Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1160/19.2T8CTB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: APOIO JUDICIÁRIO
NOMEAÇÃO DE PATRONO
JUNÇÃO DE DOCUMENTO COMPROVATIVO
ÓNUS
PRAZO
INTERRUPÇÃO
Data do Acordão: 03/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - C.BRANCO - JL CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.24 Nº4 LEI Nº 34/2004 DE 29/7
Sumário: 1.- Cabe ao requerente de apoio judiciário, na modalidade de nomeação de patrono, em processo pendente, o ónus de juntar ao processo o comprovativo do respectivo pedido de apoio para beneficiar da interrupção do prazo em curso.

2.- A interpretação do art.º 24º, nº 4, da Lei 34/2004 de 29/7 que vê nele um ónus a cargo do requerente do apoio judiciário, não é inconstitucional por violação do princípio da indefesa e do acesso à justiça.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            Está em causa a seguinte decisão:
“H(…) e M(…) vieram opor-se mediante embargos de executado à execução ordinária instaurada pela sociedade “G (…), S.A.” contra si tendo por base uma livrança.

“O prazo para os executados deduzirem oposição à execução mediante embargos é de 20 dias (artigos 728.º, n.º1 e 856.º, n.º1 CPC) a contar da citação para o processo executivo; e em caso de recurso ao apoio judiciário é de 20 dias a partir da notificação ao patrono nomeado da sua designação mas desde que o prazo em curso tenha sido interrompido pelo requerente da nomeação de patrono com a junção ao processo executivo do documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo (cfr. artigo 24.º, n.ºs 4 e 5, alínea a), da Lei n.º 34/2004, de 29/07).

“Ora, os executados foram citados para os termos da execução por carta registada com aviso de recepção, nos termos previstos no artigo 228.º, e os avisos de recepção foram assinados no dia 10 de Setembro de 2019 – cfr. referências 2066790 e 2068000.

“Consta da citação efectuada que os executados dispõem do prazo de 20 dias a que acresce uma dilação de mais 5 dias caso o aviso de recepção tenha sido assinado por terceira pessoa, nos termos do disposto no artigo 245.º do CPC, para se oporem à execução.

“O prazo terminou no dia 5 de Outubro de 2019.

“É verdade que no processo executivo há notícia de que os executados requereram apoio judiciário incluindo a modalidade de nomeação de patrono uma vez que a “Ordem dos Advogados” comunicou ao tribunal a nomeação do ilustre patrono oficioso a 9 de Outubro de 2019 mas a verdade é que os embargos de executado apenas foram propostos a 25 de Outubro de 2019, ou seja, é manifesto que não chegou a haver interrupção do prazo que se iniciou com a citação dos executados e que, portanto, já se encontrava extinto o direito de deduzir oposição à execução através de embargos de executado, pelo decurso do respectivo prazo peremptório, quando foi apresentada a petição inicial.

“Escreveu-se no acórdão da Relação do Porto de 06.12.2016, no processo n.º 1488/12.2TBFLG-A.P1, disponível em www.dgsi.pt: “Não se mostra gravoso para o requerente do Apoio Judiciário, em termos de lesar o seu direito de aceder à Justiça, exigir que ele documente nos autos a apresentação do requerimento de Apoio nos serviços de segurança social, no prazo judicial em curso, para que este se interrompa, pois que se trata de uma diligência que não exige quaisquer conhecimentos jurídicos e que, portanto, a parte pode praticar por si só, com o mínimo de diligência a que, como interessado, não fica desobrigada pelo facto de se encontrar numa situação de carência económica.” (ver também os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 28-09-2015, no processo n.º 659/13.9TVPRT.P1; de 06-03-2017, no processo n.º 2009/14.8TBPRD-B.P1; do Tribunal da Relação de Évora de 12-04-2018, no processo n.º1811/13.1TBPTM-A.E1; e da Relação de Coimbra de 21.05.2019, no processo n.º 713/18.0T8CBR-A.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

“Dispõe o n.º 1 do artigo 732.º do CPC que “Os embargos, que devem ser autuados por apenso, são liminarmente indeferidos quando: a) Tiverem sido deduzidos fora de prazo; b) O fundamento não se ajustar ao disposto nos artigos 729.º e 731.º; c) Forem manifestamente improcedentes.”

“Em face do exposto, e por se mostrarem intempestivos, indefiro liminarmente os embargos à execução deduzidos pelos executados H (…)e M (…).” (Fim da citação.)


*

Inconformados, os Embargantes recorreram e apresentam as seguintes conclusões:

1. Os Recorrentes apresentaram o seu pedido de apoio judiciário dentro do prazo de 20 dias, previsto no artigo 728.º, n.º 1, do C.P.C.

2. Não juntaram aos autos documento comprovativo do pedido de apoio judiciário.

3. Foi nomeado causídico para os representar e defender os seus legítimos interesses no âmbito do processo executivo.

4. Entendeu o douto Tribunal a quo que, segundo o disposto no artigo 24.º, n.º 4, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Junho, de conformidade com a última redação que lhe foi atribuída, a interrupção do prazo previsto no artigo 728.º, n.º 1, do C.P.C., teria que ser efetuada com a junção aos autos pelos Executados do documento comprovativo do pedido de apoio judiciário, por força do preceituado no artigo 24.º, n.º 4, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho.

5. Tendo o douto Tribunal a quo entendido que o prazo de defesa terminou no dia 5.OUT/2019, quando a nomeação do patrono oficioso ocorreu apenas a 9.OUT/2019.

6. O douto Tribunal a quo limita-se a efetuar uma interpretação literal e acrítica do artigo 24.º, n.º 4, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Junho.

7. Que, em consequência, impossibilita os Recorrentes de recorrerem ao Tribunal.

8. A execução do artigo 20.º, da CRP. não pode ser impedida por acasos burocráticos e por falta de junção a processos judiciais dos comprovativos de pedidos de apoio judiciário, quando foi requerida a concessão de patrono oficioso, uma vez que a Constituição pretende, com o n.º 2 do normativo supra referido, é que efetivamente todos os cidadãos tenham acesso a um patrono judiciário.

9. Esta garantia consagrada na Constituição da República Portuguesa impede que o acesso aos Tribunais não seja dificultado em função da condição económica das pessoas.

10. Garantia que, no caso vertente, foi concretizada na concessão de apoio judiciário.

11. Uma interpretação de harmonia com o previsto no artigo 9.º, do Código Civil, de acordo com a qual a interpretação de um preceito legal não deve cingir-se à letra da lei, mas, outrossim, reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico.

12. Uma interpretação estritamente literal do artigo 24.º, n.º 4, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, no sentido propugnado pela decisão judicial prolatada pelo Tribunal a quo, afigura-se-nos, no nosso modesto entender, que se traduz num desrespeito pela garantia constitucional do processo equitativo e de violação do direito fundamental de acesso ao direito e os tribunais, na sua vertente de proibição de indefesa.

13. Nessa medida, cumpre referir que a interrupção dos prazos em curso é essencial para respeitar a garantia de acesso ao Direito e aos Tribunais, por parte dos cidadãos economicamente carenciados, contida no artigo 20.º, n.º 1, da Lei Fundamental, em conjugação com o imperativo constitucional de igualdade entre os cidadãos, consagrado no artigo 13.º, n.º 1, da C.R.P., na vertente da igualdade de armas.

14. A norma do artigo 24.º, n.º 4, da Lei n.º 34/2004, com a redação e interpretação perfilhada pela douta sentença recorrida, é incompatível com o respeito pelo processo equitativo, na dimensão de igualdade substantiva entre as partes e de proibição da indefesa, consagrado constitucionalmente no artigo 20.º, n.º 4, da Lei Fundamental, razão pela qual tal normativo e interpretação nesse sentido é materialmente inconstitucional, por violação daquele preceito constitucional.

15. Dito isto, para cumprir tais imperativos constitucionais, impõe-se que a interpretação da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, se efetue de forma adequada à garantia e salvaguarda dos direitos de defesa constitucionalmente consagrados, por parte daqueles que carecem de meios económicos para suportarem os honorários decorrentes do mandato

forense, para assegurarem a sua representação ou patrocínio judiciários em termos adequados e equitativos.

16. Tanto mais que se mostra claramente estatuído na Lei Processual Civil a gravidade das consequências para os Executados/Embargantes, ora Recorrentes, da não dedução de oposição mediante embargos, tal qual foram consideradas na douta Sentença recorrida, ou seja, o indeferimento liminar dos embargos, por intempestivos, nos termos do disposto no artigo732.º, n.º 1, alínea a), bem como a confissão dos factos invocados pela Exequente, enquanto revelia operante, em conformidade com o preceituado no artigo 567.º, n.º 1, ambos do C.P.C..

17. Acresce ainda que tal não pode deixar de considerar-se como consequência da necessidade de existência de um processo equitativo em que a ambas as partes possa ser assegurado o acesso à Justiça e à tutela jurisdicional efetiva.

18. De igual modo, ao abrigo do princípio da cooperação, previsto no artigo 7.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C., nada obsta, mas antes aconselha com vista a uma maior brevidade na justa composição do litígio que, efetuada a citação do Executado, o Juiz profira despacho ao abrigo deste princípio basilar, para que o Executado informe os autos se requereu ou não a concessão de apoio judiciário, para efeitos de interrupção do prazo de dedução de embargos, o que não sucedeu.

19. Termos em que, pelas razões supra expostas, no nosso modesto entender, a interpretação perfilhada pelo douto Tribunal a quo violou, assim, o disposto no artigo 24.º, n.º 4, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Junho, bem como os artigos 13.º, 18.º e 20.º, ambos da C.R.P., padecendo, ainda, de inconstitucionalidade material, por violação do princípio constitucional da igualdade e dos direitos fundamentais de acesso ao Direito e aos Tribunais e do processo equitativo.

20. Além do mais, em matéria de direitos fundamentais, não podemos esquecer o regime consagrado no artigo 18.º CRP, que estabelece que: “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”

21. Assim, da aplicação do princípio da proporcionalidade ao confronto entre o direito de acesso à justiça VS certeza jurídica aos prazos perentórios, deveremos chegara à conclusão, no nosso modesto entendimento, que deve ceder a certeza jurídica (aos prazos perentórios) perante o direito de acesso à justiça.

22. Aliás, na análise das consequências resultantes, por um lado, a possibilidade de uma total indefesa por impedimento de acesso à justiça de quem recorreu ao sistema de apoio judiciário, por outro lado, a consequência de o caso ser analisado pelo Tribunal competente, no mesmos termos em que seria caso não houvesse nenhum percalço burocrático-processual, resulta claro, no nosso entendimento, que a segunda será sempre menos gravosa (i.e., mais adequada), que a primeira, por aplicação do princípio da proporcionalidade.

23. Pelo exposto, o artigo 24.º, n.º 4, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, é inconstitucional quando interpretado no sentido de que para que haja interrupção do prazo é necessária uma tramitação processual por parte do cidadão economicamente carenciado, para além do requerimento de apoio judiciário já dirigido aos Serviços de Segurança Social, por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, do princípio da igualdade e do princípio da proporcionalidade.

24. Pelo exposto, a douta sentença violou os artigos: 13.º, 18.º, 20.º ambos da Constituição da República Portuguesa, o artigo 9.º do Código Civil, e artigo 24.º, n.º 4, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, ao fazer uma interpretação estritamente literal deste último, pelo que, deve a mesma se revogada e, em consequência, devem ser admitidos os embargos de executado apresentados em sede de processo executivo, devendo o processo seguir os seus termos até final.


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            Não foram apresentadas contra-alegações.

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A questão a decidir é a de saber se a interpretação do art.º 24º, nº 4, da Lei 34/2004, que vê nele um ónus a cargo do requerente do apoio judiciário, é inconstitucional.

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Os factos a considerar são os que resultam do relatório antecedente e ainda o seguinte:

Consta do formulário relativo ao pedido de apoio judiciário o seguinte ponto:

«5.1 Do requerente.

Tomei conhecimento de que devo:

(…)

Entregar cópia do presente requerimento no tribunal onde decorre a ação, no prazo que me foi fixado na citação/notificação»


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O art.º 24º da Lei 34/2004 dispõe o seguinte, estando especialmente em causa o seu nº 4:

(Autonomia do procedimento.)

1 - O procedimento de proteção jurídica na modalidade de apoio judiciário é autónomo relativamente à causa a que respeite, não tendo qualquer repercussão sobre o andamento desta, com exceção do previsto nos números seguintes.

2 - Nos casos previstos no n.º 4 do artigo 467.º do Código de Processo Civil e, bem assim, naqueles em que, independentemente das circunstâncias aí referidas, esteja pendente impugnação da decisão relativa à concessão de apoio judiciário, o autor que pretenda beneficiar deste para dispensa ou pagamento faseado da taxa de justiça deve juntar à petição inicial documento comprovativo da apresentação do respetivo pedido.

3 - Nos casos previstos no número anterior, o autor deve efetuar o pagamento da taxa de justiça ou da primeira prestação, quando lhe seja concedido apoio judiciário na modalidade de pagamento faseado de taxa de justiça, no prazo de 10 dias a contar da data da notificação da decisão que indefira, em definitivo, o seu pedido, sob a cominação prevista no n.º 5 do artigo 467.º do Código de Processo Civil.

4 - Quando o pedido de apoio judiciário é apresentado na pendência de ação judicial e o requerente pretende a nomeação de patrono, o prazo que estiver em curso interrompe-se com a junção aos autos do documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo.

            (…)

A jurisprudência é unânime no sentido da interpretação feita pelo Tribunal recorrido e que é também a nossa.

            Cf., entre outros, os seguintes acórdãos, mais recentes, em www.dgsi.pt:

            Nesta secção da R.C., de 21.05.2019, proc. 713/18;

Na R.P., de 24.10.2019, proc. 7470/18;

Na R.L., de 24.09.2019, proc. 8309/16;

Na R.G., de 19.09.2019, proc. 340/18;

E na R.E., de 12.04.2018, proc. 1811/13.

Esta interpretação não é inconstitucional, como já o declarou o Tribunal Constitucional, na senda de anteriores decisões. Cf. o Acórdão 585/16, no proc. 503/2016.

            No essencial, na consideração da proteção do acesso à Justiça e na preservação da segurança e certeza jurídicas, concretizadas nos prazos, concordamos que, “independentemente dos conhecimentos jurídicos de que disponha, qualquer cidadão tem a perceção de que, correndo um processo contra si e tendo-lhe sido assinado um prazo para a apresentação da sua defesa, bem como da obrigatoriedade de constituição de mandatário judicial, tem de dar conhecimento aos autos das diligências que encetou para neles se defender e de que esse efeito tem prazos a observar.”

O próprio requerimento de proteção jurídica, imediatamente antes da assinatura do requerente, contém essa advertência.

“Se é certo que outro sistema poderia ser implementado, mais cómodo para o cidadão, como seja a comunicação direta da Segurança Social ao tribunal, certo é que esta matéria do processo de comunicação da dedução do requerimento de proteção jurídica ao processo judicial para que é requerida, ainda cabe nos poderes de conformação do legislador ordinário, sem que isso atente contra o direito fundamental de acesso ao direito.”

Não se considera excessivo ou violador de cautela, em termos de lesar o direito de alguém aceder à Justiça, exigir que ele documente nos autos que conhece a apresentação do requerimento de apoio judiciário, no prazo judicial em curso, para que este se interrompa.

            Esta diligência não exige conhecimentos jurídicos e está acessível a qualquer cidadão, mais quando foi advertido para o efeito.


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Está certificado que os Recorrentes não juntaram aos autos documento comprovativo do pedido de apoio judiciário.

O prazo de oposição decorreu, sem que tivesse sido interrompido por qualquer comprovativo do pedido de apoio judiciário ou outra comunicação do mesmo.


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Decisão.

            Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Sem custas.

Coimbra, 2020-03-17

Fernando de Jesus Fonseca Monteiro ( Relator )

Ana Vieira

António Carvalho Martins