Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
930/11.4T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: TESTAMENTO
LEGADO REMUNERATÓRIO
SEGURO DE VIDA
REDUÇÃO POR INOFICIOSIDADE
Data do Acordão: 03/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CBV AVEIRO JGIC JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.443, 450, 2030, 2070, 2162, 2168, 2070, 2178, 2278 CC, DL Nº 72/2008 DE 16/4
Sumário: 1.- Não obsta à qualificação de seguro de vida o facto de o seguro estar associado a um fundo de investimento, do tipo unit linked, em que o capital seguro varia de acordo com o valor das unidades de participação de um ou vários fundos de investimento, sendo, por isso, um seguro de vida de capital variável.

2.- Celebrado um seguro de vida em caso de morte do seu tomador, o capital seguro, pago pela seguradora após a morte do tomador a um terceiro beneficiário, designado em testamento por aquele tomador do seguro, não integra o acervo hereditário deste e como tal não está sujeito a redução por inoficiosidade.

3.- O que é redutível por ofensa da legítima são as quantias prestadas pelo tomador do seguro ao segurador no âmbito desse seguro, por força do regime jurídico aprovado pelo DL nº 72/2008 de 16.4.

4. Para se verificar a ofensa da legítima e a medida de redução de liberalidades inoficiosas é necessário que se tenham em conta todos os bens e valores que o artigo 2162º do Código Civil manda atender para o cálculo da legítima e que se tenham em conta os valores dessas liberalidades.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NESTA RELAÇÃO O SEGUINTE:


I – Relatório:
M (…) e J (…), ambos residentes em Válega, instauraram a presente acção ordinária contra CENTRO (…), registado como pessoa colectiva de utilidade pública, com sede (...) Avanca, pedindo:
-- Que sejam declarados anulados os actos notariais consubstanciados no testamento e na procuração referidos na petição inicial;
-- Que sejam declarados pertencentes à herança deixada por A (…) todos os bens, incluindo os valores depositados no Banco Comercial Português, na Caixa Geral de Depósitos e na Companhia de Seguros Ocidental;
-- Que o Réu seja condenado a restituir à mesma herança de que os Autores são os únicos titulares todos os valores de que se tenha apropriado, por meio dos referidos instrumentos notariais;
-- Quando assim não for decidido, deve o legado feito ao Réu ser reduzido para a quantia de 31.333,33 € e o Réu condenado a restituir o que, além da quota disponível do testador, se tenha apropriado também por meio dos citados instrumentos notariais.
Para tais efeitos alegam os autores, em síntese, que são os únicos herdeiros de (…), falecido em 17.05.2009, o qual poucos dias antes de falecer outorgou testamento, mediante o qual declarou que deixava ao réu os valores que se encontrassem em seu nome em qualquer conta aberta no Banco Comercial Português, S. A., e bem assim os valores referentes à apólice n.º (...) da Companhia de Seguros Ocidental, e outorgou procuração ao Padre (…), enquanto Presidente da Direcção do Centro réu, em que deu poderes para movimentar qualquer conta bancária dele mandante, a débito ou a crédito, aberta no Banco Comercial Português, S. A., ou na Caixa Geral de Depósitos, S. A., podendo, além dos mais, ordenar a transferência total ou parcial dos respectivos saldos, sendo que, no momento da outorga dos referidos actos notariais, o seu pai se encontrava incapacitado para entender o que lhe era dito e para manifestar a sua vontade, do que os legais representantes do Centro Réu sabiam, pelo que tais actos notariais são inválidos; à data da morte, o pai dos Autores tinha no Banco Comercial Português depositada quantia que excedia 95.000,00€, ignorando-se quanto existiria na referida apólice da Companhia de Seguros Ocidental e na Caixa Geral de Depósitos; o Réu fez suas todas essas quantias depositadas; além dos valores depositados, o testador e pai dos Autores deixou um pequeno prédio rústico, na freguesia de Válega, cujo valor venal não excede 500,00 €, pelo que sempre o legado seria inoficioso.
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Citada, a ré apresentou contestação na qual, em resumo, começou por excepcionar a caducidade do direito de redução das alegadas liberalidades inoficiosas, impugnando, de seguida, a essencialidade dos factos em que os autores fundamentam os seus pedidos, concluindo que deve a acção ser julgada improcedente.
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Replicaram os autores, pugnando pela improcedência da excepção.
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O despacho saneador relegou para a sentença final a apreciação da excepção da caducidade e condensou a matéria de facto, assente e controvertida, tendo havido reclamação que improcedeu.
Realizou-se a audiência de julgamento, que culminou nas respostas à base instrutória, sem reclamação.
A 1ª instância, além de na fundamentação ter julgado improcedente a excepção de caducidade suscitada pelo réu, concluiu a sentença com este dispositivo:
«decide-se julgar a acção parcialmente procedente, por provada, e consequentemente:
a) – Absolver o réu do pedido formulado, a título principal, de anulação dos actos notariais de testamento e procuração juntos por cópia aos autos;
b) – Declarar reduzido o legado efectuado pelo dito testamento, por inoficiosidade do mesmo, à quantia de 32.136,28 €, devendo o réu restituir aos autores a quantia de 64.272,57 € (sessenta e quatro mil, duzentos e setenta e dois mil euros e cinquenta e sete cêntimos)».

Inconformado, o réu recorre de apelação, concluindo a sua alegação:
1.º - Concordamos e aceitamos a interpretação da douta sentença no sentido que o seguro em causa não integraria o acervo hereditário do Sr. (…), caso fosse entendido que se operara apenas uma substituição do beneficiário. Discordamos que o testamento em causa apenas consubstancia uma disposição de última vontade quanto ao destino dos bens por morte do seu titular.
2.º - Tendo a seguradora efectuado o pagamento do montante do seguro por entender que foi operada uma substituição do beneficiário com o testamento, não podia o tribunal vir proferir uma decisão que contradiz tal, tanto mais que um dos intervenientes, a seguradora, não é parte. Assim, o montante do seguro não faz parte da herança.
3.º - Ao abranger com esta decisão um acto de outra entidade estaríamos perante um litisconsórcio necessário passivo - cuja preterição consubstancia ilegitimidade, constituindo excepção dilatória, de conhecimento oficioso e determinante de absolvição da instância, nos termos dos artigos 28.°-2, 288.°, n.° 1, al. d), 493.°, n.° 2, 494.°, al. e) e 495.º do CPC.
4.º - Não tendo o montante do seguro integrado o acervo hereditário, não pode a sentença reduzir um pretenso legado constituído por esse valor.
5.º - Mesmo que se entendesse estarmos perante um legado tal seria um legado remuneratório como resulta do teor do testamento. Sendo um legado remuneratório é considerado uma dívida da herança e assim não pode ser reduzido – artigo 2278.º do CC.
6.º - Nunca se poderia nesta acção decidir pela inoficiosidade do legado pois que para tal tem de se apurar o conteúdo e valor total da herança e dívidas, o que só é possível em processo de inventário.
7.º - Dos autos não constam sequer elementos para se poder fixar o activo e passivo da herança, sendo que é indubitável, face às posições das partes e documentos juntos aos autos que pelo menos um depósito na CGD no valor de 10.433,58€ na CGD fazia parte da herança, pelo que a redução do legado sempre teria de contabilizar também este activo.
8.º - Os factos alegados em 5.º a 16.º e 19.º a 27.º da nossa contestação são essenciais para a boa decisão da causa, pelo que, e tendo reclamado do saneador pela sua não inclusão, devem os mesmos ser aditados à b.i. e ser produzida prova sobre eles., sendo que a alínea D) dos factos teria de ser levada à B.I.
9.º - O acordado entre o falecido (…) e o recorrente está na disponibilidade das partes, sendo legal a sua actuação – artigos 405.º e 406.º do CC, pelo que não podia agora o tribunal emitir uma decisão que na prática anula tal contrato.
10.º - Seria um abuso de direito reconhecer o invocado direito dos autores em ver reduzido o dito legado quando tiveram uma actuação vergonhosa para com o seu pai – artigo 334.º do CC. Nestes termos deve o recurso ser julgado procedente e assim ser a acção julgada improcedente.
Os AA contra-alegaram, concluindo:
1- Embora no modesto entendimento dos Autores a douta sentença faça errada qualificação jurídica da relação que existiu quanto à quantia que veio a ser objecto do legado, entre o Autor da herança e a Seguradora Ocidental, a douta sentença, na parte recorrida, escolheu, interpretou e aplicou acertadamente as pertinentes regras de direito aos factos provados.
2- Por conseguinte, deve ser negado provimento ao recurso e mantida a douta sentença recorrida.

II- Delimitação do objecto do recurso e fixação das questões a solucionar:
1. O objecto do recurso é constituído apenas pelas decisões que foram questionadas através das conclusões da alegação do recurso (artigo 684º/2 e 3 do CPC).  
Note-se que, para o efeito do disposto no artigo 684º, nºs 2 e 3, do CPC, a sentença recorrida contém “decisões distintas”, que não se resumem às duas alíneas da parte dispositiva, mas os apelantes restringiram, na parte conclusiva da sua alegação, o objecto do recurso.  
Sobre o conceito equivalente de “partes distintas” na decisão (art. 685º do CPC/39) ou de “decisões distintas” na parte dispositiva (art. 684º/2 do CPC actual), vale ainda a lição de J. A. dos Reis, CPC Anotado, V, 304 ss.
Elas correspondem ao dever, imposto no artigo 660º do CPC, de resolver todas as questões que as partes submeteram à apreciação do tribunal: «a solução de cada uma das questões constitui uma parte distinta da decisão» (J. A. dos Reis, ibidem, pág. 305).
Alberto dos Reis dava um exemplo. Propôs-se acção de investigação de paternidade com estes fundamentos: a) Na sedução com promessa de casamento; b) Na posse de estado. A sentença julgou a acção totalmente improcedente, ou julgou-a procedente quanto um dos fundamentos e improcedente quanto ao outro. «A decisão contém, nestes casos, dois capítulos ou duas partes distintas, porque resolve duas questões, perfeitamente independentes, postas pelo autor» (p. 305).
Nesse exemplo, embora o autor se proponha um único efeito jurídico (o reconhecimento da paternidade de R. sobre A.), ele põe ao tribunal duas questões ou pretensões distintas, tudo se passando como se o autor houvesse formulado dois pedidos distintos (declaração da paternidade baseada na posse de estado e declaração da paternidade baseada na sedução – cf. pág. 306). Acrescenta-se, na mesma página, que “partes distintas” é expressão que equivale a “decisões distintas”.
 Segundo a lição de Lebre de Freitas, a propósito do preceituado no artigo 660º do CPC, in CPC Anotado, II, 2ª edição, não havendo lugar à absolvição da instância, o juiz deve conhecer dos pedidos, das causas de pedir invocadas e das excepções peremptórias deduzidas, exceptuadas as questões cuja decisão esteja prejudicada (p. 679). Acrescenta, na pág. 704, que, para efeitos do artigo 668º/1 al. d), conhecer das questões que se devem apreciar é conhecer dos pedidos, causas de pedir e excepções.
No apontado sentido, a sentença contém as seguintes decisões:
a)-- julgou improcedente a excepção de caducidade;
b)-- absolveu o réu do pedido principal, de anulação do testamento e da procuração;
c)– declarou reduzido, por inoficiosidade, o legado efectuado pelo dito testamento, à quantia de € 32.136,28, condenando o réu a restituir aos autores a quantia de € 64.272,57.
Dessas decisões, apenas a terceira constitui objecto do recurso, nos termos do artigo 684º, nºs 2 e 3, do CPC. Essa é a decisão que conheceu do pedido subsidiário.
Mas o recurso tem ainda por objecto uma outra decisão que não consta da sentença: a decisão que indeferiu a reclamação deduzida contra a base instrutória. A impugnação é permitida pelo nº 3 do artigo 511º do CPC.

2. As conclusões da alegação do recurso servem para indicar sinteticamente os fundamentos pelos quais se pede a alteração ou anulação da decisão (art. 685º-A/1 do CPC). Com cada um desses fundamentos, é questionada a decisão, devendo conhecer-se das questões nos termos que basicamente constam do artigo 660º do CPC. 
São questões suscitadas no recurso as que versam:
--A ilegitimidade passiva por preterição do litisconsórcio necessário passivo ao não ter sido demandada a seguradora.
-- O erro na forma de processo.
-- A deficiência da base instrutória.
-- A questão de fundo (o legado e a redução por inoficiosidade).

III- Fundamentos:
A 1ª instância julgou provado o seguinte:
1. - No dia 29 de Abril de 2009, no Hospital Infante D. Pedro, perante o Lic. (…) Notário em Aveiro, com Cartório sito na (...) Aveiro, A (…) outorgou:
a) instrumento notarial denominado de “Testamento”, mediante o qual declarou:
“Que, pelo presente testamento e por força da sua quota disponível faz o seguinte legado: Deixa ao Centro (…), pessoa colectiva número (...) , com sede no lugar de Igreja, freguesia de Avanca, concelho de Estarreja, os valores que se encontrem depositados em seu nome em qualquer conta aberta no Banco Comercial Português, S.A. bem assim o referente à Apólice número (...) da Companhia de Seguros Ocidental;
Que o legado é feito em contrapartida do pagamento das mensalidades, assistência médica e medicamentosa que o Centro lhe presta”;
b) instrumento notarial denominado de “Procuração”, mediante o qual declarou:
“Que constitui seu bastante procurador, o Sr. Padre (…), solteiro, maior, natural da freguesia e concelho de Sever do Vouga, residente na Casa Paroquial, freguesia de Avanca, concelho de Estarreja, enquanto Presidente da Direcção do Centro Paroquial e Social S (…), pessoa colectiva número (...) , com sede no indicado lugar de Igreja, freguesia de Avanca, concelho de Estarreja, a quem concede poderes para movimentar qualquer conta bancária dele mandante, a débito ou a crédito, aberta no Banco Comercial Português, S.A. e na Caixa Geral de Depósitos, S.A. podendo ordenar a transferência, total ou parcial dos respectivos saldos, consultar saldos, obter relativamente a essas contas todas as informações que ele procurador entenda necessárias ao cabal desempenho do mandato, requisitar e assinar cheques e de um modo geral, requerer, praticar e assinar tudo o que necessário se torne” – al. A) dos assentes.
2. - No momento da outorga dos actos notariais referidos em A), o A (…)estava internado, no Hospital Infante D. Pedro, em Aveiro, padecendo de doença incurável – al. B).
3. - No dia 17 de Maio de 2009, faleceu (…), no estado de divorciado, tendo deixado como únicos descendentes, seus filhos, os ora Autores – al. C).
4. - O A (…) deixou um prédio rústico, cujo valor não excede 500,00 € -- al. D).
5. - No momento da outorga dos actos notariais referidos em A), o A (…)tinha dificuldade em assinar, porque a letra lhe tremia e estava acamado – rresp. aos quesitos 1º a 5º.
6. - À data da sua morte, o A (…) tinha quantia superior a 95.000,00 € numa apólice da Ocidental Seguros – resp. ao quesito 7º.
7. - O réu fez sua a quantia resultante do resgate de tal apólice, que à data – 08.10.2009 – era de 95.908,86 € -- resp. ao quesito 8º.
8. - O A (…) tinha 84 anos à data do óbito.
9. - A apólice referida em 6, com o n.º UL11339845, denominada “Renda Segura (2 Série)”, é um seguro do tipo Unit Linked, representado por Unidades de Participação com cotação em função dos rendimentos que forem sendo produzidos pelos activos associados ao respectivo Fundo e da evolução das condições do mercado de capitais, tudo como melhor consta dos documentos de fls. 62 e 148, regendo-se pelas condições gerais plasmadas a fls. 149 a 157 dos autos, documentos cujo teor se dá aqui por reproduzido.
A sentença considerou ainda provado que, em 02 de Agosto de 2004, A (…) designara como beneficiária do mencionado seguro a Santa Casa da Misericórdia de Ovar (documento de fls. 126).
Em relação ao facto do ponto nº 7, tal deve ser interpretado no sentido de que quem resgatou (totalmente) o seguro foi o réu em 08.10.2009, conforme resulta claro da informação contida nos doc. a fl. 62 e 148, referidos no ponto de facto nº 9 ([1]).

Apreciação das questões acima enumeradas:

1ª)- Sobre a ilegitimidade passiva por preterição do litisconsórcio necessário passivo:
O pedido subsidiário formulado, como consta do relatório, é o seguinte: «deve o legado feito ao Réu ser reduzido para a quantia de 31.333,33 € e o Réu condenado a restituir o que, além da quota disponível do testador, se tenha apropriado também por meio dos citados instrumentos notariais».
O artigo 28º do CPC, versando o litisconsórcio necessário, preceitua:
«1— Se, porém, a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade.
«2— É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado».

Como acima dissemos, a única decisão que, quanto ao mérito da causa, foi impugnada é a que declarou reduzido, por inoficiosidade, o legado efectuado pelo dito testamento, à quantia de € 32.136,28, condenando o réu a restituir aos autores a quantia de € 64.272,57.
A seguradora não é, configuradamente, sujeito da relação material controvertida.
A lei ou o negócio não exigem a intervenção da seguradora como interessada na relação controvertida. A seguradora não é, por natureza, interessada nessa relação.
Consequentemente, não se verifica a excepção invocada.

2ª)- Sobre a questão do erro na forma de processo:
Os AA. não alegaram se antes desta acção comum houve ou não inventário ou se, por outra via, procederam à partilha hereditária.
O artigo 2178º do CC, ao referir-se à caducidade da “acção de redução de liberalidades inoficosas”, deixa aberta a possibilidade de ser intentada acção comum em vez de, ou apesar de, processo de inventário.
Entre a utilização do processo de inventário e a utilizada forma de processo comum para obter a redução por inoficiosidade, temos que, neste caso, o beneficiário do seguro de vida celebrado por A (…)é o réu Centro, que seguramente não é interessado directo na partilha do acervo hereditário. E só os interessados directos na partilha podem requerer inventário.
Quando o demandante tenha legitimidade para intentar processo de inventário e a liberalidade tenha sido feita a favor de um herdeiro legitimário, então o mecanismo processual correcto para apreciar a inoficiosidade da deixa testamentária é o processo de inventário.
            A utilização da acção comum com vista à redução de liberalidades inoficiosas está reservada, segundo algumas correntes jurisprudenciais:

- aos sujeitos que não têm legitimidade para instaurar o processo de inventário e que podem ter interesse em ver reconhecida a redução por inoficiosidade, como acontecerá relativamente aos credores de algum herdeiro legitimário, quando se coloca a questão de a legítima deste ser afectada pela liberalidade;
- aos herdeiros legitimários quando as liberalidades foram feitas a favor de quem não assume aquela qualidade;
- quando já tenha sido concluído o inventário e efectuada a partilha dos bens do doador sem que aí tenha sido considerada a redução (neste último sentido, Ac RP 26.3.2009, Pº 0837985, Nº Convencional JTRP00042414, Relator: TEIXEIRA RIBEIRO).
No sentido de que a acção prevista no art.º 2178 do Código Civil se justifica apenas quando as liberalidades foram feitas a favor de quem não é herdeiro legitimário, vejam-se os Acs. STJ de 09/04/2002, processo 02A740 (Relator: Armando Lourenço), da R.P. de 22/06/2006, processo 0632516 (Relator: Saleiro de Abreu) e da RL de 03/05/2007, processo 2857/2007 (Relator: Francisco Magueijo), acessíveis in www.dgsi.pt. Com interesse vejam-se ainda os Acs. STJ de 24/10/2006, processo 06B2650 (Relator: Mota Miranda) e da RP de 26/03/2009, processo 0837985 (Relator: Teixeira Ribeiro), acessíveis no mesmo local].
Daí que formalmente nada obste à utilização da forma de processo comum para obtenção da redução por inoficiosidade, em casos como o presente. Embora os herdeiros pudessem utilizar para o efeito o processo de inventário, que seria o meio mais idóneo, embora possivelmente mais moroso. 

3ª)- Sobre a deficiência da base instrutória:
Defende o apelante que os factos alegados nos artigos 5.º a 16.º e 19.º a 27.º da contestação deviam ter sido levados à base instrutória.
Os factos sob os artigos 5º a 13º nada adiantam de útil em relação ao que foi alegado no artigo 14º: sabendo que no final dos seus dias não contaria com os filhos, o (…) providenciou por ter assistência na velhice e na doença. Nos artigos 15º e 16º o réu alegou tratar-se de um seguro poupança, denominado Unit Linked, que funciona como seguro de vida, que permitia indicar um beneficiário em caso de falecimento do tomador de seguro. Nos artigos 19º a 27º alegou, em suma, que inicialmente indicou como beneficiário do seguro a Santa Casa da M. de Ovar onde intencionava ser acolhido, mas após o AVC de 2008 propôs ao Centro ser aí acolhido nomeando em troca o Centro como beneficiário do seguro, o que o Centro aceitou.
O réu já havia reclamado, sem êxito, contra a base instrutória, com a mesma pretensão.
O indeferimento da reclamação baseou-se em que tais factos não eram “essenciais” e ainda no disposto no artigo 342º do Código Civil.
A decisão tomada pela 1ª instância foi errada. Pelo menos parte do alegado nos invocados artigos da contestação era relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, e era matéria controvertida, pelo que devia ter sido quesitada, nos termos do artigo 511º/1 do CPC.
As regras de distribuição do ónus da prova, contidas no invocado artigo 342º do CC, podem interessar para o modo de formular os quesitos da base instrutória (vg na formulação positiva ou negativa dos factos), mas não interferem com o disposto no artigo 511º/1 do CPC. A causa, cujas soluções plausíveis servem de critério da relevância dos factos, não é constituída apenas pelos factos alegados como causa de pedir, mas também pelos alegados na defesa.
A Ex.ma Juíza andou mal ao ter levado à base instrutória apenas factos controvertidos alegados pelos AA. De tal modo assim é que, depois, na sentença, se viu na contingência de acrescentar como provados factos relativos ao seguro, os quais haviam sido alegados na contestação. O que importava acima de tudo era levar à base instrutória, de entre os controvertidos, os factos alegados que, sendo essenciais, ou meramente instrumentais (cf. art. 264º/2 do CPC), pudessem servir para elucidar toda a situação concretamente verificada, relevando para qualquer solução plausível. E podia ainda ter aditado à base factos controvertidos, resultantes da instrução (lato sensu) da causa, quer emergentes de informações ou documentos ou depoimentos… (cf. art. 650º/2 al. f) do CPC).
Porém, já situados em sede de recurso, a ampliação da base por deficiência está limitada pela relevância que neste momento a mesma assuma (art. 712º/4 do CPC). E, perante a única decisão de fundo agora em crise, e atendendo ao elenco do provado, tal ampliação trona-se inútil, como melhor veremos ao reapreciarmos a questão de fundo.

4ª)- Sobre a questão de fundo:
A quantia recebida da seguradora pelo réu Centro consiste na prestação que cabia à seguradora efectuar com base no seguro de vida em causa, a favor do beneficiário respectivo à data da morte do tomador do seguro como este indicara no testamento. Essa é a prestação da seguradora a favor do beneficiário do seguro. E foi sobre essa prestação que a 1ª instância decretou a redução por inoficiosidade.
A sentença considerou, correctamente, que “estamos perante um contrato de seguro do ramo vida”, “que incorpora uma vertente de poupança e/ou rendimento, conforme decorre dos artigos 2º, 10º e 11º das condições gerais”, mas entrou em contradição evidente, por um lado, ao considerar, na fundamentação, que «A prestação a efectuar pela seguradora não integra o acervo hereditário do segurado/tomador do seguro falecido, pois que só nasce com o óbito, não lhe sendo aplicáveis as regras sucessórias» e, por outro lado, ao decidir reduzir essa mesma prestação por inoficiosidade, ou seja, porque «além do valor resultante da apólice de seguro (95.908,86 €), o A (…) apenas deixou um prédio rústico, cujo valor não excede 500,00 €, e que a legítima dos autores é de dois terços da herança (no valor global de 96.408,86 €), haverá que concluir que efectivamente ocorre inoficiosidade do legado porquanto este excede a quota disponível e ofende a legítima dos aqui autores».
A contradição assenta no seguinte: considerar que à prestação da seguradora não são aplicáveis as regras sucessórias e aplicar-lhe essas regras sucessórias.
Na verdade, à prestação da seguradora não são aplicáveis as regras sucessórias, porque (…) não chegou a adquirir o direito a essa prestação, o direito a essa prestação não chegou a ingressar no seu património, de modo que o pudesse transmitir mortis causa. O seguro tinha o prazo de vigência de 9 anos e 9 meses (desde 29-6-2011 até 29-3-2011 – vd artigo 2º/3 das Condições Gerais), o tomador (…) faleceu a 17-5-2009 e o seguro apenas foi resgatado em 8-10-2009 – vd informação a fl. 126 (= 148), solicitada a pedido das partes e não impugnada.
De permeio, a fundamentação da sentença contém outras incorrecções:
-- Afirmou que o contrato de seguro em causa cobre efectivamente o risco de vida e de morte. Porém, o seguro em causa não cobre o risco de vida (não é seguro de sobrevivência), mas sim o risco de morte – vd artigo 2º/2 das Condições Gerais a fls. 126 ss.
-- Considerou tratar-se de legado sujeito a encargos. Porém, o legado que instituiu o réu como beneficiário do seguro não o sujeitou a quaisquer encargos.
-- Não atendeu aos valores de todos os bens para cálculo do valor da herança para o efeito do cálculo da legítima e considerou para o efeito o valor indeterminado do prédio rústico deixado pelo de cujus (valor que segundo o provado “não excede €500,00”).

Por outro lado, a 1ª instância baseou-se em legislação que não está em vigor – é o caso dos artigos que citou do Código Comercial respeitantes ao regime do contrato de seguro: artigos 426º e 427º, que citou.
À data da morte do de cujus já vigorava o novo regime do contrato de seguro (doravante RJCS), constante do anexo ao DL nº 72/2008 de 16.4 (doravante LCS) e que entrara em vigor em 1.1.2009 (art. 2º e 7º da LCS).

Defendem os apelados que no caso não se trata de contrato de seguro, porque a seguradora não assume qualquer risco, que é imanente ao contrato de seguro, mas apenas aceita uma aplicação financeira, próxima de um depósito, que lhe dá uma margem de ganho e que pode ser resgatada no fim de cada trimestre.
Mas não têm a razão pelo seu lado, como resulta do artigo 1º do RJCS. «A obrigação do segurador não é a de assumir o risco de outrem, mas de realizar a prestação resultante de um sinistro associado ao risco de outrem. O que caracteriza particularmente o contrato de seguro é a obrigação, assumida pelo segurador, de pagar uma prestação relacionada com o risco do tomador do seguro ou de outrem (segurado)» -- assim, Pedro Romano Martinez et alii, in Lei do Contrato de Seguro Anotada, Almedina, 2009, p. 38.

O artigo 6º da LCS revogou os artigos 425º a 462º do Código Comercial, onde se continha o regime fundamental do contrato de seguro.
O seguro em causa é um seguro de vida, tal como é definido pelo artigo 183º do RJCS e encontra o seu regime legal específico no Capítulo II (art. 183º a 217º) do Título III, relativo ao seguro de pessoas. Esse capítulo II tem 2 secções, a secção I com o regime comum (art 183º a 206º, este regendo os ICAE) e a secção II (art. 207º a 209º – operações de capitalização), enquanto o Capítulo III rege o seguro de acidentes pessoais e o de saúde (art 210º a 217º).
E é um seguro de vida, ainda que associado a um fundo e à evolução do mercado de capitais (vd. artigos 206º e 207º do RJCS). Os seguros ligados a fundos de investimento, usualmente designados por “unit linked”, são enquadráveis no ramo Vida ([2]) ([3]). E trata-se de seguro de vida em caso de morte, e não de seguro de vida em caso de vida (ou de sobrevivência) ou misto.

E é um contrato a favor de terceiro (cf. art. 443º a 451º do Código Civil): no âmbito do contrato houve designação de terceiro como beneficiário da prestação a efectuar pelo segurador. A seguradora é o promitente: prometeu realizar uma prestação (ainda que de montante só determinado trimestralmente). O tomador do seguro, (…), é o promissário ou estipulante: aquele a quem a promessa foi feita. E há um terceiro, que é o beneficiário da prestação prometida pela seguradora.
De resto, o RJCS prevalece sobre o disposto no Código Civil – artigo 4º do RJCS.

Sobre a designação beneficiária regem os artigos 198º a 201º do RJCS.
Esse artigo 198.º rege a possibilidade de o tomador do seguro designar como beneficiário do capital seguro quem ele entender (seja ou não seu herdeiro), rege a forma de designação do beneficiário e rege os casos e condições em que o “capital seguro” deve ser prestado pelo segurador aos herdeiros.
Assim, pelo seu nº 1, o tomador do seguro, ou quem este indique, designa o beneficiário, podendo a designação ser feita na apólice, em declaração escrita posterior recebida pelo segurador ou em testamento.
            Pela regra supletiva do nº 3 desse artigo, quando se trate de seguro de sobrevivência, o capital seguro deve ser prestado à pessoa segura. Não é o caso.

Pela regra supletiva do nº 2, por falecimento da pessoa segura o capital seguro só é prestado aos seus herdeiros, na hipótese de falta de designação do beneficiário ou na hipótese de o beneficiário falecer antes daquela.

No caso concreto, houve designação do beneficiário do seguro (primeiramente a Santa Casa, mas prevalecendo a segunda designação, a favor do réu Centro) e não houve premoriência ou (prévia) extinção do réu Centro. Logo, não sendo o capital seguro transmissível por via sucessória (não integrando a massa hereditária do de cujus), o capital seguro devia ter sido entregue como foi ao réu designado beneficiário e não aos herdeiros dele, pessoa segura.

Que a prestação da seguradora no âmbito do seguro de vida não integra o acervo hereditário é posição que a doutrina defende, sem que se conheça discrepância.

Por exemplo, o Prof. Oliveira Ascensão ensinava ainda ao tempo da vigência do artigo 460º do Código Comercial:

«Há certas formas de aquisição por morte que nada têm a ver com a sucessão. Processam-se longe desta, obedecendo a princípios próprios. (…) É típico o caso dos seguros de vida, estabelecidos pelo de cujus. Ele paga prémios mas o beneficiário é um terceiro por ele determinado. Morto o segurado, esse beneficiário recebe o valor do seguro: mas não o recebe do de cujus, recebe-o directamente da entidade seguradora como é lógico e resulta da disposição, muito complexa embora, do art. 460º do Código Comercial.

«Como essa atribuição se faz fora do fenómeno do mecanismo da sucessão, não se rege pelos princípios desta. Portanto, não entra para o cálculo do valor total [da herança], não está sujeita a redução por violação da legítima, etc. Mas no que respeita aos prémios o problema é diverso: o pagamento destes pode efectivamente ser considerado doação indirecta, e o beneficiário do seguro que concorrer à sucessão está sujeito à colação pelo seu valor» -- in Direito das Sucessões, FDL, Lx 1980, polic, pág. 91/92.

E Capelo de Sousa, in Lições de Direito das Sucessões, I, 4ª ed, 2000, p. 34/35, referindo-se aos “seguros de vida em caso de morte durante a vida inteira do segurado”:

«Neste caso, o segurado tem a obrigação de pagar os prémios até ao fim da sua vida ou de terceiro. Por sua vez, a seguradora aquando da morte do segurado é obrigada a pagar o capital seguro à pessoa designada pelo segurado ou aos seus herdeiros.

«A este respeito, o art. 460º do Código Comercial estabelece […].

«Não nos parece, pois, que estejamos aqui perante uma doação mortis causa, uma vez que na origem de tal seguro estão os prémios pagos pelos segurados e que o capital segurado não entra no património sucessório do segurado ou de terceiro, transfere-se directamente da seguradora para o beneficiário, pelo que não há lugar aqui ao pagamento do imposto sobre sucessões. Estamos aqui perante uma doação em vida (…). Por isso mesmo, o benefício [o Autor quereria dizer “os prémios ou o prémio”] está sujeito às regras da colação, da inoficiosidade das liberalidades e da rescisão dos actos praticados em prejuízo dos credores (…)» [vd. pág. 22 e 23 sobre colocação do problema].

Também Manuel Gomes da Silva, in Lições de Direito das Sucessões, I, p. 62: «A lei considera, portanto, as quantias recebidas pelo segurador como doadas, como tal contando para o efeito de inoficiosidade, colação e acção pauliana. Mas já o mesmo não sucede com a quantia que o segurador é obrigado a pagar por morte do segurado».

No mesmo sentido, a RLJ 50º, p. 391: … «o capital segurado (…) não transita pelo património do segurado para passar para o património do beneficiário. Nem poderia passar, não só porque o capital nasce quando o segurado morre (…), mas também porque da morte do segurado depende a aquisição do direito e é evidente que uma pessoa não pode adquirir um direito cuja realização depende da sua morte» ([4]).


A mencionada doutrina refere o artigo 460º do Código Comercial, no qual se preceituava: «No caso de morte ou quebra daquele que segurou, sobre a sua própria vida ou sobre a de um terceiro, uma quantia para ser paga a outrem que lhe haja de suceder, o seguro subsiste em benefício exclusivo da pessoa designada no contrato, salvo, porém, com relação às quantias recebidas pelo segurador, as disposições do Código Civil relativas a colações, inoficiosidade nas sucessões e rescisão dos actos praticados em prejuízo dos credores».

Este preceito, revogado, foi substituído pelo seguinte preceito do artigo 200.º do RJCS:

«As relações do tomador do seguro com pessoas estranhas ao benefício não afectam a designação beneficiária, sendo aplicáveis as disposições relativas à colação, à imputação e à redução de liberalidades, assim como à impugnação pauliana, só no que corresponde às quantias prestadas pelo tomador do seguro ao segurador».

Pessoas estranhas ao benefício do seguro são, no caso, os AA, herdeiros do de cujus, pois que beneficiário do seguro é o réu, nomeado legatário do crédito a haver sobre a promitente seguradora.

Diversamente do que defendem os apelados, não há lugar a colação, desde logo porque o beneficiário do seguro não é descendente do de cujus. Poderá haver lugar a redução por inoficiosidade, isto é, por ofensa da legítima global dos herdeiros legitimários, mas essa redução só pode incidir sobre as quantias prestadas pelo tomador do seguro ao segurador e apenas na medida do necessário para preencher tal legítima que é de dois terços do acervo hereditário (acervo esse a computar, para esse efeito, nos termos do artigo 2162º do CC).


O citado artigo 200º do RJCS mantém no essencial a doutrina antes no 460º CCom e, quanto ao contrato a favor de 3º, no 450º/1 do Código Civil, que dispõe: «Só no que respeita à contribuição do promissário para a prestação a terceiro são aplicáveis as disposições relativas à colação, imputação e redução das doações e à impugnação pauliana». Segundo essa doutrina, as pessoas estranhas ao benefício visado pelo seguro apenas podem prevalecer-se do mecanismo da imputação e redução das liberalidades (ou dos outros mecanismos aí referidos) para actuarem direitos somente quanto às prestações satisfeitas pelo subscritor ao segurador [art. 207º e 208º/1 c)] e quanto aos prémios pagos ao segurador – neste sentido vd Pedro Romano Martinez et alii, op. cit, pág. 487.

O artigo 200º da LCS refere “liberalidades”. O conceito de liberalidade abrange as deixas testamentárias a título de herança ou de legado, as doações entre vivos ou por morte.
O legado não é uma doação, mas é uma liberalidade. Em termos jurídicos, por legado, entende-se o bem, valor ou conjunto de bens determinados deixados por testamento, por oposição à herança que se refere à totalidade dos bens, uma quota ou remanescente destes (vd. art. 2030º e 2249º e segs do CC).
O legado contido no testamento é remuneratório, dado que tem por fim retribuir serviços prestados ao seu autor (ponto de facto nº 1). É uma deixa remuneratória (com a preferência na redução referida no art. 2172º/3 do CC).
O artigo 2278º do CC manda considerar os legados remuneratórios como dívidas da herança. Logo, devendo ser cumpridos em 3º lugar e não em 4º lugar na enumeração que é feita no artigo 2068º ex vi do art. 2070º/2 do CC. E, como dívidas da herança, relevarão ainda para o efeito do artigo 2162º do CC.
São esses três os possíveis efeitos derivados de o legado ser remuneratório. Mas, tendo a seguradora já pago ao réu a prestação devida, não há agora algo a pagar por força da herança ou pelos herdeiros, no que ao seguro de vida respeita. Poderá sim haver algo a cumprir se havia saldo de depósitos no BCP à data da morte e foi levantado por outrem que não o legatário.
É que o legado inclui, conforme está provado, os valores que se encontrem depositados em nome do testador (isto é, à data da morte) em qualquer conta aberta no Banco Comercial Português, S.A. No caso, desconhece-se se havia à data da morte algum valor depositado em nome do de cujus nesse Banco, pois que nada foi averiguado junto desse Banco. O documento a fl. 29 mostra que na CGD estava depositada a quantia de € 10.433,58, mas este depósito não está abrangido pelo legado, antes integra o acervo hereditário.
Segundo a intenção do testador, o legado ainda incluiria «o referente à Apólice número (...) da Companhia de Seguros Ocidental», apólice do seguro de vida. Esse “referente à apólice do seguro de vida” só pode consistir nas quantias prestadas pelo tomador do seguro ao segurador, como desenvolvidamente explanámos. Quantias essas que serão pelo menos o prémio único mencionado nas Condições Gerais mas cujos montantes não estão apurados no processo nem foram alegados.

Os AA. pediram a redução das liberalidades concernentes a depósitos no BCP e ao seguro e, no que a lei pode relevar, nenhum desses valores está apurado no processo. E tais valores não estão apurados, desde logo por falta de alegação. A causa de pedir é insuficiente nesses aspectos.
Por outro lado, para se poder ajuizar se deve haver e em que medida deve operar a redução nos termos dos artigos 2168º e segs do Código Civil, mais seria necessário que estivesse alegado e provado tudo o que, em valores certos e determinados, o artigo 2162º do CC manda atender para o cálculo da legítima, ou seja:
a)- o valor dos bens existentes no património do de cujus à data da sua morte;
b)- o valor dos bens doados (salvo os bens doados referidos no artigo 2112º);
c)- as despesas sujeitas a colação;
d)- as dívidas da herança, entre as quais se contam os legados remuneratórios.
Da soma de a), b) e c) devem deduzir-se tais dívidas da herança (cf. Oliveira Ascensão, op. cit, pág. 562 ss e Capelo de Sousa, op. cit, II, pág. 123 ss).
Ora, nem sequer estão apurados todos os bens existentes no património do de cujus à data da sua morte. Apenas foi referido como existente um prédio, mas nem foi afirmado ser o único existente. Não foi mencionada a existência de quaisquer outros bens, por exemplo móveis, a não ser depósitos e sem valores apurados. Mesmo em relação ao prédio não foi alegado nem apurado um valor certo, sequer por avaliação.
Também nestes aspectos se verifica insuficiência da causa de pedir.

Em resumo: Por essas razões, a decisão recorrida deve ser revogada e, por insuficiência da causa de pedir, a acção deve ser julgada improcedente.

Sumariando:
-- Não obsta à qualificação de seguro de vida o facto de o seguro estar associado a um fundo de investimento, do tipo unit linked.
-- Celebrado um seguro de vida em caso de morte do seu tomador, o capital seguro, pago pela seguradora após a morte do tomador a um terceiro beneficiário designado em testamento por aquele tomador do seguro, não integra o acervo hereditário deste e como tal não está sujeito a redução por inoficiosidade.
-- O que é redutível por ofensa da legítima são as quantias prestadas pelo tomador do seguro ao segurador no âmbito desse seguro, por força do regime jurídico aprovado pelo DL nº 72/2008 de 16.4.
-- Para se verificar a ofensa da legítima e a medida de redução de liberalidades inoficiosas é necessário que se tenham em conta todos os bens e valores que o artigo 2162º do Código Civil manda atender para o cálculo da legítima e que se tenham em conta os valores dessas liberalidades.

IV- Decisão:
Pelo exposto, acordam em julgar a apelação procedente, revogando a decisão na parte recorrida e, consequentemente, absolvendo o réu do pedido subsidiário. 
Custas pelos AA.



Virgílio Mateus ( Relator )
Carvalho Martins
Carlos Moreira


[1] O resgate total consiste na antecipação do recebimento da prestação devida pelo segurador, calculada em função dos prémios entretanto pagos, dando, assim, origem à cessação do contrato.


[2] Neste sentido, vide Pedro Romano Martinez et alii, Lei do Contrato de Seguro Anotada, cit, p. 505.
[3] Os seguros ligados a fundos de investimento (unit linked) são seguros de vida em que o capital seguro varia de acordo com o valor das unidades de participação de um ou vários fundos de investimento. São seguros de vida de capital variável em que o valor a receber pelo beneficiário depende, no todo ou em parte, de um valor de referência constituído por uma ou mais unidades de participação. Conexionam-se com a ULIP (unit linked insurance plan), que é basicamente uma combinação de seguros e produtos de investimento, visando o investidor aproveitar os benefícios do seguro, bem como do investimento. O primeiro ULIP foi lançado na Índia em 1971 pela Unit Trust of India (UTI) e através desse instrumento o governo da Índia tentou a abertura do sector de seguros aos investidores estrangeiros a partir de 2001. A part of the premium paid is utilized to provide insurance cover to the policy holder while the remaining portion is invested in various equity and debt schemes.


[4] Ver, no mesmo sentido, J. A. Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, I, 5ª ed, 2006, p. 465 s.