Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1167/10.5TBACB-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
RESOLUÇÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
ALTERAÇÃO ANORMAL DAS CIRCUNSTÂNCIAS
Data do Acordão: 11/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA – 3º
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 120º E 121º DO CIRE; 437º C. CIVIL; 3º DO CPC.
Sumário: 1. Traduzindo-se na garantia das partes a uma efectiva participação em todos os actos do processo, o princípio do contraditório encontra-se ao serviço do princípio da igualdade das partes, sendo que a prévia audição das partes visa colocá-las em paridade, dando-lhes a oportunidade de influenciar a decisão judicial que vai ser tomada.

2. Há decisão surpresa se o juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correcta e atinada decisão do litígio.

Ou seja, apenas estamos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever.

3. A resolução em benefício da massa insolvente é um instituto especial do processo de insolvência que se destina à tutela da generalidade dos credores do insolvente, na medida em que permite ao Administrador da Insolvência que a eficácia de toda uma panóplia de actos seja destruída, verificados que sejam certos requisitos de ordem temporal, subjectiva e objectiva.

4. No entanto este instituto da resolução em benefício da massa insolvente não afasta a aplicabilidade dos normativos constantes dos artºs 432º sgs. do Código Civil, antes representando um meio de protecção acrescida dos credores.

5. Ao falar na alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, a norma do artigo 437º do Código Civil quer, manifestamente, aludir às modificações contra as quais, pelo seu carácter imprevisto, as partes não possam e não devam acautelar-se, já que este instituto situa-se no ponto de encontro entre a segurança na estabilidade das relações contratuais com o princípio da boa-fé que domina o direito das obrigações.

6. No tocante à modificação do contrato que o artigo 437º do Código Civil prevê, é preciso conciliar a segurança da força vinculativa dele com a justiça relativa que o inspirou, no contexto histórico e circunstancial, em que foi celebrado.

7. Por isso, só por si as crises financeiras não podem ser consideradas circunstâncias anormais, que escapam à regra, totalmente imprevisíveis, mas antes situações cíclicas e repetidas no tempo.

Decisão Texto Integral: 1.Relatório

A Massa Insolvente de A…, Lda. demanda J…, peticionando, em síntese, a redução equitativa do preço contratado ao valor real do imóvel objecto do contrato promessa com o mesmo celebrado e a condenação do réu a restituir à autora o valor recebido em excesso; ou, subsidiariamente, a resolução do referido contrato promessa, com a consequente restituição de todo o prestado.

Louva o seu pedido na celebração com o réu de um contrato promessa de compra e venda de um bem imóvel, pelo valor de € 1.546.274,00, tendo a autora procedido já ao pagamento da quantia de € 1.004.314,80, a título de sinal e princípio de pagamento, encontrando-se em dívida o pagamento da quantia de € 541.959,20, acrescida de juros de mora vencidos.

Pretendia a autora, com a celebração do referido negócio a rentabilização do seu investimento da forma mais lucrativa possível, prevendo o início da construção no terreno em causa de apartamentos de diversas tipologias, logo após a outorga da escritura pública de compra e venda. Tais apartamentos seriam colocados à venda, junto da população - alvo do Reino Unido e Irlanda, pelo valor médio de € 200.000,00 cada T1, e € 300.000,00 cada T2.

Previa a autora obter, com o referido negócio, um rendimento global de € 2.500.000,00.

O ano de 2006 corria de forma bastante favorável para o turismo algarvio, permitindo consolidar os resultados do ano de 2005 e obter bons resultados em 2007.

Ainda que não lograsse a edificação do empreendimento projectado, sempre a autora conservaria a possibilidade de recuperar o valor despendido com a sua aquisição, através da alienação do mesmo a terceiro, por montante igual ou mesmo superior ao valor aquisitivo.

Ao prometer comprar o imóvel em causa pelo preço convencionado, estava a autora convicta de que aquele preço correspondia ao valor justo do imóvel, por referência ao seu valor de mercado, tendo sido com base nesse pressuposto que projectou e planificou todo o seu investimento, assumindo todos os riscos inerentes a um negócio de valor tão avultado.

O réu tinha pleno conhecimento das intenções da autora e, bem assim, das suas expectativas ao celebrar o referido contrato promessa.

Sucede que em meados do ano de 2007 deflagrou uma crise no sistema imobiliário e financeiro norte-americano que rapidamente se propagou por todo o mundo, que originou uma redução drástica das importações, o que determinou a redução de investimentos estrangeiros e a diminuição do volume de negócios nas bolsas de valores de todo o mundo.

Como é sabido, Portugal não tem sido imune à referida crise, pois que a mesma originou um abrandamento gradual da economia e a imposição de novas restrições à concessão de crédito à habitação.

Tal crise teve forte impacto na economia portuguesa, em especial, nas empresas do ramo imobiliário, entre as quais, a ora autora.

Atenta a sua dificuldade de financiamento, os Bancos portugueses restringiram o acesso ao crédito, o que determinou a redução do poder de compra e o incremento das dificuldades sentidas no meio empresarial.

Tal redução da capacidade de consumo teve impacto negativo ao nível do turismo algarvio, com redução das taxas de ocupação e consequente diminuição do volume de negócios, face ao decréscimo da procura.

A redução da procura face à oferta imobiliária existente, associada aos restantes factores próprios da crise do sector, veio determinar a estagnação e subsequente descida de preços dos imóveis disponíveis no mercado.

Em função de toda esta conjuntura económica, a partir de Maio de 2008 a autora, à semelhança da generalidade das empresas de construção civil, deparou-se com sérias dificuldades financeiras, em virtude de não dispor de capacidade para fazer face ao seu crescente endividamento – o que veio inclusive a determinar a sua apresentação à insolvência em Junho de 2010.

Se tivesse previsto, ou pelo menos suspeitado, da possibilidade de ocorrência de uma tal quebra ao nível do mercado imobiliário, jamais teria a autora assumido o compromisso que assumiu, no contrato promessa em causa nos autos.

Considera assim a autora que se alteraram, de forma anormal, as circunstâncias em que as partes fundaram a sua decisão de contratar, pelo que tem a autora direito à redução do preço contratado à quantia de € 400.000,00 (correspondente ao valor de mercado actual do imóvel em causa) ou, caso assim se não entenda, à resolução do contrato promessa celebrado com o réu.

Contestou o réu a acção proposta, invocando, em síntese:

A excepção de incompetência territorial, por considerar ser competente o Tribunal Judicial da Comarca de Albufeira, onde o mesmo reside e onde foi celebrado o contrato em causa nos autos, julgada improcedente.

 A excepção de prescrição do direito à resolução, por decurso dos prazos previstos na lei para o efeito e, impugnando a generalidade dos factos alegados pela autora, que considera não consubstanciarem uma alteração anormal das circunstâncias.

Deduziu pedido reconvencional, no qual peticiona o reconhecimento de que a autora é a única e exclusiva responsável pelo não cumprimento do contrato celebrado, com a consequente perda do sinal pago, ou, em alternativa, a execução específica do contrato celebrado, que a 1.ª instância não admitiu.

Mais requereu a condenação da autora como litigante de má-fé, uma vez que o Administrador de Insolvência da autora não recusou nem exigiu ainda o cumprimento do contrato promessa celebrado entre as partes, vindo alegar um fundamento desajustado da realidade factual e negocial que esteve na base do negócio celebrado.

A 1.ª instância decidiu assim:

“Por tudo quanto fica exposto, decide este Tribunal julgar a presente acção totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, ABSOLVER o réu de todos os pedidos formulados.

Mais se decide julgar improcedente, por não provado, o pedido de condenação da autora como litigante de má fé, e, em consequência, ABSOLVER a autora do pedido formulado.

…”.

A autora, MASSA INSOLVENTE DE A…, LDA, inconformada com o assim decidido interpôs o Competente RECURSO DE APELAÇÃO, assim concluindo:

2. Do objecto do recurso.

Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­ga­ções da recorrente cumpre apreciar as seguintes questões:

I. O Tribunal proferiu decisão surpresa?

II.A autora tem direito a reduzir equitativamente o contrato promessa celebrado com o réu, ou, caso assim se não entenda, à resolução de tal negócio, nos termos peticionados?

A 1.ª instância fixou assim a matéria de facto:

I – Da decisão surpresa.

Por considerar estar o processo pronto a decidir, nos termos do art.º 510º, nº 1, al. b) do Código do Processo Civil – será o diploma a citar sem menção de origem -, a 1.ª instância conheceu, de imediato, do mérito da causa, dispensando a realização de audiência preliminar ao abrigo do art.º 508º-B/1/b do mesmo diploma.

Diz a apelante que tal procedimento configura uma clara e evidente nulidade processual, violando a decisão recorrida o disposto no nº 3 do art.º 3º do diploma em apreço.

Que ao prescindir de tal convocação, privou o Tribunal a quo as partes de cooperarem e comparticiparem na audiência preparatória, num debate fáctico-jurídico esclarecedor, com vista à prolação de uma decisão judicial reflectida e ponderada.

Não foi, pois, assegurado o contraditório, deparando-se as partes, aquando da notificação do despacho saneador-sentença, com uma decisão surpresa, em clara violação do art. 3º, nº 3 já mencionado.

Omitiu-se, assim, um acto imposto por Lei e, como tal, obrigatório que, obviamente, influiu na decisão da causa (vista a ausência de cooperação das partes sobre o aspecto fáctico-jurídico da causa - art.º 201º, nº 1), omissão determinante da nulidade ora invocada e que deve, nesta sede, ser conhecida.

Salvo o devido respeito, a apelante carece de razão.

Como sabemos, findos os articulados e concluídas as diligências tendentes ao suprimento das excepções dilatórias, deve ser convocada uma audiência preparatória que faculte às partes a discussão de facto e de direito, sempre que o juiz tencione conhecer, de imediato, no todo ou em parte, do mérito da causa.

Tal obrigatoriedade só não se verificará nos casos em que a matéria aduzida revista manifesta simplicidade.

Escreveu assim a 1.ª instância:

“Não urge actuar o contraditório, nem a causa reveste complexidade que fundamente a necessidade de realizar audiência preliminar, pelo que dispenso a sua realização, ao abrigo do que dispõe o artigo 508º-B, nº 1, alínea b) do CPC.

Cumpre proferir despacho saneador para os efeitos previstos no artigo 510º, nº 1, alínea b) do CPC”.

Dispõe o art.º 510º, nº 1, al. b) que, findos os articulados, o juiz profere despacho saneador destinado a “conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória”.

A redacção deste artigo resulta das alterações introduzidas pela reforma de 1995-1996, mas como já referia o Prof. Castro Mendes, no seu Direito Processual Civil, Vol. II, pág. 638, a questão de mérito nunca pode ser unicamente de direito, pelo que pode conhecer-se do mérito da causa “sempre que os factos necessários para a resolução do litígio estejam já provados no processo, não carecendo por isso de ulterior instrução e actividade probatória”.

Tal sucederá quando toda a matéria de facto se encontra provada por confissão expressa ou tácita, por acordo ou por documento, quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental que já se mostre feita ou quando seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis, a prova dos factos que permanecem controvertidos.

Quanto a esta última hipótese, escreve o Conselheiro Abrantes Geraldes - Temas da Reforma de Processo Civil, Vol. II, 4ª ed. rev. e act., pág. 132 - que “se, de acordo com as soluções plausíveis da questão de direito, a decisão final de modo algum puder ser afectada com a prova dos factos controvertidos, não existe qualquer interesse na elaboração da base instrutória e, por isso, nada impede que o juiz profira logo decisão. Tanto faz que esta decisão seja favorável ao autor como ao réu. Se o conjunto de factos alegados pelo autor (factos constitutivos) não preenche de modo algum as condições de procedência da acção torna-se indiferente a sua prova e, por conseguinte, inútil toda a tarefa de selecção da matéria de facto, instrução e julgamento da mesma”.

Por outro lado, o princípio do contraditório, um dos princípios estruturantes do processo civil, assumiu uma dimensão mais aprofundada com a reforma do Processo Civil operada pelo DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, e pelo DL nº 180/96 de 25 de Setembro.

Consagrado no artigo 3º, nº 3, decorre deste princípio, conforme consta do preâmbulo daquele primeiro diploma legal, a proibição da prolação de decisões surpresa, não permitindo aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente tenha sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

Traduzindo-se na garantia das partes a uma efectiva participação em todos os actos do processo, o princípio do contraditório encontra-se ao serviço do princípio da igualdade das partes.

A prévia audição das partes visa colocá-las em paridade, dando-lhes a oportunidade de influenciar a decisão judicial que vai ser tomada.

Como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 259/2000, “A norma contida no artigo 3°, nº 3 do CPC resulta (…) de uma imposição constitucional, conferindo às partes num processo o direito de se pronunciarem previamente sobre as questões - suscitadas pela parte contrária ou de conhecimento oficioso - que o tribunal vier a decidir.” - DR, II série, de 7 de Novembro de 2000 -.

Há decisão surpresa se o juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correcta e atinada decisão do litígio.

Ou seja, apenas estamos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever - neste preciso sentido, os Acórdãos do STJ de 29.09.1998 e de 14.05.2002, ambos retirados do site www.dgsi.pt.

No caso dos autos, a autora e o réu tiveram clara oportunidade de debater e expor no processo as suas razões de facto e de direito através dos respectivos articulados, nos quais foram suscitadas e discutidas todas as questões relevantes para a decisão de mérito, sendo que a sentença recorrida não tratou de qualquer questão que não tivesse sido suscitada pelas partes e objecto do necessário contraditório.

Aliás, a autora não concretiza na sua alegação qual ou quais os pontos de facto ou as razões de direito que escaparam à observância daquele princípio, limitando-se a afirmar, de forma genérica, que a falta de convocação da audiência preliminar consubstanciou violação do dito princípio, o que, diga-se, não é suficiente, nem corresponde à realidade.

Por um lado, as partes não podem valer-se de vagas e genéricas afirmações de violação de um qualquer princípio estruturante do processo civil, sendo-lhes exigível um esforço de concretização que permita apreender em que medida, no seu entender, a invocada inobservância de contraditório existiu, relativamente a que matéria e de que forma tal se reflectiu na sorte do processo.

Por outro lado, não se vislumbra como, no caso vertente, a falta de convocação e realização da audiência preliminar coarctou às partes o direito a exercerem o contraditório no processo antes de ser proferida a decisão, face às posições já expressas nos respectivos articulados, nos quais, como se referiu, tomaram posição definida relativamente à controvérsia.

Acresce que, a seguir-se o entendimento da autora, jamais teria lugar a dispensa da audiência preliminar com fundamento na manifesta simplicidade da causa, ao abrigo do disposto na 2ª parte da al. b) do nº 1 do artigo 508º-B do Código de Processo Civil, ou seja, quando o conhecimento do mérito revestir particular facilidade quer do ponto de vista fáctico, quer jurídico.

E tal acontece no caso presente, uma vez que a matéria de facto relevante se encontra assente por acordo das partes ou provada documentalmente e a questão de direito está circunscrita à existência do conceito de “alteração anormal das circunstâncias” previsto na norma do art.º 437º do Código Civil.

Não ocorreu, por conseguinte, a invocada violação do princípio do contraditório, sendo caso de dispensa da audiência preliminar.

 II. Dos Pedidos de Redução do Preço/resolução do negócio

Como questão prévia haverá que dizer o seguinte:

Escreve a apelante.

“…O princípio processual da auto-suficiência, referenciado ao processo insolvimentar não permite concluir que o mesmo contém, em si, todas as soluções necessárias ao regular cumprimento do seu objectivo primeiro, identificado com a satisfação dos credores por qualquer dos mecanismos aí previstos.

Configurando-se o processo de insolvência como uma execução universal, i.e., como um processo de natureza complexa que conjuga em si momentos de pendor declarativo enxertados numa sequência de actos de natureza essencialmente executiva, não pode admitir-se, como princípio, a exclusão da aplicação do Código Civil, não se verificando uma exacta identidade entre os Institutos previstos art.º 120º e seguintes do C.I.R.E.

O Instituto da resolução em benefício da massa insolvente não afasta a aplicabilidade dos normativos constantes do art.º 432ºss do C.C., antes representa um meio de protecção acrescida dos credores, na medida em que, não fora a previsão constante do CIRE, na generalidade dos casos, a resolução negocial de acordo com as regras gerais não seria legalmente viável (vejam-se os artigos 432º, 437º e 801º, nº 2, do Código Civil)”.

Tem razão naquilo que escreve.

É um facto que as resoluções de actos em benefício da massa - as situações previstas nos artigos 120º e 121º do CIRE - traduzem um acréscimo de tutela, acrescentam um meio de defesa do património do insolvente, no quadro da execução universal em benefício de todos os credores - tendencialmente colocados em situação de igualdade -.

Uma das dimensões desta colocação em plano de igualdade dos credores traduz-se numa projecção retroactiva limitada da protecção ao património do insolvente, através dos mecanismos da resolução previstos nos artigos 120º e 121º do CIRE.

Como se escreve no Acórdão desta Relação de Coimbra, de 14.5.2013 – retirado do site www.dgsi.pt -, “não se pretende, ao estabelecer essas possibilidades de resolução, diminuir ou condicionar a tutela do património do insolvente, quando essa tutela careça, efectivamente, da propositura de acções. Não se pretende, ao estabelecer essas possibilidades de resolução, diminuir ou condicionar a tutela do património do insolvente, quando essa tutela careça, efectivamente, da propositura de acções”.

E no Acórdão de 24.05.2011 – que a apelante invoca -, “A resolução em benefício da massa insolvente é um instituto especial do processo de insolvência que se destina à tutela da generalidade dos credores do insolvente na medida em que permite ao Administrador da Insolvência que a eficácia de toda uma panóplia de actos seja destruída, verificados que sejam certos requisitos de ordem temporal, subjectiva e objectiva…”

Vale por dizer, como, aliás, acrescenta a mesma decisão, que o instituto da resolução em benefício da massa insolvente não afasta a aplicabilidade dos normativos constantes dos artºs 432ºss do Código Civil, antes representa um meio de protecção acrescida dos credores, “…porquanto, não fora a previsão constante do CIRE, de acordo com as regras gerais, na generalidade dos casos, a resolução negocial não seria legalmente viável (vejam-se os artigos 432º, 437º e 801º, nº 2, do Código Civil).”

Avançando.

A presente instância de recurso tem por fundamento a decisão proferida pelo Tribunal de Alcobaça, por via da qual esse Tribunal julgou totalmente improcedente a pretensão da Massa Insolvente Autora e ora Recorrente traduzida na redução equitativa do preço contratado ao valor real do imóvel objecto do contrato-promessa outorgado em 18.10.2006 e ora em apreço e, consequentemente, na condenação do ora Réu na restituição, a favor da Massa Insolvente ora Autora, do valor que, em consequência da redução decretada, viesse a revelar-se como tendo sido entregue em excesso, acrescido de juros até integral pagamento e, subsidiariamente, na declaração da resolução do mesmo contrato-promessa, com a consequente restituição de todo o prestado na sequência da sua celebração acrescido de juros até integral pagamento, caso não se entendesse procedente a modificação do contrato celebrado conforme superiormente peticionado.

Escreve, a esse propósito a 1.ª instância:

Revertendo todas estas considerações ao caso em apreço, considera-se que a matéria supra enunciada não é susceptível de integrar o conceito de alteração anormal das circunstâncias previsto no artigo 437º do CC, de molde a determinar a peticionada modificação do contrato celebrado.

Na verdade, considera-se, em primeiro lugar, que não ocorreu qualquer alteração anormal das circunstâncias, uma vez que as crises financeiras não podem ser consideradas circunstâncias anormais, que escapam à regra, totalmente imprevisíveis, mas antes situações cíclicas e repetidas no tempo.

Ademais, considera-se que a crise financeira consubstancia um risco próprio do negócio celebrado entre as partes, sendo certo que nenhuma das partes desconhecia (como não desconhece qualquer pessoa que compra ou vende imóveis) a possibilidade de ocorrência de uma crise financeira.

Por outro lado, dos factos provados não resulta que a promessa de celebração do contrato de compra e venda tinha subjacente a venda, pela autora, ao preço que perspectivava, dos apartamentos que viria a construir.

Na verdade, além da possibilidade de ocorrência de uma crise financeira, sabia a autora que sempre correria o risco de não vender a totalidade das fracções construídas – não lhe sendo de igual forma lícito vir exigir ao réu a redução do preço entretanto pago.

Considera-se, assim, que os factos alegados pela autora não integram o conceito de alteração anormal das circunstâncias ínsito no referido artigo 437º do Código Civil, o que inviabiliza a procedência do pedido de redução do preço contratado, formulado pela mesma nos autos…”.

Mais se pronunciou o mesmo Tribunal pela improcedência do pedido de resolução do negócio formulado, na medida em que, segundo afirma, encontrando-se a Promitente-Compradora Insolvente e não cabendo o circunstancialismo fáctico invocado em qualquer das hipóteses enunciadas nos art.º 120º e seguintes do C.I.R.E., inexistirá fundamento legal para a pretendida resolução.

Como é sabido, os contratos só podem modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento das partes ou nos casos admitidos pela lei – artigos 405.º e 406.º do Código Civil -.

Ora, um desses casos é a chamada alteração anormal das circunstâncias determinantes da declaração contratual.

Como se escreve no Acórdão do STJ de 10.1.2013, retirado do site www.dgsi.pt,“…nos termos do art. 437º, nº 1, do CC, para que seja possível a resolução ou, ao menos, a modificação das cláusulas do contrato fundada na alteração anormal das circunstâncias é necessário: (i) que a alteração ocorrida não seja o desenvolvimento previsível de uma situação conhecida à data da celebração do contrato e (ii) que essa alteração torne o cumprimento da obrigação ofensivo dos princípios da boa fé. II - Enquanto o erro na base do negócio é unilateral, na alteração das circunstâncias a base do negócio é bilateral, pois que respeita simultaneamente aos dois contraentes: o art. 437º, n.º 1, do CC fala, acentuadamente, das circunstâncias em que as partes (no plural) fundaram a decisão de contratar; não referindo as circunstâncias em que o lesado com a superveniente modificação teria fundado a sua decisão de contratar. III - Muito embora a crise económico-financeira possa criar desequilíbrios económicos susceptíveis de provocarem alterações anormais das circunstâncias, nem todos os incumprimentos – em tempos de crise – se ficam a dever a essa alteração das circunstâncias. IV- É necessário que haja uma correlação directa e demonstrada factualmente entre a crise económica geral e a actividade económica concreta de determinado agente para que se possa falar de uma alteração anormal das circunstância. V - Não resultando provado nos presentes autos que a degradação da capacidade económica da autora – e que a conduziu à impossibilidade de satisfazer as obrigações assumidas com o réu – se tenha ficado a dever à crise económica internacional, não está configurada a previsão do n.º 1 do art. 437.º do CC…”.

Como se pode ler no Acórdão da Relação de Lisboa de 19.2.2013,“…a alteração anormal das circunstâncias deverá corresponder a uma ‘modificação brusca das condicionantes estruturais da coexistência social’ que consubstancie ‘um risco de todos, a que todos estão sujeitos, a cujos danos ninguém pode pretender eximir-se à custa de outrem e que não devem conduzir a permitir benefícios integrais a uma das partes com prejuízo da outra’.

O que releva é a constatação de uma alteração significativa nas condições que constituíam o quadro circunstancial em que era habitual desenrolar-se determinado tipo de relação contratual, independentemente de, porventura, tal situação poder ser vislumbrada como consequência de acontecimentos anteriores. A contracção na concessão de crédito e financiamento ao consumo e à actividade económica e na actividade do sector imobiliário, constitui uma alteração anormal das circunstâncias, na acepção do artº 437º, nº 1, do CCiv.

No contrato promessa de compra e venda de imóveis o risco típico a que se sujeita o promitente comprador é o de não conseguir estar em condições de pagar o preço, vendo gorada a possibilidade de consumar o negócio prometido e sofrendo as consequências previstas para o seu incumprimento (tipicamente, a perda do que entretanto prestou).

Se o negócio prometido já apresentava para os AA um factor de risco elevado, mesmo antes da alteração das circunstâncias, que esta não modificou substancialmente, podendo concluir-se que já estava ínsito ao próprio projecto inicial um grande factor de incerteza, um estar nos limites, quanto à concretização do financiamento, é de aceitar a possibilidade de se gorar o projecto de financiamento bancário, ainda que por virtude uma posterior política de retracção da concessão de crédito, estava ainda dentro dos riscos próprios do contrato.

Não se mostra violado o princípio da boa-fé se, apesar do insucesso do projecto de investimento dos AA, o qual lhes trouxe um dano de montante significativo, mas proporcional ao risco a que se expuseram, não resultar que as causas que originaram tal insucesso imponham a mutualização do risco nem que a posição da Ré se apresente injustificadamente beneficiada à custa dos AA face aos riscos que igualmente assumiu no contrato, em termos de se concluir que a posição de cada uma das partes não corresponde àquilo que lhe compete, sendo imperativa a necessidade de uma intervenção correctiva, para recolocar a situação dentro das fronteiras do justo”.

Escreveu o legislador, na norma do artigo 437º, n.º 1 do Código Civil, que "…se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ele assumidas afecte gravemente os princípios da boa-fé e não esteja coberta pelos riscos próprio do contrato".

A resolução prevista no preceito acabado de citar reflecte um caso típico de perda do equilíbrio contratual - sobre esta questão e em termos teóricos, ver Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, Almedina, 2005, pág. 76 - , já que, embora a segurança jurídica induza à estabilidade dos vínculos contratuais e como escreve Mário Júlio de Almeida Costa, no seu livro Direito das Obrigações, 8.ª edição, Almedina, 2000, pág. 285, "…pode acontecer, porém, que uma mudança profunda das circunstâncias em que as partes se vincularam torne excessivamente oneroso ou difícil para uma delas o cumprimento daquilo a que se encontre obrigada, ou provoque um desequilíbrio acentuado entre as prestações correspectivas, quando se trate de contratos de execução diferida ou de longa duração. Nestas situações, às vantagens da segurança, aconselhando a rigorosa aplicação do princípio da estabilidade, opõe-se um imperativo de justiça, que reclama a resolução ou modificação do contrato…".

Como decorre do preceito, a possibilidade de resolução ou modificação do contrato aplica-se a alterações nas circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar - circunstâncias a provar por quem se queira prevalecer da resolução ou modificação -.

A alteração tem que ser anormal, imprevisível, tem que haver uma parte lesada, pois é irrelevante uma alteração que não provoque prejuízos, e o dano terá de ter a envergadura bastante para justificar o instituto, já que tem de afectar gravemente os princípios da boa-fé a exigência ao lesado do cumprimento das obrigação inicialmente assumida e, por fim, a exigência dos deveres assumidos pelo lesado não pode estar coberta pelos riscos próprios do contrato - lemos António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo IV, Almedina, 2010, págs. 321/326-.

Ao falar na alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, a lei quer manifestamente aludir às modificações contra as quais, pelo seu carácter imprevisto, as partes não possam e não devam acautelar-se, já que este instituto situa-se no ponto de encontro entre a segurança na estabilidade das relações contratuais com o princípio da boa-fé que domina o direito das obrigações.

Como ensina o Prof. Mota Pinto - no seu livro “Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, ed. de 1990, pág. 597” -, está em causa, “…a convicção, consciente ou subconsciente, da verificação no futuro de dada circunstancia ou estado de coisas, convicção determinante da realização de um contrato, pois de outro modo, não se teria celebrado o negócio ou só teria tido lugar a sua realização noutros termos. As partes – ou apenas uma delas – tiveram como certa a verificação de um dado acontecimento ou estado de coisas e, por isso, contrataram. Se lhes ocorresse a possibilidade de falhar tal circunstância pressuposta não teriam contratado sem inserir no negócio uma cláusula correspondente”.

O ónus de alegação e de prova dos factos integradores impendem obviamente sobre a autora - art.º 342º, nº 1 do Código Civil - tendo de resolver-se a dúvida sobre a realidade de tal suposta “alteração” contra a parte alegante a quem aproveitaria - art.º 516º.

Mas mais, a questão da modificação do contrato só poderia colocar-se relativamente a prestações ainda não cumpridas - neste sentido, por ex. o Acórdão do STJ de 18.1.96, lido na CJ/STJ, 1996, Tomo I, pág. 52 -.

Ainda pois que tais pressupostos se mostrassem preenchidos, os efeitos da declaração negocial resolutiva/modificativa só poderiam surtir eficácia "ex-nunc" - para o futuro -, e não retroactiva - ex-tunc -.

O decisivo e relevante é que o contrato se não encontre ainda executado, pois que o instituto contemplado no art.º 437º do Código Civil é, tão-somente, aplicável às prestações futuras.

O STJ, em decisão proferida em 3.11.1987 – os tempos eram outros mas a crise económica idêntica -, escreve assim:

“…o instituto da resolução ou modificação contratual situa-se no ponto de encontro entre a segurança na estabilidade das relações contratuais com o princípio da boa fe que domina o direito das obrigações. A lei não exige que a alteração seja imprevisível, mas o requisito da anormalidade conduzira praticamente aos mesmos resultados.

O direito conferido pelo artigo 437º, n. 1, do Código Civil, supõe: a) que se tenha produzido uma alteração anormal das circunstancias que foram basilares para a decisão dos contraentes, de tal modo que a base do negócio tenha desaparecido ou tenha sido substancialmente modificada; b) que a exigência das obrigações assumidas pela parte lesada afecte gravemente os princípios da boa fé; c) que tal exigência não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato, como acontece nos contratos aleatórios; d) que a parte lesada não esteja em mora no momento em que a alteração das circunstancias se verificou. IV - Não há duvida que a depreciação da moeda e susceptível de afectar a base negocial. Mas há-de tratar-se de uma desvalorização imprevisível ou dificilmente previsível, excessiva, conduzindo a injustiças intoleráveis.

V - No caso concreto, e verdade que a inflação durante o período considerado, atingiu taxas muito elevadas, mas o fenómeno não pode considerar-se anormal ou imprevisível.

Quando as partes contrataram (finais de 1973 - crise petrolífera) era inteiramente de prever que a moeda continuaria a depreciar-se e os preços a subir”.

E nesta outra, de 7.11.1985, decidiu, que”…o contrato deve ser pontualmente cumprido, só podendo ser alterado ou mesmo extinguir-se por mútuo consentimento ou nos casos que a lei expressamente prevê, sendo um destes casos o do artigo 437º do Código Civil - alteração anormal das circunstâncias que serviram de esteio à vontade contratual formada no tempo da celebração do contrato, desde que a exigência do seu cumprimento afecte gravemente os princípios da boa-fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato, sendo de excluir as facilmente previsíveis ou que ocorram frequentemente em certos tipos de contrato, que não podem considerar-se anormais. Assim, não podem considerar-se como alteração anormal das circunstâncias os fenómenos da inflação e da crescente desvalorização da moeda, factos estes não só previsíveis, como também já se vinham manifestando de forma galopante, ao tempo da celebração do contrato-promessa.

E sendo vários os compradores dos andares ainda não legalizados, importaria sempre contar com as dificuldades de vários tipos que alguns deles possam trazer, o que tem de entender-se como riscos próprios do contrato, além de que não se provou que a demora na legalização do prédio tivesse alguma coisa a ver com a actuação do Autor, além de que não pode exigir a redução da prestação com fundamento na precária situação económica em que o cumprimento o deixaria, neste caso com o pagamento dos juros do empréstimo para construção”.

No dia 23.5.1985 o STJ decidia assim: “Embora o não refira expressamente, a disposição do artigo 437, n.º 1 do Código Civil exige a imprevisibilidade da alteração das circunstâncias.

A difícil situação económica de uma empresa resultante de haver sido intervencionada após a revolução de 25 de Abril de 1974, não cabe no condicionalismo daquela disposição, pois o empobrecimento do devedor ou as suas más condições financeiras não respeitam as circunstâncias em que as partes se fundaram para contratar.

A desvalorização da moeda, para ser relevante, há-de ter sido abrupta ou anormal - o que não se verificou entre a data de um contrato celebrado em 1973 e o ano de 1979.

Mesmo que a desvalorização tivesse sido abrupta, a alteração das circunstancias não poderia ser considerada, se, num contrato-promessa de compra e venda, o preço estipulado foi de 625000 escudos e o promitente-comprador logo entregou, a titulo de sinal, 500000 escudos e se, alem disso, o promitente-vendedor nunca pagou ao outro contraente os juros que a importância do sinal ficou a vencer” – todas a decisões supra citadas foram recolhidas no site www.dgsi.pt.

O que temos nos autos.

No dia 18 de Outubro de 2006, a sociedade A…, Lda. (doravante, e apenas por facilidade de expressão, designada por autora), celebrou com o réu um acordo denominado de contrato promessa de compra e venda, junto a fls. 22 e 23 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

Por via do referido acordo, a autora prometeu comprar ao réu e este vender-lhe o prédio urbano, composto de terreno para construção urbana, com a área total de 982 m2, sito na Rua ...

Também por via do mesmo acordo convencionaram os promitentes que o referido prédio seria vendido à autora pelo preço global de € 1.546.274,00.

Na data da respectiva outorga, e a título de sinal e princípio de pagamento, a autora entregou ao réu a quantia total de € 225.000,00.

Mais ficou convencionado, por via do acordo celebrado, que, até 31.12.2006, a autora deveria efectuar um segundo pagamento, no valor de € 375.000,00, o que veio a suceder.

Entre 17 de Outubro de 2006 e 31 de Maio de 2007,a autora efectuou entregas diversas ao réu, todas a título de sinal e princípio de pagamento do preço, perfazendo a quantia global de € 1.004.314,80.

A crise económico-financeira que o país atravessa – configurando um facto notório, porque do conhecimento comum e, nessa medida, de todos os operadores económicos - é anterior à crise financeira internacional.

É certo que o “sub-prime” originado nos Estados Unidos da América, desencadeou uma crise financeira internacional que se transmitiu ao plano económico e se agravou nos anos de 2008, 2009 e 2010 e potenciou a crise existente em Portugal, no entanto, tal crise económica - que se não nega - não pode conduzir, só por si, e em termos genéricos e sem mais, à aplicação da norma do art.º 437º do Código Civil.

É ainda necessário que a situação não se encontre abrangida pelos riscos próprios do contrato, isto é, a alteração anómala das circunstâncias não deve compreender-se na álea própria do contrato, nas suas flutuações normais ou finalidade. Com este requisito não se pretende apenas excluir as alterações que se encontram abrangidas pela álea típica do tipo contratual em causa, uma vez que nesses casos a exigência do cumprimento das respectivas obrigações nunca poderia afectar o princípio da boa-fé, pelo que a consagração deste último requisito, com esse simples significado, nada acrescentaria.

Como escreve a 1.ª instância, “…problema de manifesta importância é o de coordenar a disciplina da resolução ou modificação do contrato em consequência da alteração das circunstâncias com o que o artigo 796º do Código Civil dispõe quanto ao risco.

 Tudo residirá, no fundo, em demonstrar a existência de riscos que excedam a álea normal definida supletivamente no referido artigo 796º.

Conforme se estabeleceu, entre outros, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20.04.1993 (publicado in www.dgsi.pt): Quanto ao artigo 437º do CC, manda-se atender exclusivamente aos ditames da boa-fé, não à vontade hipotética ou conjectural das partes, importando não só que haja uma afectação grave do princípio da boa-fé, mas também que a situação não se ache abrangida pelos riscos próprios do contrato.

A alteração anormal das circunstâncias tem de referir-se àquilo em que as partes fundaram a decisão de contratar, ou seja, à base negocial.

Estabeleceu ainda, a tal propósito, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9 de Julho de 1991 (igualmente publicado in www.dgsi.pt), que quando se alteram as circunstâncias em que o negócio é feito e um dos contraentes vê afectado o seu interesse, há que atender não só ao interesse desse contraente mas também ao do outro e ao interesse na estabilidade dos contratos ou convenções”.

Escreve a apelante no seu recurso:

“Na verdade, dúvidas não existem de que a Promitente-Compradora, ora Insolvente, ao celebrar o negócio jurídico em causa, tinha como objectivo não apenas a recuperação do valor despendido com a aquisição do terreno mas, também, a rentabilização do seu investimento da forma o mais lucrativa possível dentro do permitido pelas normas técnicas e jurídicas aplicáveis.

Previa, designadamente, a Autora, logo que outorgada a respectiva escritura pública, o início da construção, no terreno em causa, de apartamentos de diversas tipologias, em conformidade com o projecto apresentado junto do Município de Albufeira, entidade que veio a emitir o respectivo alvará de licença de construção em Abril de 2008.

Mais previa a ora Insolvente A…, Lda a construção, no imóvel em causa, de 35 fogos, tendo-lhe sido autorizada a construção de 23 fogos, distribuídos pelas tipologias T1 e T2.

Por via da construção de tal empreendimento, pretendia a mesma Insolvente aproveitar a conjuntura favorável de que o turismo algarvio vinha beneficiando há vários anos.

Efectivamente, tal como provado, o ano de 2006 corria de forma bastante favorável para o turismo algarvio, permitindo, de acordo com as instâncias oficiais, consolidar os resultados alcançados em 2005 e abrir excelentes perspectivas para o ano de 2007.

De acordo com as mesmas instâncias, a hotelaria regional algarvia aumentou, durante o mencionado ano de 2006, as receitas entre 5% e 6% face ao ano anterior, estimando-se que o sector tenha alcançado, durante o período de referência, uma receita de mais de 500 milhões de euros.

Por sua vez, o ano turístico de 2007 veio a corresponder às expectativas formuladas, detectando a Associação dos Hotéis e Empreendimentos do Algarve (AHETA) uma subida superior ao anteriormente previsto, designadamente em matéria de taxas de ocupação (+ 5,0% do que no ano anterior).

Assim e perante um tal quadro de crescimento notório, entendeu a Insolvente A…, Lda que o contrato-promessa em causa e o negócio ao mesmo subjacente representavam uma boa oportunidade de beneficiar da conjuntura favorável ao crescimento de que beneficiava a região algarvia em que pretendia investir.

Assim, dúvidas não poderão existir, face à documentação carreada e à factualidade provada, que a promessa de celebração do contrato de compra e venda em apreço tinha subjacente a venda pela Promitente-compradora dos apartamentos que viria a construir, mal andando a Sentença recorrida ao concluir de forma diversa.

De qualquer modo, mesmo que não lograsse a edificação do empreendimento projectado e respectiva venda, estava a Insolvente A…, Lda convicta de que, na qualidade de proprietária do imóvel, conservaria a possibilidade de recuperar o valor despendido com a sua aquisição, designadamente através da sua alienação a um terceiro por montante igual ou, mesmo superior, ao referido valor de aquisição.

Efectivamente, mercê da convicção de que aquele preço correspondia ao justo valor do imóvel por referência ao seu valor de mercado, a Insolvente projectou e planificou todo o seu investimento com base nesse valor de referência, no potencial construtivo e, consequentemente, de rentabilização do imóvel, assumindo todos os riscos inerentes a um negócio de valor tão avultado, riscos que, por referência a uma conjuntura previsível, a partir dos elementos disponíveis à data, tinham já sido objecto de ponderação em sede adequada.

Planeou, assim, a A…, Lda, o seu investimento com base numa perspectiva razoável da evolução do mercado imobiliário, em conformidade com a informação de que, à data, dispunha, não apenas por força da sua própria participação no mesmo mas, igualmente, por força de análises efectuadas por entidades certificadas no ramo”.

Ora, nada mais acertado.

De facto, os negócios fazem-se, naturalmente, para daí nascerem lucros.

Foi o que fez a recorrente. Ponderou os prós e contra da negociação, fixou o preço e celebrou o contrato, dentro da sua liberdade contratual.

No entanto, cada decisão de contratar envolve uma assunção de riscos, não se podendo recorrer à alteração das circunstâncias sempre que a lesão sofrida pela parte não ultrapasse o círculo dos riscos considerados como normais naquele contrato.

Quando entregou a grande fatia do preço contratado, em meados de 2007,estava já alertada para a crise do imobiliário nos Estados Unidos.

Mais, como esta admite na sua alegação – citando a Obra, The Enigma of Capital and the Crises of Capitalism, Londres, Profile Books, pág. 296 –, “… é certo que, tal como afirmado, as crises financeiras, no âmbito do modo de produção capitalista, têm, por natureza, um carácter cíclico, servindo, nas palavras de David Harvey, “(…) para racionalizar as irracionalidades do capitalismo. Conduzem tipicamente a reconfigurações, novos modelos de desenvolvimento, novas esferas de investimento e novas formas de poder de classe”.

Consequentemente, para qualquer agente económico, o espectro de uma crise financeira global representará um factor constante de ponderação no âmbito do concreto exercício e expansão da sua actividade.

Aliás, fazendo a interpretação querida pela apelante, sem mais, desagregaria completamente o tecido empresarial e as relações económicas, alterando, aí sim, o equilíbrio económico e o mínimo de segurança exigível no domínio contratual.

É necessário que haja uma correlação directa e demonstrada factualmente nos autos entre a crise económica geral e a actividade económica concreta de determinado agente para que se possa falar de uma alteração anormal das circunstâncias, sendo que estes fenómenos são cíclicos e fazem parte da normalidade da economia capitalista e de mercado.

Por outro lado, para aplicação deste instituto, a alteração tem que ser anormal, imprevisível e o dano terá de ter a envergadura bastante para justificar o instituto, já que tem de afectar gravemente os princípios da boa fé a exigência ao lesado do cumprimento das obrigação inicialmente assumida.

No caso vertente, já no decurso do ano de 2007, a autora efectuou entregas diversas ao réu, todas a título de sinal e princípio de pagamento do preço, perfazendo a quantia global de € 1.004.314,80, sendo o preço total do contrato de negócio era de € 1.546.274,00.

Ou seja, no ano em que já se pressentia a chegada da crise no imobiliário e na diminuição do turismo – embora a este nível a ocupação turística do Algarve tem vindo a ser compensada com os mercados do norte de África e do médio oriente, sendo este, também um facto notório -, a autora entregou ao réu cerca de 2/3 do valor contratado.

No tocante à modificação do contrato que o artigo 437.º do Código Civil prevê, é preciso conciliar a segurança da força vinculativa dele com a justiça relativa que o inspirou, no contexto histórico e circunstancial, em que foi celebrado.

Por isso, teremos de concordar, com todo o respeito pela alegação da apelante, com a 1.ª instância quando escreve que “… não ocorreu qualquer alteração anormal das circunstâncias, uma vez que as crises financeiras não podem ser consideradas circunstâncias anormais, que escapam à regra, totalmente imprevisíveis, mas antes situações cíclicas e repetidas no tempo…”, “… a crise financeira consubstancia um risco próprio do negócio celebrado entre as partes, sendo certo que nenhuma das partes desconhecia (como não desconhece qualquer pessoa que compra ou vende imóveis) a possibilidade de ocorrência de uma crise financeira.”

Nestes termos, improcede na sua totalidade, a instância recursiva.

Resta-nos sumariar.

1. Traduzindo-se na garantia das partes a uma efectiva participação em todos os actos do processo, o princípio do contraditório encontra-se ao serviço do princípio da igualdade das partes, sendo que a prévia audição das partes visa colocá-las em paridade, dando-lhes a oportunidade de influenciar a decisão judicial que vai ser tomada.

2. Há decisão surpresa se o juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correcta e atinada decisão do litígio.

Ou seja, apenas estamos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever.

3. A resolução em benefício da massa insolvente é um instituto especial do processo de insolvência que se destina à tutela da generalidade dos credores do insolvente na medida em que permite ao Administrador da Insolvência que a eficácia de toda uma panóplia de actos seja destruída, verificados que sejam certos requisitos de ordem temporal, subjectiva e objectiva.

4. No entanto este instituto da resolução em benefício da massa insolvente não afasta a aplicabilidade dos normativos constantes do art.º 432ºss do Código Civil, antes representando um meio de protecção acrescida dos credores.

5. Ao falar na alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, a norma do artigo 437º do Código Civil quer, manifestamente, aludir às modificações contra as quais, pelo seu carácter imprevisto, as partes não possam e não devam acautelar-se, já que este instituto situa-se no ponto de encontro entre a segurança na estabilidade das relações contratuais com o princípio da boa-fé que domina o direito das obrigações.

6. No tocante à modificação do contrato que o artigo 437º do Código Civil prevê, é preciso conciliar a segurança da força vinculativa dele com a justiça relativa que o inspirou, no contexto histórico e circunstancial, em que foi celebrado.

7. Por isso, só por si as crises financeiras não podem ser consideradas circunstâncias anormais, que escapam à regra, totalmente imprevisíveis, mas antes situações cíclicas e repetidas no tempo.

3.Decisão

Pelas razões expostas, na improcedência do recurso interposto, mantemos a decisão proferida pela Sr.ª Juíza do Tribunal Judicial de Alcobaça.

Custas a cargo da massa insolvente.

Coimbra, 5 de Novembro de 2013

(José Avelino Gonçalves – relator -)

(Regina Rosa)

(Artur Dias)