Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5813/09.5TBSXL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: ALIMENTOS
PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA
COMPENSAÇÃO
Data do Acordão: 06/26/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - C.BRANCO - JUÍZO FAM. MENORES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.2005, 2008 CC
Sumário:
1. O pagamento mensal da prestação do empréstimo pela aquisição da casa de morada de família onde residem a progenitora e os menores, não pode ser considerado como um substituto válido da pensão alimentar fixada ao abrigado a alimentos em acordo homologado pelo tribunal.
2. O direito à compensação do valor que suportou a mais, para além da metade que lhe competia, ao pagar mensalmente a prestação do empréstimo e respetivos encargos respeitantes à aquisição da casa de morada de família, extravasa claramente o dever de alimentos aos filhos, só podendo ser exercitado no âmbito das relações patrimoniais entre os cônjuges, em sede de partilha.
Decisão Texto Integral:
Processo nº 5813/09.5TBSXL-A.C1 – Apelação

Relator: Maria João Areias
1º Adjunto: Alberto Ruço
2º Adjunto: Vítor Amaral

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

o Magistrado do Ministério Publico, veio deduzir incidente de incumprimento da pensão de alimentos contra V (…), relativamente aos menores R (…) e M (…), filhos daquele e de M (…),

alegando, em síntese, que
por sentença de divórcio de 14-05-2010 foi determinado que os menores ficassem confiados à mãe e que o pai, a partir do mês de janeiro de 2010 contribuiria com a quantia mensal de 150, 00€, quantia que passaria para 200,00 € a partir do mês de abril de 2010;
contabilizando os alimentos devidos até à propositura do incidente, ascendem ao total de 16.955,76 €
Conclui pedindo a adoção das medidas necessárias ao cumprimento coercivo dos alimentos em dívida.

Em sede de conferência, o Requerido alegou ter acordado com a Requerida que pagava a prestação da casa onde residiam a Requerida e os filhos e que durante esse período não pagava a prestação de alimentos, pelo que, em seu entender, a pensão só é devida desde junho de 2015, altura em que deixou de pagar a prestação da casa e dela saíram a Requerida e os filhos. A Requerida confirmou ter sido o Requerido a pagar a prestação da casa, negando contudo a existência do alegado acordo.

Realizada a audiência de julgamento, o juiz a quo proferiu sentença a:
i. Julgar verificado o incumprimento pelo requerido V (…) do regime de exercício das responsabilidades parentais, no que a alimentos devidos aos seus filhos, R (…) e M (…) diz respeito, e, por isso, condenar o requerido no pagamento dos seguintes montantes:
a. Com referência a R (…): 6.995,80 €, correspondente aos alimentos vencidos entre Janeiro e Março de 2010, Abril e Dezembro de 2010, Janeiro a Dezembro de 2011 e Janeiro a Novembro de 2011.
b. Com referência a M (…): 16.955,76 €, correspondente aos alimentos vencidos entre Janeiro e Março de 2010, Abril e Dezembro de 2010, Janeiro a Dezembro de 2011, Janeiro a Dezembro de 2012, Janeiro a Dezembro de 2013, Janeiro a Dezembro de 2014, Janeiro a Dezembro de 2015 e Janeiro a Setembro de 2016.
ii. Determinar, para pagamento das prestações de alimentos vincendas, com referência à jovem M (…), o desconto mensal, no ordenado pago ao requerido, da quantia de 222,48 €, atualizável anualmente, em Janeiro de cada ano, de acordo com a taxa de inflação publicada pelo INE, e a sua entrega direta à progenitora.
iii. Determinar, para pagamento dos alimentos vencidos, no montante total de 23.951,56 €, o desconto mensal, salário do requerido, da quantia 100,00 € mensais, até perfazer o pagamento total de tal montante e a sua entrega direta à requerente.

Inconformado com tal decisão, o Requerido dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

1. O Recorrente nunca pretendeu furtar-se, nem se furtou ao cumprimento das suas obrigações para com os filhos;

2. O silêncio da Recorrida durante os mencionados seis anos não poderia deixar de ter como consequência considerar como provado o facto: O REQUERIDO ACORDOU COM A SUA EX-MULHER, E ESTA ACEITOU, QUE A PARTICIPAÇÃO DAQUELE NOS ALIMENTOS DEVIDOS AOS FILHOS SERIA REALIZADA ATRAVÉS DO PAGAMENTO DAS DESPESAS MENCIONADAS EM 15.

3. Sendo este facto considerado provado, a presente Ação terá necessariamente que improceder, com as legais consequências.


*
O Ministério Público apresentou contra-alegações no sentido da improcedência do recurso.

Cumpridos os vistos legais nos termos previstos no nº2, in fine, do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., arts. 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil Tratando-se de decisão proferida após a entrada em vigor do novo código, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, em ação instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, aplicar-se-á o regime de recursos constante do novo código, de acordo com o art. 5º, nº1 do citado diploma – cfr., neste sentido, António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 16. –, as questões a decidir são as seguintes:

1. Impugnação da matéria de facto.

2. Se é de alterar o decidido.

III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Impugnação da matéria de facto.

(…)

Assim sendo e a fim de clarificar a situação em apreço, aditaremos, tão só, os seguintes factos, resultando o primeiro, além do mais, da cópia do requerimento executivo respeitante à cobrança dos montantes ainda em dívida a tal título (fls. 76 a 78) e o segundo da cópia da ata da tentativa de conciliação (fls. 13 a 15):

16. a. O progenitor suportou o pagamento de tais encargos, no valor mensal aproximado de 500 €, pelo menos desde a data do divórcio e até maio de 2014, inclusive.

16.b. Aquando da homologação do acordo do exercício das responsabilidades parentais, os progenitores procederam ao aditamento da seguinte cláusula: “Quanto ao acordo referente à casa de morada de família esclarecem que o cônjuge marido pagará metade do passivo devido pela aquisição da referida casa”.

(…)

Improcede, assim, a impugnação deduzida pelo apelante relativamente à decisão proferida quanto à matéria de facto.


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A. Matéria de facto
É a seguinte a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida e que não foi objeto de qualquer alteração:

1. M (…) e R (…) nasceram, respetivamente, a 12.12.2007 e 30.11.1994, estando a filiação estabelecida a favor de V (…) e M (…).

2. Por sentença datada de 14.05.2016, proferida nos autos principais de divórcio sem consentimento do outro cônjuge e já transitada em julgado, foi, para além do mais, decretado o divórcio entre V (…) e M (…) e homologado acordo obtido por ambos referente à regulação do exercício das responsabilidades parentais quanto aos seus filhos, acordo esse, para além do mais, com o seguinte teor:
“Cláusulas 1 e 2
Os filhos menores do casal ficam à guarda e cuidados da mãe, com a qual residirão, exercendo ambos os progenitores em conjunto as responsabilidades parentais em questões de particular importância;
(…)
Cláusula 10
A pensão devida a cada um dos menores é no montante mensal de €150,00 com início no presente mês;
Cláusula 11
A partir de Abril do corrente ano, a pensão devida a cada um dos menores será no montante mensal de € 200,00;
(…)
O pai pagará ainda metade das despesas de educação e de saúde dos filhos menores mediante apresentação de documentos comprovativos (…)”

“Quanto ao acordo referente à casa de morada de família esclarecem que o cônjuge marido pagará o metade do passivo devido pela aquisição da referida casa”.

3. A progenitora M (…) vive com a sua filha M (…), com o seu companheiro, com a filha deste, de 17 anos de idade e com a mãe do companheiro.

4. Habita uma casa de tipo vivenda, com boas condições de habitabilidade, com dois pisos sendo que, no rés-do-chão, funciona uma drogaria, aberta ao público.

5. O imóvel é composto por 5 quartos, 1 sala, 1 cozinha e 2 casas de banho, sendo que a Matilde tem um quarto próprio, dotado de mobiliário e conforto adequado à sua idade.

6. O espaço habitacional denota cuidados de higiene e arrumação.

7. A progenitora trabalha na empresa do companheiro, auferindo 647,00 € de vencimento ilíquido, o qual se traduz em 470,22 € de vencimento líquido.

8. As despesas de manutenção da casa são assumidas pelo companheiro, sendo as compras para casa suportadas pela progenitora.

9. O requerido reside com a sua companheira, numa casa arrendada, cujo valor mensal da renda é de 550,0 €, a qual é suportada pelo progenitor, sendo as demais despesas suportadas pela sua companheira.

10. O requerido é gerente e motorista de autocarros, na empresa “V (…) Lda.”, da qual é proprietário, auferindo mensalmente a quantia líquida de 644,00 €.

11. A sua companheira é proprietária de uma empresa de táxis, com sede em Aveiro, auferindo mensalmente o valor ilíquido de 550,00 €.

12. O requerido encontra-se, neste momento, e desde Junho de 2017, a suportar o pagamento de alimentos à sua filha M (…), no valor mensal de 120,00 €.

13. Junto da Conservatória do Registo de Automóveis, à data de 06.06.2016, o requerido titulava a propriedade dos veículos automóveis com as seguintes matrículas: …, …, … e ….

14. À data de Novembro de 2016, e junto das Finanças, o requerido titulava apenas o veículo automóvel com a matrícula ….

15. O requerido não titula, para efeitos fiscais, a propriedade de qualquer bem imóvel.

16. Após o divórcio, a progenitora, a quem ficou atribuída a casa de morada de família, nunca suportou o pagamento de quaisquer prestações bancárias ou outras (seguros e impostos) referentes à aquisição desse imóvel, tendo sempre sido o requerido quem providenciou pela realização de tais pagamentos, incluindo de seguros e impostos.

16. a. O progenitor suportou o pagamento de tais encargos, no valor mensal aproximado de 500 €, pelo menos desde a data do divórcio e até maio de 2014, inclusive.

16.b. Aquando da homologação do acordo do exercício das responsabilidades parentais, os progenitores procederam ao aditamento da seguinte cláusula: “Quanto ao acordo referente à casa de morada de família esclarecem que o cônjuge marido pagará metade do passivo devido pela aquisição da referida casa”.

17. O progenitor, a partir de Maio de 2017, tem vindo a realizar depósitos/transferências, no valor de 120,00 €, a título de pagamento da pensão de alimentos devida à sua filha.


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B. O Direito

A questão a decidir nos presentes autos passa por determinar qual o relevo do facto de o Requerido, não tendo procedido ao pagamento da pensão alimentar fixada aos seus filhos menores, ter sido ele quem, desde a data do divórcio, janeiro de 2010, até maio de 2014, procedeu ao pagamento da prestação do empréstimo relativo à casa de morada de família e demais encargos com ele relacionado, quando, segundo o acordado no âmbito do processo de divórcio, ele apenas teria a obrigação de pagar metade do passivo associado ao empréstimo para aquisição da casa de morada de família.

A sentença recorrida considerou que o Requerido não tem direito a imputar o pagamento das prestações da casa de morada de família à sua obrigação de contribuir para o sustento dos seus filhos, quer atendendo à natureza da prestação de alimentos e suas características (variabilidade, periodicidade, indisponibilidade, exigibilidade e duração indefinida), quer por não ser suscetível de compensação, compensação que apenas poderá operar no estrito domínio das relações entre cônjuges.

O Apelante insurge-se contra tal entendimento, sustentando que este será precisamente um dos casos em que os alimentos poderão excecionalmente proporcionados em espécie.

Dispõe o artigo 2005º do Código Civil (CC), quanto ao modo de prestar os alimentos:

1. Os alimentos devem ser fixados em prestações pecuniárias mensais, salvo se houver acordo ou disposição legal em contrário, ou se ocorrerem motivos que justifiquem medidas de exceção.

2. Se, porém, aquele que for obrigado aos alimentos mostrar que os não pode prestar como pensão, mas tão somente em sua casa e companhia, assim poderão ser decretados.

Efetuando-se o sustento dos filhos, por via de regra, pela afetação dos meios pecuniários necessários, o nº1 do artigo 2005º prevê os seguintes desvios ao modo de cumprimento aí consagrado: i) celebração de um acordo entre devedor e credor em sentido diverso; ii) haver previsão legal de um regime diferente; iii) existência de razões justificativas de um modo de cumprimento excecional.
O Apelante alega constituir a situação em apreço um caso de exceção, sem que, contudo, explicite qual a excecionalidade do presente caso que justifique que o pagamento da prestação de alimentos de 200,00 € a cada um dos menores (e depois de 2012, só a um deles) fosse substituído pelo pagamento integral da prestação mensal da casa de morada de família (quando, além do mais, já seria obrigação sua suportar metade do respetivo valor).
Quanto à alegada existência de acordo entre os progenitores posterior à homologação do acordo homologado pelo tribunal (independentemente da questão da sua validade), não o logrou demonstrar.
Como salienta Remédio Marques “Algumas Notas Sobre Alimentos (Devidos a Menores)”, Coimbra Editora, pp.316-317., nada impede que esta contribuição se efetive através do fornecimento de um imóvel próprio para a habitação do filho, ou disponibilização de mobiliário; contudo, esta faculdade não é alternativa, mas subsidiária de cumprir a obrigação de alimentos e suscetível de ser decretada, tão só, na emergência de o devedor alegar e provar que não tem meios económicos de os prestar como pensão.
O pagamento mensal da prestação do empréstimo pela aquisição da casa de morada de família, durante o período de tempo em que ocorreu, não pode assim ser considerado como um substituto válido da pensão alimentar fixada em acordo homologado pelo tribunal.

O direito a alimentos não pode ser renunciado ou cedido, embora possam deixar de ser pedidos e possam renunciar-se as prestações vencidas – nº1 do artigo 2008º Código Civil.
Dentro da mesma ordem de ideias, o obrigado a alimentos não pode livrar-se por meio de compensação, ainda que se trate de prestações já vencidas – nº2 do artigo 2008 CC.
O regime consagrado no artigo 2008º constituiu um desvio ao regime comum do direito das obrigações, em nome do interesse público que a obrigação de alimentos é chamada a desempenhar: uma função assistencial para cobertura das necessidades básicas da vida quotidiana, quando o alimentado não se encontra capaz de prover às suas necessidades básicas Rute Teixeira Pedro, anotação ao artigo 2008º, in “Código Civil Anotado”, Coord. Ana Prata, Vol. II, pp.911..
Encontrando-se os alimentos fixados em decisão judicial, o alimentante deverá prestá-los pela forma ali estabelecida, entendendo-se que os alimentos pagos de forma diferente podem ser vistos como uma mera liberalidade do alimentante.
Isto não quer dizer que em determinadas, específicas e excecionais, situações, se um dos progenitores vier a pagar diretamente algumas despesas essenciais dos filhos – por ex. prestação de um colégio, custo de uma cirurgia – esse custo não possa vir a ser considerado para efeitos de dedução no montante devido pelo alimentante a título de prestação alimentar, sob pena de enriquecimento do outro progenitor.
Contudo, não é qualquer despesa ou pagamento que o alimentante suporte, ainda que dele resultem vantagens para o alimentando, que poderá ser compensado com o crédito de alimentos.
O direito a uma eventual compensação do valor que suportou a mais, para além da metade que lhe competia, ao pagar mensalmente a prestação do empréstimo e respetivos encargos respeitantes à aquisição da casa de morada de família, desde janeiro de 2010 e até junho de 2014, extravasa claramente a prestação de alimentos aos filhos, pelo só poderá ser exercitado no âmbito das relações patrimoniais entre os cônjuges, em sede de partilha.

A apelação é de improceder.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pelo apelante.

Coimbra, 26 de junho de 2018