Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1051/09.5TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: CHEQUE
RECUSA DE PAGAMENTO
REVOGAÇÃO
SACADOR
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 10/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU 3º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 29º DA LUC
Sumário: I- A recusa de pagamento de cheque apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29º da LUC, com fundamento em ordem de revogação do sacador, é lícita quando existir a probabilidade séria da existência de justa causa para tanto.

II - A instituição sacada que recusa ilicitamente o pagamento de cheque apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29º da LUC, com fundamento em ordem de revogação do sacador, só está constituída na obrigação de indemnizar o portador do cheque pela quantia nele inscrita quando a conta sacada dispuser de fundos suficientes para o respectivo pagamento.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A...., Lda, com sede na ..., Viseu, propôs a presente acção declarativa com processo sumário contra B..., Lda, com sede em ..., Albufeira, e contra o Banco C..., SA, com sede na rua ..., Porto, pedindo a condenação da primeira ré no pagamento da quantia de € 15 895,25, e a condenação da segunda ré no pagamento da quantia de € 14 801,06, ambas acrescidas de juros moratórios a contar da citação até integral pagamento.

Em abono das suas pretensões alegou que, no exercício da sua actividade comercial, vendeu à primeira ré diverso material; que para pagamento do respectivo preço a primeira ré entregou-lhe 8 cheques; que os cheques, apresentados a pagamento, foram devolvidos com a indicação de “recusado por falta ou vício na formação da vontade”; que a primeira ré deu ordem à segunda ré para não pagar os cheques; que ao aceitar o pedido de revogação, a segunda ré violou a primeira parte do artigo 32º da Lei Uniforme sobre Cheques [LUCH] e tornou-se responsável pelas perdas e danos causados à autora, as quais equivalem ao montante dos cheques, acrescidos das despesas com a sua devolução e dos juros moratórios a contar da citação.

Apenas o C... contestou a acção, concluindo pela improcedência da acção em relação a si. Na sua defesa, alegou que devolveu os cheques de acordo com as instruções da sociedade sacadora e de acordo com as instruções do Banco de Portugal constantes do Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária [SICOI], a que deve obediência; que a falta ou vício de vontade invocada pela sacadora constituía justa causa de revogação do cheque; que em matéria de prejuízos a autora nada alegou em concreto; que aquando da apresentação dos cheques a pagamento a conta sacada não dispunha de fundos para os pagar; que mesmo que os cheques tivessem sido devolvidos por falta de provisão nada garantia que a importância inscrita nos cheques viesse a ser recebida.    

O processo prosseguiu os seus termos e após a audiência de discussão e julgamento e a resposta à matéria de facto foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção:
1. Condenou a ré B..., Lda a pagar à autora a quantia de € 14.801,06 (catorze mil oitocentos e um euros e seis cêntimos), bem como os juros vencidos à taxa legal, contados sobre cada uma das quantias apostas nos cheques desde a apresentação dos cheques a pagamento, sem ultrapassar os 1 094,19€ (mil e noventa e quatro euros e dezanove cêntimos) peticionados a esse título, e os vincendos até integral pagamento;
2. Absolveu B..., Lda da parte sobrante do pedido de pagamento de juros vencidos, na medida em que sejam inferiores aos peticionados 1 094,19€ (mil e noventa e quatro euros e dezanove cêntimos);
3. Condenou o Banco C..., SA a pagar à autora a quantia de € 14.801,06 (catorze mil oitocentos e um euros e seis cêntimos), bem como os juros à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Para assim decidir a sentença entendeu, em síntese, que a revogação do cheque pelo subscritor só se justificava se existisse uma justa causa para tanto, considerando-se como tal o furto, o roubo, o extravio, a coacção moral, a incapacidade acidental ou qualquer outra situação em que se manifestasse a falta ou vício na formação da vontade desde que devidamente fundamentados; que a recusa de pagamento dos cheques pelo réu com base na declaração do emitente “falta ou vício na formação da vontade”, não factualmente demonstrada, não constituía causa relevante do seu não pagamento, mas antes uma revogação sem justa causa; que ao recusar o pagamento do cheque o Banco praticou um acto ilícito por violação do disposto no artigo 32º, da Lei Uniforme Sobre Cheques, constituindo-se em responsabilidade civil perante o portador pelos danos que lhe tiverem sido causados; que ao ter recusado o pagamento dos cheques por falta ou vício da vontade e não por falta de provisão, o réu incumpriu a obrigação de notificar o sacador para regularizar a situação nos trinta dias seguintes (depositando as quantias que os cheques titulavam ou entregando-as directamente á autora, nos termos do artigo 1º-A do Decreto-lei n.º 454/91, de 28/12, aditado pelo Decreto-lei n.º 316/97, de 19/11; que o Banco é responsável pelo pagamento dos cheques e pelos juros à taxa legal desde a citação.

O Banco C... não se conformou com a sentença e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo a revogação e a substituição dela por outra que o absolvesse do pedido.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. O Banco apelante agiu no transe de acordo com a ordem nesse sentido recebida da co-demandada, emitente dos cheques ajuizados, tendo, previamente, questionado a sua gerente sobre a razão de ser da revogação ordenada, que a confirmou.
2. Não lhe cabendo sindicar as razões que haviam levado a sua cliente a tomar essa iniciativa, que, para mais, se lhe afiguraram aceitáveis.
3. Os cheques em causa foram apresentados a pagamento em instituição congénere e não lhe foram fisicamente presentes, o que explica que não contivessem, no seu verso, a indicação da razão, concreta, da sua devolução.
4. O Banco C... agiu na circunstância de acordo com as instruções dimanadas pelo Banco de Portugal e contidas no SICOI, a que deve estrita obediência, como é reconhecido e pacífico.
5. Logo, não praticou qualquer conduta ilícita, nem agiu com dolo, ou, sequer, culpa.
6. Na verdade, não faz sentido, nem se compreende e aceita, que uma determinada conduta, por um lado, corresponda ao determinado pelo Banco de Portugal e, por outro, possa a ser/seja rotulada de ilícita e culposa.
7. Como original e estranhamente entendeu o Magistrado a quo, já que, como é bom de ver, são duas “realidades” opostas e inconciliáveis.
8. Por outro lado, esses cheques eram pré-datados, o que afastava, de imediato, a possibilidade do seu accionamento por via criminal e eliminava a pressão sobre a devedora que, por essa via, poderia advir.
9. A conta sobre que foram emitidos não dispunha de provisão para os pagar, aquando da sua sucessiva apresentação a pagamento, ou ulteriormente.
10. Ao passo que a B... foi, de seguida, declarada insolvente, com imediato encerramento do processo por inexistência de activo susceptível de liquidação.
11. Inexistindo provisão na conta sobre que os ditos cheques foram emitidos, como está assente, não pode estabelecer-se, nem, em bom rigor, existe, uma relação de causalidade ente a actuação do apelante, dita, injustamente, ilícita e o alegado prejuízo da apelada correspondente ao valor dos cheques.
12. O que significa que a A... também não demonstrou, como igualmente lhe competia, que a acção do Banco C... tenha sido causa adequada do prejuízo que invoca, e, tão-pouco, que este correspondesse ao montante aposto nos aludidos cheques.
13. Já que nenhuma prova foi oferecida nesse sentido, como também nada pode garantir (bem pelo contrário …) que, se o apelante tivesse agido de forma diferente, designadamente, devolvendo os cheques em causa por falta de provisão, aquela sociedade seria ressarcida do prejuízo que invoca.
14. Ou seja, não se verificam os pressupostos da responsabilidade civil delitual, invocada pela apelada como (propalado) alicerce do seu pedido.
15. Já que a conduta do Banco C... no transe obedeceu às regras divulgadas pelo Banco de Portugal sobre o tema, ditadas no âmbito do seu poder de supervisão do sistema bancário nacional, logo foi inteiramente lícita e insusceptível de suscitar/provocar qualquer censura ou reserva.
16. E não produziu, nem podia produzir, os prejuízos que a apelada agora invoca, cuja demonstração lhe cabia e não assegurou, melhor, nem sequer tentou.
17. Perante o quadro traçado, a condenação do Banco C... no pedido formulado é inteiramente descabida e injusta.
18. Ao entender de forma diversa, o Magistrado a quo violou o disposto nos artigos 483, 487 e 563 do CC, 25 e 40 da LUC, 11, 3, do DL 361/97, de 19.11. e Anexo à Instrução nº 25/03, de 15.10., do Banco de Portugal (SICOI).

A autora/apelada respondeu, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.


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As questões suscitadas pelas conclusões do recurso são as seguintes: em primeiro lugar, trata-se de saber se a sentença errou ao decidir que o recorrente, por ter devolvido os cheques por “falta ou vício na formação da vontade”, cometeu um facto ilícito; em segundo trata-se de saber se a sentença errou ao julgar que o Banco era responsável pelo pagamento das quantias indicadas nos cheques.

Apesar de o recorrente se ter insurgido, no corpo da alegação, contra a resposta negativa dada ao ponto n.º 6 da base instrutória, não constitui questão a resolver por este tribunal a impugnação da decisão proferida sobre o referido ponto da base instrutória. Com efeito, resulta do n.º 3 do artigo 684º do CPC, ao dispor que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, que o objecto do recurso é definido de modo definitivo pelas conclusões. Dado que não figura nas conclusões do presente recurso qualquer menção à decisão proferida sobre o ponto n.º 6 da base instrutória, segue-se daqui que esta decisão está fora do objecto do recurso.


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Não tendo havido impugnação da decisão de facto e não havendo razões para alterar oficiosamente a matéria assente, consideram-se provados os seguintes factos discriminados na sentença:
1. Os cheques sacados sobre a conta nº 36001890001 do “Banco C..., S.A.”, com data de emissão de 12/09/2008, com o número 2559896309 e com o montante de € 1.181,94; com data de emissão de 22/09/2008, com o número 1659896310 e com o montante de € 1.181,94; com data de emissão de 26/09/2008, com o número 5959896316 e com o montante de € 1.472,37; com data de emissão de 08/10/2008, com o número 7759896314 e com o montante de € 2.580,42; com data de emissão de 10/10/2008, com o número 5759896327 e com o montante de € 2.149,84; com data de emissão de 12/10/2008, com o número 9359896323 e com o montante de € 1.934,86; com data de emissão de 14/10/2008, com o número 4859896328 e com o montante de € 2.149,84; com data de emissão de 18/10/2008, com o número 3959896329 e com o montante de € 2.149,84, foram apresentados a pagamento nas datas de, respectivamente, 15/09/08, 23/09/08, 29-09-2008, 9-10-2008, 13-10-2008, 15-10-2008, 15-10-2008, 21-10-2008.
2. Todos os cheques referidos em 1) vieram devolvidos, respectivamente, em 16-09-2008, 24-09-2008, 30-09-2008, 10-10-2008, 14-10-2008, 16-10-2008, 16-10-2008, 22-10-2008, com a indicação de “recusado o pagamento deste cheque por falta ou vício na formação da vontade”.
3. Tais devoluções ocorreram em consequência de a primeira ré ter dado ordem de revogação dos referidos cheques à segunda ré.
4. Em 2-09-2008, a primeira ré solicitou a "anulação" dos cheques através de comunicação escrita que então dirigiu ao Banco C....
5. No exercício da sua actividade comercial, a autora vendeu e entregou à primeira ré, no interesse e a solicitação desta, diverso material tal como, recuperadores, fogões, tubos, espelhos, aros, nas quantidades, qualidades e preços melhores descriminados nas facturas nº 201560/08, 201591/08, 201489/08 e 201375/08, nos montantes de 1934,86€, 6.449,52€, 4.052,79€, 2.363,89€, respectivamente.
6. Nas referidas datas de devolução dos cheques, a conta sobre a qual estes estavam sacados e referida em 1) não apresentava provisão.
7. A segunda ré acedeu e cumpriu o referido em 4).
8. A autora nunca recebeu a quantia titulada pelos cheques.
9. A autora interpelou verbalmente a primeira ré para obter dela a satisfação do seu crédito.
10. Ao devolver os cheques, a segunda ré respeitou as instruções dimanadas do Banco de Portugal.
11. Aquando da apresentação a pagamento dos 8 cheques, a conta que a sacadora mantinha na agência de Albufeira do Banco BPA não dispunha de fundos para os liquidar.

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      Fixados os factos, passemos à resolução das questões supra enunciadas.

A primeira questão é suscitada pelo fundamento do recurso constituído pela alegação de que a devolução dos cheques “por falta ou vício na formação da vontade” não constituiu qualquer acção ilícita. Diz o recorrente que, ao devolver os cheques com o motivo indicado, agiu de acordo com a ordem que lhe foi dada pela sociedade que os emitiu; que antes de recusar o pagamento dos cheques questionou a representante da sacadora sobre a razão de ser da revogação e que esta a confirmou; que lhe não cabia sindicar as razões do pedido de revogação, que, para mais, se lhe afiguravam aceitáveis; que a circunstância de os cheques não conterem as razões concretas da devolução ficou a dever-se ao facto de os cheques terem sido apresentados a pagamento noutra instituição de crédito e não lhe terem sido apresentados fisicamente; e que agiu de acordo com as instruções provindas do Banco de Portugal contidas no Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária [SICOI], a que deve estrita obediência.

Este fundamento do recurso remete-nos para a questão da revogação do cheque dentro do prazo de apresentação a pagamento previsto no parágrafo primeiro do artigo 29º da LUCH.

A Lei Uniforme responde a esta questão dizendo, na primeira parte do artigo 32º, que a revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação.

Como é sabido, a interpretação desta norma deu origem a decisões judiciais contraditórias sobre a questão da eficácia da revogação do cheque no período legal de apresentação a pagamento e sobre a questão de saber se o sacado respondia civilmente perante o portador do cheque se aceitasse a proibição de pagamento dada pelo sacador e recusasse o seu pagamento.

Estas divergências motivaram a prolação, pelo Supremo Tribunal de Justiça, do acórdão n.º 4/2008, publicado no DR I Série de 4 de Abril de 2008, que uniformizou a jurisprudência no sentido de que “uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29.º da LUC, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na primeira parte do artigo 32.º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legitimo portador do cheque nos termos previstos nos artigos 14.º, segunda parte, do Decreto n.º 13 004[1] e 483.º, n.º 1, do Código Civil”.

Embora o acórdão não tenha força obrigatória geral, não vemos razões para nos afastarmos da interpretação nele afirmada, sendo certo que a interpretação e aplicação uniformes do direito, a que se refere o n.º 3 do artigo 8º do Código Civil, favorecem a segurança jurídica, a previsibilidade das decisões judiciais e a própria igualdade dos cidadãos perante a lei.    

Apesar da sua formulação ampla, sugerindo que tem natureza ilícita toda e qualquer recusa de pagamento do cheque que se funde em ordem do sacador, a doutrina uniformizadora não tem este alcance. O acórdão di-lo claramente nos seus fundamentos, afirmando que “os casos de extravio, furto e outros, de emissão ou apropriação fraudulentas do cheque, embora muitas vezes referenciados como justificando a respectiva revogação, exorbitam do âmbito da previsão do artigo 32.º da LUCH, não decorrendo desta norma qualquer obstáculo à recusa do pagamento de tais cheques pelo sacado”.

A exclusão destes casos do âmbito da previsão do artigo 32º já resultava de modo claro do parágrafo II do artigo 16º do Anexo II à Lei Uniforme, ao dispor que “qualquer das altas partes contratantes tinha a faculdade de determinar as medidas a tomar em caso de perda ou roubo de um cheque e de regular os seus efeitos jurídicos”.

Muito antes do acórdão n.º 4/2008, já o Decreto-lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, primeiro na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, e depois na que lhe foi dada pelo artigo 1º da Lei n.º 48/2005, de 29 de Agosto, previa que a obrigatoriedade do pagamento de cheques pelo sacado [referimo-nos a cheques nos montantes, respectivamente, de 12 500$00 e € 150] não obstante a falta ou insuficiência de provisão, cessava quando existissem “sérios indícios de falsificação, furto, abuso se confiança ou apropriação ilegítima”.

Também o Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária (SICOI) – quer o actual [Instrução n.º 3/2009 do Banco de Portugal] quer o que vigorava à data da devolução dos cheques [Instrução n.º 25/2003, alterada pela Instrução n.º 4/2007] – prevê, como motivos devolução de cheques no serviço de compensação do Banco de Portugal, a “revogação do cheque por justa causa”.

Segue-se do exposto o seguinte. Em princípio, a recusa de pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29.º da LUC, com fundamento em ordem de revogação do sacador, é um acto ilícito que constitui a instituição sacada em responsabilidade civil extracontratual para com o portador do cheque. Só assim não será, se existir justa causa para a recusa de pagamento.

Como é bom de ver, daqui segue-se uma importante consequência em matéria de ónus da prova. Sendo a justa causa uma situação impeditiva da responsabilidade civil, é à instituição sacada que a cabe alegar e provar quando for demandada pelo portador do cheque para efectivação da responsabilidade civil extracontratual [n.º 2 do artigo 342º, do Código Civil]. 

Mas qual é o alcance desta alegação e desta prova?

Bastará à instituição sacada alegar e provar que o sacador lhe transmitiu instruções no sentido de não pagar o cheque por ter sido objecto de furto, roubo, extravio, coacção moral, incapacidade acidental ou emitido com falta ou vício na formação da vontade? Ou,

Cabe à instrução sacada provar – na linha da solução constante do n.º 3 do artigo 8º do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Janeiro - que havia indícios sérios de alguma das situações acima descritas?

A lei não dá uma resposta expressa a esta questão.

Na doutrina, Paulo Olavo Cunha [Cheque e Convenção de Cheque, Almedina, páginas 622 e 623] sustenta, a propósito da revogação determinada pelo desapossamento do cheque, que, na pendência do prazo de apresentação a pagamento, “para que o Banco possa legitimamente recusar o pagamento é necessário que o sacador lhe forneça, oportunamente, prova suficiente do desapossamento, designadamente entregando-lhe cópia da declaração policial de perda ou furto do cheque”. Quanto à fundamentação legal desta interpretação, o citado autor vai buscá-la ao parágrafo único do artigo 14º do Decreto n.º 13004 de 12 de Janeiro de 1927.

A jurisprudência, embora não dê uma resposta uniforme à questão, tem decidido dominantemente no sentido de que a ilicitude da recusa de pagamento só será excluída se existirem indícios sérios da justa causa. A título de exemplo cita-se:
1. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-04-2010, proferido no processo n.º 4511/07.9TBLRA, publicado no sítio www.dgsi.pt/jstj, onde se decidiu que “em qualquer caso, o Banco sacado deve apreciar a comunicação do sacador, que só deverá aceitar se existirem indícios sérios do alegado vício”. Embora tenha entendido que não deva ir-se ao ponto de exigir do Banco a prova efectiva da causa justificativa invocada pelo sacador, pois não era essa a sua vocação, isso não o eximia de agir com a máxima diligência, só aceitando os motivos justificantes para o não pagamento no período legal de apresentação, quando dispusesse dos referidos indícios sérios de que a situação comunicada pelo sacador se verificou ou, pelo menos, dadas as circunstâncias concretas de cada caso, tinha grande probabilidade de se ter verificado.
2. O acórdão do STJ de 12-10-2010, proferido no processo n.º 2336/07.0TBPNF, publicado no sítio www.dgsi.pt/jstj, onde se escreveu: “e se não é de exigir ao Banco a prova efectiva da causa justificativa invocada pelo sacador, tal não o desonera, enquanto sacado, de agir com a máxima diligência, apenas aceitando os fundamentos invocados para o não pagamento, no período legal da apresentação, quando disponha dos aludidos «indícios sérios» de que a situação comunicada pelo sacador se verificou ou, pelo menos, dadas as circunstâncias concretas de cada caso, que tinha grande probabilidade de ter ocorrido, o que deve ser acompanhado de prova plausível”.
3. O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 19-05-2011, processo n.º 2978/08.7TJLSB, publicado no sítio www.dgsi.pt, onde se escreveu que a mera comunicação abstracta de extravio, sem uma mínima base factual explicativa feita pela sacadora (…), não pode ser considerada suficiente pelo Banco, para efeitos de preenchimento da aludida causa justificativa”.
4. O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 17-04-2012, no processo n.º 343/09.8T2ALD, publicado no sítio www.dgsi.pt/jtrc, onde se escreveu: “o sacado só deve aceitar a ordem de não pagamento que lhe foi dirigida pelo sacador, fundada na falta ou em vício na formação da vontade, quando disponha de indícios sérios de que a situação alegada pelo sacador se verificou ou, ao menos, que dadas as circunstâncias concretas do caso, seja altamente provável que se tenha verificado. Quando isso não suceda, deve entender-se que não se verifica qualquer situação de justa causa que justifique aquela ordem e, portanto, que o sacado não incorre, perante o sacador, em qualquer responsabilidade, contratual. Caso, nas mesmas condições, o sacado acate aquela ordem, e não proceda ao pagamento do cheque, esse facto é susceptível de o fazer incorrer, em face do portador, numa responsabilidade extracontratual”.

Divergindo deste entendimento, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16 de Março de 2010, proferido no processo n.º 339/08.7TBSRE, também publicado no sítio www.dgsi.pt, decidiu que a “informação de “extravio” prestada pelo sacador ao Banco constitui motivo explícito bastante e sério para que este recuse o pagamento sem que lhe possa ser oposto que em face da eventual falta de provisão deveria exigir daquele maior informação por haver uma forte probabilidade de se não haver verificado essa anomalia”.

No entender deste tribunal, é necessário encontrar um ponto de equilíbrio entre o interesse do sacador em opor-se expeditamente ao pagamento de um cheque com base em justa causa e a necessidade de proteger a fé pública que deve merecer o cheque como meio de pagamento seguro. Por outro lado, é igualmente necessário tomar em conta que as instituições de crédito têm deveres para com os possuidores dos cheques que ultrapassam os que decorrem da relação com o cliente/sacador, deveres esses que decorrem quer da necessidade de defesa do cheque como meio de pagamento seguro quer do próprio Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, designadamente do artigo 73º, quando dispõe que as instituições de crédito devem assegurar, em todas as actividades que exerçam, elevados níveis de competência técnica, garantindo que a sua organização empresarial funcione com os meios humanos e materiais adequados a assegurar condições apropriadas de qualidade e eficiência.

O equilíbrio entre estes interesses passa pelas seguintes soluções.

Em primeiro lugar, a proibição de pagamento com fundamento em justa causa tanto pode ser feita oralmente como por escrito. Não vemos razões para fazer depender a eficácia e a validade da ordem de não pagamento da sua redução a escrita. Pense-se, por exemplo, na hipótese de roubo de cheques em que a urgência da comunicação pode não ser compatível com a observância da forma escrita e pense-se na hipótese em que o sacador e o Banco convencionam outros modos de comunicação.

 Em segundo lugar, cabe ao sacador, ao dar a ordem de não pagamento do cheque, descrever a situação concreta que constitui justa causa de revogação do cheque. Assim, não basta ao sacador, para alcançar a proibição do pagamento, invocar a “falta ou vício na formação da vontade” ou a “coacção moral”, dada a variedade de situações susceptíveis de caírem sob a alçada destas fórmulas [a favor deste entendimento cita-se o acórdão do STJ de STJ de 12-10-2010, proferido no processo n.º 2336/07.0TBPNF, publicado no sítio www.dgis.pt/jstj].

Em terceiro lugar, o Banco tem o dever de se certificar da identidade de quem faz a comunicação do extravio, assegurando-se de que a comunicação foi efectuada pelo titular da conta sacada.

Em quarto lugar, não impende sobre o Banco sacado o dever de levar a cabo investigações destinadas a assegurar-se que há justa causa para a proibição de pagamento do cheque, ou seja, recebida a comunicação não lhe cabe suscitar um “incidente de justa causa de revogação”, dando conhecimento da comunicação ao apresentante do cheque e a oportunidade para provar que é o legítimo portador, decidindo, no final, se recusa ou se aceita o pagamento. Porém, se não é seu dever levar a cabo esta actividade investigatória, já é seu dever só aceitar a ordem de não pagamento quando existir a probabilidade séria da existência de justa causa. Perante a ordem de não pagamento, o Banco deve fazer sobre ela um juízo semelhante ao juízo cautelar [artigo 387º, n.º 1, do Código de Processo Civil].   

Não se ignora que, ao permitir-se que o Banco sacado aceite a ordem de não pagamento do cheque sem estar comprovada a exactidão do motivo alegado como fundamento da proibição, está a permitir-se ao sacador que, mediante a alegação falsa de uma justa causa, frustre o comando da primeira parte do artigo 32º da LUCH.

Neste caso, porém, o equilíbrio que acima se referiu é restabelecido através da tipificação como crime da oposição fraudulenta ao pagamento do cheque (artigo 11º, alínea b), do Decreto-lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-lei n.º 316/97, de 19 de Novembro e o acórdão n.º 9/2008, de 27/10/2008).

Posto isto, podemos afirmar que não colhem contra a sentença os fundamentos do recurso. Vejamos.

Em primeiro lugar, não colhe contra a sentença a alegação de que o recorrente agiu de acordo com a ordem dada pela sacadora; que previamente à recusa questionou a gerente da sacadora, que confirmou a razão de ser da revogação; que lhe não cabia sindicar as razões que haviam levado a tomar essa iniciativa, que, para mais se lhe afiguravam aceitáveis.

Como escrevemos acima, embora o Banco sacado não tenha o dever de suscitar um incidente de “justa causa de revogação”, só deverá aceitar a ordem de pagamento se esta for acompanhada pela narração, em concreto, da situação que serve de fundamento à revogação.

Não foi o que sucedeu no caso. Com efeito, a primeira ré limitou-se a pedir ao Banco “a anulação dos cheques” com a alegação de “falta ou vício na formação da vontade”. A fórmula usada, dado o seu carácter genérico, é compatível com uma multiplicidade de situações. Basta atentar nos artigos 240º a 257º do Código Civil – que dizem respeito à falta e aos vícios na formação da vontade - para se ver que a falta de vontade e o vício na formação da vontade compreendem realidades diferentes e contraditórias, entre si, pois a emissão de um cheque sem vontade é diferente da emissão de um cheque determinado por um vício na formação da vontade. Ou seja, o pedido de revogação do cheque com fundamento na fórmula “falta ou vício na formação da vontade” é equivalente a um pedido de revogação em que não se precisa a causa. Daí que era dever do Banco não acatar o pedido de revogação.

Alega o recorrente que, depois da comunicação e previamente à devolução dos cheques, questionou a sacadora sobre a razão do pedido de anulação e que esta lhe confirmou a razão da revogação e que lhe não cabia sindicar as razões que levaram a sua cliente a pedir a revogação, que, para mais se lhe afiguraram razoáveis.

Esta alegação não procede porque não está demonstrada. Com efeito, embora tenha sido levado à base instrutória a alegação da recorrente segundo a qual “ao mesmo tempo a respectiva sócia gerente explicou/justificou a sua iniciativa com as divergências surgidas com a autora quanto às mercadorias por esta fornecidas” [ponto n.º 6 da base instrutória], o tribunal a quo julgou-a não provada.

A verdade é que, mesmo que tivesse sido julgada provada, a realidade que lhe correspondia não tornava lícita a conduta do Banco. Com efeito, a provar-se o que alegou o recorrente, o que nós teríamos era a proibição de pagamento baseada não em qualquer falta de vontade ou vício na formação da vontade, mas num litígio relativo à relação comercial subjacente à emissão dos cheques. Ora, o litígio com o portador/beneficiário dos cheques motivado pela relação subjacente ou fundamental não constitui justa causa de proibição do cheque.

Também não depõe a favor da licitude da acção do Banco a alegação de que agiu de acordo com as instruções dimanadas pelo Banco de Portugal e contidas no SICOI [Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária], a que deve estrita obediência.

Ao alegar nos termos expostos, o recorrente argumenta como se o SICOI impusesse aos Bancos sacados o dever de recusarem o pagamento de cheques quando o sacador proíbe o pagamento com a alegação genérica e não fundamentada de “falta ou vício na formação da vontade”.

Sucede que o SICOI não impõe este dever aos Bancos.

A comprovar o que se acaba de dizer está a noção de revogação por justa causa que é dada na parte II ao anexo da instrução n.º 25/2003. Segundo ela dá-se a revogação por justa causa “quando, nos termos do n.º 2 do artigo 1170º do Código Civil, o sacador tiver transmitido instruções concretas ao sacado, mediante declaração escrita, no sentido do cheque não ser pago, por ter sido objecto de furto, roubo, extravio, coacção moral, incapacidade acidental ou qualquer situação em que se manifeste falta ou vício na formação da vontade. O motivo concretamente indicado pelo sacado, no registo lógico, deve ser aposto no verso do cheque, pelo banco tomador”. 

 À luz da noção que acaba de ser exposta, vê-se que, quando a justa causa invocada consista em “falta ou vício na formação da vontade”, o sacador deve transmitir ao Banco “ qualquer situação em que se manifeste falta ou vício na formação da vontade”.  

Assim, embora o carimbo aposto no cheque com o motivo da devolução indique apenas “falta ou vício na formação da vontade”, a comunicação do sacador deve conter a descrição da situação concreta que lhe corresponde.

Segue-se do exposto que, ao ter devolvido os cheques com fundamento em falta ou vício na formação da vontade, sem que o sacador tenha transmitido a situação concreta em que se manifestava essa falta ou vício na formação da vontade, o Banco violou o disposto na primeira parte do artigo 32º da LUCH, constituindo-se assim na obrigação de reparar as perdas e danos daí resultantes para a autora, portadora do cheque.

Improcede, pois, o primeiro fundamento do recurso.

A segunda questão - consistente em saber se a sentença recorrida errou ao decidir que o Banco ficou constituído na obrigação de pagar à autora o montante dos cheques apesar de a conta sacada, no momento da apresentação a pagamento, não dispor de fundos para tanto - é suscitada pela alegação de que a autora não demonstrou que a acção do C... tenha sido causa adequada do prejuízo que invocou.

Antes de mais importa dizer que o âmbito do recurso no qual foi proferido o acórdão uniformizador estava limitado à questão da licitude da conduta do Banco. Fora do objecto do recurso estava a questão de saber se a responsabilidade civil em que incorre o Banco pela aceitação indevida do pedido de revogação do cheque consiste na obrigação de pagar ao portador, a título de indemnização, o montante dos cheques.

E é por esta questão não estar coberta pela doutrina do acórdão uniformizador que em situações como a dos autos – ou seja, naquelas em que o Banco aceitou indevidamente o pedido de revogação do cheque, mas em que a conta sacada não tinha, no momento da apresentação do cheque a pagamento, fundos para tanto – que as respostas que lhe tem sido dadas pela jurisprudência não são uniformes.

Procurando sintetizar as diversas respostas, podemos dizer que elas são as seguintes.
1. A revogação ilícita do cheque constitui o Banco na obrigação de pagar ao portador, a título de indemnização, o montante do cheque, ainda que, no momento da apresentação, a conta sacada não disponha de fundos para o pagamento do cheque. Como exemplos deste entendimento citam-se o acórdão do STJ de 12-10-2010, proferido no processo n.º 2336/07.0TBPNF, e o acórdão do STJ de 10-05-2012, proferido no processo n.º 272/08. 2TVPRT, publicados no sítio www.dgsi.pt/jstj
2. A revogação ilícita do cheque constitui o Banco na obrigação de pagar ao portador, a título de indemnização, o montante do cheque, salvo se, no momento da apresentação, a conta sacada não dispuser de fundos para o pagamento do cheque e o Banco provar que os cheques, mesmo não sendo revogados, não seriam pagos. Como exemplo deste entendimento cita-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4 de Janeiro de 2011, proferido na apelação n.º 4348/08.8TBSTS, publicado no sítio acima indicado.
3. A revogação ilícita do cheque constitui o Banco na obrigação de pagar ao portador, a título de indemnização, o montante do cheque, apesar da conta sacada não dispor de fundos para o pagamento do cheque, se o portador provar que o pagamento ser-lhe-ia efectuado na sequência da notificação ao sacador para provisionar a conta, da inclusão na listagem do Banco de Portugal ou em momento ulterior. Cita-se como exemplo deste entendimento o acórdão do STJ de 2-02-2010, proferido no processo n.º 1614/05.8TJNF, publicado no sítio acima indicado.
4. A revogação ilícita do cheque não constitui o Banco na obrigação de pagar ao portador, a título de indemnização, o montante do cheque se, no momento da apresentação a pagamento, a conta sacada não dispuser de fundos para o pagamento do cheque. Como exemplo deste entendimento cita-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31-01-2012 proferido na apelação n.º 120/10.3TBSJM publicado no sítio http://www.trp.pt/jurisprudenciacivel/civel.

No entender deste tribunal, a resposta à questão acima enunciada tem de tomar em linha de conta o seguinte.

Em primeiro lugar, tem de tomar em conta que, segundo a 1ª parte do n.º 1, do artigo 264º do CPC, cabe ao autor cabe alegar os factos que integram a causa de pedir (1ª parte do n.º 1, do artigo 264º, do CPC);

Em segundo lugar, tem de tomar em conta que, nos termos da 2ª parte do artigo 664º do CPC, o juiz só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no artigo 264º;

Em terceiro lugar, tem de tomar em conta que o acórdão uniformizador estabeleceu que o Banco que aceitar indevidamente a ordem de revogação de cheque incorre em responsabilidade civil por factos ilícitos nos termos previstos no n.º 1 do artigo 483º do Código Civil;

Em quarto lugar, tem de tomar em conta que dois dos pressupostos necessários desta modalidade de responsabilidade são o dano e o nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano;

Em quinto e último lugar, tem de tomar em conta que, nos termos do n.º 1 do artigo 342º do Código Civil, àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.

Destas soluções legais resulta que o portador do cheque que pretenda efectivar a responsabilidade civil do Banco sacado por ter recusado sem justa causa o pagamento do cheque tem o ónus de alegar e provar – tal como sucede com qualquer lesado que pretenda prevalecer-se da responsabilidade civil por factos ilícitos prevista no n.º 1 do artigo 483º, do Código Civil - o dano que quer ver reparado e a relação de causalidade entre o facto ilícito e o dano.

O ónus de prova acabado de enunciar só não será de exigir se o portador beneficiar de presunção, dispensa ou liberação do ónus da prova ou convenção válida nesse sentido [n.º 1, do artigo 344º, do Código Civil].

Não é que se passa no caso, pois não há lei nem convenção que dispense o portador de provar o prejuízo que lhe foi causado; nem há lei nem convenção que presuma que o prejuízo sofrido em situações como a dos autos corresponde ao montante do cheque.

Logo, alegando o portador que o prejuízo que lhe foi causado foi o não recebimento do cheque, e pedindo, em consequência, a condenação do Banco no pagamento do respectivo montante, é condição de procedência da acção a prova de que não recebeu o montante do cheque e que a causa do não recebimento foi a revogação ilícita dele.

Do exposto segue-se para o caso que cabe averiguar se a autora alegou e provou que não recebeu a quantia inscrita nos cheques e que a causa do não recebimento foi a devolução ilícita dos cheques.

A resposta à primeira questão é afirmativa: a autora alegou e provou que não recebeu a quantia titulada pelo cheque.

A resposta à segunda é negativa: a autora não provou que a causa do não recebimento tenha sido a conduta ilícita do réu. Com efeito, perguntava-se sob o n.º 4 da base instrutória “se foi por causa do referido em 3) [isto é se foi por causa do cumprimento da ordem de revogação] que a autora nunca recebeu a quantia titulada por aqueles cheques. O tribunal a quo respondeu a esta questão de facto julgando provado que a autora nunca recebeu a quantia titulada pelos cheques”. A resposta restritiva significou inequivocamente que não se julgou provada a relação de causalidade entre a conduta ilícita do réu e o não recebimento do montante. Assiste, assim, razão à recorrente ao alegar que a autora não havia provado que a acção do Banco tenha sido a causa do prejuízo que invocou, ou seja, o não recebimento do montante inscrito nos cheques.

Sendo o nexo de causalidade um dos pressupostos da obrigação de indemnização e não se tendo provado a relação de causalidade entre a acção ilícita imputada ao réu e o prejuízo que a autora invocou – o não recebimento da quantia titulada pelos cheques –, é patente que a acção não estava em condições de proceder.

Contra a pretensão da recorrente pode aduzir-se ainda o seguinte.

Dizendo o artigo 3º da LUCH que “o cheque é sacado sobre um banqueiro que tenha fundos à disposição do sacador e em harmonia com uma convenção expressa ou tácita, segundo a qual o sacador tem o direito de dispor desses fundos por meio de cheque”, é bom de ver que, como escreve Paulo Olavo Cunha, na obra supra citada, página 621,constitui pressuposto da emissão do cheque a existência de provisão suficiente. Não havendo fundos disponíveis, por não terem sido previamente depositados ou concedida a respectiva utilização, o Banco não é obrigado a satisfazer a importância indicada no cheque, embora possa fazê-lo por sua conta e risco, pois poderá não vir a ser ressarcido da importância despendida”.

Assim sendo, não pode afirmar-se que, quando não há fundos na conta, o Banco viola a obrigação de pagamento ao aceitar sem justa causa o pedido de revogação do cheque. Nesta hipótese, embora actue ilicitamente – e actua ilicitamente porque, dentro do prazo de apresentação a pagamento, o cheque só pode ser revogado com justa causa -, o Banco não viola o direito ao pagamento do cheque.

Se o portador não tem o direito de exigir, ao Banco sacado, o pagamento do cheque, não poderá dizer-se que ele [portador] provavelmente receberia essa importância se o Banco actuasse licitamente.

Sucede que, sem este juízo de probabilidade, a responsabilidade civil em que incorre o Banco não abrange a obrigação de pagar a importância inscrita no cheque, pois nos termos do artigo 563º do Código Civil, a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.

Não faz sentido, à luz do princípio da unidade da ordem jurídica, afirmar que o portador passa a ter direito de exigir ao Banco o pagamento daquilo a que não tinha direito, apenas pelo facto de o Banco ter aceitado indevidamente a ordem de não pagamento dos cheques. 

Diga-se que à luz do SICOI havia uma razão para não fazer constar, como motivo da devolução, a falta de provisão. É que nos termos do artigo 21.1 do SICOI “no caso de coexistirem vários motivos de devolução, o participante sacado deve indicar um só motivo, de acordo com a ordem de prevalência enunciada na Parte II do Anexo”. Ora de acordo com esta ordem, havendo motivo para devolver o cheque por falta ou vício na formação da vontade e por falta de provisão deve indicar-se a devolução por motivo de falta ou vício na formação da vontade.   

Por último, como se escreveu no processo n.º 1118/11. 0TBFIG da 1ª secção cível deste tribunal[2], “não dispondo o sacador de fundos (na sua conta de depósito) para o pagamento do cheque e não havendo assim para o Banco sacado a obrigação de pagar ao portador o valor nele inscrito, não há qualquer diferença entre a situação (real) em que o facto ilícito deixou o portador do cheque e a situação (hipotética) em que ele se encontraria sem o dano (real) sofrido. Se não tivesse ocorrido o “dano real” – se o cheque não tivesse sido “inutilizado” em função da aceitação da ordem de revogação – não dispondo o sacador de fundos (na sua conta de depósitos), não teria o cheque sido pago. Com ou sem “dano real”, a situação patrimonial do lesado/portador do cheque continua a mesma. Com ou sem “dano real”, o seu balanço patrimonial continua/aria a apresentar não só o mesmo saldo como, inclusivamente, a mesma composição em termos de activo: um crédito sobre o sacador do cheque e não a soma pecuniária que, caso dispusesse o sacador de fundos (na sua conta de depósito), passaria a integrar o seu património em substituição de tal crédito”.

Feito este percurso, conclui-se que ao condenar o réu no pagamento da importância inscrita nos cheques, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 483º, 563º, ambos do Código Civil, pelo que não pode substituir.


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Decisão:

Julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, julgando-se improcedente a acção e absolvendo-se o réu do pedido.


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As custas da acção serão suportadas pela autora e pela 1ª ré, na proporção de metade para cada uma das partes.

As custas do recurso serão suportadas pela autora apelada.


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Emídio Francisco Santos (Relator)

Catarina Gonçalves

Maria Domingas Simões  


[1] O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 9/2008. D.R. n.º 208, Série I de 2008-10-27, que uniformizou a jurisprudência no sentido de que “verificados que sejam todos os restantes elementos constitutivos do tipo objectivo e subjectivo do ilícito, integra o crime de emissão de cheque sem provisão previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, a conduta do sacador de um cheque que, após a emissão deste, falsamente comunica ao Banco sacado que o cheque se extraviou, assim o determinando a recusar o seu pagamento com esse fundamento”, já considerou que o artigo 14º, 2ª parte, do Decreto-lei n.º 13004 estava revogado pelo artigo 32º da LUCH. No mesmo sentido se pronuncia Paulo Olavo Cunha, nos Cadernos de Direito Privado, n.º 25, página 23, em anotação ao acórdão n.º 4/2008.

[2] No qual o ora relator interveio como 2º adjunto.