Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
144/21.5T8PMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO DOMINGOS PIRES ROBALO
Descritores: MAIORES ACOMPANHADOS
SUPRIMENTO DA AUTORIZAÇÃO DO BENEFICIÁRIO
AUDIÇÃO PESSOAL
Data do Acordão: 04/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE PORTO DE MÓS DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 141.º, N.ºS 2 E 3, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: No processo especial de acompanhamento de maiores, a decisão sobre o pedido de suprimento da autorização do maior a acompanhar deve ser precedida da audição pessoal e directa do beneficiário. Só assim não sucederá quando que essa audição for impossível.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível (3.ª Secção), do Tribunal da Relação de Coimbra    

                                   Proc.º n.º 144/21.5T8PMS.C1                                                                    

1. Relatório

1.1.- A presente ação de acompanhamento de maior foi instaurada por AA contra BB, seu pai, alegando, para o efeito e em suma, que o beneficiário padece de perturbação de jogo patológico, apresentando um comportamento problemático, persistente e recorrente no que concerne ao jogo, condição que tem vindo a progredir desfavoravelmente.

Mais alegou que, devido a um diagnóstico de bipolaridade de tipo 2 se encontra reformado por invalidez, tendo-lhe sido prescrita medicação psiquiátrica para as suas patologias.

Alegou ainda que o beneficiário não é capaz de gerir os seus bens, nem de tomar decisões quanto à sua vida corrente ou quanto à gestão ou administração da sociedade V..., da qual é presidente do conselho de administração e acionista.

Conclui que o beneficiário não se encontra na posse das faculdades que o permitissem, a ele mesmo, formular o pedido para o seu acompanhamento, razão pela qual requereu o suprimento da autorização nos termos do disposto no artigo 141º, nº 3 do Código Civil.

Juntou aos autos diversa documentação.

**

1.2. – Feita a citação, contestou o beneficiário, alegando, no que ao presente incidente concerne, que não se mostram concretamente alegadas pelo requerente as razões pelas quais o beneficiário não pode dar a sua autorização de forma livre e consciente, não sendo as patologias apontadas suficientes para justificar a alegada impossibilidade.

**

1.3. - Foi determinada a realização de perícia, cujo relatório se mostra junto aos autos.

**

1.4. - Procedeu-se à audição do Beneficiário.

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            1.5.- Foi proferida sentença onde se decidiu:

a)- Não suprir judicialmente a autorização do beneficiário para a propositura da presente ação, face ao preceituado no art.º 141.º, n.ºs 1 e 2, do Cód Civilo, e, consequentemente, absolver o beneficiário da presente instância por falta de legitimidade do requerente.

b) - Fixar o valor da ação em €30.000,01 (artigo 303.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).

c)- Custas pelo requerente (artigo 527.º, n.º 1 e 2 e 539.º, n.º 1 do Código de Processo Civil) .

Registe e notifique, sendo também ao Ministério Público.

                                                           **

            1.6.- Inconformado com tal sentença dela recorreu o requerente - AA -, terminando a sua motivação com as conclusões que se transcrevem:

            1. O presente recurso, vem interposto da douta decisão que decidiu não suprir

judicialmente a autorização do beneficiário para a propositura da presente acção

e, consequentemente, absolver o beneficiário da instância por falta de legitimidade.

2. Com tal douta decisão, não se pode o Requerente Apelante conformar.

3. Salvo melhor opinião, a Meritíssima Juiz do Tribunal recorrido, efectuou uma

errada apreciação dos factos, quer dos que foram considerados provados, quer

dos que foram considerados não provados, padecendo assim a douta sentença

de um vício de apreciação e valoração da prova (artigo 607.º, nº 4 do C.P.C.),

existindo ainda, uma errada aplicação do Direito.

4. Entendem os Autores que, em face da prova produzida em audiência de

julgamento, os factos descritos sob as nas alíneas b), c) e d) e considerados como

não provados, deveriam ter sido considerados provados, alguns com pequenas

alterações e os factos descritos sob os nºs 3., 10., 11., 14., 20. e 21. dos factos

dados como provados, ser objecto de rectificação e alteração, por parte do que aí

consta não se encontrar em consonância com a prova pericial e a demais junta

aos autos.

5. Assim, mui respeitosamente, pretende a Autora que Vªs Exªs apreciem o presente recurso, com os fundamentos infra elencados, esperando o Recorrente que após uma análise cuidada de todo o processo coadunada com as alegações do presente recurso, venham Vªs Exªs a proferir uma decisão justa e equitativa, que só poderá passar pela revogação da douta sentença proferida, uma vez que não pode o Requerente, atendendo a toda a prova produzida e à realidade dos factos, sobejamente conhecida quer pelos trabalhadores da sociedade que administra, quer pelos seus familiares, ser absolvido, devendo, antes, o Tribunal suprir a autorização do Beneficiário por existir fundamento atendível.

6. Devendo, a final, serem determinadas as medidas de acompanhamento

provisórias e urgentes requeridas na Petição Inicial.

7. É para que assim se decida que, pedimos a atenção de V. Exas. para as

conclusões deste recurso.

8. Com ele, o Requerente pretende:

I - Impugnar a decisão acerca da matéria de facto; e, por inerência;

II - Impugnar a decisão de direito;

DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO PROFERIDA SOBRE A MATÉRIA DE FACTO

- Do Erro na Decisão da Matéria de Facto

9. Dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados, começando pelos factos que foram considerados como factos não provados pela douta sentença

recorrida (que em alguns casos serão analisados em conjunto com os factos que

se consideram incorrectamente provados, por se encontrarem interligados), salvo

melhor opinião, todos os factos aí descritos sob as alíneas b), c) e d), foram

incorrectamente considerados como factos não provados e, como tal,

deverão ser alterados e considerados provados alguns com pequenas correcções,

de forma a ficarem em consonância com a prova documental que se encontra

junta aos autos, entre a qual, a pericial, que em parte a seguir se transcreverá

relativamente a cada facto a apreciar.

10. Por outro lado, e em relação aos factos provados, os descritos sob os pontos nºs 3., 10., 11., 14., 20. e 21 deverão ser rectificados, alterados e objecto de nova

redacção.

11. Relativamente aos factos descritos sob as alíneas b) e d), foi considerado não provado o seguinte:

b) O beneficiário apresenta atualmente uma perturbação de jogo.

d) O beneficiário não procurou acompanhamento psicológico/psiquiátrico em

relação a uma eventual adição de jogo.

12. O Tribunal “a quo” fundamentou a resposta a esta matéria nos termos supra citados nas alegações de recurso.

13. Os concretos meios probatórios existentes nos autos, no nosso entender,

impunham uma decisão sobre aquele ponto de facto diversa da recorrida.

14. É importante desde já referir que, e com extrema relevância para contrariar a factualidade consignada na douta sentença recorrida, que somente foi ouvido o Beneficiário, para efeitos de suprimento da sua autorização, estando, por conseguinte, a decisão recorrida assente apenas nas declarações deste e no relatório do perito do GML junto aos autos.

15. Por sua vez, tal perito, assenta as suas conclusões, no exame directo que fez ao Beneficiário e na Informação Clínica junta com a Contestação do Beneficiário.

Com efeito,

16. Atento o Relatório do Perito, não se vislumbra que exames ou testes tenham sido feitos ao Beneficiário com vista a afastar a presença actual de qualquer perturbação de jogo?!

17. Pelo que se alcança da leitura do referido relatório, constata-se que a conclusão a que chegou o perito no que respeita ao diagnóstico feito quanto à adição ao jogo, assenta unicamente naquilo que lhe foi respondido pelo Beneficiário.

18. Naturalmente que este, sabendo do propósito deste exame e, por conseguinte, para alcançar um termo neste processo, não disse a verdade.

19. Indubitável é que inexiste qualquer prova documental, seja ela pericial ou outra, que ateste que o Beneficiário já não padece de qualquer perturbação de jogo.

20. Como se sabe, esta adição é de difícil tratamento, para mais quando se trata duma pessoa – como é o caso do Beneficiário – que joga há já vários anos, de forma

desregrada, desmedida, com dinheiro que não lhe pertence e em elevadas quantias.

21. Não se pode olvidar que o Beneficiário admitiu perante o perito – o que veio a ser dado como provado (ponto 11. dos factos provados) – ter perdido, durante o ano

de 2020, pelo menos, entre € 50.000,00 a € 100.000,00 em jogo online.

22. Só no ano de 2020, o Beneficiário perdeu, como confessa, pelo menos entre € 50.000,00 a € 100.000,00 em jogo online!!

23. Mas a verdade é que o Beneficiário perdeu muito mais dinheiro em jogo do que entre € 50.000,00 a € 100.000,00, como provam os documentos juntos à P.I. sob

Docs. n.ºs 3 a 7 e 22 a 26 (extractos bancários).

24. Ora, tais extractos bancários da sociedade administrada pelo Beneficiário

demonstram que este despendeu um total de € 221.536,00 em jogo, só no ano de

2020!!

25. O que é claramente uma diferença substancial entre a realidade dos factos e o que alega o Beneficiário em benefício próprio.

Mais,

26. Diz a Mm.ª Juiz a quo, na douta sentença recorrida, que “resulta provado que o beneficiário, pese embora no ano de 2020 tenha passado por um período de jogo

intenso, mobilizando quantias manifestamente elevadas, resulta igualmente

provado que este se mostrou capaz não só de um juízo de autocrítica mas também

de autocontrolo, tendo logrado parar de jogar, manter-se abstinente e liquidado os

montantes movimentados o que, capacidade que aparece reflectida no teor do

relatório pericial de forma linear conclui que o beneficiário não apresenta critérios

clínicos compatíveis com o diagnóstico de adição ao jogo”.

27. Ou seja, basicamente, quer o perito, quer o Tribunal, bastaram-se com o facto do Beneficiário ter negado continuar a jogar para dar tal facto como verdadeiro e por não provado, respectivamente.

28. Sem sequer se importarem em indagar de que forma o Beneficiário se tratou ou até mesmo pedir uma Avaliação Médica ou um Relatório do médico que o acompanhou no tratamento desta adição. Adição que, repare-se, foi confirmada

pelo Beneficiário, tendo somente negado ser actual.

29. Porquanto, e pese embora tenha o Beneficiário alegado em Tribunal, aquando da sua audição, que se havia tratado desta adição com a Psiquiatra que o acompanha no tratamento da doença que lhe foi diagnosticada de perturbação afectiva bipolar de tipo IV, a Dra. CC, a verdade é que tal versão é totalmente desmentida pelo teor do Doc. n.º 15 junto à P.I., pois resulta deste documento (sms escrita da Dra. CC dirigida quer ao Beneficiário quer ao ora Requerente) que a referida médica diagnosticou ao Beneficiário, no ano de 2020– e sem qualquer dúvida – um problema de saúde que apelida de “grave” e que se prende com o jogo patológico.

30. E, por essa razão, i.é., por se tratar dum problema que a mesma entende que deve ser tratado por um Colega seu especialista em problemas ligados ao jogo

patológico, remete o Beneficiário para uma conversa com o mesmo, afim de tirar

dúvidas e iniciar o seu tratamento.

31. Porém, tudo isto foi negligenciado pelo Tribunal, em função de – e apenas – do que o beneficiário declarou perante o perito e perante o Tribunal.

32. Pelo que, não se entende, com o devido respeito, quais os critérios clínicos de avaliação do perito para concluir que o Beneficiário não os apresenta. Foram

exames? Relatórios? Ou apenas as declarações do beneficiário que o negou?!

33. É que, no processo, existem apenas exames complementares de diagnóstico,

nomeadamente uma avaliação psicológica da personalidade e avaliação

neuropsicológica, os quais, foram realizados ao Beneficiário em 12.11.2019 e em

17.09.2019!!!

34. Questiona-se, assim, com toda a legitimidade, como pôde o Perito avaliar o

Beneficiário com base em informação clínica completamente desatualizada e

desajustada à realidade e àquilo que são, hoje, os problemas patológicos do

Beneficiário?

35. Esta perícia tem necessariamente de ser colocada em causa, o que, com o devido respeito que é muito, deveria ter sido feito pelo douto Tribunal a quo, que não tem a sua decisão vinculada ao resultado da perícia, exercendo esta apenas a função de auxiliar o Tribunal a quo na apreciação que se lhe exige sobre a factualidade alegada pelas partes.

36. Porquanto, a conclusão a que chegou o perito que o “examinando não cumpre os pressupostos médico-legais previstos no artigo 138.º do Código Civil para

beneficiar do regime do maior acompanhado”, assenta exclusivamente:

- no exame directo ao Beneficiário; - numa avaliação psicológica da personalidade e numa avaliação neuropsicológica, exames esses que foram realizados ao Beneficiário no ano de 2019;

- numa informação médica (da Dra. CC, com data de

26.01.2021), da qual resulta que o Beneficiário sofre de Perturbação Afectiva

Bipolar tipo IV;

37. Donde resulta que tal perícia não cumpriu com os pressupostos legais exigíveis e que se impunham, mormente quanto à adição ao jogo do Beneficiário, uma vez que inexiste qualquer exame ou avaliação feito por um médico da especialidade

que suporte a conclusão que foi dada pelo perito quanto a este problema grave de

saúde e que influi, determinantemente, os actos de gestão de vida corrente e da

própria sociedade que o Beneficiário administra.

38. Mas, também não é despiciendo dizer, contrariamente à avaliação do perito e, posteriormente, do Tribunal, que o Beneficiário teve um discurso muito pouco

coerente no que se refere ao jogo.

39. Isto porque, o Beneficiário chega ao ponto de referir que, como se transcreve do relatório pericial: “E por algum motivo, quando estive a jogar no Casino, na altura do confinamento, acreditava que conseguia decifrar os códigos, que havia uma forma de ganhar o jogo. No passado jogava de vez em quando, eu gostava de jogar black jack. Eu contava as cartas e nunca perdia dinheiro. Entretanto, nesse

período em que perdi dinheiro, em 2020, fui jogar slot machines. Eu jogava online

e acreditava conseguir decifrar os códigos. (…)”

40. Face ao exposto, e contrariamente ao entendimento do douto Tribunal a quo, não deixam dúvidas que não se supõe como verosímil que o Beneficiário

tenha deixado de jogar, pelo que, apresenta actualmente, tal como apresentava à data de entrada da presente acção, uma perturbação de jogo.

41. Sendo manifestamente falso que o Beneficiário tenha sido tratado, porquanto, nunca procurou acompanhamento psicológico/psiquiátrico em relação à sua adição ao jogo.

42. Permanecendo a gastar de forma desmedida o dinheiro da sociedade V..., S.A. em jogo.

43. Ora, em face da prova pericial e a documental junta aos autos, supra referida, não se entende como pôde a Mmª. Juiz a quo ter dado como não provado os factos vertidos nas alíneas das alíneas b) e d).

44. O conjunto de toda a prova (pericial e a documental junta aos autos), impunham que o Tribunal a quo, tivesse dado por provados os factos constantes das alíneas b) e d) dos factos não provados, o que se requer.

45. Relativamente aos factos descritos sob a alínea c), foi considerado não provado o seguinte:

c) O beneficiário não é capaz de tomar decisões quanto à sua vida corrente ou

quanto à gestão e administração da sociedade V..., S.A..

46. Os concretos meios probatórios existentes nos autos, no nosso entender,

impunham uma decisão sobre aqueles pontos de facto diversa da recorrida.

47. Mais uma vez, o douto Tribunal recorrido valorou tão somente as declarações do Beneficiário em detrimento do que é a prova documental junta.

48. Porquanto, da prova documental junta aos autos, mormente, da douta sentença junta aos autos pelo Requerente através do Requerimento apresentado em

04/06/2021, com a Ref.ª Citius 7754559, proferida no âmbito do Procedimento

Cautelar que corre termos sob o n.º de Processo 709/21...., no Juízo de

Comércio de ... - Juiz ..., resulta que:

“Dos factos provados, em termos de avaliação indiciária, resulta que o

afastamento do Requerente da administração da sociedade, com o reforço dos

poderes do acionista BB, causa prejuízo à sociedade

Requerida que se vê, desde logo, na eminência de paralisar ou reduzir a

respetiva atividade com a inerente perda de credibilidade no mercado.

A sociedade Requerida incorrerá ainda no risco de continuarem a ser

desviadas quantias monetárias pelo acionista BB para seu

proveito pessoal, utilizando tais recursos monetários para fazer face à sua

adição ao jogo.

Da factualidade que resultou indiciariamente provada resulta que os

comportamentos do acionista BB poderão pôr em causa, e de

forma irrecuperável, a condição financeira da Requerida.

Em face do que fica dito, deve ser havido como sério o risco de dano venha a

produzir-se, em razão da demora na ação principal de anulação, o que consubstancia "dano apreciável", por estarem em causa perigo de dissipação de quantias monetárias pertença da sociedade Requerida e, bem assim, a regular prossecução da atividade que constitui o objeto social da sociedade e sua credibilidade no mercado. A nosso ver, mantendo-se a deliberação objeto da presente providência durante o lapso de tempo que leva a ser tomada uma decisão definitiva, tal evidencia um prejuízo significativo, de importância relevante,longe dos danos irrisórios ou insignificantes, a serem causados não só ao Requerente, como também à sociedade Requerida.”

Pelo que,

49. Mal andou o douto Tribunal recorrido, com o devido respeito, quando refere que:

“Ora, pese embora tenha resultado provado – e seja assumido pelo próprio

beneficiário – que no ano de 2020 foram movimentadas e perdidas quantias

francamente avultadas em jogo, certo é que não resulta dos autos que em

momento algum a solvabilidade da dita empresa ou do próprio beneficiário tenham

sido postos em causa, antes revelando poder tratar-se de uma excentricidade,

permitida a quem aufere rendimentos igualmente e em maior medida avultados ao

qual, inclusivamente o beneficiário pôs cobro”. (negrito e sublinhado nosso)

50. Quando resulta provado precisamente o contrário!

51. Para além de tal ter sido alegado pelo Requerente, foi igualmente feita prova inequívoca que a sociedade V... S.A. se vê na eminência de

paralisar ou reduzir a respetiva atividade com a inerente perda de credibilidade no

mercado.

52. Para além de incorrer ainda no risco de continuarem a ser desviadas quantias monetárias pelo Beneficiário para seu proveito pessoal, utilizando tais recursos monetários para fazer face à sua adição ao jogo.

53. O que põe em causa, e de forma irrecuperável, a condição financeira da referida sociedade.

54. A verdade é que o Beneficiário em momento algum fez prova da solvabilidade da dita empresa e até mesmo da sua própria solvabilidade.

55. Porquanto, nada consta nos presentes autos relativamente ao que são os

rendimentos do Beneficiário, que permita ao Tribunal a quo considerar que a

adição ao jogo poderá representar uma excentricidade, face aos rendimentos do

beneficiário.

56. Sendo certo que o mesmo não alegou nem provou sequer quais são.

57. Nesta medida, está longe o Requerente de perceber como pôde o douto tribunal recorrido dar como provado, que as quantias movimentadas e aquelas que foram perdidas pelo Beneficiário (fora as que não revelou mas que os documentos

contabilísticos juntos aos autos demonstram), francamente avultadas, em jogo,

podem tratar-se duma excentricidade suportável.

Mas mais,

58. Alega mas não prova o Beneficiário, de que forma pôs cobro, ou dito de outra forma, liquidou à sociedade V..., S.A. tais quantias que gastou

em jogo, como se suas fossem.

59. Pese embora conste do relatório pericial que o Beneficiário assumiu ter gasto dinheiro da empresa e que referiu ter pago todas as suas dívidas à empresa, através das suas poupanças.

60. Certo é que, e mais uma vez, inexiste qualquer prova documental de que tal tenha efectivamente acontecido.

61. Resta saber quanto mais dinheiro tem o Beneficiário desviado da referida

empresa para satisfazer a sua adição ao jogo, que quantias foram e são, quanto aufere e que poupanças na realidade tinha que lhe permitissem solver todas estas dívidas perante a sociedade.

62. E, se as solveu, como alega - mas do que se duvida - precisamente por inexistir prova, facilmente se conclui que não possui dinheiro pessoal ou qualquer

poupança ou o pouco que restará, em pouco tempo o perderá no jogo.

63. Em face disto, não se compreende como a Mmª Juiz a quo chegou a tal conclusão, pelo que, indubitável é que não deveria ter decidido como decidiu, em manifesta oposição com a prova documental junta aos autos.

64. Pelo que, face ao supra aduzido, não poderia ter sido dado como não provado o facto constante da alínea c) no que respeita à capacidade do Beneficiário

para tomar decisões quanto à sua vida corrente, de gerir os seus bens e quanto à capacidade de gestão e administração da sociedade V..., S.A., o qual foi incorrectamente julgado pelo douto Tribunal a quo, facto esse que deverá ser dado como provado, o que impõe, necessariamente, a alteração dos factos aí descritos, os quais deverão ser considerados provados, com a seguinte redacção:

“O Beneficiário não é capaz de gerir os seus bens, de tomar decisões

quanto à sua vida corrente, nem de gerir e administrar a sociedade V..., S.A.

.

65. Resultando do exposto:

a) Que o Beneficiário tem uma perturbação de adição ao jogo, utilizando os

recursos monetários da sociedade que administra – V..., S.A. para fazer face à sua adição ao jogo, o que põe em causa, e de forma irrecuperável, a condição financeira da referida sociedade e sua própria;

b) Resultando ainda que tais quantias desviadas pelo Beneficiário da referida

sociedade são francamente avultadas;

c) Que o Beneficiário não tem quaisquer poupanças;

d) Que manifestou ideias delirantes aquando do seu exame pericial, o que

resulta percetivelmente do que ora se transcreve:

“Informação clínica, Centro Hospitalar ..., consulta de psiquiatria,

com data de 3 de outubro de 2016:

“(…) PAB tipo 3, PP SOE, última consulta dia 20/05/2016, tem andado bem

refere que andou um dia bastante eufórico, em que comprou vários perfumes e

um telemóvel que ele não precisava (…)”.

“E por algum motivo, quando estive a jogar no Casino, na altura do

confinamento, acreditava que conseguia decifrar os códigos, que havia uma forma

de ganhar o jogo. No passado jogava de vez em quando, eu gostava de jogar

black jack. Eu contava as cartas e nunca perdia dinheiro. Entretanto, nesse

período em que perdi dinheiro, em 2020, fui jogar slot machines. Eu jogava online

e acreditava conseguir decifrar os códigos. (…)”

e) Que não procurou acompanhamento psicológico/psiquiátrico em relação à adição de jogo;

f) Que sofre de uma perturbação afectiva bipolar de tipo IV.

g) E que resulta claramente demonstrado que não é capaz de gerir os seus bens, de tomar decisões quanto à sua vida corrente nem de gerir e administrar a sociedade

V..., S.A.”.

66. Devem os pontos 10., 20. e 21. dos factos provados, ser alterados em

consonância com a prova produzida e acima transcrita, entendendo-se como

tal, que o ponto 10. deverá ser alterado, passando a constar da matéria de facto

não provada, ou, caso assim não se entenda, constar da matéria de facto provada,

com a seguinte redacção:

10. O beneficiário não parou de jogar e apresenta um quadro de

perturbação de jogo patológico.

67. Relativamente ao ponto 20., deverá igualmente ser alterado de forma a que passe a constar o seguinte:

20. O beneficiário apresenta perturbação de personalidade.

68. Pelos mesmos motivos, deverá ainda ser alterado o ponto 21., que deverá passar a ter a seguinte redacção:

21.A extensão da perturbação afetiva bipolar de tipo IV de que o beneficiário padece, é suficiente para o impedir, de exercer, por si e de forma consciente, os seus direitos e deveres.

69. Devendo, ainda e por conseguinte, os pontos 11. e 14. ser alterados, serem

considerados factos não provados:

11.Também no ano de 2020 o beneficiário liquidou à referida empresa, através de provisões e poupanças pessoais, os montantes utilizados.

14.O pensamento do beneficiário apresenta um curso normal, com continuidade normal, não manifestando ideias delirantes.

70. Por último, e uma vez que não resulta de qualquer documento probatório que o beneficiário é o único acionista da sociedade V..., S.A., deve o ponto 3. dos factos provados ser alterado em consonância, de forma a passar a constar o seguinte:

3. O beneficiário é presidente do conselho de administração e acionista da sociedade V..., S.A..

71. Tal facto apenas pode ser provado mediante prova documental.

72. E, na verdade, prova alguma foi junta pelo Beneficiário que prove ser o único acionista, pese embora o tenha alegado.

73. Impunha-se, assim, ao Tribunal recorrido recorrer-se junto da sentença proferida no âmbito do Procedimento Cautelar n.º 709/21.... e junta aos autos em 04/06/2021, com a Ref.ª Citius 7754559, onde ficou indiciariamente provado, entre

o mais, que:

“Em resultado da outorga dos escritos particulares referidos em 2., 5. e 8. AA é possuidor das ações nominativas na sociedade V..., S.A. –

, com o valor nominal cada de 5,00€, com os números 60.001 a

90.000; 120.001 a 150.000 e 150.001 a 180.000, cujas cópias se mostram juntas

aos autos, representativas de 60% do capital social da sociedade Requerida.

O Requerente foi o acionista da empresa que contribuiu de forma inequívoca para o desenvolvimento da atividade social e sem o qual a sociedade não teria atingido

o patamar de desenvolvimento que se verifica atualmente.”

74. Esta prova, não foi, refutada, documentalmente, pelo Beneficiário.

DA QUESTÃO DE DIREITO - Da Errada Aplicação e Interpretação do Direito

75. Face a tudo quanto supra se descreveu, deverá a matéria de facto que foi

considerada não provada, bem como a que foi dada por provada e supra mencionada, ser alterada nos termos supra descritos.

76. O art.º 141º, nº 1, do Código Civil, contém uma norma de legitimidade ativa relativa à instauração do qualquer parente sucessível ou, independentemente de

autorização, pelo Ministério Público.

77. De acordo com o nº 2, “o tribunal pode suprir a autorização do beneficiário quando, em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou

quando para tal considere existir um fundamento atendível”.

78. O nº 3 permite que o pedido de suprimento pode ser cumulado com o pedido de acompanhamento.

79. O Código Civil evidencia aqui um desvio significativo ao conceito tradicional de legitimidade delineado pelo art.º 30º do Código de Processo Civil, assente na configuração da ação ou do incidente, conforme a alegação de factos.

80. Aqui, na falta de autorização do Beneficiário, a legitimidade indireta há de resultar do suprimento judicial da sua vontade, o que pressupõe a prova de determinados fundamentos.

Temos que distinguir a legitimidade para deduzir o pedido de suprimento da vontade do Requerido, da legitimidade para ação.

81. Aquela, resulta dos próprios termos da petição inicial, sendo Requerente, o filho do Requerido (um parente sucessível) que, invocando essa qualidade, necessita

do consentimento do Requerido para o respetivo e necessário acompanhamento, em face das doenças e perturbações patológicas de que este padece e que se encontram demonstradas nos presentes autos.

82. Já a legitimidade para a ação pressupõe o suprimento do consentimento do

visado; sem este, o filho do Requerido não pode despoletar o processo especial

de acompanhamento previsto nos art.ºs 891º e seg.s do Código de Processo Civil.

O Requerente só tem legitimidade para a ação de acompanhamento se o tribunal encontrar fundamento e deferir o suprimento da vontade do Requerido, enquanto facto legitimador da proteção do Requerido.

83. Ficou sobejamente evidenciado os comportamentos perdulários e a prática de atos que demonstram necessidade de acompanhamento do Beneficiário, através

da aplicação de medidas patrimoniais que o protejam da prodigalidade, ainda que

não se encontre totalmente demente ou incapaz.

84. Aceitando-se que a novidade do regime jurídico do maior acompanhado e,

especialmente, do instituto do seu consentimento necessário versus suprimento,

levante dúvidas de aplicação que só o tempo e a prática dissiparão, não parece

ainda assim razoável arredar da protecção do regime todos os casos de

alcoolismo, de toxicodependência e de prodigalidade, como é o caso da adição ao

jogo, nos quais a limitação à capacidade advém não de anomalia física ou

psíquica, mas sim do comportamento condicionado pelo vício e pelos seus efeitos.

85. Convenhamos que muito dificilmente e só mesmo por excepção, um alcoólico, um toxicodependente ou um pródigo – na pendência da condição que o afecta – consente voluntariamente em ser limitado.

86. Quase só se revela útil o estatuto de maior acompanhado para a protecção de um alcoólico, de um toxicodependente ou de um pródigo, se lhe puder ser imposto de

modo ponderadamente objectivo para seu benefício, apesar de contra a sua

vontade manifestada.

87. A decisão de rejeitar liminarmente a possibilidade de suprir o consentimento, só com base na existência de inteligibilidade ou condições de entendimento intelectual do Recorrido, circunscreve a aplicação não voluntária do regime uma anomalia psíquica ou de qualquer impossibilidade de entendimento, deixando sem qualquer protecção legal todos os que, apesar de “mentalmente ou intelectualmente capazes”, carecem de ser protegidos de si próprios, por não terem condições para formar livre e esclarecidamente a sua vontade, muito menos no processo de decisão do consentimento.

88. Se nos merece inteira saudação a novidade deste regime de acompanhamento, por trazer um princípio de primazia da vontade do acompanhado, de subsidiariedade do acompanhamento ao dever natural de colaboração e de redução das medidas ao estritamente necessário, princípios perfeitamente justificáveis em casos como os da surdez, da mudez, da cegueira e de outros casos de limitações que antes eram penosamente estigmatizadas pela inabilitação, este aplauso ao novo regime assenta no facto de este deixar de suprir forçadamente a vontade a quem dela nunca esteve privado (apesar das maiores ou menores dificuldades no seu exercício).

89. Mas, sob pena de pervertemos a flexibilidade e a utilidade do regime, o

mesmo princípio de primazia da vontade não poderá actuar como o instrumento

de abandono à sua má sorte de todos quantos não são livres na formação da

sua vontade, apesar de nenhuma dificuldade terem no seu exercício.

90. O alcoólico, o toxicodependente e o pródigo (entre outros) estão

sempre condicionados pelos respectivos vícios de comportamento a recusarem

tudo quanto entendam que pode limitar a satisfação dos seus vícios, como é o

caso, evidente, do ora Beneficiário.

91. Todos os três casos (como o dos autos), apesar de terem a vontade completamente sequestrada, na maioria das situações concretas, terão as condições mentais e intelectuais necessárias para compreender o que está em causa num processo de acompanhamento de maior, assim como, as mais das vezes, serão capazes de se impor a si próprios até algum intervalo de abstinência dos vícios ou mesmo uma simples redução do consumo, para convencer quem for necessário convencer de que estão em pleno uso das ditas “faculdades mentais”, exercendo plenamente o direito de se oporem (condicionadamente) ao processo.

92. Ora, se o instituto do consentimento necessário do beneficiário não puder ser suprido por razão de alcoolismo, de toxicodependência, de prodigalidade ou de qualquer outra situação crónica que afecte a autonomia da vontade, integrando o conceito de “outro motivo atendível”, na acepção do nº 2 do artigo 141º do C. Civil, então só muito raramente, e por excepção, é que estes casos poderão encontrar a protecção de que necessitam no novo regime legal de acompanhamento.

93. A maioria destes casos, por consequência directa do vício da vontade de que

padecem ficarão, por este entendimento da decisão em crise, remetidos a uma situação de vazio jurisdicional, o que configura, certamente, uma violação do princípio constitucionalmente consagrado da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.

94. Parece, aliás, uma bizarria jurídica que seja, simultaneamente, o próprio fundamento concreto do recurso à tutela jurisdicional, o próprio obstáculo dirimente à tutela efectiva dos direitos individuais em causa.

95. O princípio da primazia da vontade, que deverá ser absoluto em relação a quem da mesma é titular e senhor, pressuporá necessariamente que a vontade primaz é livre, formada de modo são, natural e incondicionado (apesar das dificuldades de exercício de que possa sofrer).

96. Pois, quando por vício comportamental crónico assim não se passa, deixa

tal primazia de fazer sentido, na medida em que passa a ser uma primazia da vontade sobre a saúde, sobre a solvabilidade, sobre o sustento e sobre o bem estar do seu titular, o que conduz a um resultado perverso, contraditório ao espírito do legislador do regime do maior acompanhado e inconstitucional por violação do princípio tutela da jurisdição efectiva.

97. A doença ligada às perturbações de jogo patológico, não é uma doença qualquer.

98. É, pois, inquestionável, que o Beneficiário padece cronicamente desta doença, com repercussões disruptíveis na condução da sua vida, designadamente na

vertente da administração dos seus bens e nos da sociedade que administra.

99. Dado que, em face da matéria de facto provada, nos termos acima indicados, mais concretamente àquela que traduz um conjunto de circunstâncias que, por si, é reveladora de que existe um fundamento sério e atendível para que o Tribunal

possa suprir a falta de autorização do Beneficiário (art.º 141º, nº 2, atrás citado).

100. Porém, nada foi indagado a esse respeito, o que, podia e devia ter sido feito pelo douto tribunal recorrido.

101. Justifica-se que o tribunal controle se se justifica ou não suprir a falta de

autorização do eventual beneficiário do acompanhamento, designadamente

através de uma perícia médico-psiquiátrica, a realizar numa unidade especializada

na prevenção e tratamento de comportamentos aditivos, para apurar se o Beneficiário se pode considerar doente por efeito da sua adição ao jogo, se sim, qual o estado de gravidade de tal doença e se esse estado se pode considerar, e em que medida, disruptivo de uma normal condução da vida e comprometedor da capacidade de autorizar livre e conscientemente o acompanhamento, sem prejuízo de outras diligências que o tribunal, ouvidas as partes, entenda necessárias, mas sem comprometer a natureza célere do processo.

102. Diligencias essas que o douto Tribunal recorrido deixou de realizar, para os referidos efeitos (artigos 665.º e 615.º, 1, d)).

103. Pelo que, deve em consequência, este Venerando Tribunal, após apreciação da prova supra citada e, alterados os factos nos termos supra descritos, revogar a douta decisão recorrida e, substituí-la por outra, que decida suprir judicialmente a autorização do Beneficiário para a propositura da presente acção, por forma a serem determinadas as medidas de acompanhamento requeridas na Petição Inicial, por a douta decisão de recurso ter efectuado uma errada interpretação dos factos, que impunha decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto dada como provada e não provada e também uma errada aplicação do direito, nomeadamente dos artigos supra descritos.

Nestes termos, como se requer, devem Vªs Exªs revogar a douta sentença recorrida,

O que será de inteira JUSTIÇA!”

                                                           **

1.7. – Feitas as notificações a que alude o art.º 221.º, do C.P.C. respondeu o requerido - BB – e o Ministério Público.

O requerente, BB, termina a sua motivação com as conclusões que se transcrevem:

“1. Nenhuma razão de ser tem o recurso interposto, sendo as suas conclusões fantasias do requerente.

2. Nenhuma censura merece a douta sentença recorrida, já que

3. É conforme ao Direito

4. É, no seu dispositivo, conforme à realidade.

5. De qualquer forma, nada justificaria a sujeição do requerido a um regime de acompanhamento.

6. Impugnam-se todos os factos invocados pelo recorrente, que devem ser desconsiderados por carecerem, em absoluto de verdade, no caso em apreço.

7. O requerente não é legitimo proprietário de qualquer acção na empresa de seu pai e as que tem em seu poder foram por si furtadas.

8. O requerente deve mais de 700.000€ à empresa de seu pai.

9. O requerido não deve qualquer montante à mesma empresa.

10. Todas as questões levantadas e que não tenham a ver com o suprimento do consentimento não são aqui relevantes, nem devem ser apreciadas ou consideradas, até porque são, no mínimo, controvertidas, sustentando-se a versão do requerente em documentos falsos e falsificados, já participados criminalmente.

11. Como bem foi declarado na douta sentença recorrida, e nada indicia o contrário,

“13.O beneficiário está orientado no tempo e autopsiquicamente, no espaço e alopsiquicamente.

14.O pensamento do beneficiário apresenta um curso normal, com continuidade normal, não manifestando ideias delirantes.

15.A sua sensoperceção encontra-se conservada, não se apurando alucinações atuais.

16.O juízo crítico do beneficiário, nesta data e em termos gerais, está mantido.

17.O seu discurso é fluente, a sua linguagem é articulada e o humor encontra-se eutímico.

18.O beneficiário não apresenta critério clínicos compatíveis com o diagnóstico de adição ao jogo.

19.O beneficiário não apresenta deterioração cognitiva, apresentando idade idêntica à real.

20.O beneficiário não apresenta qualquer perturbação de personalidade.

21.A extensão da perturbação afetiva bipolar de tipo IV de que o beneficiário padece não é suficiente para o impedir de exercer por si e de forma consciente os seus direitos e deveres.

22.O beneficiário compreende o alcance e a finalidade do presente processo.

23.O beneficiário não concorda com a instauração do presente processo.”

12. O requerente é parte ilegítima no presente processo.

13. O recorrente litiga com manifesta má fé, devendo ser condenado em multa.

Termos em que se deverá negar provimento ao recurso, confirmando-se a douta sentença recorrida, e condenando-se o recorrente como litigante de má fé, assim se fazendo Justiça!”

                                                           *

            O Ministério Público não termina a sua motivação com conclusões, no entanto, pugna pela improcedência do recurso.

                                                                       **

            1.8.- Feitas as notificações a que alude o art.º 221.º, do C.P.C., não houve resposta.

                                                                       **

            1.9.- Foi proferido despacho a receber o recurso do seguinte teor:

            “Considerando que a decisão é recorrível, os recorrentes gozam de legitimidade e que foi interposto tempestivamente (artigos 629.º, 631.º n.º 1 e 638.º, n.º 1 do Código de Processo Civil), admito o recurso com a ref.ª 8430776, o qual é de apelação para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, a subir de imediato nos próprios autos e com efeito suspensivo (artigos 644.º, n.º 1, alínea a), 645.º n.º 1, alínea a) e artigo 647.º, n.º 3, alínea a) do Código de Processo Civil).

*

Cumpridas as formalidades legais, subam os autos ao Venerando Tribunal da Relação de Coimbra.

Notifique”.

                                                           **

1.10. Colhidos os vistos cumpre decidir.

                                                           **

                              2. Fundamentação

Com interesse para o presente incidente resultam provados os seguintes factos:

1. O beneficiário nasceu a .../.../1956.

2. O requerente encontra-se registado como filho do beneficiário.

3. O beneficiário é presidente do conselho de administração e único acionista da sociedade V..., S.A.. (passou a facto não provado).

4. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde 15.07.2019, que o beneficiário é seguido em consulta de psiquiatria tendo-lhe sido diagnosticada perturbação afetiva bipolar de tipo IV.

5. Tal patologia encontra-se atualmente estabilizada.

6. Por causa de tal patologia e em data não concretamente o beneficiário foi reformado por invalidez.

7. Tal decisão foi revertida e o beneficiário declarado capaz para o exercício da profissão em agosto de 2021.

8. Durante o ano de 2020 o beneficiário perdeu, pelo menos, entre € 50.000,00 a 100.000,00 em jogo online.

9. Os montantes despendidos no jogo foram retirados da empresa V..., S.A..

10. Ainda durante o ano de 2020 o beneficiário parou de jogar, mantendo-se abstinente desde então.

11. Também no ano de 2020 o beneficiário liquidou à referida empresa, através de provisões e poupanças pessoais, os montantes utilizados.

12. O beneficiário exerceu efetivamente as funções de presidente do conselho de administração da referida empresa.

13. O beneficiário está orientado no tempo e autopsiquicamente, no espaço e alopsiquicamente.

14. O pensamento do beneficiário apresenta um curso normal, com continuidade normal, não manifestando ideias delirantes.

15. A sua sensoperceção encontra-se conservada, não se apurando alucinações atuais.

16. O juízo crítico do beneficiário, nesta data e em termos gerais, está mantido.

17. O seu discurso é fluente, a sua linguagem é articulada e o humor encontra-se eutímico.

18. O beneficiário não apresenta critério clínicos compatíveis com o diagnóstico de adição ao jogo.

19. O beneficiário não apresenta deterioração cognitiva, apresentando idade idêntica à real.

20. O beneficiário não apresenta qualquer perturbação de personalidade.

21. A extensão da perturbação afetiva bipolar de tipo IV de que o beneficiário padece não é suficiente para o impedir de exercer por si e de forma consciente os seus direitos e deveres.

22. O beneficiário compreende o alcance e a finalidade do presente processo.

23. O beneficiário não concorda com a instauração do presente processo.

*

Com relevo para o presente incidente não resultaram provados os seguintes factos:

a) O beneficiário padece de alcoolismo.

b) O beneficiário apresenta atualmente uma perturbação de jogo.

c) O beneficiário não é capaz de tomar decisões quanto à sua vida corrente ou quanto à gestão e administração da sociedade V..., S.A..

d) O beneficiário não procurou acompanhamento psicológico/psiquiátrico em relação a uma eventual adição de jogo.

e)- O beneficiário é presidente do conselho de administração e único acionista da sociedade V..., S.A.. (veio da matéria dada como provada, com o n.º 3, que passou a não provada).

**

3. Motivação

É sabido que é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2, do CPC).

Constitui ainda communis opinio, de que o conceito de questões de que tribunal deve tomar conhecimento, para além de estar delimitado pelas conclusões das alegações de recurso e/ou contra-alegações às mesmas (em caso de ampliação do objeto do recurso), deve somente ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, ou seja, abrange tão somente as pretensões deduzidas em termos do pedido ou da causa de pedir ou as exceções aduzidas capazes de levar à improcedência desse pedido, delas sendo excluídos os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas partes, bem como matéria nova antes submetida apreciação do tribunal a quo – a não que sejam de conhecimento oficioso - (vide, por todos, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª. ed., Almedina, pág. 735.

Calcorreando as conclusões das alegações do recurso, verificamos que as questões a decidir são:

a)- Saber se a matéria de facto fixada em 1.ª instância deve ser alterada;

b) – Saber se a sentença recorrida deve ser revogada e substituída, por acórdão, que decida suprir judicialmente a autorização do Beneficiário para a propositura da presente acção, por forma a serem determinadas as medidas de acompanhamento requeridas na Petição Inicial.

            Tendo presente que são duas as questões a decidir por uma questão de método iremos analisar cada uma de per si.

            Assim,

a)- Saber se a matéria de facto fixada em 1.ª instância deve ser alterada.

               Segundo o recorrente o Tribunal “a quo” errou de facto ao dar como não provada a matéria vertida nas alíneas b), c) e d), dos pontos de facto não provados, assim, como errou ao dar como provada a matéria vertida nos pontos de facto, provados, n.ºs 3, 10, 11, 14, 20 e 21.

            No que concerne aos factos vertidos nas alíneas b), c) e d) da matéria não provada, diz o recorrente que devem passar a provados com pequenas correções, de forma a ficarem em consonância com a prova documental que se encontra junta aos autos, entre a qual, a pericial.

Quanto aos factos provados e descritos sob os pontos nºs 3., 10., 11., 14., 20. e 21, refere, que deverão ser rectificados, alterados e objecto de nova redacção.

Iremos seguir a ordem que o recorrente seguiu.

i)- Assim, quanto aos pontos vertidos nas alíneas b), c) e d) da matéria não provada.

Quanto a esta matéria no que concerne ás alíneas b) e d), afirma que os concretos meios probatórios existentes nos autos, em seu entender, impunham uma decisão sobre aqueles pontos de facto diversa da sentença recorrida, desde logo, por tendo apenas sido ouvido o Beneficiário, para efeitos de suprimento da sua autorização, estando, por conseguinte, a decisão recorrida assente apenas nas declarações deste e no relatório do perito do GML junto aos autos e assentando o perito, as suas conclusões, no exame directo que fez ao Beneficiário e na Informação Clínica junta com a Contestação do Beneficiário, não se vislumbra que exames ou testes tenham sido feitos ao Beneficiário com vista a afastar a presença actual de qualquer perturbação de jogo.

Por isso, diz, que a conclusão a que chegou o perito no que respeita ao diagnóstico feito quanto à adição ao jogo, assenta unicamente naquilo que lhe foi respondido pelo Beneficiário.

E, mais refere, que o Beneficiário admitiu perante o perito – o que veio a ser dado como provado (ponto 11. dos factos provados) – ter perdido, durante o ano de 2020, pelo menos, entre € 50.000,00 a € 100.000,00 em jogo online, sendo que, só no ano de 2020, o Beneficiário perdeu, como confessa, pelo menos entre € 50.000,00 a € 100.000,00 em jogo online. Mas a verdade é que o Beneficiário perdeu muito mais dinheiro em jogo do que entre € 50.000,00 a € 100.000,00, como provam os documentos juntos à P.I. sob Docs. n.ºs 3 a 7 e 22 a 26 (extractos bancários).

Sendo que de tais extractos bancários da sociedade administrada pelo Beneficiário demonstram que este despendeu um total de € 221.536,00 em jogo, só no ano de 2020.

Por outro lado, embora o Beneficiário tenha alegado em Tribunal, aquando da sua audição, que se havia tratado desta adição com a Psiquiatra que o acompanha no tratamento da doença que lhe foi diagnosticada de perturbação afectiva bipolar de tipo IV, a Dra. CC, a verdade é que tal versão é totalmente desmentida pelo teor do Doc. n.º 15 junto à P.I., pois resulta deste documento (sms escrita da Dra. CC dirigida quer ao Beneficiário quer ao ora Requerente) que a referida médica diagnosticou ao Beneficiário, no ano de 2020– e sem qualquer dúvida – um problema de saúde que apelida de “grave” e que se prende com o jogo patológico.

Assim, o exame directo ao Beneficiário; - numa avaliação psicológica da personalidade e numa avaliação neuropsicológica, exames esses que foram realizados ao Beneficiário no ano de 2019, numa informação médica (da Dra. CC, com data de 26.01.2021), da qual resulta que o Beneficiário sofre de Perturbação Afectiva, Bipolar tipo IV, pelo que, a tal perícia não cumpriu com os pressupostos legais exigíveis e que se impunham, mormente quanto à adição ao jogo do Beneficiário, uma vez que inexiste qualquer exame ou avaliação feito por um médico da especialidade que suporte a conclusão que foi dada pelo perito quanto a este problema grave de saúde e que influi, determinantemente, os actos de gestão de vida corrente e da própria sociedade que o Beneficiário administra.

Pelo que, o conjunto de toda a prova (pericial e a documental junta aos autos), impunham que o Tribunal a quo, tivesse dado por provados os factos constantes das alíneas b) e d) dos factos não provados, o que se requer.

Quanto á alínea c) dos factos não provados, refere o recorrente que a mesma deve passar a constar da matéria provada, com a seguinte redação: “O Beneficiário não é capaz de gerir os seus bens, de tomar decisões quanto à sua vida corrente, nem de gerir e administrar a sociedade V..., S.A.”.

Para tanto afirma que os concretos meios probatórios existentes nos autos, em seu entender, impunham uma decisão diversa, a que o Tribunal “a quo” chegou, desde logo, por Tribunal recorrido ter valorado o somente as declarações do Beneficiário em detrimento do que é a prova documental junta, já que, dos autos, consta a decisão proferida no Procedimento Cautelar que corre termos sob o n.º de Processo 709/21...., no Juízo de Comércio ... - Juiz ..., resulta que:

Dos factos provados, em termos de avaliação indiciária, resulta que o

afastamento do Requerente da administração da sociedade, com o reforço dos

poderes do acionista BB, causa prejuízo à sociedade Requerida que se vê, desde logo, na eminência de paralisar ou reduzir a respetiva atividade com a inerente perda de credibilidade no mercado.

A sociedade Requerida incorrerá ainda no risco de continuarem a ser desviadas quantias monetárias pelo acionista BB para seu proveito pessoal, utilizando tais recursos monetários para fazer face à sua adição ao jogo.

Da factualidade que resultou indiciariamente provada resulta que os

comportamentos do acionista BB poderão pôr em causa, e de

forma irrecuperável, a condição financeira da Requerida”.

Em face do que fica dito, deve ser havido como sério o risco de dano venha a

produzir-se, em razão da demora na ação principal de anulação, o que consubstancia "dano apreciável", por estarem em causa perigo de dissipação de quantias monetárias pertença da sociedade Requerida e, bem assim, a regular prossecução da atividade que constitui o objeto social da sociedade e sua credibilidade no mercado. A nosso ver, mantendo-se a deliberação objeto da presente providência durante o lapso de tempo que leva a ser tomada uma decisão definitiva, tal evidencia um prejuízo significativo, de importância relevante, longe dos danos irrisórios ou insignificantes, a serem causados não só ao Requerente, como também à sociedade Requerida.”

Pelo que, em seu entender, o Tribunal recorrido, andou mal, quando refere que:

“Ora, pese embora tenha resultado provado – e seja assumido pelo próprio

beneficiário – que no ano de 2020 foram movimentadas e perdidas quantias

francamente avultadas em jogo, certo é que não resulta dos autos que em

momento algum a solvabilidade da dita empresa ou do próprio beneficiário tenham

sido postos em causa, antes revelando poder tratar-se de uma excentricidade,

permitida a quem aufere rendimentos igualmente e em maior medida avultados ao

qual, inclusivamente o beneficiário pôs cobro”.

                                                                       *

            ii)- Quanto aos pontos n.ºs 3., 10., 11., 14., 20. e 21 dos factos provados.

            No que concerne os  pontos 10., 20. e 21. afirma que os mesmos devem ser alterados em consonância com a prova produzida e acima transcrita, entendendo-se como tal, que o ponto 10. deverá ser alterado, passando a constar da matéria de facto

não provada, ou, caso assim não se entenda, constar da matéria de facto provada,

com a seguinte redacção:

10. “O beneficiário não parou de jogar e apresenta um quadro de

perturbação de jogo patológico”.

 Relativamente ao ponto 20., deverá igualmente ser alterado de forma a que passe a constar o seguinte:

20. “O beneficiário apresenta perturbação de personalidade”.

 Pelos mesmos motivos, deverá ainda ser alterado o ponto 21., que deverá passar a ter a seguinte redacção:

21. “A extensão da perturbação afetiva bipolar de tipo IV de que o beneficiário padece, é suficiente para o impedir, de exercer, por si e de forma consciente, os seus direitos e deveres”.

 Mais refere que também os pontos 11 e 14 dos factos provados devem ser considerados não provados:

11.”Também no ano de 2020 o beneficiário liquidou à referida empresa, através de provisões e poupanças pessoais, os montantes utilizados”.

14.”O pensamento do beneficiário apresenta um curso normal, com continuidade normal, não manifestando ideias delirantes”.

Quanto ao ponto 3 dos factos provados afirma que o mesmo deve passar a ter a seguinte redação:

3- O beneficiário é presidente do conselho de administração e acionista da sociedade V..., S.A..

Por não haver qualquer documento nos autos que ateste que o beneficiário é o único acionista da sociedade V..., S.A., e que o mesmo apenas pode ser provado por documento.

Afirma, ainda o recorrente que o Tribunal “a quo” deveria socorrer-se da sentença proferida no âmbito do Procedimento Cautelar n.º 709/21.... e junta aos autos em 04/06/2021, com a Ref.ª Citius 7754559, onde ficou indiciariamente provado, entre o mais, que:

“Em resultado da outorga dos escritos particulares referidos em 2., 5. e 8. AA é possuidor das ações nominativas na sociedade V..., S.A. –

, com o valor nominal cada de 5,00€, com os números 60.001 a

90.000; 120.001 a 150.000 e 150.001 a 180.000, cujas cópias se mostram juntas

aos autos, representativas de 60% do capital social da sociedade Requerida.

O Requerente foi o acionista da empresa que contribuiu de forma inequívoca para o desenvolvimento da atividade social e sem o qual a sociedade não teria atingido

o patamar de desenvolvimento que se verifica atualmente.”, prova que não foi refutada pelo Beneficiário.

                                                           *

Sobre esta matéria o recorrido BB pugna pela manutenção do decidido.

                                                           *

Por sua vez o M.P. pugna, também pela manutenção do decidido, referindo, no entanto que:

“No que respeita às alíneas b) e d) dos factos não provados, assenta o seu raciocínio em críticas que tece à forma como foi elaborado o relatório pericial junto aos autos, nomeadamente, em contraponto com uma sms escrita da Dr.a CC [junta sob o doc. 15 da da petição inicial], onde esta diagnostica ao Beneficiário, em 2020, um problema de saúde que apelida de “grave” e que se prende com o jogo patológico, que o leva a concluir que a perícia tem necessariamente de ser colocada em causa, o que deveria ter sido feito pelo Tribunal a quo, que não tem a sua decisão vinculada ao resultado da perícia, exercendo esta apenas a função de auxiliar o Tribunal a quo na apreciação que se lhe exige sobre a factualidade alegada pelas partes, não sendo suficientes as declarações do beneficiário para afastar a prova dos factos elencados.

Neste conspecto em concreto diremos:

1. o que releva para decidir se o Tribunal deve suprir a autorização do

Requerido é a situação factual existente na data em que se toma essa decisão (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 07-09-2021, proferido no processo n.º 1067/20.0T8LRA.C1, Rel. José Avelino Gonçalves), de onde se retira que a alegação de que em “2020” o requerido sofria de um “problema grave, que se prende com o jogo patológico” não releva ou vê a sua relevância francamente diminuída, atento o momento relevante para a decisão, que é precisamente aquele ou o mais próximo daquele em que se decide e que indubitavelmente é o trazido aos autos pelo relatório pericial determinado judicialmente (despacho judicial de 08-07-2021, sob a ref. el. 97389462 e relatório pericial junto aos autos em 29-11-2021, sob a ref. el. 8219394;

2. notificado o recorrente do relatório pericial junto aos autos, em 30-

11-2021, não foi o mesmo (Relatório) objecto de qualquer reclamação, ao abrigo do disposto no artigo 485.º, do CPC, nem tão-pouco foi requerida segunda perícia, nos termos do artigo 487.º do CPC (nomeadamente, assente nos fundamentos ora invocados);

3. o método utilizado na elaboração do relatório encontra-se perfeitamente indicado no ponto III. do referido relatório;

4. tendo presente as conclusões que do respectivo relatório constam,

não se descortina que seja o mesmo inconclusivo, não respondendo assertivamente ao objecto do processo;

5. as dúvidas que se suscitam ao requerido não se suscitaram ao

Tribunal a quo, sendo que, o que verdadeiramente pretende o recorrente é sobrepor a sua convicção à formada pelo Tribunal a quo, que legitimamente não teve dúvidas à matéria sobre a qual se debruçou a perícia, pois que, atenta a natureza e especificidade da matéria se socorreu do meio probatório apto, atendendo a que tais matérias exigem ser apreciadas com base em juízos técnicos emitidos por peritos que apreciam e apreendem factos relativamente aos quais são exigidos conhecimentos técnico/científicos específicos dos quais o julgador está por rega arredado, embora deles possa divergir, exigindo-se-lhe neste caso um dever acrescido de fundamentação;

6. As declarações prestadas pelo requerido foram valoradas livremente

pelo Tribunal a quo, segundo o disposto no artigo 466.° n.º 3 do Código de Processo Civil, sendo que estas devem merecer, como mereceram, a mesma credibilidade das demais provas legalmente admissíveis;

Por tudo o exposto, entendemos não assistir razão ao recorrente nesta

parte, devendo manter-se o decidido.

B. No que se refere ao facto dado como não provado sob a alínea c)

entende o recorrente que o Tribunal a quo valorou apenas as declarações do requerido, descurando o teor da sentença proferida no âmbito do procedimento cautelar, que corre termos sob o n.º de processo 709/21...., cuja fundamentação reproduz, em parte.

Neste segmento mais uma vez reiteramos que o recorrente descurou que a prova é apreciada livremente pelo Tribunal, segundo o disposto no artigo 607.º, n.º5 do Código de Processo Civil, conforme já o dissemos no ponto anterior.

Acresce que os fundamentos de facto de outra decisão judicial, em concreto em matéria civil, não adquirem valor de caso julgado quando autonomizados da respectiva decisão judicial (cf. artigo 620.º do Código de Processo Civil), daí que não há como transpor fatos provados/fundamentação de facto de um processo a outro, sob pena de conferir à decisão sobre a matéria de facto o valor de caso julgado que não tem e conceder ao valor extraprocessual das provas uma amplitude que não possui. om efeito, os factos considerados como provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além dos contidos na decisão final (neste sentido VARELA, Antunes; BEZERRA, J. Miguel, Sampaio e Nora, Manual de processo civil. 2. ed. rev., Coimbra Editora, 1985, p. 711).

Nessa linha de entendimento, os fatos considerados como provados nos

fundamentos da sentença ou, em geral, os fatos constantes da decisão judicial, não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, de modo que só valem para o processo em que foram produzidos (PINTO, Rui. Valor extraprocessual da prova penal na demanda cível: Algumas linhas gerais de solução. p. 9. Disponível em:

https://forumprocessual.weebly.com/uploads/2/8/8/7/2887461/valor_extraprocessual_rui_pinto.pdf.).

No mais, diremos que o ónus de provar que a solvabilidade da sociedade estaria em causa, competiria ao recorrente, não recaindo sobre o requerido qualquer ónus a este respeito, sendo este, aliás, um facto meramente instrumental à decisão a proferir nestes autos e sendo certo, também, que o meio processual adequado para afastar o requerido da gestão da sociedade não será, certamente, o que ora se encontra em apreciação.

Pelo exposto, entende-se inexistir motivo para alterar a matéria de facto

tal como fixada pelo Tribunal a quo, devendo manter-se na íntegra a sentença recorrida.

C. Defende o recorrente que, em face dos argumentos aduzidos para

se considerarem provados os factos dados como não provados, sob as alíneas b), d) e c), resultaria também a alteração dos factos provados sob os n.ºs 3., 10., 20., e 21., na redacção que propõe e como não provados os pontos 11.º e 14..

Sem necessidades de mais considerações e pelo exposto supra, tal

alegação não poderá proceder.

Concluímos que, analisada toda a prova produzida, não decorre erro de

julgamento da matéria de facto, nos termos invocados pelo recorrente, antes resulta a factualidade vertida na sentença como provada, da forma como foi dada como provada e como não provada, sendo correcta a sua análise, tal como foi feita pelo Tribunal a quo.

Atento o teor da fundamentação apresentada na sentença entendemos

que a esta foi efectuada nos termos legais, justificando a convicção formada e garante que o tribunal não errou na convicção que formou.

A nosso ver, com o devido respeito por opinião contrária, após

compulsados os argumentos indicados pelo recorrente para motivar a sua discordância com o decido, não resultam destes, elementos seguros de uma clara e objectivada errada convicção sobre os factos impugnados, de forma a que o Tribunal da Relação possa alterar a decisão.

Afirmando-se que, em contraposição ao alegado, que o Tribunal a quo

motivou a decisão da matéria de facto, esclarecendo o percurso lógico que trilhou para a formação da sua convicção, indicando a prova em que a fez assentar e esclarecendo as razões pelas quais lhes conferiu relevância, sendo certo que, tal motivação não contraria as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos.

Assim, entendemos que a Meritíssima Juiz a quo procedeu a uma

apreciação crítica e articulada de todos os elementos probatórios carreados para os autos.

Afigura-se-nos evidente que a Mm.ª Juiz, ao lançar mão das regras de

experiência comum, de acordo com as exigências da lei processual, auxiliada pelos princípios da imediação e da oralidade, efectuou um detalhado exame crítico do conteúdo da prova produzida, o qual permite identificar claramente a logicidade da formação do processo conducente à decisão obtida e o raciocínio que presidiu a essa formação e do mesmo resulta ainda de forma expressa que a decisão não foi o resultado de uma ponderação arbitrária das provas, nem de uma valoração inaceitável das mesmas, ao contrário do que pretende o recorrente.

Ao contrário do que faz o recorrente, na douta sentença recorrida, o

Tribunal a quo analisou criticamente a prova, conjugando-a entre si e com as regras de experiência comum, motivo pelo qual deverá improceder o recurso nesta parte”.

                                                                                         *

            Sobre esta matéria, fundamentação de facto, escreve-se na sentença recorrida:

“A convicção do tribunal escudou-se na leitura conjugada dos elementos documentais juntos aos autos, dos elementos recolhidos em sede de audição do beneficiário e ainda do teor do relatório pericial.

De facto, importa desde logo salientar que, em processos como o presente, a perícia se assume como um meio probatório de excelência, atenta a particularidade e especificidade das matérias em causa. No caso concreto, o teor do relatório social é claro e perentório nas suas conclusões, mostrando-se, aliás, em consonância com a demais documentação médica junta aos autos.

De igual modo, afiguram-se de primordial relevância os elementos recolhidos em sede de audição do beneficiário. De facto, este através de um discurso fluente e coerente, demonstrou auto crítica quer para a sua doença já diagnosticada – perturbação afetiva bipolar tipo IV – quer para os seus comportamentos, designadamente no que concerne à pratica de jogo e aos prejuízos que daí advieram. Demonstrou igualmente autocontrolo, refletida na abstinência autoimposta, não escamoteando ou relativizando o sucedido.

Ora, a perceção do tribunal coincide inteiramente com o teor do relatório pericial, concedendo robustez e credibilidade às suas declarações.

Acresce que demonstrou igualmente perceber o alcance do presente processo e as suas finalidades, o que explicou de forma clara.

No que concerne à matéria de facto não provada, inexistindo qualquer menção no relatório pericial quanto a uma eventual dependência alcoólica e sendo afastada pelo perito a presença atual de qualquer perturbação de jogo, tal matéria teria necessariamente de ser dada como não provada.

O mesmo se dirá quanto à alegada incapacidade para a tomada de decisões, quer relativas à vida corrente, quer relativas à vida empresarial. De facto, questionado, o beneficiário foi perentório em afirmar que sempre continuou à frente da administração da empresa, tendo inclusivamente sublinhado os bons resultados financeiros alcançados no ano transato.

De resto, nada é alegado em concreto quanto a tal incapacidade nas questões de vida corrente, não sendo feito igual menção non teor do relatório pericial”.

                                               *

Tendo presente ao supra referido, e ás razões invocadas pelo recorrente, para ver altera a matéria de facto, cabe apreciar se o seu recurso nessa vertente, deverá ser total ou parcialmente rejeitado.

Antes porém diremos algo a respeito de tal matéria.

Vejamos.

É consabido que o legislador reconhece que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto «nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência», mas, tão-somente, «detectar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento» (preâmbulo do DL 329-A/95, de 12 de Dezembro), que procurou inviabilizar a possibilidade de o recorrente se limitar a uma genérica discordância com o decidido, quiçá com intuitos meramente dilatórios.

Com efeito, e desta feita, «à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respectivas alegações que servem para delimitar o objecto do recurso», conforme o determina o princípio do dispositivo (cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 228).

Preceitua o art.º 640.º, n.º 1 do CPC que, quando «seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».

Precisa-se ainda que, quando «os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados», acresce àquele ónus do recorrente, «sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes» (al. a), do n.º 2, do art. 640.º citado).

Assim, deve o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada; e esta última exigência (contida na al. c), do n.º 1, do art. 640.º citado), «vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente», devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor (cfr. Ac. desta Relação, de 11.07.2012, proc.º n.º 781/09, relatado por Henrique Antunes, ainda que tirado no domínio do Código de Processo Civil, revogado, mas que mantêm atualidade), enquanto «decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes», «impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo» (cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 129, com bold apócrifo).

Podemos, mesmo dizer, que as exigências legais referidas têm uma dupla função: não só a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de conferir efectividade ao uso do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).

Se o dever - constitucional (art. 205.º, n.º 1 da CRP) e processual civil (arts.154.º e 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC) - impõe ao juiz que fundamente a sua decisão de facto, por meio de uma análise crítica da prova produzida perante si, compreende-se que se imponha ao recorrente que, ao impugná-la, apresente a sua própria. Logo, deverá apresentar «um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido» por si (cfr. Ac. da Relação do Porto, de 17.03.2014, proc.º n.º 3785/11.5TBVFR.P1, relatado Alberto Ruço).

Em conclusão podemos afirmar que há lugar á rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, quando se verifique alguma das seguintes situações:

a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;

b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;

c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);

d) Falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda;

e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;

f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam algum dos elementos referidos» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, págs. 128 e 129.

Feitos tais considerando, cabe apreciar o caso em apreço.

                                                           *

Apreciemos os pontos de facto provados, que o recorrente intitula de mal apreciados, pelo Tribunal “a quo”, n.ºs 3, 10, 11, 14, 20 e 21.

No que aos pontos 10., 20. e 21, diz respeito, temos para nós, tendo presente ao acima referido, sobre a matéria de recurso de facto, que não resta outra alternativa a este Tribunal, senão rejeitar o mesmo quanto a tais pontos (n.ºs 10, 20 e 21).

No que ao facto 10 diz respeito, o recorrente não refere o sentido que em seu entender, tal ponto deve ter, antes relega, tal para este Tribunal, tal sentido, pois refere que o mesmo deve passar para a matéria não provada, ou, caso assim não se entenda, então, deve constar, da matéria provada com a seguinte redação: 10. “O beneficiário não parou de jogar e apresenta um quadro de perturbação de jogo patológico”, assim, não observou o exigido no n.º 1, do art.º 640.º, do C.P.C., al.c) onde se refere: “ A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.

Por outro lado, temos para nós, que também não observou o exigido pelo n.º 1, do mesmo preceito, alínea b), onde se refere: “Os concretos meios probatórios, constantes do processo…”.

Pois, quanto a esta matéria, refere devem ser alterados em consonância com a prova produzida e acima transcrita, ou seja, não refere em concreto a que prova se refere, e como referimos, in supra a respeito dos requisitos do recurso tal torna-se necessário.

Quanto aos pontos de facto provados n.ºs 20.º e 21.º, refere o sentido e como tal observando a alínea c), do n.º 1, do art.º 640.º, citado, porém, quanto a nós já não cumpre a alínea b), do mesmo artigo, pois não refere qual a prova em concreto a que alude, pois milita-se a referir “devem ser alterados em consonância com a prova produzida e acima transcrita”.

Assim, e pelo exposto, o recurso da matéria de facto quanto aos pontos provados n.ºs 10, 20 e 21 tem de ser rejeitado.

Quanto aos pontos de facto n.ºs 11 e 14, refere que os mesmos devem ser não provados.

Ou seja, observa a alínea c), do n.º 1, do art.º 640.º, do C.P.C., referido o sentido que em seu entender devem ter tais factos, porém, quanto a nós não observa a alínea b), do n.º 1, do mesmo artigo ao não dizer em concreto em que prova assente, pois limita-se a invocar generalidades.

Assim, pelas razões expostas, também quanto a estes pontos de facto, o recurso da matéria de facto é rejeitado.

Quanto ao ponto 3 dos factos provados, o recorrente refere que o Tribunal “a quo” deveria lançar mão da decisão proferida no proc.º n.º 709/21...., junta aos autos, pelo recorrente, em 04/06/2021, com a Ref.ª Citius 7754559, onde ficou indiciariamente provado, entre o mais, que:

“Em resultado da outorga dos escritos particulares referidos em 2., 5. e 8. AA é possuidor das ações nominativas na sociedade V..., S.A. –

, com o valor nominal cada de 5,00€, com os números 60.001 a

90.000; 120.001 a 150.000 e 150.001 a 180.000, cujas cópias se mostram juntas

aos autos, representativas de 60% do capital social da sociedade Requerida.

O Requerente foi o acionista da empresa que contribuiu de forma inequívoca para o desenvolvimento da atividade social e sem o qual a sociedade não teria atingido

o patamar de desenvolvimento que se verifica atualmente.”, prova que não foi refutada pelo Beneficiário”.

            Quanto a esta questão, cabe dizer algo, a respeito do efeito do caso julgado sobre os factos dados provados noutro processo.

No que respeita ao conteúdo e alcance do caso julgado, estabelece o art. 619º, n.º 1 do C. P. Civil que: «Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida de mérito da causa, a decisão sobre a relação jurídica material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º ».

Segundo a noção dada por Manuel de Andrade, in In Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, 304, o caso julgado material, «consiste em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (ação destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão.».

É imposto por razões de certeza do direito, mas, sobretudo, de segurança das relações jurídicas.

Tem por finalidade, no dizer do mesmo Professor, Noções Elementares, págs.304 e 305, obstar a decisões concretamente incompatíveis (que não possam executar-se ambas sem detrimento de alguma delas), a que em novo processo o juiz possa validamente estatuir de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta definida por anterior decisão e, portanto, desconhecer no todo ou em parte os bens por ela reconhecidos e tutelados.

Também Lebre de Freitas e outros, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, p. 354, consideram que «a autoridade do caso julgado tem (…) o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida».

Mas, enquanto que alguns doutrinadores, designadamente para Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil, Anotado, Vol. III, 3ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, 1981, pág. 139,  para Lebre de Freitas, in Revista da Ordem dos Advogados”, nº 66, dezembro de 2006, pág. 1514 e para Remédio Marques, in Acção Declarativa à Luz do Código Revisto”, Coimbra Editora, 2007, pág. 447,  defendem que o caso julgado, só se forma, em princípio, sobre a decisão contida na sentença, outros há, como Castro Mendes, in Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil”, pág. 152 e segs e Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, págs. 578 e 579, que defendem uma conceção mais ampla do caso julgado.

Assim, nesta última linha, sustenta Miguel Teixeira de Sousa, in obra e local citados, que «não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão».

Também, na esteira desta doutrina, afirmou-se, no recente acórdão do STJ, de 22.02.2018 (revista nº 3747/13.8T2SNT.L1.S1), a título de exemplo, o acórdão do STJ, de 20/06/2012 (processo 241/07.0TLSB.L1.S1, que « a autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa» e abrange, « para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado».

Mas, não obstante a divergência registada ao nível da doutrina sobre o âmbito objectivo do caso julgado, a verdade é que todos parecem estar de acordo num ponto, ou seja, que os fundamentos de facto, por si só, nunca formam caso julgado.

Com efeito, pronunciando-se expressamente sobre esta matéria, afirma Remédio Marques, in Acção Declarativa à Luz do Código Revisto”, Coimbra Editora, 2007, pág. 447, que o caso julgado «não se estende, em princípio, aos fundamentos de facto da sentença final».

No mesmo sentido, refere Antunes Varela, in Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1984, pág. 697, que «os factos considerados provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final».

Dito de outro modo e ainda nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, págs. 580,  «os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado», porquanto «esses fundamentos não valem por si mesmos, isto é, não são vinculativos quando desligados da respectiva decisão, pelo que eles valem apenas enquanto fundamentos da decisão e em conjunto com esta».

E é também este o entendimento seguido pela nossa jurisprudência, conforme se vê do Acórdão do STJ, de 02.03.2010 (revista nº 690/09.9YFLSB), onde se afirma que «a problemática do respeito pelo caso julgado coloca-se, sobretudo, a nível da decisão, da sentença propriamente dita e, quando muito, dos fundamentos que a determinaram, quando acoplados àquela», pelo que «os fundamentos de facto, nunca por nunca, formam, por si só, caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente», no mesmo sentido Ac. do mesmo Venerando Tribunal de 8/11/2018, proc.º n.º 478/08.4TBASL.E1.S1, relatado por Tomé Gomes.

Assim, se fosse como pretende o recorrente, estar-se-ia a conferir à decisão sobre a matéria de facto um valor de caso julgado que, manifestamente, a mesma não tem, como supra referido.

Nem se pode dizer, como parece fazer o recorrente, que o Tribunal “a quo”, violou o princípio da aquisição processual, previsto no artigo 413.° do CPC, pois que este princípio também não habilita o tribunal a, sem mais, dar como provados os factos que foram considerados, noutra ação, no caso, no processo n.º proc.º n.º 709/21...., na medida em que, conforme já se deixou dito, estes fundamentos de facto não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respetiva decisão judicial.

Assim, pelas razões expostas, numa 1.ª vista poderíamos ser levados a pensar que pelo menos, por esta vertente, também o recurso quanto a este ponto seria de rejeitar.

Contudo, uma vez, que indicou a prova onde assenta o seu raciocínio, tal matéria será apreciada á frente, quando nos debruçarmos, em saber qual a matéria de facto que deve ser alterada.

Aliás quanto a este ponto refere também o recorrente que tal matéria apenas pode ser provada por documento, o que também será apreciado, aquando na análise da alteração da matéria de facto.

Assim, pelo exposto rejeitar o recurso da matéria de facto quanto aos pontos 10, 20, 21, 11 e 14 e analisar mais á frente a matéria vertida no ponto 3.

Vista a questão da matéria de facto provada, passemos analisar a questão da matéria não provada.

                                                           *

Quanto ás alíneas b), c) e d) vertidas na matéria de facto não provada, o mesmo refere onde assenta o seu ponto referindo-se ao relatório pericial, quanto ás alíneas b) e d) e ao processo n.º n.º 709/21...., junta aos autos, pelo recorrente, em 04/06/2021, com a Ref.ª Citius 7754559, quanto á alínea c).

A matéria não provada referida pelo recorrente será analisada, á frente, onde será tomada posição, em saber se a pretensão do recorrente, obterá ou não vencimento na matéria, que pretende ver alterada e cujo recurso sobre essa matéria não foi rejeitado.

Aqui chegados, passemos analisar se a matéria de facto, vertida no ponto 3, dos factos provados e se a matéria vertida nas alíneas b), c) e d), da matéria não provada deve ou não ser alterada.

                                                           *

 Como se sabe, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova, o juiz aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição. 

É sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc. (cfr. Abrantes Geraldes in “Temas Prova, II Vol. cit., p. 201) “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” (cfr. Abrantes Geraldes in “Temas de Prova”  II Vol. cit., p. 273).

Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.

“O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” (cfr. Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348).

Nesta perspectiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.

Daí que conforme orientação jurisprudencial prevalecente o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respectiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, pelas razões já enunciadas, está em melhor posição.

Em conclusão: mais do que uma simples divergência em relação ao decidido, é necessário que se demonstre, através dos concretos meios de prova que foram produzidos, que existiu um erro na apreciação do seu valor probatório, conclusão difícil quando os meios de prova porventura não se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo apelante ou quando também eles sejam contrariados por meios de prova de igual ou de superior valor ou credibilidade, não descurando a vertente que a prova tem de ser analisada em conjunto.

É que o tribunal de 2ª jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si.

Sendo, portanto, um problema de aferição da razoabilidade da convicção probatória do julgador recorrido, aquele que essencialmente se coloca em sede de sindicabilidade ou fiscalização do julgamento fáctico operado pela 1ª instância, forçoso se torna concluir que, na reapreciação da matéria de facto, à Relação apenas cabe, pois, um papel residual, limitado ao controle e eventual censura dos casos mais flagrantes, como sejam aqueles em que o teor de algum ou alguns dos depoimentos prestados no tribunal a quo lhe foram indevidamente indiferentes, ou, de outro modo, eram de todo inidóneos ou ineficientes para suportar a decisão a que se chegou (cfr. cfr. Miguel Teixeira de Sousa obra citada, pág. 348).

Casos excepcionais de manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre matéria de facto serão, por exemplo, os de o depoimento de uma testemunha ter um sentido em absoluto dissonante ou inconciliável com o que lhe foi conferido no julgamento, de não terem sido consideradas- v.g. por distracção-determinadas declarações ou outros elementos de prova que, sendo relevantes, se apresentavam livres de qualquer inquinação, e pouco mais.

A admissibilidade da respectiva alteração por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.

Cabe ainda referir que advogamos o defendido no Ac. desta Relação de 10/7/2018, proc.º n.º 1445/16.0T8FIG.C1, relatado por Luiz José Falcão de Magalhães, do qual somos 1.º adjunto, onde refere citando o Ac. da mesma relação de 4/4/2017, proc.º n.º 516/12.6TBPCV.C1), relatado por Jorge Arcanjo «… o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância, embora exija uma avaliação da prova (e não apenas uma mera sindicância do raciocínio lógico) deve, no entanto, restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal ou por depoimento de parte é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e, na avaliação da respectiva credibilidade, tem que reconhecer que o tribunal a quo, está em melhor posição.

Por isso, se entende não bastar qualquer divergência de apreciação e valoração da prova, impondo-se a ocorrência de erro de julgamento ( cf., por ex., Ac STJ de 15/9/2010 ( proc. nº 241/05), de 1/7/2014 ( proc. nº 1825/09), em www dgsi.pt ), tanto mais que o nosso sistema é predominantemente de reponderação (…)».

                                               *

Aqui chegados, cabe apreciar o caso em apreço.

Assim, quanto ao ponto de facto 3, que o recorrente quer ver colocado nos factos não provados.

Assenta esta sua pretensão em dois pontos, a saber:

i)- no facto de no proc.º n.º 709/21...., que juntou a estes autos terem sido dados como provados factos, que aqui também, deveriam ser provados, já que juntou tal documento.

ii)- o facto vertido no ponto 3 da matéria de facto provada apenas poder ser provada por documento.

Quanto ao ponto i), diremos que não assiste qualquer razão ao recorrente, pois como já referimos in supra os factos provados num processo não fazem caso julgado, para serem replicados num outro processo, quando neste não se fez qualquer prova.

No que concerne ao ponto ii), como se sabe para que determinado facto só possa ser provado por documento é necessário a lei o referir, se o não dizer o facto é apreciado pela livre convicção do tribunal.

Ora, no caso em apreço e tendo presente ao preceituado nos art.ºs 364, n.º 1, do C.C. e art.º 63.º, do CSComerciais), tal matéria tem de ser provada por documento, pelo que, quanto a tal ponto assiste razão ao recorrente.

Assim, nesta vertente assiste razão ao recorrente, pelo que o facto 3 da matéria de facto passa a alínea e), dos factos não provados, colocado a negrito no respetivo lugar.

                                                           *

Visto o facto provado que o recorrente pretendia vê-lo colocado nos factos não provados, passemos aos factos não provados vertidos nas alíneas b), c) e d).

No que ás alíneas alíneas b) e d) dos factos não provados, o recorrente assenta o seu ponto de vista em críticas que tece à forma como foi elaborado o relatório pericial junto aos autos, nomeadamente, em contraponto com uma sms escrita da Dr.a CC [junta sob o doc. 15 da da petição inicial].

Ora, o mesmo foi notificado do relatório não reclamou nem ao abrigo do disposto no artigo 485.º, do CPC, nem tão-pouco foi requerida segunda perícia, nos termos do artigo 487.º do CPC (nomeadamente, assente nos fundamentos ora invocados, o que poderia fazer se assim o entendesse.

Ora, não o tendo feito, não pode vir agora e aqui invocar tal questão, até por ser uma questão nova.

Tanto mais, que do relatório da perícia médico legal, datado de 26/11/2021, resulta que apesar de estar evidenciado um problema de saúde, provável perturbação efetiva bipolar tipo III, atualmente estabelecida, a extensão dos seus efeitos não nos surge como suficientes para se considerar em razão dessa situação estar impedido do exercício pessoal, direto e consciente dos seus direitos e deveres. O examinado não apresenta critérios clínicos compatíveis com o diagnostico de adição ao jogo. O examinado não cumpre os pressupostos médico legais previstos no art.º 138.º, do C.C. para beneficiar do regime de maior acompanhado.

Assim, as alíneas b) e d) dos factos não provados mantêm-se na matéria não provada, como referido na sentença recorrida.

                                                           *

Quanto á alínea c) da matéria não provada.

O recorrente assenta o seu raciocínio de que os factos dados como provados no proc.º n.º 709/21...., que juntou a estes autos, também o deveriam ser neste processo.

Diga-se, desde já, que não lhe assiste qualquer razão, pois como já referimos in supra, os factos provados num processo não fazem caso julgado, para serem replicados num outro processo, quando neste não se fez qualquer prova dos mesmos.

Assim, pelo exposto também esta alínea é mantida nos factos não provados, como entendeu a sentença recorrida.

                                                           *

Do exposto, resulta que a matéria de facto fixada em 1.ª instância, apenas é alterada, quanto ao facto 3 dos factos provados que passa á matéria não provada, como supra referido, mantendo-se no mais como fixada em 1.ª instância.

Vista a questão da matéria de facto, passemos, analisar a questão seguinte,

                                                            **

b) – Saber se a sentença recorrida deve ser revogada e substituída, por acórdão, que decida suprir judicialmente a autorização do Beneficiário para a propositura da presente acção, por forma a serem determinadas as medidas de acompanhamento requeridas na Petição Inicial.

O recorrente assenta o seu ponto de vista, desde logo, na alteração da matéria de facto, tendo apenas obtido provimento na parte respeitante ao ponto 3 dos factos provados que passou a integrar a alínea e) dos factos não provados.

Dito isto, passaremos analisar a questão.

Como bem se refere na sentença recorrida, segmento que aqui transcrevemos, por com ele se concordar, “A Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto veio revogar os institutos da interdição e da inabilitação e consagrar o regime do acompanhamento de maiores, inspirada no princípio perfilhado no artigo 3.º, alínea a), da Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada pelas Nações Unidas em 30 de Março de 2007 (aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009, de 7 de Maio, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 71/2009, de 30 de Julho), que consagra “o respeito pela dignidade inerente, e autonomia individual, incluindo a liberdade de fazerem as sua próprias escolhas, e independência das pessoas”, “proteger sem incapacitar” é agora a nova matriz do modelo adotado pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto.

O novo quadro legal buscou essencialmente ultrapassar a desadequação das soluções do Código Civil de 1966 quanto às incapacidades dos maiores – a interdição e a inabilitação – à “elevação muito considerável do nível de vida da população”, ao “aumento expressivo da esperança de vida”, ao “acréscimo de patologias limitativas” e à “diminuição da capacidade agregadora das famílias” (in exposição de motivos da proposta de lei n.º 110/XIII, disponível no sítio parlamento.pt).

Com este regime, visou-se também obter uma tutela judicial mais efetiva e eficiente para uma “larga maioria das situações de insuficiência ou de deficiência física ou psíquica”, com a finalidade de respeitar as necessidades específicas de pessoas com deficiência, idosas e outras pessoas com vulnerabilidades na sua saúde ou autonomia, afastando a “rigidez da dicotomia interdição/inabilitação”, antes partindo de uma perspetiva de capacidade, à qual se introduzem as limitações estritamente imprescindíveis, e não de incapacidade quase total, o que se mostra mais consonante com o princípio da “primazia da autonomia da pessoa” que deve prevalecer num Estado de Direito (in exposição de motivos da proposta de lei n.º 110/XIII, disponível no sítio parlamento.pt).

No presente incidente não se pretende, todavia, apreciar o fundo da questão que nos ocupa, mas antes apurar se a presente ação se encontra em condições de prosseguir”.

Em sede de legitimidade ativa prevê o art.º 141.º, n.º 1, CC, que o acompanhamento pode ser requerido:

- pelo próprio beneficiário;

- pelo cônjuge ou unido de facto do beneficiário ou por qualquer parente sucessível do beneficiário, desde que esteja autorizado por este;

- pelo Ministério Público, no exercício da sua função de representação dos incapazes (cfr. art.º 3.º, n.º 1, al. a), EMP).

A razão de ser da autorização do beneficiário prende-se com o facto de estar em causa interesses pessoais do beneficiário e importando salvaguardar a liberdade pessoal desse beneficiário.

A autorização do cônjuge, do unido de facto ou do parente sucessível pode ser suprida pelo próprio tribunal ao qual é requerida a medida de acompanhamento (art.º 141.º, n.º 2, CC; art.º 892.º, n.º 2). O suprimento da autorização deve ser concedido quando o beneficiário não a possa dar livre e conscientemente ou quando o tribunal considere que existe um fundamento atendível para o conceder (art.º 141.º, n.º 2, CC). Portanto, se o beneficiário não estiver em condições de dar a autorização ao seu cônjuge, unido de facto ou parente sucessível, qualquer destes pode requerer a medida de acompanhamento e requerer, ao mesmo tempo, o suprimento da autorização do beneficiário.

O incidente de suprimento do consentimento, enxertado no processo de acompanhamento de maior, não tem uma tramitação específica (cfr. ANA LUÍSA SANTOS PINTO “O regime processual do acompanhamento de maior” JULGAR nº 41, Maio –Agosto de 2020, Coimbra, Almedina, pag. 150, nota 15).

Contudo, integra formal e estruturalmente, o próprio processo especial de acompanhamento de maior.

A lei não faz qualquer distinção, no sentido de exigir a audição apenas na fase da decisão da medida a aplicar e por isso, onde o legislador não distingue não cumpre ao julgador fazê-lo.

Apesar de se aplicar ao processo o regime dos processos de jurisdição voluntária, não fica na livre disponibilidade do juiz a realização da diligência, que o legislador previu como sendo obrigatória.

Constituindo, como vimos, a audição direta e pessoal do beneficiário por parte do juiz, a concretização de um princípio estruturante em que assenta o novo regime de acompanhamento dos maiores, e decorrendo ela ainda de uma norma de cariz imperativo, fica vedada ao juiz a possibilidade de prescindir dessa diligência instrutória, cuja realização se lhe impõe, como um autêntico dever.

O regime definido para o processo abrange tudo o que o integra, e por isso, também o concreto incidente de suprimento de autorização, o qual merece da parte do juiz uma especial atenção, já que de tal decisão depende, ou não, a promoção do processo e este processo visa salvaguardar e reforçar a defesa dos interesses do beneficiário (art. 140º/1 CC).

Sobre o critério de julgamento refere o PROFESSOR TEIXEIRA DE SOUSA: “[…]cabe sempre ao tribunal controlar se se justifica suprir a falta de autorização do beneficiário. Repete-se aqui o que acima se disse sobre o controlo da concessão da autorização: também o suprimento da falta de autorização do eventual beneficiário deve ser cuidadosamente ponderado pelo tribunal, dado que não é justificável partir do princípio nem de que a falta de autorização pelo eventual beneficiário não é justificada, nem de que este beneficiário não está sequer em condições de conceder a autorização.
[…]

Trata-se de um importante controlo que o tribunal deve realizar de forma tão minuciosa quanto possível, dado que não se pode partir do princípio nem de que o autorizante está em condições de conceder a autorização, nem de que esse autorizante, estando em condições de o fazer, quis efetivamente conceder a autorização. Os poderes inquisitórios que são atribuídos ao tribunal em matéria de facto e de prova pela remissão constante o art.º 891.º, n.º 1, para o regime dos processos de jurisdição voluntária podem ser aqui muito relevantes”.

A decisão do incidente com base em prova pericial, assente num interrogatório indireto realizado pelo perito, não permite ao juiz comunicar ao requerido o objetivo do processo, nem averiguar a sua situação, o conhecimento efetivo da real situação em que se encontra o beneficiário e o motivo em concreto da falta de autorização. Isto não impede, no entanto, que, se estiver comprovado no processo que essa audição pessoal e direta não é possível (porque, por exemplo, o beneficiário se encontra em coma (cfr. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS”, O NOVO REGIME JURÍDICO DO MAIOR ACOMPANHADO [em linha], Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 2019, acessível na internet, pag. 44”), o juiz, fazendo uso dos seus poderes de gestão processual (art.º 6º, n.º 1) e de adequação formal (art.º 547º), deva dispensar, por manifesta impossibilidade, a realização dessa mesma audição.

Acresce que a não se entender assim poderia acontecer de o processo ser instaurado e terminar com a decisão do incidente de suprimento do consentimento, sem se realizar a audição do requerido pelo juiz, quando o art. 897º/2CPC refere: “[e]m qualquer caso, o juiz deve proceder sempre à audição pessoal e direta do beneficiário[…]”.

Conclui-se do exposto que a audição do requerido/beneficiário constitui uma diligência obrigatória do processo de acompanhamento de maiores e por isso, deve ser cumprida em sede de incidente de suprimento de autorização do beneficiário.

A respeito desta matéria escreve-se na sentença recorrida, segmento que transcrevemos, por com ele se concordar, “Conforme nota Miguel Teixeira de Sousa (in O Regime do acompanhamento de maiores: alguns aspectos processuais, in e-book O novo regime jurídico do maior acompanhado, CEJ, página 48) “o suprimento da falta de autorização do eventual beneficiário deve ser cuidadosamente ponderado pelo tribunal, dado que não é justificável partir do princípio nem de que a falta de autorização pelo eventual beneficiário não é justificada, nem de que este beneficiário não está sequer em condições de conceder a autorização”.

No que concerne à capacidade para autorizar o acompanhamento, tem sido nosso entendimento que a falta de autorização deverá ser suprimida quando a Beneficiária não se mostrar capaz de entender o sentido, necessidade e efeitos quer de um eventual acompanhamento, quer da sua recusa. Por outro lado, afigura-se-nos existir fundamento atendível, designadamente quando a não aplicação de uma medida de acompanhamento e instauração do respetivo processo coloque o acompanhado numa situação de grave risco para os seus interesses pessoais e patrimoniais.

Por outro lado, tem sido entendido que não se trata de uma situação de representação, mas de substituição processual voluntária, atuando os parentes sucessíveis, como sucede nos autos, como partes (cfr., ob. cit. pág. 47).

Ora, compulsada a matéria de facto provada constata-se que o beneficiário, pese embora a perturbação afetiva de que padece, que não escamoteia, que assume e para o qual demonstra sentido crítico, demonstra capacidade suficiente para entender a finalidade do presente processo, a sua eventual amplitude e os seus efeitos.

Tal conclusão resultava já, de forma evidente, do teor do relatório junto aos autos que confirmando o diagnóstico de perturbação afetiva bipolar de tipo III (pese embora o seu diagnóstico prévio seja de tipo IV) é categórico ao afirmar que a extensão dos efeitos de tal perturbação, que se encontra atualmente estabilizada, são insuficientes para impedir o beneficiário do exercício dos seus direito e deveres de forma pessoal, direta e consciente.

Aliás, não poderá deixar de se sublinhar que num dado momento a saúde mental do beneficiário espoletou e justificou a sua reforma por invalidez, situação que o beneficiário reverteu tendo sido declarado capaz para o exercício da sua profissão.

Acresce que resulta provado que o beneficiário, pese embora no ano de 2020 tenha passado por um período de jogo intenso, mobilizando quantias manifestamente elevadas, resulta igualmente provado que este se mostrou capaz não só de um juízo de autocrítica mas também de autocontrolo, tendo logrado parar de jogar, manter-se abstinente e liquidado os montantes movimentados o que, capacidade que aparece refletida no teor do relatório pericial de forma linear conclui que o beneficiário não apresenta critérios clínicos compatíveis com o diagnóstico de adição de jogo.

Ou seja, compulsada a matéria de facto provada constata-se que, pese embora a perturbação de que padece, é o beneficiário plenamente capaz de conduzir autónoma e pessoalmente a sua vida pessoal e profissional, sendo como tal capaz de tomar decisões de forma consciente. (cfr. factos 17, 19, 20, 21, 22 e 23, sublinhado é nosso)

De tudo quanto se disse decorre não só a capacidade para compreender as implicações e alcance do presente processo, mas igualmente da recusa em autorizá-lo, bem como a capacidade para livre e conscientemente tomar a decisão de autorizar ou não o seu prosseguimento.

Poderia eventualmente equacionar-se a verificação de um “fundamento atendível” que permitisse a possibilidade de suprimento judicial da falta de autorização, mesmo em caso de recusa.

Na verdade, e pese embora resultem dos autos elementos que nos permitam concluir pela capacidade da beneficiária para prestar autorização ao acompanhamento, não é menos verdade que a beneficiária padece de um quadro de perturbação afetiva bipolar, condição que, quando não estabilizada, influi diretamente na sua aptidão para exercer de forma plena, pessoal e consciente todos os seus direitos e/ou cumprir todos os seus deveres, mormente no que diz respeito à esfera patrimonial.

Todavia, aceitar-se que se verifica fundamento atendível para suprir a autorização do beneficiário em todas as situações em que este não autorize o acompanhamento mas seja, em maior ou menor medida, beneficiado por ou carecido dele configura, quanto a nós, a subversão da intenção legislativa e o esvaziamento da necessidade de autorização do próprio, reconduzindo-a a mera formalidade processual e substantivamente inconsequente.

Nessa medida, os fundamentos atendíveis justificadores do suprimento judicial em caso de recusa de autorização terão de ser reconduzidos a situações de caráter excecional em que a recusa de autorização coloque o acompanhado numa situação de grave risco para os seus interesses pessoais e patrimoniais.

No caso concreto poderia equacionar-se a verificação de uma situação de prodigalidade enquanto fundamento atendível, socorrendo-nos, para isso, da densificação de conceitos já operada à luz do regime anterior.

Ora, numa aproximação ao conceito poderá definir-se prodigalidade como a “existência de uma propensão para a dissipação desregrada de bens, quer em proveito próprio, quer alheio, o que leva a supor que a pessoa, que assim procede, estará incapaz de reger ou administrar convenientemente o seu património” (cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 19.02.2013, proc. n.º 1685/10.5T2AGD.C1, disponível em www.dgsi.pt).

Mas a dita “dissipação desregrada” não é sinónimo, para este efeito, em despesas objetivamente elevadas ou excessivas, mas antes naquelas que sendo exageradas em relação ao património de quem as faz (e ainda que consideradas injustificadas e reprováveis), ponham em risco esse capital, mostrando-se improdutivas e injustificadas.

Tal comportamento haverá ainda que ter um carácter de habitualidade e importar uma diminuição do entendimento do beneficiário.

Na verdade, importa ter presente que a liberdade é um princípio básico do nosso ordenamento jurídico e cada um deve ter a possibilidade de fazer com o seu património aquilo que entender. Aliás, numa chamada de atenção pertinente para a questão que nos ocupa lembra Mota Pinto (in Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição actualizada, Coimbra Editora, pág. 236, nota 1) explica que “se as despesas são de montante muito elevado, mas cabem dentro do rendimento da pessoa, não há prodigalidade: não é pródigo quem gasta – gaste o que gastar – do rendimento. É necessário que as despesas ultrapassem o rendimento e ponham em risco o capital.”

Ambos os requisitos gerais (e os particulares que os densificam) deverão ser interpretados em termos hábeis e flexíveis seguindo de perto a matriz do atual regime, não a de incapacitar, mas a de auxiliar no exercício pleno da sua capacidade jurídica.

Daí que, as medidas previstas no artigo 145.º, n.º 2, do Código Civil se destinem unicamente a suprir as dificuldades de exercício da personalidade jurídica do maior, devendo sobretudo propor-se a promover o seu bem-estar e a sua recuperação (quando possível).

Também por isso, devem limitar-se ao estritamente necessário, proporcional e adequado, sendo decretadas apenas se não for possível acautelar a situação do requerido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que se apliquem (artigos 140.º e 145.º, n.º 1, do Código Civil).

Ora, pese embora tenha resultado provado – e seja assumido pelo próprio beneficiário – que no ano de 2020 foram movimentadas e perdidas quantias francamente avultadas em jogo, certo é que não resulta dos autos que em momento algum a solvabilidade da dita empresa ou do próprio beneficiário tenham sido postos em causa, antes revelando poder tratar-se de uma excentricidade, permitida a quem aufere rendimentos igualmente e em maior medida avultados ao qual, inclusivamente o beneficiário pôs cobro.

Assim, e pese embora se verifique que o beneficiário padece de perturbação afetiva que num dado momento teve um reflexo significativo na sua vida, verifica-se igualmente que este mantém a sua capacidade para decidir livre e conscientemente sobre o exercício dos seus direitos e deveres, designadamente para não autorizar a propositura da presente ação.

Acresce que se afigura que a sua recusa ao acompanhamento não a periga grave e urgentemente os seus interesses pessoais e patrimoniais, inexistindo fundamento atendível que justifique o seu suprimento judicial, pelo que, e por respeito aos princípios supra enunciados, a decisão de recusa da beneficiária deverá ser tomada em consideração.

Donde haverá que concluir pela falta de legitimidade do requente nos termos do disposto no artigo 141.º do Código Civil e, consequentemente, pela absolvição da instância do beneficiário”.

            Atendendo a todo o exposto não vemos razão para alterar a sentença recorrida, pelo que, se mantem nos seus precisos termos, ou seja, absolvição do beneficiário da instância.

                                                                       **

            Visto o recurso do recorrente, cabe apreciar a litigância de má fé invocada pelo recorrido.

            Segundo este o recorrente deve ser condenado em multa por litigar de má fé.

            Vejamos.

Conclui o Recorrido, na resposta às alegações de recurso que apresentou, que o Recorrente atua de má fé e por isso deve ser condenado em multa.

Referindo que o mesmo, litigando com manifesta má fé, vem, no presente recurso “atirar com areia para os olhos”, pretendendo mostrar-se preocupado com aquilo que não preocupa as suas mãe e irmã, até porque não é verdadeiro.

O requerente, e os que dele são fac totum, litigam com evidente má fé.

Nunca puseram em causa a perícia feita, nunca juntaram aos autos qualquer documento válido, autêntico ou autenticado, que pudesse pôr em crise a perícia ou mesmo a apreciação da Mma. Juiz e pretendem agora discutir o que não está em causa, que é, tão somente, saber se havia condições, ou não, para suprir o consentimento do requerido.

Analisemos a conduta processual do Recorrente para se aquilatar da sua atuação de má fé ao interpor recurso da sentença.

Impendendo sob as partes o dever de pautar a sua atuação processual por regras de conduta conformes à boa fé - cfr. art. 8º, do Código de Processo Civil -, caso não o observem podem incorrer em responsabilidade processual.

O instituto da má fé processual, regulado nos artigos 542º a 545º, de tal diploma legal, visa sancionar a parte que preencha, com a sua atuação processual, a respetiva previsão.

Ao contrário do que sucedia antes da revisão do Código de Processo Civil operada pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de dezembro, atualmente as condutas passíveis de integrar má fé não têm de ser, necessariamente, dolosas, já que o instituto passou a abranger, também, a negligência grave. Atingiu-se uma maior responsabilização das partes. Como resulta do preâmbulo do referido diploma, o atual Código de Processo Civil, com a nova filosofia de colaboração que lhe está ínsita, consagrou "expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos". Na reforma processual introduzida por este DL houve uma substancial ampliação do dever de boa fé processual, alargando-se o tipo de comportamentos que podem integrar má fé processual - quer a substancial quer a instrumental -, tanto na vertente subjetiva como na objetiva. A condenação por litigância de má fé pode agora fundar-se em negligência grave, para além da situação de dolo já anteriormente prevista.

Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª Ed. 1981, p. 262 e segs., distinguia, em matéria de conduta processual das partes, quatro tipos de lide: lide cautelosa (aquela em que a parte esgota todos os meios para se assegurar de que tem razão e apesar disso vê inviabilizada a sua pretensão (ou oposição)), lide imprudente (aquela em que a parte comete imprudência leve ou levíssima), lide temerária (aquela em que a parte, embora convencida que tem razão, incorre em culpa grave ou erro grosseiro, indo a juízo sem tomar em consideração as razões ponderosas (de facto ou de direito) que devia empregar para desfazer o seu erro, comprometendo a sua pretensão) e lide dolosa (aquela em que a parte, apesar de ciente de que não tem razão, litiga e deduz pretensão (ou oposição) conscientemente infundada).

Ao sancionar, atualmente, a litigância com negligência grave a lei está a proibir, para além da lide dolosa, a lide temerária, a qual pressupõe culpa grave ou erro grosseiro (cfr. Ac. do STJ, de 20/3/2014: Processo 1063/11.9TVLSB.L1.S1,in dgsi.net, citado in Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição Revista e Ampliada, Março de 2017, pág 703, onde se decidiu que “a condenação como litigante de má fé pode ser imposta tanto na lide dolosa como na lide temerária, constituindo lide temerária aquela em que o litigante deduz pretensão ou oposição “cuja falta de fundamento não devia ignorar”, ou s eja, não é agora necessário, para ser sancionada a parte, como litigante de má fé, demonstrando-se que o litigante tinha consciência “de não ter razão”, pois é suficiente a demonstração de que lhe era exigível essa consciencialização).

Na verdade, de acordo com o n.º 2, do art.º 542º, do CPC, “Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:

a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;

b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;

c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;

d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.

“Segundo o nº2, constituem atuações ilícitas da parte: a dedução de pretensão ou oposição com manifesta falta de fundamento, por inconcludência ou inadmissibilidade do pedido ou da exceção (alínea a)); a apresentação duma versão dos factos, deturpada ou omissa, em violação do dever de verdade (alínea b)); a omissão do dever de cooperação (alínea c)); em geral, o uso reprovável do processo ou de meios processuais, visando um objetivo ilegal, o impedimento da descoberta da verdade, o entorpecimento da ação da justiça ou o protelamento, sem fundamento sério, do trânsito em julgado da decisão (alínea d))” (cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 2º Volume, 3ª Edição, Almedina, pág 457).

“Visa entorpecer a ação da justiça a parte que atua usando meios dilatórios” (cfr. Ibidem, pág 457).

 “Visa apenas protelar o trânsito em julgado da decisão a parte que recorre ou reclama sem fundamento sério, conseguindo assim atrasar o momento do trânsito em julgado e da exequibilidade da decisão” (cfr. . Ibidem, pág 457).

Assim, a lei tipifica as situações objetivas de má fé, exigindo-se, simultaneamente, um elemento subjetivo (dolo ou negligência grave) - cfr. referido n.º 2 - já não no sentido psicológico, mas ético-jurídico.

O juízo de censura que enforma o instituto radica na violação dos elementares deveres de probidade, cooperação e de boa fé a que as partes estão adstritas, para que o processo seja “justo e equitativo”, e daí a designação, segundo alguns autores, de responsabilidade processual civil. Litiga de má fé não apenas a parte que tem consciência da falta de fundamento da pretensão ou oposição, como aquela que, muito embora não tenha tal consciência, deveria ter agido com o dever de cuidado e prudência, bem assim com o dever de indagar a realidade em que funda a pretensão (cfr. Ac. da Relação de Coimbra de 16/12/2015, processo 298/14.7TBCNT-A.C1, in dgsi.net, onde se escreve “O juízo de censura que enforma o instituto radica na violação dos elementares deveres de probidade, cooperação e de boa fé a que as partes estão adstritas, para que o processo seja “justo e equitativo“, e daí a designação, segundo alguns autores, de responsabilidade processual civil. O âmbito da má fé abrange hoje não apenas o dolo, como a “negligência grave“, introduzida com a alteração ao CPC pelo DL nº 329-A/95, de 12 /12, concebida como erro grosseiro ou culpa grave, sem que seja exigível a prova da consciência da ilicitude da actuação do agente. Por conseguinte, a lei tipifica as situações objectivas de má fé, exigindo-se simultaneamente um elemento subjectivo, já não no sentido psicológico, mas ético-jurídico. (…) Importa ter presente que actua de má fé não apenas a parte que tem consciência da falta de fundamento da pretensão ou oposição, como aquela que, muito embora não tenha tal consciência, deveria ter agido com o dever de cuidado. Além disso, o dever de verdade processual (alínea b)) pressupõe que a parte tem a obrigação de indagar a realidade em que funda a sua pretensão (dever de pré-indagação)”.

Distingue-se entre má fé material ou substancial e má fé processual ou instrumental. A primeira tem a ver com o mérito da causa, a segunda com a conduta processual (cfr. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 2008, p. 220/221). Na primeira “a parte, não tendo razão, atua no sentido de conseguir uma decisão injusta ou realizar um objetivo que se afasta da função processual. A segunda abstrai da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa, qualificando o comportamento processualmente assumido em si mesmo. Assim, só a parte vencida pode incorrer em má fé substancial, mas ambas as partes podem atuar com má-fé instrumental, podendo portanto o vencedor da ação ser condenado como litigante de má-fé” (cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 457).

A má fé a se reportam as supra referidas als. a) e b) é a má fé material ou substancial, aquela que se refere à relação jurídica material (cfr. Alberto dos Reis, CPC Anotado, II, 3ª ed., p. 264); as restantes alíneas contendem com a má fé instrumental (cfr. Ac. da Relação de Coimbra de 16/12/2015, processo 298/14.7TBCNT-A.C1, in dgsi.net).

A litigância de má fé surge como um instituto processual, de tipo público, com um sistema sancionatório próprio, especialmente regulado, não se tratando de uma manifestação de responsabilidade civil, que pretenda suprimir danos, ilícita e culposamente causados a outrem através de atuações processuais. A responsabilidade por litigância de má fé está sempre associada à verificação de um ilícito puramente processual e constitui o “tipo central da responsabilidade processual” (cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 461).

Atualmente, “considera-se sancionável a título de má-fé, a lide dolosa, tal como preconizava A. Reis, in Código de Processo Civil anotado, II volume, pg.280, e, ainda, a lide temerária baseada em situações de erro grosseiro ou culpa grave.

Como refere Menezes Cordeiro “alargou-se a litigância de má-fé à hipótese de negligência grave, equiparada, para o efeito, ao dolo.” (in “Da Boa Fé no Direito Civi”, Colecção Teses, Almedina ).

No dolo substancial deduz-se pretensão ou oposição cuja improcedência não poderia ser desconhecida – dolo directo – ou altera-se a verdade dos factos, ou omite-se um elemento essencial – dolo indirecto; no dolo instrumental faz-se dos meios e poderes processuais um uso manifestamente reprovável (v. Menezes Cordeiro, obra citada, pg.380).

Verifica-se a negligência grave naquelas situações resultantes da falta de precauções exigidas pela mais elementar prudência ou das desaconselhadas pela previsão mais elementar que devem ser observadas nos usos correntes da vida (Maia Gonçalves, C.Penal, anotado, pg.48).

O dever de litigar de boa-fé, com respeito pela verdade é corolário do princípio da cooperação a que se reporta o art.º 266º do Código de Processo Civil, e vem consignado no art.º 266º-A, do mesmo diploma legal.

Em qualquer caso, a conclusão pela actuação da parte como litigante de má-fé será sempre casuística, não se deduzindo mecanicamente da previsibilidade legal das alíneas do art.º 456º do Código de Processo Civil e a responsabilização e condenação da parte como litigante de má-fé só deverá ocorrer quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a acção da justiça” (cfr. Ac. da Relação de Guimarães de 10/11/2011, Processo 387645/09.9YIPRT.G1, in dgsi.net).

A questão da má fé material não pode ser vista de forma linear, sob pena de se limitar o direito de defesa que é um dos princípios fundamentais do nosso direito processual civil, com foros de garantia constitucional, tendo de ser feita uma apreciação casuística, não cabendo a análise do dolo ou da negligência grave no processo civil em estereótipos rígidos.

A má fé processual não opera no domínio da interpretação e aplicação das regras do direito, mas tão só no domínio dos factos. A sustentação de posições jurídicas, mesmo que desconformes com a correta interpretação da lei, não basta à conclusão da litigância de má fé de quem as propugna.

Acresce, também, que, a conclusão no sentido da litigância de má fé não se pode extrair, mecanicamente, da simples alegação de factos pessoais que não se provaram ou da negação de factos pessoais que vieram a provar-se. Na “base da má-fé está este requisito essencial, a consciência de não ter razão. Não basta pois o erro grosseiro ou a culpa grave; é necessário que as circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição infundada" (cfr. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra Editora, 1982, pag. 263).

 O que importa é que exista uma intenção maliciosa (má fé em sentido psicológico) e não apenas imprudência (má fé em sentido ético), não bastando a imprudência, o erro, a falta de justa causa, é necessário o querer e \o saber que se está a actuar contra a verdade ou com propósitos ilegais.

A condenação por litigância de má fé, em qualquer das suas vertentes – material e instrumental – pressupõe sempre a existência de dolo ou de negligência grave (art. 456º, nº2, do CPC) pelo que se torna necessário que a parte tenha procedido com intenção maliciosa ou com falta das precauções exigidas pela mais elementar prudência ou previsão, que deve ser observada nos usos correntes da vida” (cfr. Ac. do STJ, de 3/2/2011, Ver. 351/2000: Sumários, 2011, p. 77, citado in Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição Revista e Ampliada, Março de 2017, pág 703).

Emergente dos princípios da cooperação, da boa fé processual e da probidade e adequação formal, a figura da litigância de má fé pretende cominar quem, dolosamente ou com negligência grave, põe em causa tais princípios, que a eles tem subjacente a boa administração da justiça.

Quanto à sua aplicabilidade, é quase unânime entre a jurisprudência e a doutrina mais avisada, a exigência de um comportamento doloso e consciente no sentido de pôr em causa a boa administração da justiça, vindo aquela a ser restritiva na admissão da litigância de má fé.

Esta interpretação impõe-se por ser a mais razoável e a que melhor compreende a realidade subjacente a um processo em que as partes estão em desacordo: não é humanamente exigível que elas sejam absolutamente objetivas, pois são elas que sentem os problemas e o litígio. O inadmissível surge apenas quando a parte, sabendo embora não ter razão, recorre ao processo (o que é ainda mais grave tratando-se de factos pessoais): provado isto, haverá litigância de má-fé. Esse é o limite à compreensão e aceitação, relativamente à posição vivida pelas partes.

O ensinamento do Prof. Alberto dos Reis que, quanto a esta matéria, vem incluído no CPC Anotado, é lapidar, assim escrevendo Não obstante o dever geral de probidade, imposto às partes, a litigância de má fé pressupõe a violação da obrigação de não ocultar ao tribunal ou, melhor, de confessar os factos que a parte sabe serem verdadeiros. Não basta, pois, o erro grosseiro ou culpa grave; é necessário que as circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição conscientemente infundada, de tal modo que a simples proposição da ação ou contestação, embora sem fundamento, não constitui dolo, porque a incerteza da lei, a dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, podem levar as consciências mais honestas a afirmarem um direito que não possuem ou a impugnar uma obrigação que devessem cumprir; é preciso que a Autora faça um pedido que conscientemente sabe não ter direito, e que o Réu contradiga uma obrigação que conscientemente sabe que deve cumprir (cfr. Alberto dos Santos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 2º, Coimbra Editora, pag. 263).

Exige-se para a condenação como litigante de má-fé que se esteja perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a atuação dolosa ou gravemente negligente da parte, demonstrando-se nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a ação da justiça, litigando de modo desconforme ao respeito devido ao tribunal e às partes (cfr. Ac. da Relação de Guimarães de 15/10/2015, processo 3030/11.3TJVNF.G1, in dgsi.net ).

À litigância de má fé não se basta a dedução de pretensão ou oposição sem fundamento, ou a afirmação de factos não verificados ou verificados de forma distinta. Exige-se ainda que a parte tenha atuado com dolo ou com negligência grave, ou seja, que soubesse da falta de fundamento da sua pretensão ou oposição e que se encontrasse numa situação em que se lhe impusesse esse conhecimento e um dever de agir em conformidade com ele. A aplicação do instituto da litigância de má fé, à semelhança do instituto do abuso de direito, traduz uma aplicação do princípio da boa fé no domínio processual civil, tendo de se ter em conta a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente, através da análise global dos factos provados e não provados, e não apenas de um segmento dessas factos (cfr. Ac. do STJ de 10/12/2015, Processo551/06: Sumários, 2015, pág 692, citado in Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição Revista e Ampliada, Março de 2017, pág 706).

Em nossa opinião, a Doutrina e a Jurisprudência supra referido, plasma a interpretação mais avisada da figura jurídica do litigante de má fé, e analisando a conduta processual do Apelante não podemos considerar que o mesmo atuou com dolo ou negligência grave, pondo em causa os seus deveres como litigante, pelo que se não justifica a sua condenação como litigante de má fé.

Não se pode concluir que o apelante tenha agido no presente recurso contra a verdade dos factos nem que tenha atuado com o propósito de entorpecer a ação da Justiça ou de protelar o transito em julgado da decisão.

Do simples ato de interposição de recurso de apelação da sentença, onde o recorrente pede a revogação da sentença recorrida, não resulta atuação de má fé.

Não resulta dos autos consciência do apelante em deturbar a verdade dos factos, não resultando o dolo, sequer negligência, do Apelante ao formular a sua pretensão.

 Ora, não resultando que a atuação do Apelante tenha tido os propósitos referidos pelo Apelado, alías, nem o mesmo, os parece referir, não resulta, verificar-se a referida atuação como litigante de má fé, como supra referido, pelo que, por isso, não pode, ser proferida condenação do mesmo como tal.

            Assim, pelo exposto não se condena o recorrente em multa por litigância de má fé.

                                                                       **

                                                                             4. Decisão.

            Por tudo o exposto acorda-se em decidir:

            a)- Rejeitar o recurso da matéria de factos nos termos supra referidos.

            b)- Julgar improcedente e manter a matéria de facto como aludida na sentença recorrida, nas alíneas b), c) e d), ou seja, nos factos não provados.

            c)- Alterar a matéria de facto quanto ao ponto 3 dos factos provados passando para a matéria não provada com a alínea e).

d)- julgar improcedente o recurso e manter a sentença recorrida nos seus termos, ou seja, pela falta de legitimidade do requente nos termos do disposto no artigo 141.º do Código Civil absolve-se o beneficiário da instância.

Custas :

- da apelação pelo apelante, pois que ficou vencido – art. 527º, nº1 e 2, do CPC;

- do incidente de litigância de má fé, em que o Recorrido decaiu, por este..

Coimbra, 26/4/2022

Pires Robalo (relator)

Sílvia Pires (adjunta)

Mário Silva (adjunto)