Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
174/13.0TTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE LOUREIRO
Descritores: CONDENAÇÃO ULTRA PETITUM
CATEGORIA PROFISSIONAL
SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL
ACTUALIZAÇÃO
PRESTAÇÃO
Data do Acordão: 10/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE COIMBRA – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Legislação Nacional: ARTº 74º CPT.
Sumário: I – Cessado um contrato de trabalho, o direito a uma dada categoria profissional e os créditos de um dado trabalhador decorrentes das diferenças entre os salários efectivamente recebidos e aqueles que o deveriam ter sido correspondem, justamente, a direitos que tendo existência necessária não são, todavia, de exercício necessário.

II – Nessa medida, tais direitos não estão abrangidos pela faculdade legal excepcional consagrada no artº 74º do CPT.

III – As razões subjacentes à fixação de um salário mínimo nacional e à sua actualização não impõem que idêntica actualização seja operada relativamente às retribuições mínimas fixadas convencionalmente em montantes superiores aos do salário mínimo nacional.

IV – Se um dado CCT prevê para uma dada categoria profissional uma remuneração mínima convencional que excede a remuneração mínima mensal garantida e em relação à qual não se registam os fundamentos subjacentes à fixação do referido salário mínimo, não se vislumbra qualquer fundamento legal ou de natureza argumentativa que imponha actualizações daquela remuneração convencional igual à que legalmente se consagre relativamente à remuneração mínima legalmente garantida.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

A autora propôs contra a ré a presente acção com a forma de processo comum e emergente de contrato individual de trabalho, pedindo que:

a) seja declarada resolvida com justa causa, por iniciativa da autora, a relação laboral entre ela e a ré, com efeitos reportados a 30/11/2012;

b) se considere ilegal o motivo inserido pela ré no modelo RP 5044, por não ter ocorrido despedimento, o qual, a ter ocorrido, seria ilegal por violação do art. 369º do CT/09;

c) se considere que o salário auferido pela autora desde a data da sua admissão e até à data de cessação do contrato de trabalho era inferior ao salário decorrente do CCT aplicável, este actualizado nos mesmos termos e grandezas em que a partir de 1998 o foi o salário mínimo nacional;

d) a ré seja condenada a pagar-lhe: € 2.500 a título de indemnização por danos não patrimoniais; € 1.417,82 referentes a dois meses de subsídio de desemprego não auferido e os que se vencerem desde Janeiro de 2013 até que a autora tenha trabalhado, com o limite de 11 meses, à razão mensal de € 708,66; € 15.862,95 referentes a diferenças salariais; € 4.251,60 referentes à indemnização pela cessação do contrato de trabalho; € 2.834,64 referentes a salários não pagos de Setembro, Outubro e Novembro de 2012; € 3.396,86 de créditos salariais de 2012; € 1.721,50 de créditos salariais de 2011; € 313,76 referentes a créditos salariais de 2010; € 2.652,43 referentes a créditos salariais de 2009; juros de mora, à taxa legal, sobre tais quantias, desde a data dos respectivos vencimentos até efectivo pagamento, ascendendo os já vencidos a € 1.049,81.

Como fundamento da sua pretensão, alegou, em resumo, que tendo sido trabalhadora subordinada da ré, resolveu, com justa causa subjectiva para o efeito, o contrato de trabalho, sendo que do concreto modo de execução deste e da sua cessação resultaram para a autora os créditos salariais e indemnizatórios que melhor enuncia na petição e cuja satisfação coerciva pressupõe a prévia condenação da ré a reconhecê-los e a pagá-los

Frustrada a tentativa de conciliação, a ré contestou e deduziu reconvenção, peticionando a condenação da autora a pagar-lhe uma indemnização de 1.000 euros, a compensar com os créditos que venham a ser reconhecidos à autora, num montante que segundo a ré não ultrapassam os € 1.562,71.

Alegou, em resumo, que a autora não tinha justa causa para resolver o contrato de trabalho, tendo-o assim denunciado sem observância do prazo de aviso prévio a que estava obrigada, com a consequente obrigação de indemnizar a ré; em relação aos créditos reclamados pela autora apenas reconhece dever-lhe € 1.562,71 referentes a algumas férias não gozadas pela autora e a parte dos subsídios de férias e de Natal por ela reclamados.

A autora respondeu para, no essencial, reafirmar o alegado na petição, concluir como já aí tinha feito e pugnar pela improcedência da reconvenção.

Saneado o processo, procedeu-se a julgamento, com observância dos legais formalismos, logo após o que foi proferida sentença de cujo dispositivo consta, designadamente, o seguinte:

Em face do exposto, julgo a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e a reconvenção improcedente, por não provada, e em consequência;

a) Declaro válida a resolução por justa causa por parte da Autora A... do contrato de trabalho vigente entre Autora e Ré “ R..., LDA.” e, consequentemente,

b) Condeno a Ré “ R..., LDA.” a pagar à Autora A... Autor a quantia global de € 5.306,44 (cinco mil trezentos e seis euros e quarenta e quatro cêntimos), assim discriminada:

b.1 - € 2.370,83 (dois mil trezentos e setenta euros e oitenta e três cêntimos) a título de indemnização pela resolução do contrato de trabalho com justa causa pela Autora;

b.2 - € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) respeitante às remunerações de Setembro de 2012, Outubro de 2012 e Novembro de 2012;

b.3 - € 977,28 (novecentos e setenta e sete euros e vinte e oito cêntimos) respeitante à referente a férias de 2009, 2011 e 2012 e subsídio de férias de 2009;

b.4 - € 458,33 (quatrocentos e cinquenta e oito euros e trinta e três cêntimos) respeitante a proporcional de subsídio de Natal de 2012;

À quantia referida em b.1) acrescem os juros de mora computados à taxa legal de 4% desde a data do trânsito em julgado da presente decisão até integral pagamento.

Às quantias referidas em b.2) a b.4) acrescem os juros de mora à taxa legal de 4% desde a data dos respectivos vencimentos e até integral pagamento.

c) Absolvo a Ré “ R..., LDA.” do demais peticionado pela autora A...;

d) Absolvo a Autora A... do pedido reconvencional.”.

Dessa sentença recorreu a autora, tendo apresentado as conclusões seguintes:

[…]

A ré não contra-alegou.

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da manutenção do julgado.

Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do mérito, cumpre decidir.


*

II - Principais questões a decidir

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões a decidir:

1ª) se a sentença recorrida deveria ter reconhecido à recorrente a categoria profissional de escriturária principal ou, ao menos, de primeira, bem assim como o direito às diferenças remuneratórias entre o salário base efectivamente recebido pela autora e os salários bases correspondentes àquelas categorias;

2ª) se as retribuições mínimas garantidas por contrato colectivo de trabalho, de montantes superiores ao salário mínimo nacional e que não são actualizadas por via de actualização negociada das respectivas tabelas salariais, devem ser actualizadas nos mesmos termos e valores em que o são o salário mínimo nacional.


*

*


III - Fundamentação

A) De facto

Os factos provados

[…]

*

B) De direito

Primeira questão: se a sentença recorrida deveria ter reconhecido à recorrente a categoria profissional de escriturária principal ou, ao menos, de primeira, bem assim como o direito às diferenças remuneratórias entre o salário base efectivamente recebido pela autora e os salários bases correspondentes àquelas categorias.

Para efeitos da questão em apreço, importa começar por identificar que pedido formulou a autora relacionado com tal questão, bem assim como a causa de pedir correspondente.

Assim, a autora alegou, na parte relevante para os efeitos em apreço, o seguinte: foi admitida ao serviço da ré em 20/1/09, com a categoria de estagiária de 1.ª (arts. 2º e 10º da petição), tendo auferido, sempre, a remuneração mensal base de 500 euros (arts. 16º a 18º da petição); tendo em conta as funções efectivamente desempenhadas, deveria ter tido a categoria profissional de escriturária principal (arts. 13º, 15º e 48º da petição) ou pelo menos de escriturária de 1.ª (art. 39º da petição); o salário base correspondente à categoria profissional de escriturária de 2.ª devia ter sido de 776, 01 euros em 2009, 819, 46 euros em 2010, 836, 66 euros em 2011 e 2012, a que acrescia uma diuturnidade de 17,61 euros e um prémio de 90, 61 euros (art. 46º da petição); ascendiam ao montante global de 15.862, 96 euros as diferenças entre o salário base recebido pela autora e aquele que deveria ter recebido se lhe tivessem sido pagos os que correspondiam à categoria de escriturária de 2.ª (arts. 46º, 53º a 58º da petição).

O pedido formulado pela autora e relacionado com a questão em apreço foi o de condenação da ré a pagar-lhe o valor de 15.862, 96 euros correspondente às diferenças entre o salário base recebido pela autora e aquele que deveria ter recebido se lhe tivessem sido pagos os que correspondiam à categoria de escriturária de 2.ª (alínea f/III do pedido – fls. 24).

Não foi deduzido nenhum pedido de reconhecimento de que à autora deveria ter sido atribuída a categoria profissional de escriturária principal ou de primeira, nem qualquer pedido de condenação da ré a pagar diferenças salariais entre a retribuição base recebida pela autora e aquelas que deveria ter recebido se lhe tivesse sido atribuída a categoria profissional de escriturária principal ou de primeira.

Feito este enquadramento, logo se conclui, face ao princípio do pedido consagrado no art. 609º/1 do NCPC, ex vi do art. 1º/2/a do CPT, que o tribunal recorrido só podia conhecer e decidir, a respeito do que ora está em apreço, da questão de saber quais os salários base correspondentes à categoria profissional de escriturária de 2.ª, e se existiam diferenças entre esses salários base e aqueles que realmente foram pagos à autora; no reverso, o tribunal recorrido não podia conhecer da questão de saber se a autora deveria ter tido a categoria profissional de escriturária principal ou de primeira, e se existiam ou não diferenças salarias entre os salários base correspondentes a cada uma dessas categorias e aquele que a autora efectivamente recebeu.

O tribunal recorrido conheceu daquela primeira questão, respondendo-lhe de forma negativa, e não conheceu da última questão, sendo que a nosso ver ao proceder como procedeu o referido tribunal acatou o princípio do pedido a que estava vinculado.

Considera a autora, porém, que o tribunal estava obrigado, face aos factos provados e considerando o estatuído no art. 74º do CPT, a reconhecer que à autora deveria ter sido atribuída a categoria profissional de escriturária principal ou de primeira, bem assim como a condenar a ré a pagar-lhe as diferenças entre as remunerações base correspondentes a uma dessas categorias e aquelas que efectivamente foram pagas pela ré.

Não acompanhamos a recorrente.

É certo que nos termos do art. 74.º do CPT “O juiz deve condenar em quantidade superior ao pedido ou em objecto diverso dele quando isso resulte da aplicação à matéria provada, ou aos factos de que possa servir-se, nos termos do artigo 514.º do Código de Processo Civil, de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho.” – sobre este dispositivo legal podem consultar-se Alberto Leite Ferreira, Código de Processo do Trabalho Anotado, Coimbra Editora, 1972, p. 250, e Código de Processo do Trabalho Anotado, Coimbra Editora, 1989, p. 293, Albino Mendes Baptista, Código de Processo do Trabalho Anotado, 2000, p. 146, Joana Vasconcelos, Condenação Extra Vel Ultra Petitum – Um Mecanismo Ultrapassado?, Estudos do Instituto de Direito do Trabalho, Volume VI, IDT, Instituto de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito de Lisboa, Almedina, 2012, p. 191, acórdão da Relação de Lisboa de 5/7/2006, proferido no âmbito da apelação 4556/2006-4, relatado pelo aqui primeiro adjunto, acórdão da Relação de Évora de 8/4/2012, proferido no âmbito da apelação 1088/07.9TTSTB.E1, acórdão da Relação do Porto de 30/9/2013, proferido no âmbito da apelação 237/11.7TTVNF.P1.

E, “…o art. 74.º (…) constitui precisamente um caso em que a lei impõe ao julgador um dever oficioso de aplicar a lei aos factos de que possa servir-se, em homenagem ao interesse e ordem pública que constituem pressuposto das normas imperativas e indisponíveis de natureza laboral, interesse este que é mais vasto do que o interesse individual dos titulares dos inerentes direitos na sua satisfação efectiva e que justifica a impossibilidade de afastamento de aplicação destas normas por livre determinação da vontade das partes.”, sendo certo que “Têm a doutrina e a jurisprudência feito uma distinção básica entre os direitos de existência necessária, mas que não são de exercício necessário, como é o caso do direito ao salário após a cessação do contrato, e os direitos cuja existência e exercício são necessários, aí situando justamente o caso dos direitos a reparação por acidente de trabalho (…) e, também, do direito ao salário na vigência do contrato. É pacífico que a condenação “extra vel ultra petitum” só se justifica neste segundo tipo de direitos, que têm subjacentes interesses de ordem pública, cabendo ao juiz o suprimento dos direitos de exercício necessário imperfeitamente exercidos pelo seu titular (ou seu representante).” – Abílio Neto, Código de Processo do Trabalho Anotado, Ediforum, 2011, p. 193.

Esta possibilidade de o magistrado judicial condenar para além do pedido, resulta da circunstância nada despicienda de estarmos na presença de direitos imbuídos de uma natureza muito específica. Respeitam a aspectos de assistência na doença e na invalidez. Buscam, portanto, a sua indisponibilidade absoluta em razões de interesse e de ordem pública, isto é, em interesses supra-individuais. Destarte, é da mais elementar justiça material que, se o interessado não actua, exercendo os direitos com vista à indemnização por acidente de trabalho ou doença profissional (reitere-se, direitos de exercício necessário), o juiz se lhe deva sobrepor, atribuindo-lhe e arbitrando-lhe as indemnizações resultantes de previsão legal no ordenamento jurídico-laboral nacional.” – Paulo Sousa Pinheiro, A condenação extra vel ultra petitum, Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas, nº 12, 2007, p. 231.

 “Os limites da condenação ultra vel extra petitum devem então encontrar-se nos direitos, que, do ponto de vista do trabalhador, são irrenunciáveis, quer quanto à sua existência, quer quanto ao seu exercício” (…) – Pedro Madeira de Brito, A tramitação do Processo Declarativo Comum no Código do Processo do Trabalho, Estudos do Instituto de Direito do Trabalho, volume 3, p. 471.

Ora, cessado um contrato de trabalho, o direito a uma dada categoria profissional e os créditos de um dado trabalhador decorrentes das diferenças entre os salários efectivamente recebidos e aqueles que o deveriam ter sido correspondem, justamente, a direitos que tendo existência necessária não são, todavia, de exercício necessário.

Nessa exacta medida, tais direitos não estão abrangidos pela faculdade legal excepcional consagrada no referido art. 74º do CPT.

Consequentemente, não tendo a recorrente peticionado o reconhecimento de que tinha direito à categoria profissional de escriturária principal ou de primeira, nem o reconhecimento de quaisquer créditos emergentes de diferenças entre os salários base dessas categorias e aqueles que efectivamente auferiu, não podia o tribunal recorrido atribuir à autora qualquer daquelas categorias ou diferenças salariais do tipo das acabadas de referir.

Assim, do ponto de vista da questão em análise, a sentença recorrida não merece qualquer censura.


+

Segunda questão: se as retribuições mínimas garantidas por contrato colectivo de trabalho, de montantes superiores ao salário mínimo nacional e que não são actualizadas por via de actualização negociada das respectivas tabelas salariais, devem ser actualizadas nos mesmos termos e valores em que o são o salário mínimo nacional.

Como resulta do acima exposto relativamente à primeira questão, apenas pode aqui ser considerada a remuneração correspondente à categoria profissional de escriturária de segunda, pois que foi apenas por referência a ela que a autora peticionou a condenação da ré a pagar-lhe as diferenças entre a remuneração base efectivamente paga e aquelas que o deveriam ter sido se, como a autora pretende, estavam sujeitas a actualizações as remunerações mínimas fixadas no CCT aplicável para aquela categoria; excluída está, pois, qualquer possibilidade de serem consideradas as categorias profissionais de escriturária principal ou de primeira – cujo reconhecimento judicial a autora nunca peticionou na acção – e as remunerações que a autora considera que deveriam ter correspondido a cada uma delas, por referência às quais também nada foi peticionado pela autora.

As partes e o tribunal recorrido estão de acordo, e nisso não dissentimos, no sentido de que: a) aplica-se à relação de trabalho entre a autora e a ré o CCTV entre a ANTRAM e a FESTRU publicado no BTE n.º 9/80, com as subsequentes alterações; b) as tabelas salariais desse CCTV foram actualizadas, pela última vez, em 1997.

Sustenta a autora que na ausência de uma actualização negociada dessas tabelas salariais, os valores delas constantes devem ser actualizados nos termos e de acordo com as mesmas percentagens em que o foram o salário mínimo nacional: 1998 – 3,9%; 1999 – 4,1%;  2000 – 4,1%; 2001 - 5%; 2002 - 5%; 2003 –2,5%; 2004 – 2,5%; 2005 – 2,5%;  2006 – 3%; 2007 –4%; 2008 – 5,7%; 2009 – 5,6%; 2010 - 5,6%; 2011 – 1,1%.

Por isso, as retribuições base a que a autora tinha direito como escriturária de segunda eram as de € 776,01 em 2009, € 819,46 em 2010, € 836,66 em 2011 e 2012, sendo que em todos esses anos apenas auferiu € 500 de remuneração base, em consequência do que tinha direito a €15.862, 96 de diferenças salariais.

Não acompanhamos a recorrente.

Os factos provados não revelam qualquer acordo das partes no sentido de que ocorresse a actualização salarial pela qual a autora agora pugna de forma unilateral.

Do clausulado do CCTV aplicável também não consta nenhum normativo que consagre um regime de actualização semelhante ao que a autora pretende ver reconhecido.

Além disso, dos sucessivos diplomas legais que actualizaram o salário mínimo nacional não consta qualquer normativo que imponha iguais actualizações às remunerações fixadas convencionalmente em montante superior ao previsto para aquele salário mínimo e que não fossem objecto de actualizações convencionais.

Por outro lado, as razões subjacentes à fixação de um salário mínio nacional e à sua actualização não impõem que idêntica actualização seja operada relativamente às retribuições mínimas fixadas convencionalmente em montantes superiores aos do salário mínimo nacional.

Com efeito, a fixação de um salário mínimo nacional e as suas actualizações justificam-se por diversas ordens de razões, entre as quais se contam as seguintes:
a) evitar a exploração da mão-de-obra, por via da garantia de um salário justo aos trabalhadores dos sectores de actividade pior remunerados, bem como aos trabalhadores com menor qualificação;
b) garantir ao trabalhador, de forma imperativa, um nível retributivo mínimo com o qual possa contar para a sua sobrevivência condigna e a da sua família;
c) aumentar o nível de vida dos trabalhadores dos sectores de actividades mal remuneradas;
d) aumentar o nível dos índices de desenvolvimento humano;
e) contribuir para o combate à desigualdade intra-remuneratória por via da colocação de entraves ao alargamento do leque salarial;
f) criação de um patamar de referência para as negociações salariais e contribuir para a homogeneização das condições de trabalho;
g) contribuir para a minimização das assimetrias entre a oferta e a procura do trabalho, pois que a quantidade e a qualidade da oferta não é regulada pelos trabalhadores;
h) contribuir para a igualação remuneratória de trabalho igual;
i) contribuir para a redução da pobreza no quadro de uma política redistributiva dos rendimentos imposta aos mercados através de uma determinada política pública referente à remuneração do trabalho;
j) oferecer aos empresários referenciais estáveis de cálculo do custo da mão-de-obra;
k) implementação de um sistema de regulamentação do mercado destinado a combater o trust e a combinação de preços ao nível de mercado de trabalho cuja não competitividade é favorecida pela segmentação, pela imobilidade, pelo custo da informação e por diversificados factores de natureza pessoal;
l) promoção da estabilidade e do crescimento económico por via da canalização de dinheiro para segmentos da população com a maior probabilidade de o gastar.

Através do salário mínimo e das suas actualizações também procura dar-se satisfação, por exemplo, ao estatuído no art. 59º/1/a/2ª da CRP[1], no art. 131º da Convenção da OIT[2] e no art. 4º da Carta Social Europeia[3].

Estão em causa, assim, no âmbito do salário mínimo nacional e das suas actualizações, fundamentos normativos, económicos e sociais que não são os que estão presentes no momento da fixação convencional de um determinado salário em nível superior ao do salário mínimo nacional.

Assim sendo, se um dado CCT prevê para uma dada categoria profissional uma remuneração mínima convencional que excede a remuneração mínima mensal garantida e em relação à qual não se registam os fundamentos subjacentes à fixação do referido salário mínimo, não se vislumbra qualquer fundamento legal ou de natureza argumentativa que imponha actualizações daquela remuneração convencional igual à que legalmente se consagre relativamente à remuneração mínima legalmente garantida.

É certo que as actualizações do salário mínimo nacional podem gerar, e muitas vezes geram, o denominado efeito spillover que se traduz num aumento reflexo dos salários daqueles trabalhadores que ganhavam acima do salário mínimo nacional.

Porém, a explicação para esse efeito não radica em qualquer imposição de natureza legal no sentido de que todos os salários diferentes do salário mínimo nacional sejam actualizados em função da actualização deste.

Tal explicação radica em decisões tomadas voluntariamente pelos empresários no sentido de: a) aumentar a procura relativa por trabalhadores mais qualificados em substituição dos menos qualificados (ou seja, aumenta a procura por trabalhadores com produtividade marginal maior que os remunerados pelo salário mínimo, logo melhor remunerados, o que se torna possível pelo facto de, por exemplo, com trabalhadores mais qualificados as empresas poderem utilizar tecnologias de produção mais avançadas e com maiores índices de produtividade); b) aumentar os salários dos empregados mais qualificados, para que os mesmos se esforcem no sentido de manter a sua produtividade, sabido que os esforços dos trabalhadores são uma função dos salários relativos – sobre esta temática, para mais desenvolvimentos, Grossman, J. B. (1983). The Impact of the Minimum Wage on Other Wages. Journal of Human Resources, 18: pp. 359-378; Dickens, R.; Manning, A. (2004). Spikes and spill-overs: the impact of the national minimum wage on the wage distribution in a low-wage sector.Economic Journal, 114: C95-C101; Soares, S. S. D., O impacto distributivo do salário mínimo: a distribuição individual dos rendimentos do trabalho. Economia Aplicada, v. 8 , n. 1, pp. 47-76.

Trata-se, assim, de actualizações salariais fruto de decisões empresariais que estão na inteira e absoluta disponibilidade dos empregadores, não resultando as mesmas de quaisquer imposições legais nesse sentido.

Por outro lado, nem sequer se regista, sempre ou sequer tendencialmente, um aumento das remunerações superiores ao salário mínimo nacional igual ao determinado legalmente para efeitos deste último, pois que o efeito das variações do salário mínimo nos demais salários não depende apenas da variação em si mesma, mas também da posição relativa do valor do salário na distribuição salarial, podendo aquele efeito ser medido, por exemplo, através do Índice de Kaitz que estabelece o rácio entre o valor do salário mínimo e a mediana da distribuição salarial de um dado grupo de activos – o mencionado efeito será tanto maior quanto mais próximo o mencionado índice estiver da unidade, sendo que em Portugal, por exemplo, desceu entre 2002 e 2006, ano este a partir do qual se registou um crescimento do mesmo, com especial incidência no ano de 2009.

Assim, procurando concretizar esta diferente variação entre o salário mínimo nacional e a distribuição salarial em Portugal, é sabido, por exemplo, que o salário mínimo nacional registou em Portugal um significativo aumento em termos reais entre 2007 e 2009, na sequência e por efeito do “Acordo Sobre  a Fixação e Evolução da RMMG” assinado em Dezembro de 2006, em sede de  Concertação Social, pelo Governo e Parceiros Sociais - tal acordo fixou em 403 euros o valor da retribuição mínima  garantida em 2007, bem assim como estabeleceu uma meta de 450 euros para 2009 e de 500 euros para 2011.

Ora, esses aumentos do salário mínimo nacional foram sempre superiores ao crescimento do ganho mensal dos trabalhadores por conta de outrem (por exemplo, em 2009 o salário mínimo nacional cresceu 5,4%, ao passo que o crescimento do ganho dos trabalhadores por conta de outrem se cifrou em 2,1%) - Estudo sobre a Retribuição  Mínima Mensal Garantida em  Portugal, da autoria de Anabela Carneiro, Carla Sá, João Cerejeira, José Varejão, Miguel Portela, disponível em http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/14227/1/cef.up_nipe_salario_minimo_relatorio_final.pdf

Face ao tudo quanto antecede, não se vislumbra fundamento bastante, e de resto a recorrente também não o apoia em qualquer princípio normativo ou qualquer dipositivo legal vigente, para censurar a decisão recorrida na parte em que não procedeu à actualização pretendida pela recorrente do salário previsto convencionalmente para a categoria de escriturária de segunda, em consequência do que lhe não reconheceu o direito a quaisquer diferenças salariais pelas quais pugnou na petição.


*

IV - Decisão

Acordam os juízes que compõem esta secção social do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar a apelação improcedente, com a consequente confirmação da decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Coimbra, 9/10/2014


(Jorge Manuel Loureiro - Relator)
 (Ramalho Pinto)
 (Azevedo Mendes)

[1] “1. Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito:

a) À retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna;

(…)
2. Incumbe ao Estado assegurar as condições de trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm direito, nomeadamente:

a) O estabelecimento e a actualização do salário mínimo nacional, tendo em conta, entre outros factores, as necessidades dos trabalhadores, o aumento do custo de vida, o nível de desenvolvimento das forças produtivas, as exigências da estabilidade económica e financeira e a acumulação para o desenvolvimento;”.

[2] “Os salários mínimos terão força de lei e não poderão ser diminuídos; a sua não aplicação provocará a aplicação de sanções apropriadas, penais ou outras, à pessoa ou pessoas responsáveis.

Sob reserva das disposições do parágrafo 1 precedente, a liberdade de negociação colectiva deverá ser plenamente respeitada.

Os elementos a tomar em consideração para determinar o nível dos salários mínimos deverão, da maneira possível e apropriada, tendo em conta a prática e as condições nacionais, abranger:

a) As necessidades dos trabalhadores e das respectivas famílias, tendo em atenção o nível geral dos salários no país, o custo de vida, as prestações de Segurança Social e os níveis de vida comparados de outros grupos sociais;

b) Os factores de ordem económica, abrangendo as exigências do desenvolvimento económico, a produtividade e o interesse que há em atingir e em manter um alto nível de emprego.”.

[3] “Com vista a assegurar o exercício efectivo do direito a uma remuneração justa, as Partes comprometem-se:

1. A reconhecer o direito dos trabalhadores a uma remuneração suficiente para lhes assegurar, assim como às suas famílias um nível de vida decente;

 (…)

O exercício destes direitos deve ser assegurado quer por meio de convenções colectivas livremente celebradas, quer por métodos legais de fixação de salários, quer por qualquer outro modo apropriado às condições nacionais.”.