Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
7909/05.3TDLSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA
SEGURANÇA SOCIAL
DESPENALIZAÇÃO
Data do Acordão: 01/20/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – ÍLHAVO - JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 105º E 107º DO RGIT
Sumário: A alteração introduzida pela Lei 64-A/2008 de 31/12, no n.º 1 do artº 105º R.G.I.T. não se estende ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no artº 107º.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO
1. No Processo Comum Singular n.º 7909/05.3TDLSB do Juízo de Média Instância Criminal da comarca de Baixo Vouga (Ílhavo), recorre o Ministério Público e o assistente Instituto da Segurança Social, I.P do despacho da Mmª Juíza, datado de 16 de Setembro de 2009, que decidiu descriminalizar os factos imputados pelo MP, em sede de acusação pública, às arguidas CM..., Ldª e M... e não receber a acusação em causa, arquivando os autos.

2. O Ministério Público, motivando o seu recurso, conclui (em transcrição):
«1. O artigo 107.°, n.° 1, do R.G.I.T. define integralmente o tipo de abuso de confiança contra a Segurança Social e apenas remete para as penas previstas no artigo 105.°, n.ºs 1 e 5, do R.G.I.T., e não para os elementos do tipo ou condições de procedibilidade desse artigo 105°, n.ºs 1 e 5.
2. O tipo legal de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social encontra no n.° 1 do artigo 107.° do R.G.I.T. a completa descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que depende em concreto a punição que toma objectivamente determinável o comportamento proibido e objectivamente dirigível a conduta do cidadão, sem necessidade de recurso ao artigo 105º do R.G.I.T. para tal efeito.
3. A alteração ao artigo 105.°, n.ºs 1 e 5 do R.G.I.T. introduzida pelo artigo 113.° da Lei n.° 64-A/2008, de 31.12, limita-se a introduzir um novo elemento objectivo ao tipo — limitando-o à não entrega de prestações tributárias “de valor superior a € 7500”.
4. Assim, essa alteração não abrange o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, que mantém a sua tipificação autónoma e integral na previsão do artigo 107.° do R.G.I.T..
5. Impõe-se, assim, a revogação do despacho ora impugnado, proferido a fls 462 a 465, o qual, fundado no entendimento de que a sobredita alteração legislativa é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social por cuja prática as arguidas foram acusadas no despacho proferido pelo Ministério Público a fls. 388 a 392, não recebeu esta acusação e determinou o arquivamento dos autos.
Razões pelas quais, nestes termos e nos demais de direito deve o recurso
ora interposto ser julgado procedente, revogando-se o despacho proferido a fls. 462 a 465 e determinando-se o recebimento da acusação proferida a fls. 388 a 392, com o consequente prosseguimento dos autos, assim se fazendo JUSTIÇA!».

2. O assistente ISS, IP, motiva assim o seu recurso (em transcrição):
«1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho, proferida nos autos de processo comum com intervenção do tribunal singular, supra identificados, que declarou extinta a responsabilidade criminal que impendia sobre as arguidas e demandadas CM..., Ldª e M..., pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelo artigo 107.°, da Lei n.° 15/2001;
2. Considerou o Tribunal a quo que, por força das alterações introduzidas ao Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), por via do artigo 113.° da LOE de 2009, foram despenalizadas as condutas traduzidas na não entrega aos cofres da segurança social das quotizações retidas às remunerações pagas aos trabalhadores, cujo montante da prestação fosse de valor igual ou inferior a
€ 7500,00;
3. Não podemos acompanhar semelhante entendimento, na medida em que o tipo legal de crime de Abuso de Confiança contra a Segurança Social, e que se encontra tipificado no art. 107°, do RGIT, não foi alvo de modificação pela intervenção do legislador;
4. E nem tão pouco podemos admitir que o legislador tenha querido efectuar uma “equiparação de regimes” no que tange aos crimes de abuso de confiança fiscal e contra a segurança social, quando consagrou o artigo 113.° da LOE de 2009:
a)- Desde logo, e tendo por base uma apreciação teleológica, constata-se tratarem-se de crimes autónomos que tutelam bem jurídicos diversos: por um lado o Crime de Abuso Fiscal visa tutelar um bem jurídico de natureza creditória (fiscal), já o Crime de Abuso contra a Segurança Social visa tutelar a sustentabilidade do Sistema de Segurança Social e a eventualidade prestacional. Daí que uma eventual descriminalização de condutas perpetradas contra os interesses da Segurança Social equivalha a atentar contra a sustentabilidade do próprio sistema e contra a ideia de justiça e solidariedade social;
b)- Por outro lado, e se efectuarmos um excurso histórico e sistemático aos diplomas que contemplam estes dois tipos legais de crime, facilmente chegamos à conclusão que com as sucessivas alterações legislativas que foram sendo efectuadas neste domínio, ressalta a preocupação do legislador em reforçar a autonomia entre ambos. Na verdade, não só os bens jurídicos tutelados são diferentes, como também o são os sujeitos prevaricadores e as entidades lesadas;
c)- Por fim, e de acordo com uma análise puramente literal, constata-se que a remissão prevista no artigo 107 para o artigo 105.° do RGIT apenas diz respeito à moldura penal aí consagrada. Ao invés do que poderíamos ser levados a pensar, não pretendeu o legislador remeter para o tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal (nem para punição propriamente dita), porquanto consagrou autonomamente os elementos objectivos e acordo subjectivos e subjectivos que compõem o crime de Abuso de Confiança contra a Segurança Social no artigo 107.°, do RGIT.
d)- Se admitirmos que o legislador se soube exprimir, ao não alterar o corpo normativo do art. 107.°, n.° 1, do RGIT, fê-lo de caso pensado, porquanto pretende continuar a punir essas condutas, não cabendo ao intérprete desconfiar da bondade do próprio legislador.
Nestes termos e nos melhores de justiça, concedendo provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogando o douto despacho recorrido, farão V. Exªs a costumada Justiça».

4. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido de que os recursos merecem provimento, seguindo em grande parte a argumentação do Ministério Público de 1ª instância.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por deverem ser os recursos aí julgados, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea b), do mesmo diploma.

II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, a única questão a resolver consiste em saber se tem aplicação, em sede de abuso de confiança contra a segurança social, o limite de 7.500€ estabelecido no n.° 1 do artigo 105° do RGIT na redacção dada pela Lei n.º 64-A/2009 de 31.12 (assente que a razão de ser de ambos os recursos é exactamente o mesmo).
Dito de outro modo, urge descortinar se a alteração introduzida no n.º 1 do artº 105º se estende ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no artº 107º, ou seja, se, no caso deste crime, também se restringiu a esfera de punição às contribuições devidas de montante superior a 7.500€.

2. O despacho recorrido tem o seguinte teor:
«O Tribunal é competente.
Não há nulidades, ou excepções, mas há uma questão prévia a apreciar. o que se passa a fazer-se.
As arguidas CM..., Ldª e M... encontram-se acusadas pela prática em autoria material e na forma continuada de crime de abuso de confiança contra a segurança social p.p. artigo 107°. n°s 1 e 2 p.p. artigo 105°. N.° 1 da Lei 15/2001.
Conforme resulta da acusação deduzida, está em causa nos autos a eventual retenção de contribuições para a segurança social relativas aos anos de 2003 e 2004, com individualização das prestações em falta.
Conforme também resulta da acusação nenhuma das prestações individualmente considerada atinge os 7.500€.
A Lei 64-A/2008 de 31/12 (Lei que aprovou o OE) deu nova redacção ao artigo 105 do RGIT a qual passou a ser a seguinte:
1. “Quem não entregar à administração tributária total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a 7.500€ deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias”.
A questão que se põe é a de saber se tem aplicação em sede de abuso de confiança contra a segurança social o limite de 7.500€ estabelecido no n.° 1 do artigo 105° do RGIT na redacção dada pela Lei 64-A/2009 de 31.12.
Efectivamente, após a entrada em vigor da referida Lei a jurisprudência tem sido unânime, isto é, tem considerado que com a nova redacção do n.º 1 do RGIT, introduzida pela Lei 64-A/2008 de 31-12, não se preenche o crime de abuso de confiança fiscal se cada uma das prestações tributárias não entregues for de valor não superior a 7.500€, ainda que o valor de todas elas exceda esse montante (cfr. por todos Ac. RP de 25.02.2009 in www.dgsi.pt).
Mas a unanimidade deixa de existir quando estão em causa as prestações devidas à segurança social.
É que se há acórdãos que o defendem (Ac. Relação de 25.02.2009; Ac. RP de 27.05.2009 — Exmª Relatora Maria do Carmo Dias) há outros que o não aceitam, que são, aliás, a maioria (Ac. RP também. coincidentemente, de 27.05.2009 - Exma Relatora Maria Elisa Marques, RP de 20.04.2009, RC de 04.03.2009, todos em www .dgsi.pt).
Entendemos, modestamente, que a razão está do lado dos primeiros.
É que, como, superiormente, é dito no voto de vencido proferido no Acórdão RP de 27.05.2009 em que foi relatora a Exma Desembargadora Maria Elisa Marques, “o artigo 107° do RGÍT ao remeter para as penas previstas nos n°s 1 e 5 do artigo 105º não afasta a integração dos valores de referência contidos neste ilícito. Antes o pressupõe”.
Ora esta é a interpretação que melhor responde à evolução legislativa na matéria.
Desde o DL 140/95 de 14.06 que alargou o campo de aplicação do RJIFNA às infracções no âmbito dos regimes de segurança social, sempre se verificou uma “aproximação/sobreposição” aos tipos correspondentes de natureza fiscal, quer pela técnica legislativa usada, quer pelo crescimento nas áreas de remissão para os crimes de natureza fiscal, com identidade do regime punitivo.
Acresce que tem sido preocupação do legislador em sucessivas leis de orçamento do Estado “elevar o patamar da criminalização das condutas, criando novas possibilidades de extinção do procedimento criminal”.
A interpretação que defende que o abuso de confiança contra a segurança social está arredada deste entendimento, é meramente literal e agrava, inexplicavelmente, o crime de abuso de confiança contra a segurança social, o que o legislador manifestamente não quis.
Como ensina o Professor Manuel Andrade, de forma magistral e intemporal: “não há dúvida de que as palavras da lei podem comportar, e em regra comportam, diversos pensamentos. Mas nem todos têm (...) a mesma legitimidade. Um deles representará a significação natural imediata, espontânea dos dizeres legais; outro uma significação artificiosa ou arrevesada (...) Um deles sente-se como que à vontade dentro do texto legal; outro só lá se aguenta com certo mal estar (... )“ (Cfr. Ensaio sobre a Teoria de interpretação das Leis, 2 edição, Arménio Amado, Editor Sucessor, Coimbra. 1963).
Ora não há dúvida que uma interpretação “crassamente positivista” e “estritamente literal” (Prof. F. Dias) é de rejeitar, porque contende com o sentido do princípio da legalidade que exige que a interpretação “seja teleologicamente comandada e funcionalmente justificada” — cfr. voto de vencido no Ac. RP de 27.05.2009.
Nos termos do artigo 2° do Código Penal, o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número de infracções, assim se consubstanciando o princípio da lei mais favorável.
Considerando, portanto, que a nova redacção do artigo 105° do RGTT é também aplicável à situação dos autos e que, por essa razão, os factos imputados às arguidas se encontram descriminalizados, não se recebe a acusação deduzida contra CM.... Lda e M… e determina-se o arquivamento dos autos.
Sem custas.
Notifique e deposite».

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
3.1. Vêm o Ministério Público e o assistente recorrer do despacho judicial que considerou descriminalizada a conduta criminal das duas arguidas, não tendo, assim, recebido a acusação dos autos.
É sabida a disputa jurisprudencial existente neste momento nesta matéria.
E sobre ela tomaremos partido a favor da tese dos dois recursos, como tem sido quase uma constante no âmbito deste Tribunal da Relação.
O despacho recorrido assenta nos seguintes argumentos, caros a alguma jurisprudência superior:
· deve ser judicialmente reconhecido que o limite dos €7.500,00 a que alude o n.º 1 do artigo 105º do RGIT [aprovado pela Lei 15/2001 de 5/6, na redacção introduzida pelo artigo 113º da Lei 64-A/2008 de 31/12] é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no artigo 107º do mesmo RGIT;
· a remissão efectuada pelo n.º 1 do artigo 107º para os n.º 1 e 5 do RGIT não pode ser interpretada literalmente no sentido de que a remissão seria tão somente para as penas: se assim fosse existiria uma contradição insanável na estatuição do n.º 1 do artigo 107º uma vez que as penas previstas nos n.º 1 e 5 do artigo 105º são distintas – ao contrário, a remissão é para as penas aplicáveis face aos montantes referidos nos n.º 1 e 5 do artigo 105º, servindo estes montantes para delimitar as condições de aplicação das respectivas penas, de sorte que foi intenção deliberada do legislador manter a equiparação de regimes punitivos em função dos montantes não entregues, atribuindo igual censurabilidade penal ao crime de abuso de confiança contra a segurança social e ao crime de abuso de confiança fiscal.
· do ponto de vista de uma interpretação objectivista da lei, configuraria uma incongruência intra-sistemática (violadora do princípio da unidade e coerência do sistema jurídico) a qualificação de ambos os tipos de crime com base na não entrega de prestações do mesmo montante (superior a €50.000,00) e a punição dos tipos base na omissão de entrega de prestações de montantes substancialmente diferentes (superior a €7.500,00 e a €0,00, respectivamente).

3.2. Antes da alteração introduzida pela Lei n.º 64-A/08, de 31/12, REZAVA assim o n.° 1, do artigo 105º, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 5/6):
«1. Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, a prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar, é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias».
Entrou, entretanto, em vigor a Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2009, que introduziu alterações ao Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), nomeadamente no crime de abuso de confiança fiscal.
A alteração consagrada no artigo 113° da mencionada Lei introduziu um limite ao valor da prestação tributária ali considerada, passando a exigir-se que seja ela de valor superior a 7500 euros e revogou ainda o n.º 6 daquele artigo 105º, consignando-se agora que:
“Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a €7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”.
Por sua vez, o artigo 107º do RGIT, que não sofreu qualquer alteração pela Lei n.º 64-A/08, prescreve:
«1. As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do artigo 105º.
2. É aplicável o disposto nos n.ºs 4, 6 e 7, do artigo 105º».
Temos por adquirido que a Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, ao introduzir este limite[, descriminalizou (consistindo tal descriminalização na forma radical de extinção do procedimento criminal, pela passagem do facto ao mundo naturalístico, operando tanto por declaração expressa do legislador como por manipulação dos elementos da factualidade típica) as condutas omissivas de entrega de prestações fiscais de montante igual ou inferior a €7.500 (tem-se entendido que este limite se reporta a cada uma das prestações individuais, que foram declaradas e não pagas à administração tributária, daqui derivando que não preenche o crime de abuso de confiança fiscal se cada uma das prestações tributárias não entregues for de valor não superior a €7.500, independentemente da soma do seu valor total – Cfr. ainda o n.º 7 do artigo 105º que dá força a esta tese já pacífica entre nós).
A questão que está em cima da nossa mesa é a de descortinar se a alteração introduzida no n.º 1 do artº 105º se estende ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no artº 107º, ou seja, se, no caso deste crime, também se restringiu a esfera de punição às contribuições devidas de montante superior a 7.500€.
É ESTA A QUESTÃO A RESOLVER, já o sabemos.

3.3. A resposta à questão formulada terá de passar, não o ignoramos, por via interpretativa, assente que ela tem vindo a suscitar divergências de base na jurisprudência, originadas, mais uma vez, não o cansamos de o dizer, pela absoluta imperfeição técnica, a nível legislativo, não acatando o seu primeiro dever que deve ser o da clareza e da inequivocidade do estatuído em forma de lei.
Temos como certa a asserção de que a interpretação a partir da lei não se deve cingir à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (cfr. artº 9º, n.º 1, do CC), e ainda que na fixação e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (cfr. artº 9º,n.º 3, do CC).
É certo que a nova redacção conferida ao artigo 105º n.º1 do RGIT pelo artigo 113º da Lei n.º 64-A/2008, de 31.12.2009, introduziu uma (mais uma) condição de punibilidade.
Parece-nos, contudo, lida a remissão plasmada na parte final do artigo 107º n.º 1 do RGIT para o artigo 105º do mesmo diploma legal, que a mesma se restringe única e exclusivamente à aplicabilidade das molduras penais previstas no artigo 105º, n.ºs 1 e 5 do RGIT e ao preceituado nos seus n.ºs 4, 6 e 7, não abrangendo a descrição da conduta que preenche a infracção criminal, ou seja, a sua previsão, «Tatbestand”, na expressão alemã)..
De resto, tal é concordante com o facto de as condutas de abuso de confiança (fiscal) ora despenalizadas, terem passado a constituir ilícito contra-ordenacional, o que não se passou no domínio do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, ficando as mesmas, se fosse possível ter como boa a interpretação propugnada pelo despacho recorrido, reduzidas à total impunidade, o que, em tempos de redobrados esforços no sentido da sustentabilidade do sistema e do nosso Estado Previdência (tão em ruptura), não se afigura, de todo, que possa ter sido opção do legislador (como se refere num dos acórdãos do TC abaixo referenciado, «numa altura em que se discute, se questiona e se pretende essencialmente assegurar e defender a sustentabilidade da segurança social, objectivo que ganhou foros de princípio fundamental do Estado Previdência e como garante de satisfação do pagamento das prestações sociais e reformas dos seus beneficiários»).
Repete-se: a remissão a que alude o artigo 107º n.º1 é apenas referente à pena prevista nos n.ºs 1 e 5 do artigo 105º do RGIT, sendo que o tipo legal de crime – elementos objectivos e subjectivo do tipo – é autonomamente previsto no n.º 1 do artigo 107º.
Por seu lado, o n.º 2 do artigo 107º apenas faz remissão para o disposto nos n.ºs 4, 6 e 7.
Não tendo sido expressamente alterada a redacção do n.º 1 do artigo 107º, torna-se claro que o tipo legal se mantém com a redacção original do RGIT.
Defende-se que houve aqui, em 2008, um lapso do legislador.
Mas o que é certo que não compete ao julgador/intérprete alterar a redacção legal quando a interpretação não tiver um mínimo de correspondência na letra da lei.
Para nós, e para aqueles que defendem esta tese, contrária à do despacho recorrido (tese que não pode ser considerada “crassamente positivista”, sendo antes a tese contrária facilitista e indutora de uma estranha e indesejável impunidade), a omissão da previsão em relação ao tipo legal de crime previsto no artigo 107º do RGIT foi, de facto, intencional (assente que se o legislador, apesar da sempre propagada criticável técnica legislativa, pretendesse aplicar a alteração ao crime de abuso de confiança contra a SS, tê-lo-ia expressamente determinado, não tendo feito).
Na realidade, tais DOIS tipos legais de crime não só protegem bens jurídicos diferentes como têm previsões especiais e diversas (exactamente porque o artigo 107.° tutela o erário da Segurança Social, numa lógica de afectação de receitas a fins específicos de beneficio, e de necessidade de garantia do respectivo equilíbrio financeiro, enquanto o artigo 105.º, incide sobre a receita que o Estado se propõe cobrar para satisfação de necessidades indiferenciadas)..
Caso assim não se entendesse, não faria sentido a previsão legal do crime constar de dois artigos diferentes, podendo um só e único preceito legal prever a situação de abuso fiscal e de abuso à Segurança Social.
Ora, tais tipos legais foram, desde sempre, diferenciados.
Por outro lado, e como já aqui se entendeu, não prevê o RGIT a imputação a título de contra-ordenação para o crime de abuso de confiança à Segurança Social, à semelhança do que acontece com o artigo 114º do referido diploma legal.
O que significa que, caso se considerasse aplicável, aqui, a descriminalização, a omissão da entrega das quantias devidas até €7.500 ficaria totalmente sem qualquer tutela, seja como ilícito penal, seja como ilícito contra-ordenacional.
Estando em causa, como acima se deixa opinado, tipos legais autónomos que, sob diferente teleologia, pretendem tutelar bens jurídicos diferentes, o que pode coarctar o legislador na adopção das medidas adequadamente diferenciadas relativamente aos diferentes interesses subjacentes?
Defendeu-se no Acórdão n.º 242/09 de 12.05.2009 do Tribunal Constitucional que:
«…. cabe no âmbito da liberdade de conformação do legislador a determinação das condutas que devem ser criminalizadas. Necessário é, naturalmente, que a opção se não faça em violação das regras princípios constitucionais relevantes na matéria».
Adiantou o Acórdão n.º 1146/96 do mesmo Tribunal que: «a Constituição não contém qualquer proibição de criminalização, e, observados que sejam certos princípios, como sejam o princípio da justiça, o princípio da humanidade e o princípio da proporcionalidade […], o legislador goza de ampla liberdade na individualização dos bens jurídicos carecidos de tutela», acabando por concluir que «as condutas incriminadas (actualmente) pelos artigos 105º (abuso de confiança fiscal) e 107º (abuso de confiança contra a segurança social) põem em causa interesses de tal forma relevantes que legitimam a opção pelo legislador».
Escreve-se lucidamente no Acórdão da Relação de Lisboa de 20/7/2009:
«É verdade que o legislador não levou em devida conta que o n.º 6 do artigo 105º foi expressamente revogado E essa é a única conclusão que se pode retirar deste manifesto lapso do legislador – ou seja, que foi, de facto, revogado tal n.º 6., acabando por manter a remissão para o citado n.º 6 operada pelo n.º 2 do artº 107, ou seja, manteve uma remissão para uma norma revogada (havendo que fazer uma interpretação abrogante daquela remissão).
Mas esta circunstância, conforme maioritariamente tem vindo a ser entendido pela jurisprudência, não pode conduzir a outra conclusão senão a de que foi intenção do legislador não querer alterar o crime de abuso de confiança fiscal contra a segurança social, designadamente, não querer tornar extensível aquele limite de €7.500 ao crime de abuso de confiança fiscal.
Tanto assim que nem o reconstruiu, não alterando em nada o desenho da factualidade típica.
Por outro lado, ao manter o mesmo regime punitivo, apesar do limite dos €7.500 introduzido no n.º 1 do artº 105º, poderia inculcar a ideia que o legislador teria querido estender aquele limite também aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social para manter a identidade de punições que sempre se verificou.
Mas não nos parece que seja um elemento de peso capaz de afastar a interpretação que resulta logicamente do elemento literal já analisado porque a verdade é que os tipos legais em causa são autónomos, havendo razões para manter tal diferenciação ao nível do regime punitivo.
E conforme vem referido no estudo do Exmº Desembargador do Tribunal da Relação de Guimarães, Dr. Cruz Bucho, a propósito da autonomia deste tipo de crime refere “…o diferente limite mínimo a partir do qual a conduta é punível, que no crime de fraude fiscal é de €15,000 (artigo 103º, n.º 5, na redacção que lhe foi conferida pelo artigo 60º da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro) e no crime de fraude contra a segurança social se mantém em €7.500 (artigo 103º, n.º 2), a consagração de um regime sancionatório contra-ordenacional especial previsto em legislação extravagante (ressalvado pelo n.º 2 do artigo 1º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho e reafirmado na parte final da alínea d) do artigo 1º do RGIT), a circunstância de a falta de entrega de prestação tributária igual ou inferior a €7,500 constituir contra-ordenação prevista no artº 114º do RGIT enquanto a falta de entrega de quotizações deduzidas à segurança social não constituir contra-ordenação social”.
Por último, como razão distintiva destes crimes, refira-se o fim específico das contribuições para a segurança social, de que não beneficiam sequer todos os cidadãos, constituindo algumas das prestações sociais a contrapartida das quotizações dos trabalhadores, sendo aqui o bem jurídico tutelado o património da Segurança Social, pelo que se atendermos ao bem jurídico protegido e ao fim específico das contribuições, não vemos razão justificativa para o legislador despenalizar as omissões de entregas de contribuições até €7.500. E se no caso do abuso de confiança fiscal se compreende que o Estado, por razões de eficiência, retire dos tribunais estes processos de menor gravidade, transferindo o combate à evasão fiscal através do procedimento contra-ordenacional, essa justificação no que se refere ao crime de abuso de confiança contra a segurança social não colhe pelas razões específicas já aludidas e até de sustentabilidade da Segurança Social».
O aludido estudo sobre «A Lei do OE 2009 e o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social» refere ainda que:
«Este reforço da autonomia do regime punitivo das infracções contra a Segurança Social funda-se e justifica-se na necessidade premente de defesa da sustentabilidade da segurança social fortemente ameaçada, em Portugal como na generalidade dos países europeus, pelo efeito conjunto de várias situações, nomeadamente o crescente envelhecimento da população, a redução da taxa de natalidade, o aumento progressivo do período contributivo (amadurecimento do sistema) e o crescimento das pensões a um ritmo superior ao das contribuições (cfr., v.g., o “Relatório Técnico sobre a Sustentabilidade da Segurança Social”, apresentado pelo Governo aos parceiros sociais, em Maio de 2006), as quais fazem perigar a própria manutenção do Estado Social.
Assim, quanto ao crime de abuso de confiança fiscal compreende-se que, por razões de eficiência, se retirem dos tribunais, contribuindo deste modo para o seu descongestionamento, processos de natureza bagatelar por não se justificar que o Estado afecte recursos humanos e materiais na perseguição criminal de ilícitos fiscais em que a prestação não entregue é igual ou inferior a €7500, mas em que fica ressalvada a luta contra evasão fiscal (onde, de resto, se têm vindo a realizar grandes progressos), desde logo por via do procedimento contra-ordenacional (em que o valor mínimo da coima aplicável corresponde ao valor da prestação em falta, se o arguido for pessoa singular, e duas vezes esse valor, se o arguido for pessoa colectiva - cfr. artigos 114º, n.º1 e 26º, n.º1, ambos do RGIT).
Mas, a mesma justificação não colhe no que se refere ao abuso de confiança contra a segurança social no que toca à não entrega das quotizações deduzidas de valor igual ou inferior a €7500, já que o orçamento do IGFSS assenta ainda primordialmente nas receitas advenientes das contribuições resultantes dos descontos nas remunerações devidas – cfr. artigos 54º, 90º, n.º 2 e 92º todos da Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro, que aprova as bases gerais do sistema de segurança social e Gomes Canotilho-Vital Moreira, CRP Anotada, 4ª ed., vol. I, Coimbra, 2007, págs. 817- 818 e 1105-1106».
Aluda-se ainda a um argumento de ordem sistemática.
Na realidade, se atendermos à inserção sistemática do art. 113° da Lei 64-A/2008, de 31/12, facilmente constatamos que se integra na sua secção II -"Procedimento e Processo Tributário" do Capítulo XI -"Procedimento, processo tributário e outras disposições", enquanto as alterações legislativas que o OE contempla para o regime da Segurança Social se inserem no seu Capítulo V -"Segurança Social" (art.s 55° e seguintes), pelo que seria neste âmbito que o legislador poderia proceder a alterações aos crimes contra a segurança social, o que deliberadamente não fez.
Em conclusão:
A opção política subjacente à escolha do legislador não viola os princípios, constitucionalmente consagrados, da legalidade, tipicidade, proporcionalidade e adequação.
Ora, como se escreveu em Acórdão por nós assinado como adjunto, «se nos crimes fiscais, os deveres impostos aos contribuintes convergem para a revelação da real capacidade contributiva de cada um e de todos os cidadãos obrigados a pagar impostos, tendo em vista a realização da igualdade e justiças tributárias, reconduzindo-se assim a um mais amplo bem jurídico tutelado, qual seja "a confiança da administração fiscal na verdadeira capacidade contributiva do contribuinte", já no crime de Abuso de Confiança contra a Segurança Social, não é o Estado/Administração Fiscal o destinatário desses montantes, mas sim o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, com personalidade jurídica e património próprio, dotado de autonomia administrativa e financeira para a gestão dos interesses de segurança social que lhe estão cometidos defender e prosseguir, e cujo orçamento próprio assenta fundamental e prioritariamente nas receitas provenientes das prestações sociais resultantes dos descontos efectuados, sendo pois esta efectiva arrecadação o bem jurídico tutelado».
O legislador está legitimado para «…eleger dentre as acções ou omissões violadoras de obrigações fiscais, aquelas cuja criminalização postula a cominação de penas de prisão…», mas o seu critério «…terá necessariamente que passar pela ressonância ética dos bens e interesses a proteger, pela gravidade objectiva e subjectiva de tais comportamentos e pela lesão ou perigo de lesão dos valores a preservar» – Alfredo José de Sousa “ Direito Penal Fiscal – uma prospectiva” - DPEE, Vol II Coimbra 1999, pág 160.
Ora, não equipare o intérprete aquilo que o legislador, lucidamente, quis diferenciar!
A finalizar, diremos que está vedado ao intérprete fazer uma aplicação analógica ou extensiva da lei penal, ainda que a favor do arguido, quando no caso, diremos nós, como o presente, tal interpretação não encontra assento mínimo nas palavras da lei, antes implicando um «criar ou inovar direito», completamente inadmissível em Direito Penal.
E o princípio da legalidade nos agradecerá…
Isso mesmo decidiu muito recentemente o Acórdão do STJ, datado de 17/12/2009 (Pº 331/01.2TAVCD.S1), relatado pelo Insigne Juiz Conselheiro Armindo dos Santos Monteiro – aí se entendeu que:
I- Remanesce do elemento literal e da interpretação sistémica de preceitos, atinente à recente alteração ao artigo 105º do RGIT, que só é imposta pena quando o valor das prestações tributárias é superior a € 7500.
II- Ao contrário, quanto às prestações sociais, não se estabelece qualquer limitação pecuniária na norma de previsão do artigo 107º do RGIT.
III- Se fosse de referenciar como obstáculo punitivo do crime de abuso de confiança contra as instituições de Segurança Social o segmento atinente ao valor em débito, transpondo-o sem mais para o artigo 107º, estar-se-ia a introduzir no tipo uma circunstância que aí não figura, construindo-se, pura e simplesmente, um tipo legal novo, inserto num diploma de aprovação do Orçamento Geral do Estado, acabando por se arvorar o legislador orçamental em legislador penal, em postura próxima da usurpação de poderes.

3.4. Entendemos assim, concordando com a posição dos dois recorrentes, e na esteira do entendimento perfilhado por inúmeros arestos dos nossos tribunais superiores [cfr., a título meramente exemplificativo, todos os acórdãos, a que tivemos acesso, redigidos nesta Relação, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/3/2009, referenciado nas alegações do MP, o Acórdão do Tribunal da Relação de Porto de 23/9/2009 (267/02.0IDBRG-B.P1) e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20/7/2009 (7867/2008-3)], que a despenalização prevista no n.º 1 do artigo 105º do RGIT não é aplicável aos crimes de abuso de confiança à Segurança Social, ou seja, que o limite de 7500 euros consagrado no n.º 1, do artigo 105º, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), na redacção que lhe foi dada pelo artigo 113º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, não é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no artigo 107º, do RGIT, inexistindo a despenalização sustentada no despacho recorrido.

III – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em conceder provimento aos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo assistente ISS, IP, revogando o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que receba a acusação proferida nos autos, ordenando o normal prosseguimento do processo para julgamento.

Sem tributação.

Coimbra, _______________________________
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)

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(Paulo Guerra)



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(Vieira Marinho)