Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1938/22.0T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: NOMEAÇÃO DE INTÉRPRETE
Data do Acordão: 02/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA – JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
Decisão: RECURSO PROVIDO
Legislação Nacional: ARTIGO 20º, Nº 4, E 32º, Nº 10, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGO 92º, Nº 1 E 2, 120º, Nº 2, ALÍNEA C), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ARTIGO 7º, Nº 2, 41º, Nº 1, DO D.L. Nº 433/82, DE 27/10 – RGCO
ARTIGOS 252º, 259º, 260º E 270º-G DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS
Sumário: I – Nos termos do art. 92º do Código de Processo Penal, aplicável ao processo de contraordenação por via do art. 41º, nº 1, do D.L. nº 433/82, de 27/10, que contém o Regime Geral das Contraordenações, nos actos processuais escritos e orais utiliza-se a língua portuguesa, sob pena de nulidade.

II – Quando intervenha no processo pessoa que não conheça ou domine a língua portuguesa é-lhe nomeado intérprete idóneo, sem encargo para ela.

III – A nomeação de intérprete integra o conceito de processo equitativo e visa assegurar o direito de compreender o processo e o direito a neste ser compreendido e abrange o arguido, assistente, vítima, demandante civil, bem como os intervenientes processuais, como testemunha e perito, na perspectiva de entenderem o que é perguntado e/ou é respondido.

IV – A efectivação deste direito não impõe que todo o processo seja traduzido.

V – A circunstância de alguém ser de nacionalidade estrangeira e/ou a afirmação de que alguém não compreende a língua portuguesa não é bastante para o comprovar.

VI – Não é inconstitucional a interpretação extensiva do art. 7º, nº 2, do RGCO, segundo a qual na decisão condenatória proferida na fase administrativa de processo contraordenacional não têm que ser indicadas as pessoas singulares representantes da pessoa coletiva infractora e responsáveis pelas infrações.

VII – A vontade da pessoa colectiva é expressa pelo seu representante legal e por isso, com expressa menção dessa qualidade, devem ser-lhe dirigidas todas as notificações feitas à pessoa colectiva no âmbito de qualquer processo judicial.

Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

Por decisão do Inspector-Geral da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica [doravante, ASAE], de 7 de Fevereiro de 2022, a arguida Y..., Lda., com os demais sinais nos autos, foi condenada pela prática, de uma contra-ordenação p. e p. pelos arts. 122º e 124º do Regime Jurídico de Acesso e Exercício  de Actividades de Comércio, Serviços e Restauração, aprovado pelo Dec. Lei nº 10/2015, de 16 de Janeiro [doravante, RJACSR], Capítulo I, nºs 1, a), 2, 4 e 10, Capítulo II, nº 2, a) e b), Capítulo V, nº 1, a) e b) e Capítulo VI, nº2 do Anexo II do Regulamento (CE) nº 852/2004, do parlamento Europeu e do Conselho , de 29º de Abril e art. 18º do Regime Jurídico das Contra-Ordenações Económicas, aprovado pelo Dec. Lei nº 9/2021, de 29 de Janeiro, na coima de € 4200, pela prática de uma contra-ordenação p. e p. arts. 4º, nºs 2 e 7 do RJACSR 18º, a) do Regime Jurídico das Contra-Ordenações Económicas, na coima de € 750 e, em cúmulo, na coima única de € 4600.

Inconformada com a decisão, a arguida interpôs recurso de impugnação judicial pugnando, além do mais, pela nulidade da decisão administrativa,

i) por não se terem os agentes fiscalizadores acompanhado de intérprete idóneo, uma vez que a sua trabalhadora … não fala nem compreende a língua portuguesa de forma correcta e por isso, não pôde tomar conhecimento do que estava a acontecer,

ii) por as comunicações que lhe foram remetidas [à recorrente], incluindo a decisão administrativa, não terem sido traduzidas para uma língua que pudesse compreender,

iii) por os factos imputados … não conterem referência ao elemento subjectivo da infracção,

iv) por a decisão recorrida se limitar a referir um conjunto de generalidades para, a final, concluir pela existência de uma conduta dolosa e,

v) por não se mostrar apurada a sua [da recorrente] situação económica nem o benefício económico alcançado com a prática da infracção, argumentando, também, que a sua conduta nunca seria punível, uma vez que tinha contratado, em regime de prestação de serviços, a empresa Retokil Initial Portugal, Lda., para cumprir todas as regras de higienização, e administra formação aos seus trabalhadores, pelo que, nunca se conformou com a prática das contra-ordenações, acrescendo que as situações em causa ocorreram na ausência da sua [da recorrente] legal representante, e com desrespeito das suas instruções, e afirmando ainda que a coima aplicada é excessiva, considerando a conduta anterior e posterior, pois regularizou de imediato todas as situações, devendo, por isso, ter sido aplicada uma admoestação.

Por despacho de 23 de Maio de 2022 … foi o recurso de impugnação judicial julgado improcedente e, em consequência, confirmada a decisão administrativa.

*

Inconformada com a decisão, recorreu a arguida para esta Relação, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

2. A recorrente, ainda na fase administrativa, invocou a nulidade dos autos, quer por falta de nomeação de intérprete na ação de fiscalização promovida pela ASAE, quer na tradução das notificações a si remetidas.

3. De igual forma, fê-lo no recurso de impugnação judicial por si interposto.

4. A decisão recorrida não contem elementos que permitam concluir pelo preenchimento do elemento subjetivo da prática da contraordenação.

5. Assim, ao decidir da forma que decidiu, violou o tribunal “a quo” o previsto no artigo 58.º do RGCO.

6. De igual forma, ao não aplicar a sanção de admoestação, violou o tribunal “a quo” o previsto no artigo 51.º-A do RGCO.

7. Acresce que o tribunal a “quo” dispunha de elementos que lhe permitiam a aplicação de uma atenuação especial da coima, nos termos do disposto no artigo 18.º n.º 3 do RGCO.

8. O tribunal “a quo”, não dispõe de elementos que lhe permitam concluir que os fatos dados como provados, ocorreram com o conhecimento da recorrente.

9. Sendo que, contrariamente ao que o tribunal “a quo” refere, não é irrelevante quem procedeu às ações ou às omissões consubstanciadoras da prática das infracções imputadas à recorrente.

10. Assim, tendo os fatos ocorrido contra vontade de quem legalmente representa a recorrente, jamais a mesma poderia ser responsabilizada, 11.º n.º 6 do Código Penal.

11. Ao decidir, como decidiu, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 92.º n.ºs 2 e 6 e artigo art.º 120.º n.º 2 al. c) do CPP, 7.º n.º 2 e 18.º e 58.º do RGCO.

*

O recurso foi admitido.

*

Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público, alegando, em síntese, que a violação do art. 92º, nº 2 do C. processo Penal por falta de nomeação de intérprete, constitui uma nulidade sanável, a arguir em cinco dias, o que não aconteceu, que a matéria de facto provada contém os elementos objectivos e subjectivos do tipo das contra-ordenações imputadas … que não foi violado o art. 51º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, porque nenhum elemento de facto ou de direito permite sustentar que as contra-ordenações praticadas tinham gravidade reduzida, que nenhum fundamento existe para a pretendida atenuação especial da coima, e que o art. 7º, nº 2 do RGCOC deve ser interpretado extensivamente, no sentido de aí incluir os trabalhadores da pessoa colectiva, desde que actuando no exercício das suas funções, e concluiu pela improcedência do recurso.

*

Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando a argumentação da resposta do Ministério Público …

II. FUNDAMENTAÇÃO

… tendo em consideração a limitação dos poderes de cognição do tribunal de recurso no âmbito do direito de mera ordenação social, imposta pelo art. 75º, nº 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas [doravante, RGCOC], atentas as conclusões formuladas pela recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A nulidade da fase administrativa do procedimento, por falta de nomeação de intérprete na acção de fiscalização e por falta de tradução das notificações feitas;

- A atipicidade das condutas por falta do respectivo elemento subjectivo;

- A falta de conhecimento da recorrente dos factos provados, a prática destes contra a sua vontade e a sua desresponsabilização;

- O sancionamento das contra-ordenações imputadas com admoestação;

- A atenuação especial da coima.

*

Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta do despacho recorrido.

Assim:

A) Nele foram decididas as seguintes nulidades e questão prévia:

«(…).

É invocada pela recorrente a nulidade decorrente da falta de nomeação de intérprete durante o acto inspectivo da ASAE, e posterior nulidade por falta de tradução da decisão administrativa e documentos anexos na notificação à legal representante da recorrente, cidadã de nacionalidade ... e não compreende nem fala a língua portuguesa.

Esta argumentação não tem fundamento.

Ora, o artigo 92º do Código de Processo Penal impõe o uso obrigatório da língua portuguesa nos actos processuais, tanto escritos como orais, sob pena de nulidade, decorrendo do nº 2 do mesmo preceito que todo o interveniente no processo que não dominar a língua portuguesa tem o direito à assistência de um intérprete ou tradutor de todos os actos processuais que ele necessitar compreender para beneficiar de um processo equitativo.

Ora, à luz deste preceito a notificação da decisão proferida contra a arguida não carece de tradução escrita, por não estarem em causa as suas garantias de defesa, nem a lei taxa tal situação como nulidade.

Acontece que no caso dos autos, foi remetida notificação em língua portuguesa, o que, tratando-se de uma sociedade que se encontra a laborar em Portugal, mais propriamente, um restaurante, que diariamente contacta com a língua portuguesa, se impõe o domínio desta língua.

Mas mesmo que tal não se considere, ter-se-á de chamar à colação o princípio da lealdade processual, que levaria a que a recorrente logo que detectada a falta de nomeação de intérprete ou tradução a viesse invocar, e não agora, em sede de recurso, tanto mais que qualquer nulidade não arguida tempestivamente sempre estaria sanada, conforme decorre do regime previsto no artigo 120º, nº 2, al. c) e nº 3, als. a) e c) do Código de Processo Penal …

A arguição desta nulidade por falta de nomeação de intérprete ocorrida na fase administrativa, como seria o caso, tinha de ser feita até cinco dias após a notificação do despacho final proferido em sede administrativa, o que não foi feito.

Acresce que a recorrente apresentou defesa no processo, e como tal, bem entendeu todo o processo.

Pelo exposto, improcede a nulidade invocada.

III - Questão Prévia

O artigo 7º, nº 2 do RGCO dispõe que “as pessoas colectivas ou equiparadas são responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções”.

Desta forma, conclui-se que “o ente colectivo só possa ser responsabilizado por actos contraordenacionalmente puníveis praticados pelas pessoas físicas que por ela actuam, pelo que a responsabilidade do ente colectivo está dependente (sempre) da responsabilidade contraordenacional de uma ou mais pessoas físicas” (Oliveira Mendes e Santos Cabral, in Notas ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas, Almedina, pág. 36).

Ora, um restaurante está sempre dependente de pessoas físicas que no mesmo trabalham, que responsabilizam o ente colectivo – neste caso concreto estes factos só são possíveis com o consentimento da ora recorrente, pois recai sobre a recorrente a responsabilidade destes ilícitos contraordenacionais, sendo indiferente quem procedeu às ações e/ou omissões.

Como tal, improcede esta arguição.

(…)”.

B)  Dele constam os seguintes factos provados:

“(…).

1. No dia 3 de Junho de 2019, pelas 15h20m, no estabelecimento comercial denominado “R..., Lda.”, sito na Rua ..., ..., em ..., explorado pela recorrente, foi verificado que no local eram prestados serviços de restauração e bebidas.

2. Na zona da cozinha existiam as seguintes situações, no que concerne a requisitos gerais de higiene:

- a zona da cozinha não se encontrava limpa e em boas condições de higiene;

- a cozinha pela sua concepção, construção e localização não permite uma manutenção e limpeza adequada;

- armazenamento de produtos de limpeza em áreas onde são manuseados géneros alimentícios;

- existência de material em contacto com género alimentício sem ser o adequado;

- acumulação de lixo e gorduras no piso e paredes da cozinha;

- inexistência de lavatórios para a lavagem das mãos equipados com água corrente quente e fria, materiais de limpeza e dispositivo de secagem higiénica, dado que este se encontrava ocupado por utensílios;

- existência de caixotes do lixo com sistema de fecho (tampa) inadequado;

- sistema de exaustão com diversas sujidades e gorduras acumuladas;

- equipamento da cozinha sem estarem efectivamente limpos.

3. Foi solicitada a apresentação de documento válido que atestasse o licenciamento do estabelecimento em que constasse como titular da exploração a sociedade comercial acima identificada.

4. Em 14 de Junho de 2019, deu entrada nos serviços da ASAE um email remetido pelo contabilista da recorrente, o qual foi registado com o NIDE/5230/19/URC, em que junta Mera Comunicação Prévia de alteração do titular da exploração efectuada a 13 de Junho de 2019, ou seja, à data da inspecção não existia documento válido.

5. Em 11 de Junho de 2019, deu entrada nestes serviços o email enviado pela ACT, registado na ASAE com o NIDE/5052/19/URC, no qual indica o número médio de trabalhadores da recorrente, no ano civil de 2018, de doze.

6. A arguida sabia, previu e aceitou a realização dos factos contraordenacionais, na medida em que sabia que estava obrigado a cumprir os requisitos gerais e específicos de higiene no seu estabelecimento e a efectuar a comunicação prévia de alteração da titularidade da entidade exploradora do estabelecimento, optando por não o fazer e conformando-se com o resultado daí adveniente.

7. A recorrente celebrou com a empresa “Rentokil Initial Portugal, Lda.” contrato de prestação de serviços, de consultadoria em Higiene, Segurança e Qualidade Alimentar, Formação Profissional, Serviços de Análises e Ensaios Técnicos, Peritagens Técnicas e Auditorias entre outras actividades relacionadas com o objecto social da empresa Rentokil.

 (…)”.».

*

DECISÃO

Da nulidade da fase administrativa do procedimento, por falta de nomeação de intérprete na acção de fiscalização e por falta de tradução das notificações feitas

1. Alega a recorrente … que … na fase administrativa … invocou a falta de nomeação de intérprete na acção de fiscalização da ASAE e a falta de tradução das notificações que lhe foram feitas, o que … também fez no recurso de impugnação judicial … tendo a autoridade administrativa optado por não se fazer acompanhar de intérprete na acção inspectiva realizada, e tendo também optado por não traduzir as notificações que a si, recorrente, violou o disposto no art. 92º, nºs 2 e 6 do C. Processo Penal, ferindo de nulidade todo o processado, nos termos do disposto no art. 120º, nº 2, c) do mesmo código.

Vejamos.

O RGCOC não prevê no seu articulado, designadamente, em II Parte, Do processo de contra-ordenação, regulamentação específica quanto à forma dos actos e sua documentação, valendo, por conseguinte, a norma geral prevista no nº 1 do seu art. 41º, nos termos da qual, são aplicáveis, subsidiariamente, as normas processuais penais.

Estabelece o art. 92º do C. Processo Penal, com a epígrafe «Língua dos actos e nomeação de intérprete», na parte em que agora releva:

1 – Nos actos processuais, tanto escritos como orais, utiliza-se a língua portuguesa, sob pena de nulidade.

2 – Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquele utilizada.

(…).

Por sua vez, dispõe o art. 120º, nº 2, c) do C. Processo Penal que constitui nulidade dependente de arguição, a falta de nomeação de intérprete, nos casos em que a lei a considerar obrigatória.

Pois bem.

2. O que está em causa no direito à nomeação de intérprete e no direito à tradução é o direito a compreender o processo e o direito a neste ser compreendido, visando observar a exigência constitucional do processo equitativo, consagrado no art. 20º, nº 4 da Lei Fundamental e, deste modo, assegurar o efectivo direito de defesa (cfr. Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, obra colectiva, Tomo I, 2021, Almedina, pág. 1000 e seguintes). E porque nos encontramos no âmbito de um processo de contra-ordenação, cabe referir que a Constituição da República Portuguesa garante, no nº 10 do seu art. 32º, ao arguido os direitos de defesa e de audiência.

Ainda que o acento tónico se coloque nas garantias de defesa do arguido, os direitos à nomeação de intérprete e à tradução têm um campo mais vasto de aplicação. Com efeito, também outros sujeitos processuais, v.g., assistente, vítima, demandante civil, são titulares destes direitos, para exercerem eficazmente os seus interesses processuais, o mesmo sucedendo com os intervenientes processuais, v.g., testemunha, perito, na perspectiva de entenderem o que é perguntado e/ou é respondido (cfr. aut., op. e loc., citados).

Contudo, a lei não impõe, para a efectivação destes direitos, que todo o processo seja traduzido, mas apenas os actos em que tenha que intervir cidadão que não domine a língua portuguesa, tais como, interrogatórios, depoimentos, audiência, sendo certo que, quando se trata do arguido, o direito a intérprete terá lugar em todas as diligências em que tenha que estar presente, e o direito a tradução, quanto a documentos escritos, terá lugar quanto aos documentos essenciais ao exercício do direito de defesa (cfr. aut., op. e loc., citados e Henriques Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 320 e seguintes).

3. Revertendo para o caso concreto, resulta do auto de notícia de fls. 2 a 3 verso que no dia 3 de Junho de 2019, dois inspectores da ASAE levaram a efeito uma inspecção ao estabelecimento de restauração e bebidas denominado «R...», situado na Rua ..., em ..., pertencente à sociedade comercial por quotas Y..., Lda.., com sede no mesmo local, inspecção que decorreu na presença de AA, empregada de balcão do referido estabelecimento, de nacionalidade ....

No auto de notícia a inspectora autuante, como decorre da lei (art. 243º, nºs 1 e 2 do C. Processo Penal), descreveu as diversas situações que detectou na cozinha e que, em seu entender, correspondiam a infracções ao regime legal da actividade exercida no local, no que respeitava a requisitos gerais de higiene, indicou as normas legais, eventualmente, violadas e as respectivas sanções. Fez ainda constar ter solicitado a apresentação de documento comprovativo do licenciamento do estabelecimento em nome da sociedade Y..., Lda.., tendo-se a identificada empregada AA comprometido a enviá-lo para os serviços da ASAE, vindo a dita sociedade a entregar nos serviços, em 11 de Junho de 2019, o alvará de abertura em nome de BB, e em 14 do mesmo mês e ano, por intermédio do seu contabilista, uma comunicação prévia de alteração do titular da exploração com data de 13 de Junho de 2019.

A recorrente quando, nos termos do disposto no art. 50º do RGCOC, portanto, ainda na fase administrativa do processo, exerceu o direito de audição e defesa, arguiu a nulidade da acção de fiscalização da ASAE, por falta de nomeação de intérprete, com fundamento em a sua trabalhadora AA ser cidadã ... e não falar nem compreender bem a língua portuguesa, como os agentes autuantes constataram, arguição que repetiu, ipsis verbis, no recurso de impugnação judicial por si deduzido. 

Considerando o teor do auto de notícia dos autos, não existem razões para duvidar de que a cidadã AA era, à data da fiscalização da ASAE, trabalhadora da recorrente, exercendo a função de empregada de balcão no estabelecimento denominado «R...», e que nessa qualidade acompanhou os inspectores que procediam à referida fiscalização, e que a mesma empregada era cidadã da ....

Porém, nada permite concluir que a mesma cidadã não soubesse compreender bem a língua portuguesa. A mera afirmação de tal facto pela recorrente, nas duas peças processuais supra mencionadas, não é bastante para a comprovar, sendo certo que em nenhuma delas, a dita cidadão foi arrolada como testemunha, visando tal comprovação. Diga-se, aliás, resultar do auto de notícia ter a cidadã AA, pelo menos, razoável conhecimento da língua portuguesa, na medida em que, ao ser-lhe solicitada a apresentação do alvará de abertura do estabelecimento pela inspectora, e não o tendo, disse que o enviaria posteriormente para os serviços de fiscalização [sendo certo que, porque nenhum alvará existia, ao tempo da acção fiscalizadora, em nome da recorrente, o que esta enviou posteriormente foi o alvará de abertura original do restaurante, e a comprovação de já ter requerido a mudança do titular], o que demonstra ter compreendido perfeitamente a solicitação feita.

Ainda que assim não fosse, cumpre notar que a cidadã AA não era, nem é, arguida nos autos, não era, nem é, legal representante da recorrente, e não foi, sequer, testemunha, fosse na fase administrativa, fosse na fase judicial.

Não se vê, pois, que direitos de defesa ou de compreensão do que foi falado, pudessem ter sido violados com a não nomeação de intérprete de língua ..., no decurso da acção inspectiva.

Por outro lado – e agora, por mera hipótese de raciocínio –, estando em causa a arguição de uma nulidade relativa, portanto, de uma nulidade sanável, sendo titular do direito alegadamente violado e gerador daquele vício, a cidadã AA, só esta tinha legitimidade para a invocar e não, como aconteceu, a arguida e ora recorrente.

Em conclusão, e pelas sobreditas razões, não pode proceder a pretendida declaração de nulidade da acção de fiscalização efectuada pela ASAE ao estabelecimento da recorrente, fundada na não nomeação de intérprete de língua ... para acompanhar tal diligência.

4. Numa diversa perspectiva, invocou a recorrente, como vimos, a nulidade relativa decorrente da falta de tradução, para língua ..., das notificações e documentos que as acompanharam, que lhe foram feitas para efeitos de exercício do direito de defesa, fundada na afirmação de ter a sua legal representante, a cidadã CC, nacionalidade ... e não compreender nem falar correctamente a língua portuguesa, como resulta da documentação legal da recorrente à qual a ASAE tem fácil acesso, razão pela qual não compreendeu os factos imputados nem os direitos que lhe assistem.

Conforme já referido, resulta do auto de notícia de fls. 2 a 3 verso, no que é corroborado pelo teor da procuração de fls. 78, que a arguida e ora recorrente é uma sociedade comercial, na modalidade de sociedade unipessoal por quotas, com a firma Y..., Lda.., a qual tem como gerente a cidadã CC. A recorrente é, pois, uma pessoa colectiva portuguesa (cfr. art. 270º-A e seguintes do C. das Sociedades Comerciais), de direito privado, e foi nesta qualidade, e enquanto arguida, que foi notificada pela ASAE, quer para exercer o direito de audição e defesa previsto no art. 50º do RGCOC, quer da decisão administrativa condenatória contra si proferida.

Enquanto pessoa colectiva, a vontade da recorrente é expressa pelo seu representante legal, pelo seu gerente (cfr. art. 270º-G do C. das Sociedades Comerciais, conjugado com os arts. 252º, 259º e 260º do mesmo código). Por tal razão, a este, e com expressa menção dessa qualidade, devem ser dirigidas todas as notificações feitas à pessoa colectiva no âmbito de qualquer processo judicial, circunstancialismo que se mostra observado nos autos.

Alega a recorrente que a sua gerente, CC, cidadã nacional da ..., não compreende, nem fala correctamente a língua portuguesa, e por isso, não compreendeu os actos imputados à sua representada, nem os direitos desta.

Sucede que a recorrente não ensaiou, sequer, qualquer tentativa de prova, com vista à demonstração do imperfeito conhecimento da língua portuguesa por parte da sua gerente, e essa prova não pode resultar, per se, da simples circunstância de ser a mesma cidadã .... Com efeito, é público que a imigração de cidadãos chineses para Portugal vem acontecendo há décadas, com a consequente natural integração no país, que passa pelo gradual conhecimento da língua portuguesa, falada e escrita. Aliás, é do mais elementar bom senso e, portanto, razoavelmente expectável, que a gerente de um estabelecimento de restauração aberto ao público, numa cidade universitária com a dimensão de ..., fale e entenda, capazmente, a língua portuguesa.

Ora, recebidas as notificações efectuadas pela ASAE, acompanhadas da respectiva documentação, o que fez a gerente da recorrente? Entregou-as ao seu [da recorrente] Ilustre Mandatário Judicial, que apresentou a defesa que entendeu adequada e necessária à protecção dos interesses da mandante.

É, pois, evidente, que a gerente da recorrente entendeu perfeitamente, o sentido e alcance de tais notificações, tendo desenvolvido a actuação que se impunha para o pleno exercício do direito de defesa da recorrente, que, cremos, em nada ficou prejudicado com a não tradução, para a língua ..., das notificações e respectiva documentação. Donde, a falta de fundamento para a pretendida tradução.

Note-se, por outro lado, que a recorrente, não se limitou a arguir a nulidade por falta de tradução das notificações e respectiva documentação, tendo ampliado o âmbito da defesa apresentada na fase administrativa, à falta de narração do elemento subjectivo da contra-ordenação imputada, a impossibilidade legal da sua responsabilização por a infracção não ter sido praticada pela sua gerente e no exercício das respectivas funções, a impossibilidade legal da sua responsabilização por a infracção ter sido praticada por trabalhadores, contra as ordens e instruções da gerente, e a aplicação de uma admoestação, e tendo invocado no recurso de impugnação judicial que apresentou, para além de todos estes itens, ainda a omissão de pronúncia, a falta de fundamentação quanto ao montante concreto das coimas fixadas, a não aplicação do instituto da atenuação especial, e a inconstitucionalidade da atribuição de valor probatório absoluto ao auto de notícia, por violação do art. 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

É, assim, evidente, que a recorrente, não obstante a nulidade de falta de tradução invocada, compreendeu perfeitamente o teor das notificações feitas e da respectiva documentação, tendo apresentado, em dois distintos momentos do processo, argumentação que, pela sua extensão e assertividade, inequivocamente demonstra a total compreensão dos factos que lhe eram imputados e das sanções que lhe foram aplicadas.

Significa isto que, em qualquer caso, a recorrente, não obstante a nulidade invocada, também se aproveitou de faculdade a cujo exercício o acto anulável se dirigia, o que, nos termos do disposto na alínea c), do nº 1, do art. 121º do C. Processo Penal, sempre determinaria a sanação daquela nulidade.

Em conclusão, e pelas sobreditas razões, não pode proceder a pretendida declaração de nulidade das notificações efectuadas pela ASAE à recorrente, fundada na não tradução das mesmas e respectivos documentos.

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Da atipicidade das condutas por falta do respectivo elemento subjectivo

5. Alega a recorrente – conclusões 4 e 5 – que a decisão recorrida não contém factos que permitam concluir pela verificação do elemento subjectivo das contra-ordenações por cuja prática foi condenada …

Vejamos.

O art. 1º do RGCOC define contra-ordenação como todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima.      

Por sua vez, dispõe o nº 1 do art. 8º do mesmo regime geral que, só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.       

O RGCOC não contém qualquer norma definidora do dolo e da negligência havendo, portanto, que recorrer, ex vi, seu art. 32º, às normas do C. Penal.

Brevitatis causa, diremos que o dolo consiste no conhecimento e vontade do agente em praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, definindo o art. 14º do C. Penal as suas três modalidades …

Por sua vez, dispõe o art. 15º do C. Penal que o agente age com negligência quando, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e era capaz, representa a realização de um facto que preenche um tipo legal, como consequência possível da sua conduta, mas actua sem se conformar com essa realização … ou não chega sequer a representar a possibilidade de realização de tal facto (…

6. Constando dos factos provados levados ao despacho recorrido [ponto 6] que, a arguida sabia, previu e aceitou a realização dos factos contraordenacionais, na medida em que sabia que estava obrigado a cumprir os requisitos gerais e específicos de higiene no seu estabelecimento e a efectuar a comunicação prévia de alteração da titularidade da entidade exploradora do estabelecimento, optando por não o fazer e conformando-se com o resultado daí adveniente, e tendo esta factualidade sido relevada na fundamentação de direito da decisão em crise … torna-se evidente … a falta de fundamento da pretendida atipicidade da condutas, por falta do elemento subjectivo das contra-ordenações imputadas.

Com efeito, o ponto 6 dos factos provados demonstra uma conduta dolosa da recorrente, quer quanto à falta de observância dos requisitos específicos de higiene e segurança alimentar, no estabelecimento de restauração da recorrente, quer quanto à falta de mudança da titularidade do mesmo estabelecimento [ainda que irrelevante, diremos, até, que, contrariamente ao que foi considerado no despacho em causa, o dolo da recorrente não revestirá a modalidade de dolo eventual, mas a de dolo directo].

Em conclusão, e pelas sobreditas razões, não pode proceder a pretensão de ser atípica a conduta da recorrente, relativamente a ambas as contra-ordenações, por falta de prova do respectivo elemento subjectivo do tipo.

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Da falta de conhecimento da recorrente dos factos provados e da prática destes contra a sua vontade, determinantes da sua desresponsabilização

7. Alega a recorrente – conclusões 8 a 10 – não ser possível concluir que os factos dados como provados ocorreram com o seu conhecimento e porque, contrariamente ao entendido pelo tribunal a quo, não é irrelevante determinar quem procedeu às acções e/ou omissões preenchedoras das infracções imputadas, tendo tais acções e/ou omissões ocorrido contra a vontade da sua gerente, nunca poderia [a recorrente], atento o disposto no nº 6 do art. 11º do C. Penal, ter sido responsabilizada. No corpo da motivação, a recorrente densificou a alegação, dizendo que estando em causa contra-ordenações praticadas por trabalhadores da pessoa colectiva, contra ordens expressas suas, esta não poderá ser responsabilizada, por força do disposto no art. 7º, nº 2 do RGCOC e do art. 11º, nº 6 do C. Penal.

Suscita, assim, a recorrente, a problemática da sua responsabilização, enquanto pessoa colectiva, por não estar provado que os factos consubstanciadores das contra-ordenações imputadas ocorreram com o seu conhecimento, e porque os seus trabalhadores praticaram tais factos contra as suas ordens expressas.

Vejamos.

Dispõe o nº 2 do art. 7º do RGCOC que, as pessoas colectivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções.

Por sua vez, dispõe o nº 6 do art. 11º do C. Penal que, a responsabilidade das pessoas colectivas e entidades equiparadas é excluída quando o agente tiver actuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito.

… as pessoas colectivas actuam a sua vontade através da respectiva estrutura organizativa, isto é, a sua vontade é actuada através das pessoas físicas que integram os seus órgãos estatutários e, também, através das pessoas físicas em quem, aqueles órgãos delegaram as suas competências. Assim sendo, a sua responsabilização deriva das acções ou omissões praticadas por pessoas físicas, as quais lhe são imputadas nos termos definidos na lei.

No âmbito das contra-ordenações, o modelo de imputação está previsto no referido nº 2 do art. 7º do RGCOC, responsabilizando a pessoa colectiva pelas acções típicas praticadas pelos seus órgãos, portanto, pelas pessoas físicas que neles têm assento, no exercício das suas funções. Não existe unanimidade na interpretação deste preceito, mas a jurisprudência maioritária vem fazendo uma interpretação extensiva da norma, no sentido de a mesma abranger também os trabalhadores e colaboradores das pessoas colectivas, desde que actuando no exercício das suas funções (cfr. acs. da R. de Coimbra de 13 de Outubro de 2021, processo nº 3682/20.3T9LRA.C1, da R. de Lisboa de 12 de Janeiro de 2021, processo nº 1874/19.7T8TVD.L1 e de 27 de Junho de 2019, processo nº 5840/14.0ECLSB.L1, da R. de Évora de 26 de Junho de 2018, processo nº 3716/17.9T9STB.E1 e da R. de Guimarães de 27 de Janeiro de 2020, processo nº 510/19.6T8FAF.G1, todos in www.dgsi.pt, e ainda o parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 11/2013, in DR II, n.º 178, 16 de Setembro de 2013; em sentido contrário, Augusto Silva Dias, Direito da Contra-Ordenações, 2018, Almedina, pág. 91 e seguintes e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações, 2011, Universidade Católica Editora, pág. 53). 

Acresce que o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 566/2018, de 7 de Novembro de 2018 (in www.tribunalconstitucional.pt), que decidiu, além do mais, «não julgar inconstitucional  a norma extraída do artigo 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 41º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, e artigo 45º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, e dos artigos 50.º e 58º do citado Decreto-Lei n.º 433/82, igualmente aplicáveis por força do referido artigo 45.º, segundo a qual «em decisão condenatória proferida na fase administrativa de processo contraordenacional não carecem de ser indicadas as pessoas singulares representantes da pessoa coletiva infratora e responsáveis pelas infrações», a propósito da interpretação extensiva do nº 2 do art. 7º do RGCOC, deixou consignado na respectiva fundamentação que, «No caso sub iudicio, sem prejuízo da discussão doutrinária no plano infraconstitucional, inexistem razões para questionar a interpretação extensiva do artigo 7.º, n.º 2, do RGCO realizada pelo tribunal a quo … o termo “órgão”, do ponto de vista conceptual, não está necessariamente associado a um centro autónomo e institucionalizado de poderes funcionais – a uma realidade institucional ou estatutária … Por isso mesmo, são descortináveis diversas definições legais de “órgão”, consoante os fins concretamente visados pelo diploma em que as mesmas se inserem (v., a título meramente exemplificativo: o artigo 20.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo – «centros institucionalizados de poderes e deveres para efeitos da prática de atos jurídicos imputáveis à pessoa coletiva» –; e o artigo 1.º, alínea c), do Código de Processo Penal - «entidades e agentes policiais a quem caiba levar a cabo quaisquer atos ordenados por uma autoridade judiciária ou determinados por este Código»). Na perspetiva material da atividade dos entes coletivos (por contraposição à perspetiva da sua estrutura organizatória) – que é aquela que releva a propósito da imputação de condutas individuais a uma pessoa coletiva –, pode entender-se o órgão como o indivíduo cuja atuação é imputada ao ente coletivo. Estando em causa uma conduta correspondente a uma declaração de vontade, é evidente que as regras estatutárias sobre os processos deliberativos internos tendem a assumir maior relevância (cfr. a mencionada definição legal constante do artigo 20.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo). Mas, tratando-se de simples atuações materiais, nada obsta a que a imputação se fundamente com base numa atuação em nome do ente coletivo e no seu interesse (representante) ou na circunstância de o mesmo indivíduo dispor no âmbito de tal ente de autoridade ou de uma posição de liderança para controlar a respetiva atividade. Nessa medida, faltando uma definição legal própria aplicável no domínio específico do RGCO, e abstraindo de argumentos teleológicos e outros argumentos sistemáticos (por exemplo, uma maior adequação ao princípio da equiparação consignado no artigo 7.º, n.º 1, do RGCO), não se pode ter por absolutamente incompatível com o sentido literal do termo “órgão” referido no artigo 7.º, n.º 2, do RGCO um entendimento extensivo do mesmo, na linha da previsão das alíneas a) e b) do n.º 2 e do n.º 4 do artigo 11.º do Código Penal. De resto, o artigo 32.º do RGCO reforça tal entendimento: «[e]m tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contraordenações, as normas do Código Penal» (e não, por exemplo, as do Código do Procedimento Administrativo; itálico aditado).».

Assim, não se suscitando reservas quanto à conformidade constitucional da interpretação extensiva do nº 2 do art. 7º do RGCOC, temos para nós, aderindo à jurisprudência maioritária, que a pessoa colectiva deve também ser responsabilizada pelos actos e omissões preenchedores de ilícitos típicos contra-ordenacionais, praticados pelos seus trabalhadores e colaboradores, desde que o tenham sido  no exercício das suas funções, ou por causa delas, salvo quando, como se retira do disposto no nº 6 do art. 11º do C. Penal, tenha ocorrido violação de ordens ou instruções expressas de quem de direito, v.g., do legal representante da pessoa colectiva.

8. Revertendo para o caso concreto, cumpre dizer, em primeiro lugar, que a alegada inexistência de elementos que permitam concluir que os factos provados ocorreram com o seu conhecimento e que tais factos ocorreram contra a vontade da sua legal representante, só podem referir-se à contra-ordenação que teve por objecto a violação dos deveres gerais da entidade exploradora em estabelecimento de restauração e bebidas, e não, também, à contra-ordenação que teve por objecto a falta de comunicação prévia para alteração da titularidade de estabelecimento de restauração e bebidas. Com efeito, quanto a esta, estando em causa um dever do agente económico, perante a autoridade administrativa, é evidente que a recorrente não podia ignorar que não tinha feito a exigível comunicação prévia, sendo certo que só ela tinha legitimidade para a fazer.

Quanto ao mais.

… carece de fundamento a afirmação da recorrente segundo a qual, o tribunal a quo não dispunha de elementos que permitissem inferir o seu conhecimento sobre os factos provados.

Com efeito, considerando a interpretação extensiva do nº 2 do art. 7º do RGCOC, com a consequente desnecessidade de identificação dos concretos trabalhadores e/ou colaboradores que praticaram a acção e/ou omissão típica, para afirmar a sua [da recorrente] responsabilidade contra-ordenacional, não se vê como poderia a recorrente, ainda que pessoa colectiva, não ter conhecimento do estado, em termos de higiene alimentar, em que se encontrava o seu estabelecimento de restauração na data da fiscalização levada a cabo pelo ASAE.

É que, alegando a recorrente [não no presente recurso, mas no recurso de impugnação judicial] que a sua gerente esteve ausente do restaurante, por doença, no mês em que ocorreu a inspecção, tendo esta tido lugar no dia 3 de Junho de 2019 [como resulta do auto de notícia de fls. 2 a 4 verso e do ponto 1 dos factos provados do despacho recorrido] e sendo certo que à mesma não assistiu a legal representante da recorrente [dado não constar do referido auto de notícia], a ter existido tal impedimento de saúde [nenhum documento dos autos o comprova], ele apenas existiria nos dois dias anteriores à inspecção e no dia em que esta teve lugar. Ora, fazendo uma análise objectiva dos documentos fotográficos que fazem parte integrante do auto de notícia (fls. 5 a 9), dela resulta clara e inequivocamente evidenciado que o estado sanitário do restaurante da recorrida por eles documentado em imagens, é o resultado de desleixo higiénico – quer ao nível da acomodação dos alimentos, quer ao nível da limpeza e manutenção dos equipamentos da cozinha, quer ao nível limpeza desta divisão do estabelecimento – acumulado ao longo de semanas, quando não, mesmo, de meses.

É, pois, evidente, que a recorrente, através da sua gerente, não poderia deixar de ter conhecimento desta situação causada, pelo menos, pelas condutas dos trabalhadores em funções no restaurante, posto que a mesma ostensivamente visível para todos os que tivessem acesso à cozinha e zonas adjacentes.

Por outro lado, porque a gerente da recorrente, conforme dito, não podia desconhecer o estado sanitário do estabelecimento, claro se torna que, tendo dele conhecimento e nada tendo feito, pelo menos, até aos três dias anteriores ao da realização da acção inspectiva da ASAE, ordenando, no mínimo, uma profunda limpeza de instalações e equipamentos, anuiu à manutenção do estado de coisas constatado na dita acção inspectiva.

Deste modo, não faz qualquer sentido dizer, como o faz a recorrente, que os trabalhadores do restaurante actuaram contra a vontade da sua gerente.

Em suma, e pelas sobreditas razões, não pode proceder a pretensão da desresponsabilização da recorrente fundada no desconhecimento da conduta dos seus trabalhadores e na actuação destes contra a sua vontade.

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Do sancionamento das contra-ordenações imputadas com admoestação

9. Alega a recorrente – conclusão 6 – que o tribunal a quo, ao não aplicar uma admoestação, violou o art. 51º-A do RGCOC …

Dispõe o nº 1 do art. 51º do RGCOC que, quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação.

São, pois, pressupostos de aplicação desta sanção, a reduzida gravidade da contra-ordenação praticada e o reduzido grau de culpa do agente. Trata-se, com efeito, de um simples aviso feito ao infractor, uma advertência com dispensa de coima, que afasta a admoestação, no âmbito do direito de mera ordenação social, da sua congénere do direito penal, por não dar origem a uma decisão condenatória (cfr. Augusto Silva Dias, op. cit., pág. 167 e Oliveira Mendes e Santos Cabral, Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 3ª Edição, 2009, Almedina, pág. 173 e seguintes).

Pressupondo, conforme dito, a reduzida gravidade do ilícito e do grau de culpa do agente, a admoestação não pode ser aplicada a contra-ordenações graves e muito graves (cfr. Simas Santos e Lopes de Sousa, Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 5ª Edição, 2009, Vislis Editores, pág. 424 e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações, 2011, Universidade Católica Editora, pág. 222 e seguintes), na medida em que é a própria lei que, ao assim as qualificar e sancionando-as de forma mais severa, lhes confere, em abstracto, um grau de ilicitude mais intenso – elevado e muito elevado, diremos –, incompatível com os pressupostos de aplicação do instituto, sendo certo que este é também o entendimento da jurisprudência dominante (cfr. acs. da R. de Coimbra de 15 de Novembro de 2017, processo nº 143/17.1T8GRD.C1 e de 28 de Janeiro de 2015, processo nº 28/14.3TBIDN.C1, da R. do Porto de 17 de Setembro de 2014, processo nº 656/13.4TBPNF.P2, da R. de Évora de 26 de Janeiro de 2021, processo nº 1996/15.3T8SLV.E2 e de 8 de Março de 2018, processo nº 2551/17.9T8ENT.E1, da R. de Guimarães de 6 de Fevereiro de 2020, processo nº 3726/19.1T8VNF.G1 e de 7 de Dezembro de 2017, processo nº 143/17.1T9VRL.G1, todos in www.dgsi.pt.), da qual é expoente máximo o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 6/2018 (in DR-I, nº 219/2018, de 14 de Novembro de 2018) que firmou a seguinte jurisprudência: a admoestação prevista no art. 51º, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, não é aplicável às contra-ordenações graves previstas no art. 34º, nº 2, do Decreto-Lei nº 78/2004, de 3 de Abril.

Pois bem.

10. Dispõe o art. 17º do Regime Jurídico das Contra-Ordenações Económicas [doravante, RJCOE], com a epígrafe «Classificação das contra-ordenações» que, as contraordenações económicas são classificadas como leves, graves e muito graves, considerada a relevância dos bens jurídicos tutelados.

Por seu turno, dispõe o art. 18º do mesmo regime jurídico, com a epígrafe «Montante das coimas»:

A cada escalão classificativo de gravidade das contraordenações económicas corresponde uma coima aplicável …

O nº 2 do art. 124º do RJACSR qualifica a contra-ordenação por violação dos deveres gerais da entidade exploradora em estabelecimento de restauração e bebidas como contra-ordenação grave.

Logo, pelas sobreditas razões, não pode ser sancionada com uma mera admoestação.

O nº 7 do art. 4º do RJACSR qualifica a contra-ordenação pela falta de mera comunicação prévia para alteração da titularidade de estabelecimento de restauração e bebidas como contra-ordenação leve.

Acontece que, como resulta da matéria de facto provada, a conduta da recorrente foi dolosa, sendo, pois, elevado, o seu grau de culpa. Acresce que não se mostram provadas quaisquer circunstâncias que permitam concluir pela reduzida gravidade da infracção.

Assim, também quanto a esta contra-ordenação, ainda que qualificada como leve, se não mostram verificados os pressupostos de aplicação da admoestação.

Em suma, deve improceder também esta pretensão da recorrente.

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Da atenuação especial das coimas

11. Alega a recorrente – conclusão 7 – que o tribunal a quo dispunha de elementos que permitem a atenuação especial da coima, nos termos do disposto no nº 3 do art. 18º do RGCOC. No corpo da motivação densificou a alegação, afirmando que, não se tendo apurado o benefício económico retirado da conduta, e não tendo antecedentes criminais, justificava-se a aplicação do referido instituto.

Vejamos.

O nº 3 do art. 18º do RGCOC não prevê os pressupostos legais da atenuação especial da coima. Apenas define em que se traduz, em termos da moldura sancionatória abstracta, essa atenuação.

Os pressupostos da atenuação especial da coima, no âmbito das contra-ordenações económicas encontra-se previsto no art. 23º do RJCOE, com a epígrafe «Atenuação especial da coima» …

… no nº 1 encontra-se prevista a cláusula geral, digamos assim, para a aplicação do instituto. No nº 2 encontram-se previstas duas circunstâncias cumulativas que, determinam, sem mais, essa aplicação.

In casu, é manifesto não estarem verificadas estas duas circunstâncias cumulativas.

Quanto ao mais.

Replicando o regime previsto no C. Penal, estabelece o nº 1 do art. 23º do RJCOE como pressuposto da atenuação especial da coima em procedimento por contra-ordenação económica, a existências de circunstâncias anteriores, posteriores ou contemporâneas da sua prática, que diminuam acentuadamente, a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade de aplicação de coima. Não basta, pois, uma qualquer diminuição destes três factores, exigindo a lei que tal diminuição seja elevada, relevante, intensa.

Ora, no caso em apreço, não se descortina qualquer diminuição e, muito menos acentuada.

Na verdade, a intensidade da ilicitude do facto, quanto à contra-ordenação grave, é elevada, atenta a pluralidade de situações distintas, preenchedoras da infracção. A intensidade da ilicitude, quanto à contra-ordenação leve, é mediana, posto que a conduta omissiva praticada, pura e simplesmente a preencheu.

A intensidade da culpa é elevada, uma vez que estamos perante condutas dolosas.

O tempo decorrido desta a prática das contra-ordenações – cerca de três anos e oito meses – não é ainda suficiente para fundamentar uma acentuada diminuição da necessidade de aplicação de sanção.

Por outro lado, o não apuramento do benefício económico alcançado pela recorrente, como consta da decisão administrativa e da decisão recorrida, em bom rigor, apenas releva para a determinação da medida concreta da coima, e não, para a sua atenuação especial (cfr. art. 18º, nº 1 do RGCOC). E a inexistência de antecedentes contra-ordenacionais, aceite na decisão recorrida (embora não conste dos factos provados) é, per se, insusceptível de suportar a aplicação do instituto.

Em suma, não estando verificados os pressupostos da aplicação do instituto da atenuação especial da coima, não pode proceder esta pretensão da recorrente.

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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.

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Custas do recurso pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCS. (art. 93º, nº 3, do RGCOC, art. 513º, nº 1, do C. Processo Penal, e art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).

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Coimbra, 8 de Fevereiro de 2023

Acórdão integralmente revisto por Vasques Osório – relator – Maria José Guerra – 1ª adjunta – e Helena Bolieiro – 2ª adjunta.