diferentemente (juízos técnicos).

Na verdade, o princípio da livre convicção constitui regra de apreciação da prova em Direito Penal, e efectivamente, para conduzir à condenação, tal prova deve ser plena, pelo que, na decisão de factos incertos, a dúvida determina necessariamente a absolvição, de harmonia com o Princípio da Inocência que enforma também o direito processual penal e tem consagração constitucional.

Note-se que, como é sabido, a verdade material absoluta é, em regra, inalcançável pela via judicial na sua tarefa de reconstrução dos factos da vida real, logrando-se apenas uma verdade processualmente válida, fundamentada e plausível, sendo que, por outro lado, o relato de um facto pelo ser humano é um processo que comporta diversas etapas, a saber: a percepção dos factos, a memorização – que, muitas vezes, é acompanhada de uma racionalização dos eventos percepcionados conducente à sua distorção – e a sua reprodução, sem olvidar que o julgador não é um receptáculo acrítico dos relatos que são produzidos em audiência.

É que esta “verdade” é o resultado de um labor judicial que se baseia nas declarações de quem vivenciou os factos, mas não despreza outros contributos quiçá mais relevantes (documentos, exames periciais e a própria experiência do julgador).

Com efeito, é ponto assente que a comunicação não se estabelece apenas por palavras mas também pelo tom de voz e postura corporal dos interlocutores e que estas devem ser apreciadas no contexto da mensagem em que se integram, no que radica o princípio da imediação da prova.

Trata-se de um acervo de informação não-verbal e dificilmente documentável, e nem sequer traduzível por palavras, face aos meios disponíveis mas rica, imprescindível e incindível para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras de experiência comum e lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.

O juiz não é uma mera caixa receptora de tudo o que a testemunha diz ou de tudo o que resulta de um documento e a sua apreciação funda-se numa valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos enformada por uma convicção pessoal.

Assim, a convicção do tribunal formou-se com base na conjugação das:

- declarações do arguido A... , que em suma, negou a prática dos factos; afirmou que nas circunstâncias de tempo constantes da acusação não se encontrava no lugar conde ocorreram os factos. Confirmou que em momentos anteriores aos factos já tinham existido desentendimentos entre arguido e ofendidos. Esclareceu ainda as suas condições pessoais, familiares e económicas, que não foram infirmadas por qualquer outro meio de prova.

- as declarações do assistente B..., que em suma apresentou uma versão dos factos que se coaduna com os factos que se deram como provados; na simplicidade como depôs, foi peremptório em afirmar que o arguido apenas levantou a sachola uma vez, e foi na sua direcção, sendo que a sua mãe, se interpôs para o proteger e acabou por ser atingida na mão pela sachola. Confirmou as lesões que a mãe apresentou, os tratamentos que recebeu e onde,

como se sentiram com os factos. Confirmou ainda a existência de desentendimentos anteriores entre assistentes e arguido. As declarações do assistente não se afiguraram destituídas nem de lógica, nem de verosimilhança, nem denotaram qualquer contradição insanável que permitisse a conclusão legítima, razoável e objectivável no espírito do julgador no sentido que os factos não podiam ter sucedido do modo como os narrou, na verdade, afigurou-se o seu relato, ainda que apaixonado, detalhado e natural, logrando, por isso, convencer, firmemente, o Tribunal.

- das testemunhas:

- D..., pai do assistente, em suma apresentou uma versão dos factos que se coaduna com os factos que se deram como provados; confirmou ter ouvido o arguido a falar, e que este bateu com a sachola na esposa, “que era para ser para o filho, ela meteu-se à frente e acertou nela”. Confirmou ainda a existência de desentendimentos anteriores entre assistentes e arguidos.

- R... , não presenciou os factos, apenas confirmou a existência de desentendimentos anteriores entre assistentes e arguido.

- S... , vizinho, confirmou que por volta do meio-dia daquele dia, começou a ouvir discussão entre a M... e a C... e que nesta altura viu lá o arguido junto a um caminho. Não presenciou os factos, mas que logo após viu a filha da assistente C... a dizer que tinham agredido a mãe. Esclareceu como é que os assistentes, com quem esteve nos dias seguintes, se sentiram com os factos.

- F... , G... e H... , pessoas que não presenciaram os factos, mas que tiveram conhecimento dos mesmos, pelo que, esclareceram como é que os assistentes se sentiram com os factos.

- I... , afirmou que no dia em causa veio buscar uma viatura que adquiriu ao arguido para a enviar para abate; que veio buscar a carrinha a Perafita, às 11.00 horas e que chegou a Vila Pouca entre as 11.30 e as 12.00 horas; que deu boleia ao arguido até Vila Pouca. Afirmou durante o seu depoimento que a certeza que demonstrava ter sobre o dia e hora, era por tal constar na nota de compra que preencheu nº 74.

- J... , afirmou que apenas esteve com o arguido uma vez, em data que não soube precisar, e que lhe deu boleia do estaleiro da testemunha anterior até Baltar.

- L..., esposa da testemunha I... , confirmou que no dia dos factos acompanhou o marido a Perafita e que deram boleia ao arguido; confrontada com a nota de compra nº 74, confirmou ter sido quem a preencheu e a razão para as diferenças entre o duplicado constante da contabilidade e o triplicado, foi que preencheu o triplicado mais tarde. Afirmou também que o percurso entre o local onde carregaram a carrinha e o estaleiro pode ser feito em 12 minutos.

- E..., afirmou conhecer o arguido há mais de 10 anos; confirmou que o arguido no dia dos factos chegou a sua casa, em Baltar de Cima, pelas 12.00- 12.15 horas, almoçaram e depois foram a Viseu ao AKI, comprar material de construção e depois regressaram a sua casa. Apesar de ter tido muitas certezas ao afirmar a hora de chegada do arguido e a qual o menu do almoço, não soube precisar com clareza a que horas saíram para Viseu, o tempo que demorou a viagem, quanto tempo permaneceram no AKI, quais os materiais adquiridos. Aliás fazendo as contas aos tempos indicados pela testemunha eles ultrapassavam e muito a hora que consta do talão do AKI junto pelo próprio arguido e constante de fls. 178.

- M..., esposa do arguido, apresentou, igualmente, um depoimento que visava ser consentâneo com a versão deste, ou seja, afirmou que o arguido foi com a testemunha I... de manhã e que à tarde pelas 17.00 horas o foi buscar a Baltar.

- N..., O..., P... e Q... , depuseram acerca de como o arguido é tido por quem o conhece.

Teve-se ainda em consideração os documentos juntos aos autos designadamente:

- relatório de fls. 6,

- relatório pericial de fls. 10 a 11,

- elementos clínicos de fls. 96 a 99,

- factura de fls. 105,

- as facturas de fls. 109 a 111

- as informações prestadas pela GNR de Lamego de fls. 68 e 103,

- o talão de fls. 178

- o resultado do exame a fls. 199 a 201

- o duplicado da nota de compra nº 74, a fls. 303, e 209

- o certificado de destruição de veículo em fim de vida, datado de 03.10.2013, a fls.312.

- livro de notas de compra junto pela testemunha I... .

Quanto aos antecedentes criminais atendeu-se ao certificado do registo criminal junto aos autos.

Esta foi a prova produzida em sede de audiência, vejamos agora a sua conjugação.

O Código de Processo Penal ao disciplinar o regime de prova estabelece como seus princípios ordenadores, o da legalidade da prova, segundo o qual serão admissíveis todos os meios de prova que não forem proibidos por lei (125.º C. P. P.), excluindo-se expressamente os métodos proibidos de prova (32.º, n.º 8 Constituição; 126.º C. P. P.), e o da livre apreciação da prova (127.º), não tanto no sentido da intima convicção, mas mais como uma convicção racional e motivada (205.º; Constituição; 97.º, n.º 5 C. P. P.), sujeito, no entanto, aos já referidos princípios estruturantes do processo penal e aos  condicionantes legais.

No entanto não estabelece nenhum critério legal quanto à valoração da prova e sabido que esta, atenta a sua função de demonstrar a realidade de um facto juridicamente relevante (124.º) e atenta a sua tipologia, tanto podem ser directas (i), comprovando directamente o facto que se pretende provar, ou indirectas, partindo-se de indícios factuais certos para se demonstrar, mediante presunções judiciais, certo facto (ii).

Para o efeito de destrinçar uma da outra tem se partido de uma distinção ontológica, que é aquela efectuada tendo por base a percepção do juiz a partir dos factos a provar, ou então funcional, mediante a conexão existente entre o facto a provar e o objecto da prova.

A propósito convém ter como referência a noção legal de presunção conferida pelo Código Civil no seu artigo 349.º, ao considerar que presunções “são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”, apenas admitindo as presunções judiciais “nos casos e termos em que é admissível a prova testemunhal” (351.º).

A nossa jurisprudência, com destaque para o Supremo Tribunal de Justiça, não se tem afastado destes posicionamentos, aceitando que no âmbito do processo penal e por via do princípio da livre apreciação da prova, seja admissível estabelecer presunções judiciais que ajudem a formar a convicção probatória do tribunal, desde que essas presunções judiciais assentem em raciocínios lógicos, naturais ou extraídos de regras de experiência e tenham por base elementos objectivos (Ac. STJ 2001/Mar/14, in www.dgsi.pt). Isto também

significa que essas mesmas presunções não sejam afastadas por contra-indícios que as impeçam totalmente ou então que os enfraqueçam inexoravelmente (Ac. STJ de 2011/Abr./07, in www.dgsi.pt).

Por isso “A efectiva comprovação de um facto para além de toda a dúvida razoável pode resultar da conjugação de provas indirectas e circunstanciais, mediadas pela regra da experiência, em que a probabilidade da verificação de certo acontecimento factual surge próximo da certeza” (Ac. STJ de 2005/Fev./09, in www.dgsi.pt.).

Daqui se influi e de modo resumido, que será admissível o estabelecimento de presunções judiciais, de modo que perante certos factos conhecidos se adquira ou se admita a realidade de um facto até então ignorado, quando exista a convicção, determinada pelas regras da experiência, de que este é a consequência normal e típica daqueles outros que já se verificaram, o que sucederá quando exista uma forte e credível conexão causal entre o facto conhecido e o facto adquirido, o que não sucede quando o facto base não é seguro ou então se entre um e outro se verifica uma relação demasiado longínqua.

As Relações têm seguido igualmente este caminho, aceitando-se que a prova indiciária, por si e conjugada com as regras de experiência, possa conduzir, mediante ilações evidentes ou razoáveis, a factos que possam fundamentar uma condenação (Ac. TRP de 2011/Jun./06; Ac. TRC de 1996/Mar./06, CJ II/44, in www.dgsi.pt.) – explicitando-se neste último aresto que “A prova indiciária assenta em dois elementos: a) o indício que será todo o facto certo e provado com virtualidade para dar a conhecer outro facto que com ele estará relacionado. b) a existência de presunção que é a inferência que, obtida do indício, permite demonstrar um facto distinto”.

Desde logo cumpre começar por afirmar, mais uma vez, que arguido e assistente apresentaram duas versões dos factos, versões estas contraditórias.

A convicção do julgador não resulta da soma aritmética de testemunhas a confirmarem uma versão dos factos, sendo que por vezes é suficiente o relato de uma pessoa para que o Tribunal logre formar a sua convicção.

Ora, nos presentes autos, o arguido, em sede de audiência, como referimos negou a prática dos factos, negou inclusive que estivesse na aldeia á hora em que os mesmos teriam ocorrido.

O assistente B... , pessoa simples, mas que apresentou um depoimento que se nos afigurou coerente e credível, descreveu de forma detalhada e precisa os factos que se deram como provados.

Aliás, diga-se que a circunstância de não ter confirmado na totalidade a versão relatada na acusação, acaba por dar ainda maior credibilidade ao seu depoimento, demonstrando a sua imparcialidade (isto apesar de ser assistente/ofendido), pois, não teve dúvidas em confirmar que o arguido apenas levantou a sachola na sua direcção uma vez, e que foi nesse momento que ele, assistente, se desviou e a sua mãe foi atingida, e não como constava na acusação que a sua mãe teria sido agredida pelo arguido num segundo momento.

Ora, esta versão apresentada pelo assistente é compatível com as lesões que a assistente C... apresentava.

Ao que acresce que esta versão do assistente foi confirmada pela testemunha D....

Diga-se que no depoimento destas duas pessoas, assistente B... e testemunha D... não foi notório nada que permitisse ao Tribunal colocar em causa os seus depoimentos, depoimentos estes que se nos afiguraram serenos, detalhados, e como tal merecedores de credibilidade.

Na tentativa de comprovar a versão apresentada pelo arguido foram ouvidas as testemunhas I... , J... , L... , E... e M..., que tentaram fazer crer ao tribunal que no dia em que os factos ocorreram, estiveram sucessivamente com o arguido (desde as 11 horas da manhã até perto das 17.30 horas) e como tal não poderia o arguido ter praticado tais factos.

Porém, os seus depoimentos não foram de molde a lograr convencer o Tribunal da sua veracidade, uma vez que em todos eles se verificaram contradições e incoerências.

Vejamos algumas delas:

A testemunha I... , pessoa que diz ter adquirido ao arguido um veículo automóvel no dia dos factos, num primeiro momento afirmou que foi a Perafita sozinho, e foram os dois, ele e o arguido até ao seu estaleiro; porém, num segundo momento do seu depoimento já referiu que a esposa também o acompanhou e que vieram os três (sendo que o arguido em momento algum referiu que a esposa da testemunha também estivesse presente; bem como a testemunha J...que estava no estaleiro referiu que chegaram os dois, arguido e assistente, não fazendo qualquer menção àquela).

Também esta testemunha trazia consigo o livro de emissão das notas de compra, onde a nota de compra nº 74 correspondia à aquisição efectuada ao arguido. Ora, num primeiro momento afirmou ter sido ele quem preencheu tal documento, mas num segundo momento já foi a esposa.

Confrontado o triplicado da nota de compra nº 74 com o duplicado da mesma que foi enviado para a contabilidade foi possível constatar que tais documentos apesar de se referirem à mesma transacção, o triplicado tem apostos mais elementos que o duplicado não tem, designadamente, o local e hora de descarga, a identificação da viatura; algo que a testemunha não soube esclarecer cabalmente.

A testemunha J...não soube concretizar o dia em que deu boleia ao arguido.

A testemunha E... apresentou um depoimento que também se nos afigurou hesitante e parcial, pois, se por um lado se recordava com clareza do dia em que foi com o arguido na sua carrinha a Viseu, inclusive, o que almoçaram, a que horas o arguido chegou ao pé de si; por outro lado, quando confrontado com os horários da ida/e vinda a Viseu, ou mesmo sobre quais os materiais que foram adquiridos pelo arguido, já não teve tantas certezas. Tendo mesmo durante o seu depoimento entrado em contradição quanto aos horários.

A testemunha L... veio confirmar que acompanhou o seu marido, a testemunha I... no dia dos factos, tendo corroborado a versão deste, porém, não soube dar uma explicação plausível para a divergência entre o duplicado e o triplicado das notas de compra.

Por fim, a testemunha M... é a esposa do arguido, sendo que o seu depoimento apresentou-se com hesitações de durante o mesmo ter sido notória a animosidade sentida para com os assistentes.

Assim, analisando o depoimento destas testemunhas, que pretendiam corroborar a versão do arguido, temos de concluir que todos os seus depoimentos apresentaram contradições e incoerências que levam a que o Tribunal considere que os mesmos não foram de tal modo convincentes que permitissem colocar em causa a credibilidade do depoimento dos restantes assistente e testemunhas.

Cumpre ainda salientar que a testemunha S..., apesar de não ter presenciado os factos, afirmou que viu o arguido em Perafita, lugar onde ocorreram os factos, por volta do meio dia, sendo que do depoimento desta testemunha não foi perceptível nada que colocasse em causa a veracidade do que afirmava.

Assim, o depoimento das testemunhas apresentadas pelo arguido não foi suficiente para abalar a convicção do Tribunal, convicção esta alicerçada no depoimento do assistente e das testemunhas da acusação, pois, como supra referimos, nos seus depoimentos não foi perceptível qualquer hesitação, contradição, incoerência, que os pudesse colocar em causa,

e por isso, lograram convencer firmemente o Tribunal.

Quanto aos elementos subjectivos.

Como se vem entendendo, os elementos subjectivos do crime pertencem à vida íntima e interior do agente. Sendo possível captar a sua existência através e mediante factualidade material que os possa inferir ou permita divisar, ainda que por meio de presunções ligadas ao princípio da normalidade ou às regras da experiência comum.

Ou dito de outro modo, uma vez que o dolo pertence á vida interior de cada um e é, portanto, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos matérias comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção.

Podendo, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência. – cfr. acs. S.T.J., de 25.09.97, no processo n.º479/97 e de 23.02.83, no B.M.J.342-620.

Assim, tendo presentes estas considerações de direito e os elementos de prova produzidos em sede de julgamento, temos que resultou apurado com certeza os factos que se deram como provados.

Quanto aos factos dados como não provados, sob as alíneas a) a c), os mesmos foram dados como não provados uma vez que da conjugação de toda a prova produzida, não foram os mesmos objecto de prova que permitisse adquirir a convicção da certeza dos mesmos. E os demais factos dados como não provados correspondem à versão apresentada pelo arguido.

(…).

D) E a seguinte fundamentação de direito quanto à escolha e determinação da medida concreta da pena:

“ (…).

Feito pela forma supra descrito o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido importa agora determinar a natureza e a medida da sanção a aplicar.

O crime de ofensas à integridade qualificado é punido com pena de prisão até quatro anos.

Uma vez que um dos crimes praticado pelo arguido é apenas tentado a moldura penal abstracta é especialmente atenuada – artigo 23º, n.º2, do mesmo código.

Pelo que atento o disposto no artigo 73º a moldura penal da pena de prisão no seu limite máximo é reduzido de um terço e o limite mínimo é reduzido a um quinto se for igual ou superior a 3 anos e ao mínimo legal se for inferior.

Assim, a moldura abstracta passa a ter como limite mínimo um mês (mínimo legal, nos termos do artigo 41º, do Código Penal) e como limite máximo 32 meses (2 anos e 8 meses).

Estatui o artigo 71º, nº 1, do mesmo diploma legal, “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” e, para essa operação, o Tribunal terá de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele (nº 2 do mesmo normativo).

Assim, a medida da pena deverá ser aferida nos termos do art. 40.º, n.º1, tendo em conta fundamentalmente as exigências de prevenção geral (as exigências comunitárias que ressaltam do caso), mas também a culpa no caso concreto, a qual vem limitar no seu máximo a medida da pena.

Acresce que devemos atentar ainda na prevenção especial de ressocialização.

Nesta medida, pondera-se:

O grau da ilicitude é médio.

O dolo é directo no que concerne ao crime de ofensas à integridade física qualificado, na forma tentada; e é dolo eventual quanto ao crime de ofensas à integridade física qualificado;

O arguido não tem antecedentes criminais.

Os assistentes e arguido já andavam de relações cortadas à data dos factos.

O arguido é tido como uma pessoa de bem, trabalhador, pacata, respeitadora por quem o conhece.

A ausência de arrependimento.

As exigências, significativas, de prevenção geral que no caso se fazem sentir, face ao grande número de situações em que motivados por desentendimentos anteriores, não raramente relacionados com as “terras”, as pessoas acabam por praticar ilícitos desta natureza.

Pelo exposto mostra-se adequada à gravidade dos ilícitos e à culpa do arguido a pena de prisão de 10 meses, quanto ao crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada; e a pena de 18 meses de prisão quanto ao crime de ofensa à integridade física qualificada.


*

Do cumulo jurídico

Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena”.

Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente – artigo 77º, nº 1 do Código Penal.

A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar os 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes – nº 2, do referido artigo.

Assim, o limite mínimo é de 18 meses de prisão e o limite máximo de 28 meses de prisão.

É de frisar que, na globalidade, a ilicitude é média e o arguido não tem antecedentes.

Considerando todos estes elementos, o tribunal decide condenar o arguido na pena única de 24 meses de prisão.


*

Da suspensão da execução da pena de prisão

Outrossim, teremos de considerar a possibilidade de aplicação, no caso “sub judice”, do instituto da suspensão da execução da pena prevista nos artºs 50º e seguintes do Código Penal.

Como escreve o Conselheiro Maia Gonçalves, “A suspensão da execução da pena de prisão, onde se inclui agora o regime de prova como uma modalidade, é uma medida penal de conteúdo reeducativo e pedagógico que deve ser decretada (…) se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, o julgador concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição, isto é, a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, talqualmente vêm apontadas no artºs 40º, nº 1.

Trata-se de um poder-dever, ou seja, de um poder vinculativo do julgador, que terá de decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os apontados pressupostos” .

Na verdade, a pena privativa da liberdade surge sempre como a última “ratio” do nosso sistema punitivo sem que isso pressuponha, como se torna claro nos referidos preceitos, que não hajam casos em que só essa pena é a adequada a satisfazer todos os fins das penas.

Como escreve o Conselheiro Robalo Cordeiro “determinar se as medidas não institucionais são suficientes para promover a recuperação social do delinquente e dar satisfação às exigências de reprovação e de prevenção do crime não é uma operação abstracta ou atitude puramente intelectual, mas fruto de uma avaliação das circunstâncias de cada situação concreta. Só caso a caso, processo a processo, mediante uma apreciação dos elementos de prova disponíveis, se legitimará uma escolha entre as penas detentivas e não detentivas. Pelo que competirá em última instância aos tribunais a selecção rigorosa dos delinquentes que hão-de ser sujeitos a umas e outras.

Assim, atendendo ao facto do arguido ser pessoa trabalhadora e inserida na sociedade, considera-se que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que se decide, nos termos do artigo 50º, do Código Penal, suspender a execução da pena de prisão aplicada, pelo período de 24 meses.

Porém, acompanhada do seguinte dever, nos termos do artigo 51º, do Código Penal, durante o período da suspensão:

a) o dever de, no prazo da suspensão, pagar a Instituição de Solidariedade Social desta Instancia Local, a quantia que 750,00 euros.

Devendo, o arguido, juntar aos autos, no prazo máximo de 24 meses após o trânsito desta sentença, comprovativo de ter efectuado o pagamento.

Pelo exposto, decide-se suspender a execução da pena de prisão pelo período de 24 meses, submetendo-se tal suspensão à condição supra mencionada.

(…)”.


*

            Da nulidade da acusação

            1. Embora não o afirme expressamente, alegando o recorrente – conclusão 2ª – que a acusação, relativamente ao crime em que é ofendido o assistente B..., não contém matéria de facto suficiente para a imputação do crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, invoca, implicitamente, a nulidade da acusação. 

            Com efeito, determina o art. 283º, nº 3, b) do C. Processo Penal que a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. Por isso, se, como pretende o recorrente, a narração feita na acusação dos autos não contém os elementos necessários ao preenchimento do tipo de ilícito imputado, é tal peça processual nula, e não deveria ter passado o crivo do art. 311º, nºs 2, a) e 3, d), do código citado. Porém, ainda que assim fosse, porque se trata de nulidade relativa, está a mesma sujeita ao regime de arguição previsto no art. 120º do C. Processo Penal e há muito se mostra ultrapassado o prazo previsto no nº 3, c) do mesmo artigo.

            Sucede que, de qualquer forma, não assiste razão ao recorrente. Com efeito, consta da peça acusatória que o arguido, munido de uma sachola, se aproximou do assistente B..., elevou aquela alfaia agrícola no ar em direcção à cabeça deste, ao mesmo tempo que dizia, «Vou-te dar cabo da cabeça!», altura em que a assistente C... se colocou à frente do assistente para o proteger e o arguido, em vez de cessar a acção que desenvolvia, continuou-a, e atingiu a mão direita da assistente, com a parte cortante da sachola, tendo agido com atingir o corpo do assistente, o que só não conseguiu em virtude de a assistente se ter colocado à frente.

            Devendo reconhecer-se que a não descrição factual que consta da acusação não é, propriamente, modelar, o que dela resulta é que o arguido brandiu a sachola na direcção da cabeça do assistente, com intenção, aliás, por si anunciada, de aí o atingir, o que não conseguiu porque, entretanto, para proteger o assistente, se interpôs a assistente, que veio a receber uma sacholada na mão. E estes factos são, sem dificuldade de maior, aptos ao preenchimento do tipo imputado.

            Não padece pois a acusação de nulidade.


*

            Da nulidade da sentença

            2. Alega o recorrente – conclusões 3ª e 25ª a 28ª – que relativamente ao crime em que é ofendida a assistente C... , os factos provados não constavam da acusação, com violação do princípio do acusatório e daí resultando uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, sem que tenha sido dado cumprimento ao disposto no art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal, o que gera a nulidade da sentença, nos termos do art. 379º, nº 1, b) do mesmo código.

            Vejamos se assim é.

            Na parte em que agora releva, a acusação pública narra os seguintes factos:

            - [1] No dia 21 de Fevereiro de 2013, pelas 13 horas, no lugar de Perafita, em Lazarim, Lamego, quando o assistente B... ia levar as vacas a pastar, o arguido, munido de uma sachola, aproximou-se dele, elevou a sachola no ar em direcção à cabeça do assistente e, ao mesmo tempo, disse-lhe «Vou-te dar cabo da cabeça.»;

            - [2] Nessa altura, a assistente C... , que se encontrava ao lado do assistente B..., colocou-se à frente deste para o proteger;

            - [3] Acto contínuo, o arguido, em vez de cessar a sua conduta, continuou, e agrediu a assistente, batendo com força com a parte cortante da sachola na sua mão direita, a qual ficou logo a sangrar;

            - [7] O arguido actuou com intenção de atingir corporalmente o assistente B..., o que só não logrou conseguir em virtude de a assistente C... se ter colocado à frente do assistente;

            - [8] Actuou ainda com o propósito de lesar a integridade física da assistente, o que fez;

            - [10] O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.    

            Na sentença recorrida os factos provados correspondentes são:

            - [1] No dia 21 de Fevereiro de 2013, pelas 13 horas, no Lugar de Perafita, em Lazarim Lamego, quando o assistente B... ia levar as vacas a pastar, o arguido, munido de uma sachola, aproximou-se dele, elevou a sachola no ar em direcção à cabeça do assistente e, ao mesmo tempo, disse-lhe “hoje é o fim da tua vida”;

- [2] Nessa altura, a assistente C... , que se encontrava ao lado do assistente B..., colocou-se à frente deste para o proteger, tendo a sachola batido, com força com a parte cortante da sachola na sua mão direita, a qual ficou logo a sangrar;

- [6] O arguido actuou com a intenção de atingir corporalmente o assistente B..., o que só não logrou conseguir em virtude de a assistente C... se ter colocado à frente do assistente;

- [7] O arguido actuou representando como consequência possível da sua conduta a lesão da integridade física da assistente, o que fez, e agiu conformando-se com essa realização;

- [9] O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Da confrontação da narração da acusação com os factos provados da sentença resulta que o ponto 1 dos factos provados tem o mesmo teor do ponto correspondente da acusação [também ponto 1] com excepção do teor da frase proferida pelo arguido.

Resulta que o ponto 2 da acusação se encontra plenamente transcrito no ponto 2 dos factos provados.

Resulta que o ponto 3 da acusação se encontra parcialmente transcrito no ponto 2 dos factos provados já que deste não consta o segmento, «(…) em acto contínuo (…) em vez de cessar a sua conduta, continuou, e agrediu a assistente, (…)» que passou para a alínea b) dos factos não provados da sentença com o seguinte teor, «que o arguido tenha em acto contínuo, em vez de cessar a sua conduta, continuou, tenha agredido, novamente a assistente.». Surpreende-se aqui um lapso de leitura do facto acusado, na medida em que nunca na acusação se afirmou que o arguido agrediu novamente a assistente, o que pressupõe uma pluralidade de agressões. O que na acusação se dizia é que o arguido, em vez de cessar a sua conduta, a continuou, e agrediu a assistente ou seja, a conduta, que se dirigia a atingir a cabeça do assistente, não foi interrompida pela interposição da assistente que, por isso mesmo, veio a ser atingida o que, simultaneamente, impediu que, também ou apenas, fosse atingido o assistente, primeiro visado do arguido. 

Resulta que o ponto 6 dos factos provados tem o mesmo teor do ponto correspondente da acusação [ponto 7].

Resulta que o ponto 7 dos factos provados contem o dolo do arguido relativamente à ofensa praticada no corpo da assistente, na modalidade de dolo eventual, quando o ponto correspondente da acusação [ponto 8] continha o dolo relativamente à mesma ofensa, na modalidade de dolo directo.

Finalmente, resulta que o ponto 9 dos factos provados tem o mesmo teor do ponto correspondente da acusação [ponto 10].

Posto isto.

3. Não carece de demonstração a afirmação de que o nosso processo penal tem estrutura essencialmente acusatória – o que não significa que lhe sejam totalmente alheios alguns elementos do processo inquisitório, v.g., o princípio da investigação – sendo o seu objecto definido pela acusação ou pela pronúncia, quando exista. Como ensina Figueiredo Dias, o princípio da acusação impõe que a actividade cognitória e decisória do tribunal esteja estritamente limitada pelo objecto da acusação (Direito Processual Penal, 1ª Edição, 1974, Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 144).

Por isso, o já citado art. 283º, nº 3, b) do C. Processo Penal impõe, sob pena de nulidade, que a acusação contenha a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, e o idêntico sentido têm a disposição contida no nº 4 do art. 339º do mesmo código.

Ainda assim, por razões de economia processual e interesse da paz social do arguido, a lei do processo prevê que, na sentença, possam ser considerados factos e/ou circunstâncias não acusadas desde que, mantendo-se o núcleo essencial da acusação, da atendibilidade dos novos factos não resulte uma violação intolerável do direito de defesa (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 273).

Estabelece o art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal que, se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa. E a alteração é não substancial, quando não tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (cfr. art. 1º, f) do C. Processo Penal).

Verificada uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, e omitido o procedimento previsto no art. 358º, nº 1, citado, a sentença proferida é nula (art. 379º, nº 1, b) do C. Processo Penal).

Da confrontação supra efectuada conclui-se que as únicas diferenças que existem entre os factos acusados e os factos provados da sentença respeitam, uma, à frase proferida pelo arguido ao iniciar a agressão, e ao dolo referente ao crime que tem por ofendida a assistente.

Na primeira, como se referiu, as frases têm sentido equivalente [ameaça de morte], o que significa que, efectivamente, não releva para a decisão da causa.

Na segunda, o ‘dolo provado’, o dolo eventual, constitui um minus relativamente ao ‘dolo acusado’, o dolo directo, pois que, referindo-se ambos ao elemento volitivo do dolo, o primeiro significa uma menor intensidade na vontade de realização do facto relativamente ao segundo. Não existe pois, qualquer prejuízo para a defesa do arguido, antes resulta um benefício, dada a menor exigência no juízo de censura a formular.

Em conclusão, não ocorreu uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação que impusesse a comunicação prevista no art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal, pelo que não padece a sentença da nulidade prevista no art. 379º, nº 1, b) do mesmo código.


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Dos vícios da decisão

4. Alega o arguido – conclusão 10ª – que na motivação de facto da sentença existe fundamentação contraditória quando se afirma, por um lado, que a mãe do assistente se interpôs para o proteger e foi atingida na mão pela sachola, e por outro, que o assistente se desviou e a sua mãe foi atingida, e invocou – conclusão 34ª – como norma violada, além de outras, o art. 410º, nº 2 do C. Processo Penal. No corpo da motivação, alega ainda o arguido [pág. 252] que não constando da acusação nem da matéria de facto provada da sentença que previu a interposição da assistente, entre si e o assistente, falta matéria de facto susceptível de preencher o tipo, invocando a alínea a), do nº 2 do art. 410º referido. 

Em suma, parece invocar o recorrente a existência de vícios da decisão na sentença recorrida, sendo certo que é oficioso o seu conhecimento (Acórdão nº 7/95, de 19 de Outubro, DR, I-A, de 28 de Dezembro de 1995). Vejamos, por isso, se a sentença enferma de tais vícios.

Os vícios previstos no nº 2, do art. 410º do C. Processo Penal – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação do prova – são vícios estruturais da própria decisão penal e por isso, nos termos da lei, a sua demonstração tem que resultar do respectivo texto por si só, ou em conjugação com as regras da experiência comum. No âmbito da revista alargada – é esta a comum designação do regime – o tribunal de recurso não conhece da matéria de facto – no sentido da reapreciação da prova –, antes limita a sua actuação à detecção dos vícios que a sentença, por si só e nos seus precisos termos, evidencia e, não podendo saná-los, determina o reenvio do processo para novo julgamento. 

4.1. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito ou seja, quando a conclusão [decisão de direito] ultrapassa as respectivas premissas [decisão de facto]. Dito de outra forma, existe o vício quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adoptada porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria de facto contida no objecto do processo e relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, 2007, Rei dos Livros, pág. 69).

Como supra se referiu, o recorrente entende que a insuficiência da matéria de facto respeita à circunstância de não constar da acusação nem da matéria de facto provada da sentença que previu a interposição da assistente, entre si e o assistente.

Efectivamente, tal ‘previsão’ não consta de qualquer das peças processuais referidas mas, ressalvado sempre o devido respeito por diversa opinião, a questão não se coloca na previsão da interposição da assistente, mas na previsão de poder atingir a sua integridade física e esta consta expressamente do ponto 7 dos factos provados. Com efeito, os factos levados à acusação e os factos provados da sentença não ‘retratam’ um desvio do processo causal, uma aberratio ictus, mas uma situação em que o arguido, podendo interromper a acção começada dada a interposição da assistente, não o fez, procurando atingir o inicial propósito – atingir a integridade física do assistente – e desse modo veio a atingir a integridade física da assistente, tendo previsto tal como possível, o que aceitou.

Não enferma pois a sentença do apontado vício.

4.2. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão consiste, basicamente, numa oposição na matéria de facto provada [v.g., dão-se como provados dois ou mais que dois factos que estão entre si, em oposição sendo, por isso, logicamente incompatíveis], numa oposição entre a matéria de facto provada e a matéria de facto não provada [v.g., dá-se como provado e como não provado o mesmo facto], numa incoerência da fundamentação probatória da matéria de facto [v.g., quando se dá como provado um determinado facto e da motivação da convicção resulta, face à valoração probatória e ao raciocínio dedutivo exposto, que seria outra a decisão de facto correcta], ou ainda quando existe oposição entre a fundamentação e a decisão [v.g., quando a fundamentação de facto e de direito apontam para uma determinada decisão final, e no dispositivo da sentença consta decisão de sentido inverso]. 

Aparentemente, o recorrente entende o vício decorre de, na motivação de facto da sentença, existir fundamentação contraditória ao dizer-se que a mãe do assistente se interpôs para o proteger e foi atingida na mão pela sachola, para depois se dizer que o assistente se desviou e a sua mãe foi atingida.

Constando efectivamente da motivação de facto as duas descrições, não existe, objectivamente, qualquer contradição entre ambas, posto que uma não exclui necessariamente a outra isto é, a interposição da assistente pode perfeitamente coexistir com o desvio do assistente.

Não enferma pois a sentença do apontado vício.

4.3. Existe erro notório na apreciação da prova quando o tribunal valora a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª, Edição, Editorial Verbo, pág. 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., pág. 74).

Começaremos por dizer que o recorrente não invocou expressamente este vício.

Por outro lado, tendo especialmente em atenção a motivação de facto da sentença, não vemos que tenha sido valorada prova contra critério legal estabelecido, como não vemos que a valoração probatória feita pelo tribunal a quo ali expressa tenha violado regras da experiência comum.

Não enferma pois a sentença do apontado vício.


*

            Da incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto

            5. Alega o arguido – conclusões 5ª a 9ª e 11ª a 24ª – que foram incorrectamente julgados os pontos 1 a 9, 11, 13, 14, 16 e 16 dos factos provados, que deveriam ter sido considerados não provados, e os pontos d), e), f), h) e i) dos factos não provados, que deveriam ter sido considerados provados, tendo o tribunal a quo incorrido em erro de julgamento pois nenhum declarante, nenhuma testemunha e nenhum outro meio de prova sustenta a versão dos factos considerada provada nos pontos 1 e 2 dos factos provados, já que as declarações do assistente, fundamento da convicção expressa na sentença não só foram contraditórias, como não têm correspondência com aqueles factos, sendo certo que as testemunhas por si [arguido] arroladas, foram credíveis e isentas, não justificando a Mma. Juíza a quo a descredibilização que lhe mereceram os respectivos depoimentos. No corpo da motivação o recorrente fez a transcrição dos segmentos das declarações do assistente que considerou relevantes para a impugnação e a transcrição dos segmentos do depoimento da testemunha I... , para o mesmo efeito, segmentos que, nas conclusões 13ª e 21ª deu por reproduzidos.     

            Vejamos então.

            O direito ao recurso integra o conteúdo constitucional das garantias de defesa do processo penal (art. 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa), estando assegurado o duplo grau de jurisdição, quer em matéria de direito, quer em matéria de facto.

            O legislador infraconstitucional desenhou o recurso como um remédio para sanar o que tem por excepcional no julgamento feito pela 1ª instância, o erro na definição do facto e por isso, ele não pode ser perspectivado como um novo julgamento, como se o efectuado na 1ª instância não tivesse existido.

 A impugnação ampla da matéria de facto ou, preferindo-se, o recurso da matéria de facto – fundamentalmente regulado no art. 412º, nºs 3 e 4 do C. Processo Penal – exige do recorrente, a quem compete a delimitação do seu objecto, a observância do ónus de uma tripla especificação, a saber: a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; a especificação das provas que devem ser renovadas [esta, nos termos do art. 430º, nº 1 do C. Processo Penal, apenas quando se verificarem os vícios da sentença e existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio], acrescendo, relativamente às concretas provas, que tratando-se de prova gravada, as duas últimas especificações devem ser feitas por referência ao consignado na acta, com a concreta indicação das passagens em que se funda a impugnação. Por outro lado, estas especificações devem constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas (cfr. art. 417º, nº 3 do C. Processo Penal). Acresce que ao recorrente compete ainda estabelecer a relação entre o conteúdo do meio de prova especificado com o concreto facto que considera erradamente julgado (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 1135).

Deve, no entanto, ter-se presente que não basta para a procedência da impugnação e portanto, para a modificação da decisão de facto, que as provas produzidas permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal pois, como é sabido, este decide, salvo existência de prova tarifada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção [o que, não raras vezes, é ignorado pelos recorrentes], sendo antes necessário que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida.

Aqui chegados, face ao que fica dito, podemos concluir que o recorrente, ainda que de forma não modelar, deu cumprimento ao referido ónus de especificação pelo que nada obsta ao conhecimento da impugnação ampla da matéria de facto por si deduzida, com o objecto e limites que fixou.

6. Atentemos então nos factos impugnados pelo recorrente, à luz dos argumentos por si apresentados e da convicção afirmada pelo tribunal a quo na motivação de facto.

i) Os pontos 1 e 2 dos factos provados têm o seguinte teor, respectivamente:

- [1] No dia 21 de Fevereiro de 2013, pelas 13 horas, no Lugar de Perafita, em Lazarim Lamego, quando o assistente B... ia levar as vacas a pastar, o arguido, munido de uma sachola, aproximou-se dele, elevou a sachola no ar em direcção à cabeça do assistente e, ao mesmo tempo, disse-lhe “hoje é o fim da tua vida”;

- [2] Nessa altura, a assistente C... , que se encontrava ao lado do assistente B..., colocou-se à frente deste para o proteger, tendo a sachola batido, com força com a parte cortante da sachola na sua mão direita, a qual ficou logo a sangrar.

A Relação ouviu o registo gravado das declarações do arguido, prestadas na audiência de julgamento, dele resultando ter este negado a prática dos factos imputados na acusação, afirmando que no dia e hora dos mesmos se encontrava fora da aldeia, provavelmente a caminho de Viseu, fazendo-se transportar na carrinha de E..., que a conduzia, rumo a esta cidade, onde adquiriu materiais de construção civil para uma obra que realizava em Castro Daire, justificando a queixa contra si apresentada com as discussões que há anos mantinha com a assistente por causa dos animais, tendo esta chamado diversas vezes a GNR à aldeia, uma delas dizendo que tinha deixado à usa porta um saco com bruxedo ou com uma bomba.

A Relação ouviu o registo gravado das declarações do assistente, prestadas na audiência de julgamento, dele resultando ter o mesmo afirmado, em síntese, e na parte relevante:

[A instâncias da Mma. Juíza]

- O arguido foi desafiá-lo à porta de sua casa, dizendo que tinha feito uma chamada; ia deitar as vacas fora e o arguido veio contra si e começou a desafiar, a dizer que era o fim da vida do declarante; ele veio para si com uma sachola, a mãe meteu-se na frente e apanhou-a a ela, ele vinha a dizer que era o fim da sua vida; o arguido trazia a sachola na mão, ao ombro, com a parte metálica para trás, mandou com ela e em vez de o apanhar a si, apanhou a sua mãe, ; não sabe qual era a ideia dele, desviou-se e a mãe é que apanhou, ela estava à porta e a sachola cortou-lhe um tendão da mão; desviou-se um bocadinho e a mãe apanhou com a sachola; o arguido só fez este gesto uma vez porque a mãe apanhou a sachola do chão e arrumou-a, e não aconteceu mais nada; nesse mesmo dia a mãe foi ao Hospital de Vila Real, para onde foi mandada depois de ter ido ao Hospital de Lamego;

[A instâncias do Digno Procurador Adjunto]

- Também o seu pai assistiu a tudo;

[A instâncias do Ilustre Mandatário do assistente]

- Já tinham tido outras confusões com o arguido a desafiar; o arguido desconfiou que o arguido que o declarante tinha feito uma chamada para Lisboa por causa de um terreno com nogueiras; vinha no caminho com a vaca, junto à casa, quando apareceu o arguido, disse-lhe que lhe dava cabo da vida, mandou-lhe com a sachola e acertou na mãe, a sachola caiu ao chão e ele fugiu; a mãe ficou com medo de sair de casa mas o declarante não teve medo; o arguido queria acertar-lhe mas como se desviou, a mãe foi atingida; não sabe para onde apontou o arguido a sachola porque estava de costas; o arguido mandou com a sachola para a frente, como quem manda um pau, era directo para si, viu isso; a mãe meteu-se, a pancada que ia para si, acertou na mãe, ele mandou com a sachola, ela bateu na mãe e caiu, cortou-lhe a mão com a parte metálica; a mãe andou com o braço ao peito e foi várias vezes ao centro de saúde e não conseguia fazer nada; o pai está cego há catorze anos;

[A instâncias do Ilustre Mandatário do arguido]

- Não sabe como surgiram os problemas com ele, mas ele deita o gado directo ao terreno; tudo aconteceu no caminho, já tinha levado uma vaca e ia buscar outra, a mãe estava à porta, à espera; o arguido lançou a sachola, ele estava desviado de si cerca de 5 m e entre ambos não existia qualquer obstáculo que o impedisse de chegar junto de si; ele mandou a sachola sem ter havido discussão; estava de costas, virado para a casa, quando ele lançou a sachola, só ouviu dizer, «Hoje é o fim da tua vida!», não viu mais nada; no local não estava mais ninguém, mas o S... ouviu o barulho e passou ainda pelo arguido no caminho e a R..., que não apareceu ao pé do declarante, disse ao arguido para se acalmar.

A Relação ouviu igualmente o registo gravado do depoimento da testemunha D..., dele resultando [para além de grandes dificuldades de audição e consequente compreensão das perguntas feitas], ter este afirmado que só vê ao perto, que não estava no local, mas dentro de casa, tendo, no entanto, ouvido os intervenientes a falar, que era para ser para a cabeça da mulher mas que esta pôs o braço e foi aí que lhe bateu, que ele fugiu, que foi isso o que a mulher lhe disse, que era para ser para o filho mas ela meteu-se à frente e foi para ela.

A Relação ouviu também o registo gravado do depoimento da testemunha R..., dele resultando ter este afirmado que não presenciou qualquer agressão, que se dá bem com o arguido e, agora, com o assistente, pois na data dos factos andava de relações cortadas com ele e com a mãe.

  A Relação ouviu também o registo gravado do depoimento da testemunha S..., prestado na audiência de julgamento, dele resultando ter o mesmo afirmado, em síntese, e na parte relevante:

[A instâncias do Ilustre Mandatário do assistente]

- Não viu qualquer agressão; entre as 9h e as 11h45 esteve a tratar dos seus cavalos e por volta das 10h, sem precisar, ouviu vozes de discussão entre a D. M... e a D. C... mas não tem noção do que disseram; pouco antes do meio-dia ainda a D. M... estava no local e discutia, e o arguido estava um pouco mais abaixo, no caminho; sabe que era por volta do meio-dia porque foi por aí que chegou a cada para almoçar; depois do almoço soube pela filha da D. C... que a mãe tinha sido agredida; a D. C... não saia mais de casa, com medo;

[A instâncias do Ilustre Mandatário do arguido]

- Estava a uma distância de mais ou menos, talvez menos, de 500 m, e nada havia que se interpusesse e impedisse a visão; a D. C... estava no quintal dela e a D. M... na horta que trabalha; a entrada da casa é virada para a horta; ouviu a discussão mas só viu a D. M... e o arguido, que estava a cerca de 50 m desta, não viu o assistente; dá-se mais ou menos com o arguido e teve problemas com o sogro dele porque era conflituoso; já não era a primeira vez que havia conflitos entre o arguido e a D. C... que só queria que não lhe invadissem as propriedades com o gado.

A Relação ouviu ainda o registo gravado do depoimento:

- Da testemunha F... , dele resultando ter este afirmado que não presenciou qualquer agressão, que apenas viu um ferimento no braço da D. C... e que sabia que ela tinha desentendimentos com o pastor;

- Do depoimento da testemunha G... , dele resultando ter esta afirmado que não presenciou qualquer agressão, que depois da agressão a mãe deixou de sair de casa, e que o assistente diz que não tem medo mas não é verdade, até porque, devido a um acidente grave que sofreu, era a mãe que o orientava;

- Do depoimento da testemunha H... , dele resultando ter esta afirmado que não presenciou qualquer agressão, que a avó passou a ter receio que a agressão se repetisse e que o tio faz uma vida normal, que não alterou o seu comportamento e que sempre cuidou se si.

A Relação ouviu igualmente o registo gravado do depoimento da testemunha I... , prestado na audiência de julgamento, dele resultando ter o mesmo afirmado, em síntese, e na parte relevante:

[A instâncias do Ilustre Mandatário do arguido]

- É sucateiro e comprou ao arguido uma carrinha para abate, tendo a respectiva nota de compra que tem o nº 74; este documento tem a matrícula da viatura de reboque que é sua; a viatura comprada foi abatida e tem o certificado de abate; carregou a carrinha em Perafita pelas 11h e descarregou-a em Vila Pouca pelas 11h30 mas não garante horas certas; encontrou-se com o arguido um dia antes e acertaram o preço e nem viu a carrinha porque, nestes casos, não é preciso ver as viaturas; esteve com o arguido no dia da carga, deu-lhe boleia até ao seu estaleiro em Vila pouca, Castro Daire; o arguido saiu do estaleiro com um cliente que conhece por J...e não sabe para onde ele foi;

[A instâncias do Digno Procurador Adjunto]

- A razão de a nota de compra nº 74 ter mencionado a hora e o local de carga e de outras notas do mesmo livro não terem tais menções deve-se ao facto de, ali, a compra ter sido feita no local da carga e nas outras, não; o original da nota nº 74 foi entregue ao arguido; deixou o arguido entre as 11h30 e as 12h; é possível que ele tenha voltado a Perafita e aí estar pelas 13h pois, em média, demora-se meia hora; a letra da nota 74º não é sua mas da sua mulher, que é quem o ajuda na empresa, que é um estabelecimento em nome individual; tem a certeza que nesse dia a mulher foi consigo a Perafita, carregar a carrinha; não se lembrou antes de dizer que a mulher tinha ido consigo; é muito raro o depoimento escrever as notas de compra pois não gosta de escrever; reafirma que a nota nº 74 foi escrita pela mulher e tudo o que dela consta foi escrito no dia 21; o acrescentamento feito no triplicado da nota nº 74 que consta do respectivo livro, e que não consta do duplicado da mesma nota, que foi para a contabilidade, foi feito quando chegaram ao estaleiro, como é normal; desde esse dia nunca mais viu o arguido;

 [A instâncias do Ilustre Mandatário do assistente]

- Já tem acontecido ser o próprio cliente quem preenche a guia de transporte, pois não gosta de escrever.

A Relação ouviu também o registo gravado do depoimento da testemunha J... , prestado na audiência de julgamento, dele resultando ter o mesmo afirmado, em síntese, e na parte relevante:

[A instâncias do Ilustre Mandatário do arguido]

- Esteve uma vez na sucata do I... com o arguido, antes do almoço, mas não recorda dia, mês e ano; estava lá a espera do I... e ele chegou com o arguido, no reboque; o arguido pediu-lhe para o levar e deixou-o em Baltar;

[A instâncias do Digno Procurador Adjunto]

- O I... chegou à sucata com o arguido e mais ninguém; já foi há dois anos, que se lembre, não estava mais ninguém; conhece a mulher do I... , não recorda se ela também vinha no reboque, nem se a viu nesse dia.

 A Relação ouviu ainda o registo gravado do depoimento da testemunha L..., prestado na audiência de julgamento, dele resultando ter esta afirmado que foi quem preencheu a nota de compra nº 74, que acompanhou o marido [a testemunha I... ] na deslocação a Perafita, que completou o triplicado no mesmo dia, provavelmente, pegou no bloco e preencheu, mas não sabe a razão de o ter completado, e que o percurso Perafita – estaleiro, feito pelo marido, são 10 minutos, feito pela depoente, são 20 minutos.

A Relação ouviu igualmente o registo gravado do depoimento da testemunha E..., prestado na audiência de julgamento, dele resultando ter o mesmo afirmado, em síntese, e na parte relevante:

[A instâncias do Ilustre Mandatário do arguido]

- Conhece o arguido há mais de 10 anos pois ele é filho de uma sua caseira, ele faz trabalhos para si na casa e nas propriedades de Baltar e Fareja, em castro Daire, faz construção civil e trabalhos agrícolas; há cerca de dois anos trazia uma casa antiga em obras, em Baltar e o arguido trabalhava nela dois dias por semana; na altura destas obras ele falou-lhe de uma carrinha que ia para a sucata; as obras na casa eram o arranque de forros e a retirada de alguns caibros; almoçaram os dois na casa e depois de almoço foram a Viseu, ao AKI; o arguido apareceu na casa por volta do meio-dia, não pode precisar, foram para Viseu antes das 14 e regressaram a Castro Daire pelas 15h30/16h e a mulher dele foi lá buscá-lo por volta das 17h/17h30; tinham combinado que se o arguido não aparecesse na casa em obras entre as 12h e as 13h o ia buscar ao estaleiro da sucata; considera o arguido pacífico e incapaz de andar em barulhos, é respeitador; tem a certeza de que, às 13h, o arguido estava consigo;

[A instâncias do Digno Procurador Adjunto]

- Não recorda o dia do mês destes factos mas o mês terá sido ou Janeiro ou Fevereiro e o ano seria 2013; o arguido apareceu lá na casa e disse-lhe que tinha apanhado boleia; de Baltar ao AKI pela EN serão entre 30 a 40 minutos, terão saído para AKI por volta das 13h30 e podem ter estado lá 40 minutos, uma hora ou 1h30, não sabe; compraram verniz e parquet flutuante; ao ser-lhe exibido o talão do AKI e perguntado se foi o material que dele consta o comprado, respondeu não fazer ideia, o verniz e o parquet foi;

[A instâncias do Ilustre Mandatário do assistente]

- O arguido trabalhava para si à 4ª e 5ª feira; no AKI não comprou tinta para si.

Por último, a Relação ouviu o registo gravado do depoimento da testemunha M..., prestado na audiência de julgamento, dele resultando ter a mesmo afirmado, em síntese, e na parte relevante:

[A instâncias do Ilustre Mandatário do arguido]

- O que dizem ter acontecido não pode ter ocorrido porque o arguido, seu marido, não estava lá, tinha saído com o I... a carregar uma carrinha; tinha-lhe dito que ia para Viseu buscar umas coisas, com o Sr. B... , isto pelas 8h30; o I... ficou de lá ir pelas 10h; não sabe mais nada porque foi para o monte, depois de tratar do gado e de a filha ter ido para a escola, mas pelas 11h e, de certeza, antes do almoço, viu passar o I... levando a carrinha; neste dia o arguido não almoçou em casa e só o voltou a ver pelas 17h/17h30, quando o foi buscar a Baltar; já tiveram uma boa relação com eles mas depois, porque os animais saltavam para o que era dela, ela chamava a GNR e não podiam tornar a água nas lameiras que ela vinha logo refilar; este mal estar já vem de há 7 ou 8 anos e são vizinhos com as casas costas com costas;  

[A instâncias do Digno Procurador Adjunto]

- Foi buscar o arguido no seu carro pela EN até Castro Daire e aqui, ainda fez compras, a fazer horas;

[A instâncias do Ilustre Advogado do assistente]

- Não é verdade o que a testemunha disse de que tinha estado a discutir com a D. C... desde as 10h30 até à hora do almoço.

Deixa-se consignado que a Relação ouviu ainda os depoimentos das testemunhas N..., O..., P... e Q... , não porque tenham sido referidas mas porque o específico padrão de defesa do recorrente assim o impôs [alegou nenhum declarante ou testemunha ter relatado a versão dos factos levada considerada provada], tendo constatado tratar-se de testemunhas meramente abonatórias.

Aqui chegados.

Do que fica dito resulta que, excluindo desde logo o arguido porque, pura e simplesmente, negou a prática dos factos, do grupo de intervenientes composto por assistente e testemunhas inquiridas, apenas o assistente afirmou ter presenciado os factos por neles ter tido intervenção. E isto mesmo se encontra afirmado na da motivação de facto da sentença, com ressalva da referência ali feita ao que foi dito pela testemunha D..., pai do assistente pois que, apesar das dificuldades de percepção apresentadas pelo seu depoimento, nele resulta muito clara a afirmação de que vê mal, estava dentro de casa e portanto, só tinha ouvido o que acontecia, resultando o seu conhecimento sobre a descrição da agressão do que lhe tinha sido dito pela assistente, sua mulher.

Depois, contrariamente ao pretendido pelo recorrente – que afirma ter o assistente sido, nas declarações produzidas, inseguro, incoerente e inimigo da verdade – este, tanto quanto a audição do registo gravado permite a imediação da prova, apesar de ser, seguramente, um homem simples, como se diz na sentença, e algo rude e limitado de vocabulário, acrescentamos nós, produziu um relato que, dentro das apontadas limitações, foi coerente, lógico e não exagerado, tornando perfeitamente possível o acontecimento dos factos por si descritos.

Por outro lado, tal como afirma o recorrente, a versão dos acontecimentos trazida a juízo pelo assistente não é a que foi depois levada aos factos provados da sentença. Com efeito, nas suas declarações, o assistente fez uma afirmação ‘chave’, da qual, aparentemente, o tribunal a quo não se apercebeu, ou não percebeu o seu verdadeiro sentido – apenas o recorrente a menciona no corpo da motivação do recurso, mas dando-lhe um sentido mais favorável ao que, razoavelmente, dela se pode extrair – que é a de ter o arguido ‘mandado a sachola para a frente, directa a si, como quem manda um pau’. Daqui resulta que a agressão perpetrada pelo arguido não foi o que comummente se designa por ‘sacholada’, uma pancada desferida na vítima com uma sachola, agarrando sempre o agressor, para tal efeito, o instrumento agrícola empunhado, o que necessariamente, implica que esteja muito próximo da vítima. O processo de execução relatado foi outro, isto é, o arguido arremessou a sachola pelo ar, em direcção ao assistente, largando-a, libertando-a da mão ou mãos com a segurava, tendo aquela, no seu trajecto, ido atingir a assistente. E, coerentemente, diz o assistente que a mãe, a assistente, apanhou a sachola do chão, isto, como é óbvio, depois de por ela ter sido atingida na mão.

É exacto ainda, que o assistente, em determinado momento das suas declarações, disse que se encontrava de costas, mas para justificar a resposta de que não sabia para que local do seu corpo havia o arguido apontado a sachola. Admite-se que pudesse causar estranheza esta afirmação se, efectivamente, tivesse descrito a agressão como se de uma sacholada se tratasse. Mas como descreveu um arremesso da sachola na sua direcção, é perfeitamente possível que, face à frase que disse ter-lhe sido dirigida pelo arguido, no mesmo instante em que esta foi proferida, ainda que de costas, tivesse voltado o pescoço e percepcionado a ‘viagem’ que a sachola efectuava, e dela se tenha desviado instintivamente, indo aquela atingir a sua mãe. Não existe pois, aqui, qualquer quebra de credibilidade.

Tendo também o assistente referido que era portador de uma sachola e que se encontrava a cerca de 5 m do arguido, não vemos como aquela circunstância possa interferir com a sua versão dos factos, desde logo, pela forma como descreveu a agressão.

No que respeita à desconsideração probatória das testemunhas arroladas pelo recorrente, cujos depoimentos considerou coerentes e credíveis, por deles resultar que no dia, hora e local constantes da acusação, se encontrava em Baltar, a vários quilómetros de distância, alega este ainda que não foram indicadas razões suficientes pela Mma. Juíza a quo para concluir que tais testemunhas faltaram à verdade, tanto mais que, contrariamente ao que consta da sentença, a testemunha I... não disse que, no dia dos factos, não foi a Perafita com a mulher, como também não disse que não foi a mulher quem preencheu a nota de compra nº 74.

Começando por estes dois últimos aspectos, cumpre dizer que, efectivamente, a testemunha I... não disse que a mulher [a testemunha L...] não tinha ido consigo a Perafita, e sempre disse que tinha sido a mulher a preencher a referida nota de compra. O que sucedeu foi coisa distinta. Num primeiro momento do depoimento, a testemunha I... descreveu o seu encontro com o arguido em Perafita, para o carregamento da carrinha que lhe comprara para abate, e a boleia que lhe deu até ao seu estaleiro de sucata, em Baltar, Castro Daire, sem nunca referir a presença da sua mulher, sendo certo que também o arguido, nas declarações prestadas, referiu que na boleia dada pela testemunha, também era transportada na viatura a testemunha L.... Só num segundo momento, quando pelo depoimento da testemunha I... se percebe que, afinal, quem havia preenchido a nota de compra nº 74 tinha sido a sua mulher pois, até então, estava implícito que teria sido o I... , é que este, muito convenientemente, mencionou a sua presença na deslocação a Perafita [dando a singela justificação de que não se tinha lembrado antes de o dizer]. Existe portanto, alguma imprecisão na motivação de facto, quando se aí se afirma ter a testemunha I... dito, num primeiro momento, que tinha ido a Perafita sozinho, e também dito, num primeiro momento, que tinha sido o autor do preenchimento da nota de compra.

Quanto ao mais, basta ouvir a gravação dos depoimentos envolvidos para se compreender a valoração que deles foi feita pela Mma. Juíza a quo. É que, para além dos já apontados esquecimentos da testemunha I... , acrescem: a circunstância de a testemunha J... , que afirmou ter visto chegar ao estaleiro de sucata do I... , este e o arguido, transportando uma carrinha no reboque, sem, contudo, precisar o dia, ter também afirmado não ter visto, nessa mesma circunstância, que a testemunha L... também ali se fizesse transportar; a circunstância de a testemunha L..., que afirmou ter acompanhado o marido a Perafita e de lá ter regressado com ele e dando boleia ao arguido e ter preenchido a nota de compra nº 74, não ter conseguido dar uma explicação razoável e lógica para a falta de coincidência existente entre o duplicado e o triplicado de tal documento; a circunstância de a testemunha E..., para quem o arguido trabalhava esporadicamente, à 4ª e à 5ª feira, ter afirmado que, num destes dias da semana, de Janeiro ou Fevereiro de 2013, ter combinado ir com ele ao AKI de Viseu, para comprarem material de construção civil, mas não sabendo se o ticket que lhe foi exibido, emitido por este estabelecimento comercial, respeitava a compras feitas pelo arguido, estabelecendo apenas a ligação com algumas delas; a circunstância da testemunha M..., cônjuge do arguido, ter negado ter tido qualquer discussão com a assistente durante a manhã do dia em questão, o que é contrariado pela testemunha S..., e ter afirmado ter visto, pelas 11h, quando se encontrava já no monte, a carrinha do I... rebocando outra carrinha, não tendo almoçado com o arguido que apenas foi buscar, pelas 17h30, a Castro Daire, portanto, um depoimento adequado à versão do arguido.

Assim, perante as declarações do assistente que, como referimos já, não vemos que tenham sido objecto de incorrecta valoração probatória pela 1ª instância, suportadas pelo depoimento da testemunha S... cujo depoimento, quanto se pôde ouvir na gravação, foi linear, lógico, sereno e descomprometido, e coloca o arguido no local dos factos a hora próxima da referida na acusação, e pela prova pericial existente nos autos tendo por objecto os ferimentos sofridos pela assistente, e a desconsideração, plenamente justificada nos termos sobreditos, das testemunhas supra referidas, mostra-se lógica e racional a credibilização da versão dos acontecimentos apresentada pelo assistente.

Sucede que esta versão, no seguimento, aliás, da premissa de que parte o recorrente, impõe uma modificação da decisão da matéria de facto, ao nível da acção, se bem que, muito longe da extensão por aquele pretendida. Com efeito, o que o assistente descreve como tendo sucedido, e nisso deve traduzir-se a modificação, é que o arguido arremessou a sachola na sua direcção e esta, por se ter entretanto desviado, atingiu a assistente, que se encontrava próximo de si.

Deste modo, os pontos 1 e 2 dos factos provados passam a ter a seguinte redacção:

- [1] No dia 21 de Fevereiro de 2013, pelas 13 horas, no Lugar de Perafita, em Lazarim Lamego, quando o assistente B... ia levar as vacas a pastar, o arguido, munido de uma sachola, aproximou-se dele e quando se encontrava a uma distância de cerca de 5 metros, atirou a sachola pelo ar, em direcção ao corpo daquele, ao mesmo tempo que lhe disse, «Hoje é o fim da tua vida!»;

- [2] Apercebendo-se do sucedido, o assistente desviou-se e a sachola foi embater, com a parte metálica cortante, na assistente, que se encontrava muito perto do assistente, atingindo-a na mão direita que logo ficou a sangrar.

E são aditados aos factos não provados, os factos j) e l), com a seguinte redacção:

- [j)] No circunstancialismo referido no ponto 1 dos factos provados, o arguido elevou a sachola na direcção da cabeça do assistente; 

- [l)] A assistente C... encontrava-se ao lado do assistente e colocou-se à frente deste para o proteger.

ii) Os pontos 3 a 5 e 11 dos factos provados respeitam às lesões sofridas pela assistente C... suas consequências e aos cuidados hospitalares que lhe foram prestados. A impugnação destes pontos de facto é consequência necessária da impugnação da conduta do recorrente, descrita nos pontos 1 e 2 dos factos provados.

Tendo-se por definitivamente provada tal conduta, e estando provadas através de prova pericial, quer as lesões da assistente, quer as suas sequelas, quer a assistência hospitalar àquela prestada por causa delas, torna-se evidente a existência de nexo de causalidade entre tal condutas e as referidas lesões, sequelas e assistência.

Mantêm-se pois os pontos 3 a 5 e 11 dos factos provados nos exactos termos em que foram fixados pela 1ª instância.

iii) Os pontos 6 a 9 dos factos provados, respeitantes ao dolo do arguido, têm a seguinte redacção:

- [6] O arguido actuou com a intenção de atingir corporalmente o assistente B..., o que só não logrou conseguir em virtude de a assistente C... se ter colocado à frente do assistente;

- [7] O arguido actuou representando como consequência possível da sua conduta a lesão da integridade física da assistente, o que fez, e agiu conformando-se com essa realização;

- [8] Sabia que a sachola que utilizou era um meio particularmente perigoso, nomeadamente quando infligido no corpo de pessoas com a parte cortante, podendo quando utilizada desta forma causar ferimentos graves e atentar contra a integridade física, a saúde corporal e até a própria vida do atingido;

- [9] O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Como é sabido, o dolo é sempre um facto da vida interior do agente, um facto subjectivo, não directamente apreensível por terceiro e por isso, a sua demonstração probatória, quando não exista confissão, não podendo ser feita directamente, designadamente, através de prova testemunhal, terá que ser feita por inferência isto é, terá que resultar da conjugação da prova de factos objectivos – em especial, dos que integram o tipo objectivo de ilícito – com as regras de normalidade e da experiência comum.

Conjugando o que fica dito, com o que se deixou exposto em i), quanto aos pontos 1 e 2 dos factos provados, temos que, relativamente ao ponto 6, sendo inquestionável o propósito do arguido em atingir a integridade física do assistente, até pelo ‘anúncio’ que fez, há que adequar o ponto de facto sindicado à alteração introduzida no ponto 2 referido.

Já quanto ao ponto 7, da descrição feita pelo assistente, levada aos pontos 1 e 2 não pode, com razoabilidade, inferir-se, que o arguido representou como consequência possível da sua conduta que a sachola atingisse a assistente e aceitou tal resultado, na medida em que não existem elementos que permitam afirmar que, ao lançar a sachola, admitiu a possibilidade de o arguido dela se desviar. Assim, não ignorando o arguido a presença da assistente nas imediações, apenas se poderá dizer que não previu sequer, embora o pudesse fazer, que a assistente pudesse vir a ser atingida.

Já os pontos 8 e 9 devem manter-se, o primeiro, expurgado do que de conclusivo dele consta e o segundo, nos exactos termos fixados pela primeira instância.

Deste modo, os pontos 6 a 8 dos factos provados passam a ter a seguinte redacção:

- [6] O arguido actuou com a intenção de atingir corporalmente o assistente B..., o que só não logrou conseguir em virtude de este se ter desviado da sachola;

- [7] O arguido, ao actuar como actuou, ciente da posição da assistente, podia e devia ter previsto, mas não previu, a possibilidade de a sachola vir a atingi-la;

- [8] O arguido sabia que a sachola que utilizou era um meio especialmente perigoso, sobretudo quando usado com a parte metálica cortante para atingir regiões do corpo humano, sendo apto a causar ferimentos graves e perigo para a vida.

Mantém-se o ponto 9 dos factos provados nos exactos termos em que foi fixado pela 1ª instância.

E são aditados aos factos não provados, os factos m) e n), com a seguinte redacção:

- [m)] No circunstancialismo referido no ponto 6 dos factos provados, o arguido só não logrou conseguir o seu propósito, por a assistente C... se ter colocado à frente do assistente;

- [n)] O arguido actuou representando como consequência possível da sua conduta a lesão da integridade física da assistente, o que fez, e agiu conformando-se com essa realização.

iv) Os pontos 13, 14, 16 e 16 dos factos provados têm a seguinte redacção:

- [13] A demandante C... sentiu-se envergonhada;

- [14] A demandante C... à data dos factos tinha 81 anos de idade;

- [16] A demandante C... sentiu dores na mão e no braço direito, e sentia receio de sair de casa para ir trabalhar nas terras;

- [16] O demandante B... sentiu receio e [sentiu-se] envergonhado.  

Todos estes pontos de facto respeitam aos pedidos de indemnização civil deduzidos pelo assistente e pela assistente, pelo que, deles se cuidará, infra, em 11.

v) No que concerne aos factos não provados d), e), f), h) e i), tendo em conta o que se deixou dito em i) que antecede, devem os mesmos manter-se enquanto factos não provados.


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            Do não preenchimento do tipo dos crimes de ofensa à integridade física qualificada, face à modificação da decisão de facto

7. O arguido foi acusado e condenado pela prática, em concurso efectivo, de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, sendo um, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 73º, 143º, nº 1 e 145º, nº 1, a), do C. Penal, com referência ao art. 132º, nº 2, h), do mesmo código.

A ofensa à integridade física, crime comum, de resultado, de dano e de execução livre, tutela o bem jurídico integridade física – que compreende a integridade corporal e a saúde física – e tem como elementos constitutivos do respectivo tipo (art. 143º, nº 1 do C. Penal):

[Tipo objectivo]

- Que o agente ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa;

[Tipo subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, em qualquer uma das modalidades previstas no art. 14º, do C. Penal.

O crime é qualificado se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente (art. 145º, nº 1 do C. Penal), sendo susceptíveis de revelar estas qualidades, entre outras, as circunstâncias previstas no nº 2 do art. 132º do C. Penal.

7.1. Vistos os factos provados, dúvidas não subsistem de que o arguido, munido de uma sachola, se aproximou do assistente e atirou com referido utensílio pelo ar na direcção deste, ao mesmo tempo que dizia, «Hoje é o fim da tua vida!», não tendo o assistente sido atingido pela sachola porque dela se desviou em tempo, e tendo o arguido actuado com intenção de atingir o corpo do assistente, o que não conseguiu por ele se ter desviado, ciente de que utilizava uma sachola e de que a sua conduta era proibida e punida por lei. Sucede que, porque o resultado pretendido pelo arguido – a ofensa á integridade física do assistente – não foi alcançado, apesar de ter levado a cabo todos os actos idóneos a produzi-lo, o crime de ofensa à integridade física não passou do estadio da mera tentativa (art. 22º, nºs 1 e 2, b) do C. Penal).   

Em todo o caso, a utilização de uma sachola para produzir uma ofensa à integridade física significa o uso de um instrumento que, pelas suas específicas características – utensílio de ferro, encabado, para cavar e revolver a terra e outros trabalhos agrícolas, enxada pequena – dificulta de forma muito relevante a capacidade de defesa da vítima e é susceptível de criar perigo para a sua vida ou seja, significa a utilização de meio particularmente perigoso na prática da ofensa. É pois da natureza deste utensílio que resulta a especial censurabilidade do agente e daí que esteja verificada a circunstância prevista na alínea h) do nº 2 do art. 132º do C. Penal.

Em suma, relativamente ao assistente B... praticou o arguido um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, nº 1 e 2, b), 23º, nºs 1 e 2, 73º, nº 1, 143º, nº 1 e 145º, nºs 1, a) e 2, todos do C. Penal, com referência ao art. 132º, nº 2, h), do mesmo código [precisamente o crime pelo qual foi acusado e condenado].

7.2. Situação diferente encontramos no que concerne à assistente C... , como se passa a explicar.

Resulta dos factos provados e não provados, após a modificação operada pela via do presente recurso, que, sendo propósito do arguido, ao arremessar a sachola contra o assistente, atingi-lo na respectiva integridade física, não logrou, contudo, alcançar este resultado por razões alheias à sua vontade pois que aquele, tendo-se apercebido do sucedido, se desviou da sachola que por isso, foi atingir a assistente, que se encontrava perto, na mão, ferindo-a. Mais resultou provado que o arguido, ciente da posição da assistente [perto do assistente] podia e devia ter previsto mas não previu, que a sachola a pudesse atingir.

Ocorreu portanto, um erro na execução, uma aberratio ictus isto é, o agente atingiu um objecto diferente do que projectou atingir, quis ofender a integridade física do assistente e veio efectivamente a atingir a integridade física da assistente.

O tratamento doutrinariamente dado à aberratio ictus não é uniforme, embora maioritariamente se entenda que, haja ou não coincidência típica entre os objectos [in casu, existe, pois o crime é sempre o de ofensa à integridade física], o erro é sempre relevante e tem como consequência a exclusão do dolo, o que determina, em consequência, que o agente, verificados os demais pressupostos), seja responsabilizado pelo cometimento, em concurso efectivo, do crime tentado projectado e do crime consumado, este a título de negligência, ou só pelo crime tentado, quando, relativamente ao resultado efectivamente realizado não seja possível configurar a negligência (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, pág. 345 e Hans-Heinrich Jeschek, Tratado de Derecho Penal, Parte General, Quinta Editión, Comares Editorial, pág. 335 e ss; em sentido contrário, defendendo a posição minoritária da irrelevância do erro no caso de equivalência dos objectos, e consequente responsabilização pelo crime consumado, cfr. Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, Volume II, Teoria Geral do Crime, Publicações Universidade Católica, 2004, pág. 130 e ss). 

Assim, sendo inequívoco que o arguido agiu de forma negligente relativamente à ofensa à integridade física que veio a causar à assistente C... , resta concluir que praticou ainda – em concurso efectivo com o crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada que tem por ofendido o assistente – um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º, nº 1 do C. Penal.

8. A qualificação jurídica da conduta do arguido acabada de definir impõe que se proceda, de seguida, á operação de escolha e determinação da medida concreta da pena relativa ao crime de ofensa à integridade física por negligência, cuja moldura penal abstracta é a de pena de prisão até um ano ou pena de multa até 120 dias. Vejamos.

Estabelece o art. 40º, nº 1 do C. Penal que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. E dispõe o nº 2 do mesmo artigo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Prevenção e culpa são os critérios gerais a atender na fixação da medida concreta da pena. A primeira reflecte a necessidade comunitária da punição do caso concreto e a segunda, dirigida ao agente do crime, constitui o limite às exigências de prevenção e portanto, o limite máximo da pena. Deste modo, a medida da pena resultará da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos no caso concreto ou seja, da tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada – [prevenção geral positiva ou de integração] – temperada pela necessidade de prevenção especial de socialização, constituindo a culpa o limite inultrapassável da pena.

Muito frequentemente a determinação da pena, em sentido amplo, passa pela operação de escolha da pena, o que sucede, designadamente, quando o crime é punido, em alternativa, com pena privativa e com pena não privativa da liberdade. Nestes casos, como sucede nos autos quanto ao crime negligente, o critério de escolha da pena encontra-se fixado no art. 70º do C. Penal segundo o qual, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.  

Escolhida a pena, há que determinar a sua medida concreta, devendo, para tanto, o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não sendo típicas, depuserem a favor e contra o agente do crime (art. 71º do C. Penal). Entre outras, haverá então que ponderar o grau de ilicitude do facto, o seu modo de execução, a gravidade das suas consequências, a grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime, a motivação do agente, as condições pessoais e económicas do agente, a conduta anterior e posterior ao facto, e a falta de preparação do agente para manter uma conduta lícita (nº 2 do art. 71º do C. Penal).

Posto isto.

8.1. Sendo frequentes, no meio rural, as quezílias entre vizinhos causadas por desinteligências sobre titularidade e aproveitamento de terras e pastos, o que, de alguma forma, eleva as exigências de prevenção geral, certo é que o resultado verificado não foi particularmente grave, resultou de uma conduta negligente do arguido e se este não manifestou qualquer sinal de interiorização do desvalor da sua conduta, não tem, por outro lado, antecedentes criminais e mostra-se inserido, social e familiarmente, donde resulta a baixa ‘densidade’ das exigências de prevenção especial que se fazem sentir.

Deste modo, cremos a pena não privativa da liberdade ainda se mostra capaz de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, por ela se devendo, portanto, optar.

8.2. Tendo em conta o mediano grau de ilicitude do facto, o recurso a instrumento metálico e cortante para a sua realização, a pequena gravidade das suas consequências, a negligência inconsciente com que actuou, a ausência de antecedentes criminais, a inserção social e familiar, e a circunstância de não ter assumido a culpa, conduzem à aplicação de pena próxima do limite máximo aplicável, fixando-se a mesma em 110 dias de multa.

A determinação do quantitativo diário da pena de multa obedece ao critério fixado no art. 47º, nº 2 do C. Penal, sem esquecer que a multa, enquanto pena criminal, tem que constituir sempre um sacrifício para o condenado.

Estando provado que o arguido trabalha na agricultura, recebe um subsídio anual, como criador de gado, de cerca de € 2.500, vive com a mulher e duas filhas menores em casa própria e tem, como é notório, as despesas inerentes à satisfação das necessidades básicas – alimentação, vestuário, saúde, educação, entre outras – de qualquer agregado familiar, donde resulta uma situação económica remediada, fixa-se aquele quantitativo diário em € 8.

Assim, a multa global perfaz o quantitativo de € 880.


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            Da excessiva medida da pena

            9. A questão da medida da pena, que o recorrente – conclusão 29ª – considera manifestamente exagerada, é agora restrita à pena decretada pela 1ª relativamente ao crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, cuja moldura penal abstracta é de pena de um mês a 2 anos 8 meses de prisão.

           

            Ponderando os critérios legais supra enunciados, considerando a elevada ilicitude do facto, a inexistência de consequências para o assistente, a elevada intensidade do dolo do arguido, a inexistência de antecedentes criminais, a sua inserção social e familiar, as significativas exigências de prevenção geral e as atenuadas exigências de prevenção especial, cremos que pena de 10 meses de prisão, decretada pela 1ª instância, situada em medida próxima do ponto médio entre o primeiro quarto e o meio da moldura abstracta aplicável, cumpre integralmente os critérios legais apontados, não merecendo, por isso, censura.

            Por outro lado, deve manter-se a também decretada substituição da pena desta pena prisão, com as condições fixadas.

            10. A alteração da qualificação jurídica da conduta do recorrente e do seu sancionamento, nos termos que ficaram apontados, determina que a pena única decretada na sentença recorrida não possa subsistir.

            Assim, atento o disposto no art. 77º, nº 3 do C. Penal, deve o arguido ser condenado na pena única de 10 meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo período de um ano, sujeita à obrigação de, no prazo da suspensão da execução, pagar a Instituição de Solidariedade Social da cidade de Lamego, a quantia de € 750, e na multa de € 880.


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            Da inexistência de fundamento para a condenação nos pedidos de indemnização

            11. Por fim, alega o recorrente – conclusões 30ª a 33ª – que, para além de não ter cometido os crimes, não existe fundamento a condenação civil, na medida em que, relativamente ao assistente, não se provaram danos, e relativamente à assistente, não foram habilitados os respectivos herdeiros. Para este efeito, impugnou os pontos 13, 14, 16 e 16 dos factos provados – conclusão 5ª B.  

            O assistente peticionou uma indemnização de € 3.000, acrescida de juros legais a contar da notificação do pedido e a assistente peticionou uma indemnização de € 6.500, acrescida de juros legais a contar da notificação do pedido.

            Dispõe o nº 2 do art. 400º do C. Processo Penal que, sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada. Por sua vez, dispõe o art. 44º, nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto [Lei da Organização do Sistema Judiciário] que, em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de € 30.000 e a dos tribunais de primeira instância é de € 5.000. Assim, a recorribilidade do pedido de indemnização deduzido no processo penal, objecto de sentença de 1ª instância, depende da verificação, cumulativa, de duas condições: que o pedido formulado seja superior a € 5.000 e; que o decaimento para o recorrente seja superior a € 2,500.

            Sendo de € 3.000 o pedido deduzido pelo assistente, e sendo a condenação decretada na sentença recorrida, correspondente ao decaimento do recorrente, de € 500, não se mostra verificada nenhuma das duas condições. Sendo de € 6.500 o pedido deduzido pela assistente, e sendo a condenação decretada na sentença recorrida, correspondente ao decaimento do recorrente, de € 1.200, não se mostra verificada a segunda condição enunciada.

            Não é, pois, face ao disposto no art. 400º, nº 2 do C. Processo Penal, admissível recurso da sentença, relativamente aos pedidos de indemnização deduzidos, pelo que, nesta parte, dele se não conhece.


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            III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder parcial provimento e, em consequência, decidem:

A) Modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos que se deixaram fixados nos pontos II., 6., i), ii) e iii), que antecedem e aqui se dão por reproduzidos.

B) 1. Revogar a sentença recorrida, na parte em que condenou o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos 143º, nº 1 e 145º, nº 1, a), do C. Penal, com referência ao art. 132º, nº 2, h), do mesmo código, dele o absolvendo.

2. Revogar a sentença recorrida, na parte em que condenou o arguido na pena única de 24 (vinte e quatro) meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período, condicionada ao dever de pagar, no mesmo período, a uma instituição de solidariedade social, a quantia de € 750.

C) 1. Condenar o arguido A..., pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º, nº 1 do C. Penal – resultante da convolação do acusado crime consumado de ofensa à integridade física qualificada – na pena de 110 (cento e dez) dias de multa à taxa diária de € 8 (oito euros), perfazendo a multa global de € 880 (oitocentos e oitenta euros).

2. Condenar o arguido A... – em cúmulo da pena referida no número anterior com a pena de 10 (dez) meses de prisão, imposta pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada – na pena única de 10 (dez) meses de prisão e na multa de € 880 (oitocentos e oitenta euros).

3. Suspender a execução da pena de prisão pelo período de um ano, sob condição de o arguido, no prazo da suspensão, pagar a Instituição de Solidariedade Social da cidade de Lamego a quantia de € 750 (setecentos e cinquenta euros), e comprovar nos autos, no mesmo prazo, tal pagamento.

D) Confirmar, quanto ao mais, a sentença recorrida.

Recurso sem tributação, atenta a sua parcial procedência (arts. 513º, nº 1 do C. Processo Penal).

Coimbra, 9 de Março de 2016



(Vasques Osório – relator)


(Fernando Chaves – adjunto)