Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
473/13.1TBOHP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
ADMINISTRADORES
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE COLECTIVA
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Data do Acordão: 01/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.5, 64, 72, 78, 82, 84 CSC, 334, 474 CC
Sumário: 1 – No exercício das suas funções os gerentes e/ou administradores são responsáveis pelos danos que, com preterição dos deveres legais ou contratuais (contrato de administração) causem, nomeadamente para com a própria sociedade (cf. art. 72.º, n.º 1, do C. Soc. Comerciais).

2 – De entre os deveres a que estão adstritos, os gerentes estão vinculados à observância dos deveres de diligência (definido em função de um padrão objectivo, de um gestor criterioso e ordenado), e de cuidado e lealdade, sendo que ao dever de lealdade costuma ser associado nomeadamente a obrigação de não actuação em conflito de interesses com a sociedade protegida, maxime de não apropriação de património societário desta.

3 – O recurso ao instituto da desconsideração da personalidade colectiva é possível quando ocorram situações de responsabilidade civil assentes em princípios gerais ou em normas de protecção, nomeadamente dos credores, ou em situações de abuso de direito e não exista outro fundamento legal que invalide a conduta do sócio ou da sociedade que se pretende atacar, ou seja, a desconsideração tem carácter subsidiário.

4 – Ou seja, admite-se, embora só excepcionalmente, a responsabilidade dos sócios ou membros dos órgãos sociais perante os credores sociais, outros sócios ou até terceiros, quando aqueles utilizem a pessoa colectiva para um fim contrário ao direito.

5– Se de acordo com o art. 474º do C. Civil o empobrecido só pode socorrer-se das regras do enriquecimento sem causa quando a lei não faculte aos empobrecidos outros meios de reacção, sucede que esta regra da subsidiariedade não é absoluta, pois que, conforme nos ensina a melhor doutrina, é manifesto que a ação de enriquecimento poderá concorrer com a responsabilidade civil, sempre que esta não atribua uma proteção idêntica à ação de enriquecimento.

6 – Sem embargo, para que a regra da subsidiariedade não impeça que se exercite o direito à restituição, é necessário que haja uma divergência de valores entre o que o lesado/empobrecido obteria por um ou outro meio, assim se justificando o recurso ao meio complementar, ou então uma insuficiente cobertura pela via da indemnização, para se lançar mão do pedido de restituição, mas tanto quanto é possível alcançar, estando sempre em causa o mesmo devedor e não devedores distintos.

7 – Por outro lado, legitima-se neste particular e para este efeito a restituição à luz do instituto do enriquecimento sem causa, quando, e só quando, a originária via (indemnizatória) não subsiste ou já deixou de existir, obviamente não bastando uma situação hipotética (receio de não pode vir a ser efetivada a via indemnizatória, ou de vir ela a revelar-se insuficiente).

Decisão Texto Integral:         






    Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

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            1 – RELATÓRIO

E.P.(…), LD.ª”, interpôs C (…), M (…) e D (…)  , S.A.”, todos com sinais nos autos, pedindo:

1) A condenação dos Réus no pagamento à Autora, a título solidário, da quantia de 1.916.823,90€, acrescida de juros moratórios vencidos até 11.10.2013, na importância de 573.914,56€, e vincendos até efetivo e integral pagamento;

2) A condenação dos Réus C (…) e M (…) no pagamento à Autora da quantia de 7.000,00€, acrescida de juros moratórios vencidos até 11.10.2013, na importância de 1.220,95€, e vincendos até efetivo e integral pagamento.

A Autora sustenta os seus pedidos na factualidade que a seguir, e em síntese, se enuncia:

a) A Autora, que se dedica à atividade de comércio, importação e exportação de vestuário, têxteis e acessórios de moda, tem como sócios a sociedade (…), com uma quota de 30.000,00€, e a sociedade M (…) SGPS, S.A., com uma quota de 20.000,00€;

b) Os Réus C (…) e M (…) são legais representantes da sociedade M (…), SGPS, S.A., sendo, respetivamente, vogal e presidente do seu conselho de administração;

c) Os Réus C (…) e M (…) foram os únicos gerentes da Autora durante o período que mediou entre 23.01.2009 e 22.03.2013, tendo nesta última data cessado tais funções por deliberação da assembleia geral;

d) Os Réus C (…) e M (…) são acionistas e administradores da Ré D (…)sociedade que se dedica à indústria, comércio, importação e exportação de artigos de vestuário, têxteis, malhas e similares;

e) A Ré D (…) apresenta a seguinte estrutura acionista: 51% pertence ao Réu M (…); 37% pertence à sociedade (…) SGPS, S.A.; 9% pertence ao Réu C (…); 3% pertence a outros;

f) Em assembleia geral de sócios da Autora, realizada no dia 02.02.2012, foi deliberado realizar uma auditoria financeira às contas da própria sociedade, para o que foi contratada a P(…) ( K(...) );

g) Nessa sequência, foram produzidos dois relatórios, segundo os quais os Réus C (…) e M (…) não agiram, enquanto gerentes da Autora, com os deveres de cuidado e de lealdade a que estavam adstritos, tendo, consequentemente, lesado aquela e os respetivos sócios, colocando em risco os interesses dos credores e a própria sustentabilidade da Autora;

h) Em concreto, verificou-se que os referidos Réus, na qualidade de gerentes da Autora, solicitaram a entidades bancárias a antecipação de fundos de créditos comerciais desta, por via de «confirming», os quais foram utilizados para financiar a atividade da Ré D (…).

i) Tais operações de «confirming» originaram despesas e encargos bancários que foram suportados pela Autora, no valor de global de 126.452,57€;

j) Entre agosto de 2009 e setembro de 2012, os Réus C (…) e M (…) também efetuaram diversas transferências bancárias da conta da Autora para a conta da Ré D (…), desviando fundos daquela para esta sociedade terceira, onde tinham interesses;

k) E fizeram-no sem proceder a qualquer registo contabilístico, até que, em 31.12.2011, introduziram os valores transferidos na contabilidade da Autora, na categoria de «Outras contas a receber»:

l) Tais transferências, no valor final apurado até setembro de 2012 de 2.061.000,00€, foram realizadas sem o conhecimento dos sócios, designadamente do sócio maioritário, não foram aprovadas por qualquer deliberação social e, não se encontrando tituladas sob alguma forma, também não resultaram de qualquer contrato celebrado entre a

Autora e a Ré D (…) ou de qualquer operação comercial ocorrida entre ambas;

m) Em virtude de tais transferências bancárias, e considerando a restituição já efetuada da quantia de 270.628,59€, é a Autora credora dos Réus na quantia de, pelo menos, 1.790.371,40€;

n) Por efeito dessas transferências bancárias, não pode a Autora pagar a dívida que tem para com o seu fornecedor (..), nem pode distribuir lucros pelos seus sócios;

o) Por fim, verificou-se que os C (…) e M (…), entre 2010 e 2011, enquanto gerentes da Autora, autorizaram que se procedesse a pagamentos a C (…) a título de adiantamentos, no montante de 7.000,00€, sem que que tivessem sido comprovadas quaisquer despesas realizadas;

p) Assim, e por decorrência do disposto nos artigos 72.º e 75.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), são os Réus C (…) e M (…) responsáveis pelo pagamento das quantias acima aludidas, acrescidas dos respetivos juros de mora, sendo a Ré D(…) solidariamente responsável pelo pagamento das mesmas, com exceção da importância de 7.000,00€, com base no instituto do enriquecimento sem causa.

*

Citados para os termos da presente causa, vieram os Réus contestar a ação, a fls. 601 e ss., arguindo a exceção de ilegitimidade dos representantes da Autora para a sua interposição e propugnando pela improcedência dos pedidos formulados.

Para tanto, e em síntese, alegaram o seguinte:

a) A Autora encontra-se representada na presente lide por (…) cuja legitimidade, enquanto gerentes daquela, encontra-se a ser posta em causa no processo n.º 243/13.7TBOHP;

b) Tal matéria constitui-se como questão prévia ao conhecimento dos pedidos a apreciar nestes autos;

c) Em meados de 2007, o Grupo A (...) manifestou junto dos Réus C (…) e M (…), representantes da 3.ª geração do Grupo (..) interesse em estabelecer um acordo de entendimento comercial entre ambos os grupos, considerando que este último mantinha relações estáveis com o principal grupo têxtil europeu, a I (...) (proprietária das marcas Z (...) e M MM(...) );

d) Nessa sequência, em 30.07.2007, foi outorgado por ambos os grupos um Memorando de Entendimento, prevendo, por um lado, a constituição de uma empresa (veículo) comum na zona franca do Egito, por onde transitasse a comercialização do vestuário formal masculino encomendado pelo Grupo B (…) e manufaturado pelo Grupo (…)a, obtendo-se benefícios fiscais de incentivo à exportação, e, por outro lado, a constituição de uma outra empresa (veículo) comum, em Portugal, com a finalidade de efetuar encomendas à empresa egípcia, mas também para controlar as vendas, o markting, a administração e as finanças do comércio comum (para além de ainda controlar a qualidade de fabrico das encomendas manufaturadas no Egito);

e) A partir de setembro de 2007, iniciaram-se relações comerciais entre estes dois grupos, tendo a Ré D (…) encomendado à (…) Co (doravante, S (...) ) a manufatura de fatos de homem (destinados à M MM(...) ), os quais foram entregues em novembro seguinte;

f) Até ao termo do ano de 2007 e durante todo o ano de 2008, este tipo de cooperação foi-se desenvolvendo da seguinte forma: a Ré D (...) angariava as encomendas e colocava-as em produção na S (...) , sendo que previamente escolhia, comprava, fornecia e faturava as matérias-primas necessárias à produção; depois, a S (...) manufaturava as mercadorias sob a supervisão técnica local de funcionários da Ré D (...) ; após, a S (...) entregava-as à Ré D (...) , faturando e recebendo o pagamento devido; subsequentemente, a Ré D (...) entregava os produtos acabados aos seus clientes, faturando-lhes os valores respetivos;

g) No decurso do ano de 2008, a Ré D (...) passou também a encomendar mercadorias destinadas ao seu cliente C C(...) ;

h) Nesses dois primeiros anos, a Ré D (...) faturou nesse negócio cerca de 2.800.000,00€, com um ganho de cerca de 300.000,00€;

i) No decurso do ano de 2008, o Grupo A (...) pretendeu solidificar a relação comercial então existente, tendo sido outorgado, em 17.09.2008, um «Frame Work Agreement» (Acordo-Quadro) entre a A (...) Company e a W (...) SGPS, S.A., por meio do qual se previa a constituição das tais sociedades veículo, com participação maioritária em ambas da A (...) (60/40);

j) As duas sociedades veículo vieram a ser constituídas em 2008/2009, sendo uma egípcia, a (…)(doravante, EP Egito), e uma portuguesa, a E. W (...) (…)Ld.ª, aqui Autora (doravante, EP Portugal);

k) Nos termos do aludido Acordo-Quadro, a EP Portugal destinava-se a substituir a Ré D (...) no exato procedimento que esta levou a cabo no decurso dos anos de 2007 e 2008, sendo que, durante o período de vigência do acordo (10 anos), deveria ser sempre a empresa W (...) a dirigir o órgão executivo daquela;

l) Por efeito desse Acordo-Quadro, a partir de 2009, passou a ser a EP Portugal a encomendar diretamente à S (...) a produção das mercadorias e, subsequentemente, a entregar as mesmas aos clientes M MM(...) , Z (...) e C C(...) , procedendo à respectiva faturação junto destes;

m) A EP Egito não teve neste processo quase nenhuma intervenção, uma vez que foi desativada pelo Grupo A (...) , tendo passado por ela, ao todo, apenas 4 faturas de fornecimentos de bens, no valor total de 493.444,40€;

n) Por esse facto, não se registaram proveitos resultantes dos benefícios fiscais de incentivo à exportação que haviam motivado a constituição de tal sociedade egípcia numa zona franca;

o) O procedimento acima aludido perdurou até meados de 2012, sendo que o volume total de negócios em causa ascendeu a 25.500.000,00€;

p) A EP Portugal funcionava nas instalações da Ré D (...) , sendo que os administradores e funcionários de ambas as empresas eram comuns;

q) Era a Ré D (...) que respondia perante fornecedores e clientes da EP Portugal, fosse pela garantia de pagamento, fosse pelo cumprimento dos prazos de entrega, fosse, ainda, pela garantia de qualidade dos produtos manufaturados;

r) A Ré D (...) , por diversas vezes, retificou e emendou, na sua fábrica de Oliveira do Hospital, defeitos de produção decorrentes de erros praticados no Egito, tendo, não obstante, perdido um cliente, a sociedade Caramelo, que não aceitou o produto defeituoso produzido pela S (...) ;

s) Pela confiança que havia adquirido junto de fornecedores e a pedido da própria S (...) , passou a ser a Ré D (...) a adquirir as matérias-primas necessárias à produção das mercadorias que a EP Portugal encomendava àquela S (...) ;

t) Para fornecer as matérias-primas à S (...) , a Ré D (...) adquiria-as aos seus fornecedores, pagando-lhes em prazos médios nunca superiores a 90 dias e, muitas vezes, a pronto pagamento;

u) Porém, ao fornecê-las à S (...) , esta pagava-lhe os valores correspondentes em prazos médios superiores a 150 dias, sendo que, em 27.04.2011, os montantes em atraso no pagamento desses valores ascendiam a 1.739.654,00€;

v) Tal situação, conjugada com a circunstância de ter passado a ser a EP Portugal a faturar os produtos acabados aos clientes M MM(...) , Z (...) e C C(...) , conduziu à falta de liquidez da Ré D (...) , situação que se agudizou em inícios de 2010, perdurando para 2011;

w) Não obstante, a Ré D (...) continuou a assegurar a assistência técnica à produção do Egito, fosse no desenvolvimento dos produtos, fosse no controlo de stocks da S (...) , fosse ainda na disponibilização, no local, do seu pessoal técnico;

x) A aludida falta de liquidez obrigou os gerentes da Ré D (...) , os aqui Réus (…), em estado de necessidade, a utilizar a liquidez da EP Portugal, de que eram também gerentes, através de uma conta corrente entre ambas as empresas, a qual regista, atualmente, um saldo devedor favorável àquela de 1.773.045,84€;

y) A partir de meados de 2011, e com o consentimento do Grupo A (...) , a maior parte das encomendas feitas à S (...) passaram a ser gradualmente efetuadas pela Ré D (...) que, depois, vendia os produtos acabados aos seus clientes;

z) Tal procedimento perdurou até ao 3.º trimestre de 2012, faturando a Ré D (...) , entre 01.07.2011 a 01.07.2012, com as vendas que fez à M MM(...) , Z (...) e C C(...) , 14.400.000,00€, dos quais 1.480.000,00€ foram lucro;

aa) A partir de meados de 2012, o Grupo A (...) procurou comprometer a imagem e o bom nome da Ré D (...) junto dos clientes desta, tendo por objetivo acabar por eliminá-la do processo de intermediação entre aquele e estes clientes, da seguinte forma:

- Atrasaram deliberadamente as entregas das encomendas; cancelaram ordens de compra da Z (...) ; e apresentaram alguns produtos com falta de qualidade e com defeitos de fabrico;

- Apenas entregavam as mercadorias encomendadas se o seu pagamento fosse antecipado ou à vista;

- Questionaram várias faturas emitidas pela Ré D (...) e exigiram o reconhecimento de créditos a seu favor sem justificação;

- Transmitiram aos clientes tradicionais da Ré D (...) ficheiros com a dívida existente da Ré D (...) para com a S (...) , bem com as margens de comercialização auferidas;

bb) Tal objetivo evidenciou-se, igualmente, no afastamento irregular C (…) e M (…)da gerência da sociedade Autora, EP Portugal, por parte da sócia maioritária;

cc) O Grupo A (...) não se coibiu igualmente de aliciar funcionários técnicos da Ré D (...) , contratando-os como seus funcionários;

dd) Por decorrência de tais factos, a Ré D (...) baixou a sua faturação anual em 18.400.000,00€, entre setembro de 2012 e setembro de 2013, perdendo uma margem bruta de ganho de 1.800.000,00€;

ee) Acresce que a Ré D (...) , ao longo dos anos de 2008 a 2012, efetuou um investimento global de aproximadamente 600.000,00€, tendo em vista, unicamente, a relação comercial acordada entre o Grupo B (...) e o Grupo A (...) ;

ff) Relativamente à antecipação de fundos, através do «confirming», os Réus referem que a mesma se justificou pelos exatos motivos que justificaram a já referida utilização da liquidez da Autora;

gg) Por fim, e remetendo para um necessário encontro de contas que terá de se realizar entre todas as empresas envolvidas deste negócio, incluindo a S (...) , os Réus rejeitam qualquer responsabilidade que lhes possa ser assacada, considerando que agiram sempre de acordo com o interesse concreto da Autora e dos seus sócios, qual seja, a manutenção, consolidação e alavancagem das relações comerciais específicas intercorrentes entre os grupos B (...) e A (...) .

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A fls. 798, veio a Autora pronunciar-se quanto aos documentos apresentados pelos Réus, alegando, sucintamente, que os mesmos, para além de soltos e desgarrados dos factos, desordenados e confusos, em nada se relacionam com a presente lide, não visando contraditar a factualidade carreada para o processo por aquela.

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Por despacho de fls. 802-805, foram os Réus convidados a aperfeiçoar o articulado de contestação, designadamente, a esclarecer qual a concreta quantia pertencente à Autora que admitem ter utilizado e a que título o fizeram, bem como a concretizar a conduta que imputam à Autora e que terá motivado a atuação por parte dos Réus, objeto destes autos, devendo também especificar o efeito jurídico pretendido com tal alegação, uma vez que não deduziram qualquer pedido reconvencional.

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Nessa decorrência, e em correspondência ao convite formulado, vieram os Réus ao processo, a fls. 807, alegar, em síntese, o seguinte:

a) Com a presente ação, a multinacional A (...) Company, sócia maioritária da Autora, pretende isolar e autonomizar as contas desta sociedade com a Ré D (...) , favorável à primeira, de modo a não discutir as contas gerais intercorrentes entre todas as empresas dos Grupos A (...) e B (...) , nomeadamente, entre a S (...) e a Ré D (...) , cujo saldo atual é favorável a esta em 1.700.801,76€;

b) As quantias peticionadas na presente ação foram utilizadas pelos gerentes da Autora para financiar a Ré D (...) , tendo esta utilização representado uma boa gestão da Autora. Com efeito, tal financiamento serviu para dar continuidade, sobrevivência e alavancagem aos interesses que se vinham consolidando e dando frutos desde 2007, entre os Grupos B (...) e A (...) ;

c) A compensação global de créditos a efetuar já se encontra peticionada em acção judicial intentada por W (...) , Ld.ª, e D (...) , S.A., contra Al (…) o, que corre termos com o n.º 28/14.3TBOHP.

Pedem, a final, a apensação aos presentes autos do aludido processo n.º 28/14.3TBOHP.

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A Autora, EP (…), S.A., respondeu a fls. 812, propugnando pelo indeferimento da apensação requerida, por não se mostrarem verificados os legais requisitos (tanto mais que a própria Autora nem é parte na identificada ação com o n.º 28/14.3TBOHP), para além de referir que os Réus não especificaram em quê e a que título utilizaram os valores pertencentes à Autora.

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Por despacho de fls. 818, foi indeferida a requerida apensação de ações e designada data para a realização de uma audiência prévia entre as partes.

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Procedeu-se à realização da audiência prévia, em conformidade com a respetiva ata, que faz fls. 820-821.

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Foi elaborado despacho saneador, que faz fls. 822-837, o qual julgou improcedente a arguida exceção de ilegitimidade dos representantes da Autora, fixando, subsequentemente, o objeto do litígio e, após elencar os factos que julgou, desde logo, assentes, enunciou os temas da prova, sem ter sido deduzida qualquer reclamação.

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Procedeu-se à realização de audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo, conforme consta da respetiva ata.

Na oportuna sequência foi proferida sentença – incorporando a enunciação dos factos dados como provados e não provados e a correspondente “motivação” – na qual se entendeu, em suma, que resultava da factualidade apurada, em relação aos RR. C (…) e M  (…), uma clara (e reiterada) violação do dever de lealdade por parte destes, violação essa culposa, donde reconduzível a uma obrigação de indemnização dos danos causados, nos termos do disposto no art.72º, nº1 do Código das Sociedades Comerciais (CSC), assim procedendo o pedido formulado contra os mesmos; tal já não se podia dizer relativamente à Ré “D (...) , Indústria de Vestuário, S.A.”, na medida em que a responsabilidade a que alude o dito art. 72º do CSC, era pessoal e direta dos próprios gerentes, donde não ser juridicamente possível cumular a condenação da Ré sociedade com a condenação dos Réus gerentes, acrescendo que também nunca se podia considerar operante a via do instituto do enriquecimento sem causa, atenta a natureza subsidiária deste, expressamente consagrada no artigo 474º do Código Civil, ressalva esta que se podia considerar verificada no caso, termos em que se concluiu pelo seguinte concreto “Dispositivo”:                 

            «Pelo exposto, julgando a presente ação parcialmente procedente, o tribunal decide:

1) Absolver a Ré (…) S.A., do pedido contra ela formulado;

2) Condenar os Réus C (…) e M (…) no pagamento solidário à Autora, E.P(…)  LD.ª, da quantia de 1.923.823,98€ (um milhão, novecentos e vinte e três mil, oitocentos e vinte e três euros e noventa e oito cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data da citação e até integral pagamento.

Custas processuais a cargo dos Réus C (…) e M (…)

Registe e notifique.»

                                                                       *

            Inconformada com essa sentença, apresentou a Autora recurso de apelação contra a mesma, da qual extraiu as seguintes conclusões:

            (…)

            Também inconformados com essa sentença, apresentaram os Réus C (…) e M (…) recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

De referir que quanto à arguição de nulidade da sentença, o Exmo. Juiz do Tribunal a quo, sustentou a sua não verificação pelo despacho de fls. 1280 destes autos de recurso.

                                                           *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objecto dos recursos, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelos Recorrentes nas conclusões das suas alegações (arts. 684º, nº3 e 685º-A, nºs 1 e 3, ambos do C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no art. 3º, nº3 do C.P.Civil

            - impugnação da decisão da matéria de facto: factos dados como “provados” sob os pontos “19)”, “20)”, “21)”, “26)”, “27)” e “47)” (relativamente aos quais é proposta uma resposta diversa e/ou clarificadora; factos dados como “não provados” sob as alíneas “j)”, “m)”, “p)” e “u)” (relativamente aos quais a resposta deveria ter sido positiva, integral ou parcialmente, sendo certo que quanto à última das alíneas em causa, ainda sustentam a nulidade da sentença por omissão de pronúncia – art. 615º, nº1, al.d) do n.C.P.Civil) [recurso dos Réus C (…) e M (…)];

- desacerto da decisão de mérito na parte em que condenou os Réus C (...) e M (...) (por não ter havido por parte destes qualquer violação do dever de lealdade para com a sociedade A., antes terem eles atuado em consideração do interesse dos sócios, únicos para que aponta a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade A.) [recurso dos Réus C (…) e M (…)];

- desacerto da decisão de mérito na parte em que absolveu a Ré “D (…) da condenação solidária com os Réus C (…) e M (…) no pagamento dos danos causados e objeto do pedido [recurso da Autora].

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado/fixado pelo tribunal a quo, o que naturalmente contempla a conjugação da condensação dos factos assentes com os decorrentes das respostas dadas aos quesitos da base instrutória elaborada, obviamente sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que os recursos têm em vista a alteração parcial dessa factualidade. 

            Tendo presente esta circunstância, foi consignado na sentença da 1ª instância o seguinte:

«Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos com interesse para a decisão a proferir:

1) A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de comércio, importação e exportação de vestuário, têxteis e acessórios de moda, bem como a serviços de marketing e publicidade relacionados com a atividade;

2) A autora EP (…) em como sócios: (..:) com uma quota de €30.000,00(…) - SGPS, S.A. (anteriormente denominada (…), LDA.), com uma quota de €20.000,00, totalizando um capital social de 50.000,00€;

3) Os Réus C (…) e M (…) foram os únicos gerentes da Autora desde 23.01.2009, tendo cessado estas suas funções em 22.03.2013, em Assembleia Geral onde veio a ser deliberada a destituição dos mesmos da função de gerência (facto registado através da ap. 22/20090123);

4) Nessa mesma data, foram designados como gerentes (…)

5) A Ré D(…) tem por objeto a indústria, comércio, importação e exportação de artigos de vestuário, têxteis, malhas e similares;

6) A Autora, até 12.06.2013, tinha como sede x(...) , São y(...) , em Oliveira do Hospital, onde funcionam também outras empresas, como seja a Ré D (…), S.A., de que os Réus C (…) e M (…) são acionistas e administradores;

7) O Réu M (…) foi Presidente do Conselho de Administração da sociedade D (…)S.A., pelo menos, no período compreendido entre 06.04.2006 e 25.03.2009 e entre 20.04.2011 e a presente data, tendo sido vice-presidente entre 25.03.2009 a 20.04.2011;

8) O réu C (…) foi presidente do Conselho de Administração da ré D(…) desde 25 de Março de 2009 até, pelo menos, 20 de Abril de 2011, tendo sido vogal entre, pelo menos, 06.04.2006 e 25.03.2009;

9) Os Réus C (…) e M (…) são ainda representantes legais da sócia da Autora, M (…), S.A., pertencendo ao Conselho de Administração desta sociedade como Vogal e Presidente, respetivamente;

10) Em Assembleia Geral de sócios da Autora, realizada em 02.02.2012, foi deliberado, entre outros assuntos, o seguinte:

a) Nomear a auditora internacional P(…) ( K(...) ) para desenvolver uma auditoria financeira às contas da sociedade (Autora), reportadas a dezembro de 2011 ou à data mais recente possível, que devia dar particular ênfase às relações de natureza não comercial existentes entre sócios e sociedades detidas pelos gerentes da sociedade e às despesas em que a sociedade incorreu, constantes de outros pontos ali discutidos;

b) Os gerentes da sociedade (Autora) deveriam disponibilizar à K(...) , de imediato, toda a documentação e informação por esta solicitada, sendo a A (...) responsável pelo contacto com a K(...) ;

c) A sociedade (Autora) deveria adotar todas as ações necessárias à imputação de responsabilidade legal e/ou criminal por atuações ou factos relevantes que sejam confirmados na auditoria;

d) Os custos da auditoria a realizar pela K(...) seriam suportados integralmente pela sociedade (Autora).

11) Atenta tal deliberação tomada em Assembleia Geral, foi contratada a auditora internacional P(…) ( K(...) ) para proceder a uma análise financeira de âmbito completo da Autora;

12) A (…) ( K(...) ) elaborou 2 relatórios, correspondentes a 2 trabalhos realizados: o primeiro trabalho foi principalmente desempenhado entre 28 de fevereiro e 28 de março de 2012; o segundo trabalho foi principalmente desempenhado entre 6 a 9 de novembro de 2012;

13) A (…)( K(...) ) efetuou os seguintes procedimentos principais:

a) Reunião com a gerência, à data, da Autora, por forma a obter a compreensão adequada do negócio e transações realizadas nos meses de janeiro a setembro de 2012;

b) Revisão e análise dos extratos bancários e conciliações bancárias da Autora;

14) Para a realização do trabalho, a P(…) ( K(...) ) visitou as instalações da D (...) , em Oliveira do Hospital, entre 29 de fevereiro e 1 de março de 2012 e em 6 de novembro de 2012 (nestas datas, a sede da Autora coincidia com a sede da Ré D (...) ), onde vieram a ter acesso aos registos financeiros e de gestão da Autora;

15) De tal auditoria, constatou-se que os réus C (…) e M (…) solicitaram a antecipação de fundos de créditos comerciais da sociedade Autora por via de confirming (forma de financiamento a curto prazo que possibilita antecipar recursos referentes à venda de bens e prestação de serviços, sem a necessidade de recorrer a uma linha de crédito, serviço que é prestado pelas instituições financeiras, as quais procedem à liquidação e antecipação dos montantes que constam das ordens de pagamento antes da data de vencimento e pagamento das correspondentes faturas, sendo remuneradas pelo crédito que, desta forma, é concedido);

16) A Autora suportou despesas e encargos bancários com tais operações de confirming num montante global de 126.452,57€;

17) Foi emitida à ré D(…) a fatura n.º 342/2011, referente a tais encargos bancários;

18) Da mesma auditoria, verificou-se que os réus C (…9 e M (…) procederam, na sua qualidade de gerentes da Autora e no período compreendido entre agosto de 2009 e setembro de 2012, a diversas transferências bancárias da conta da Autora para a conta da ré D(…), as quais ascendiam, em setembro de 2012, a um valor de 2.061.000,00€ (dois milhões e sessenta e um mil euros);

19) O que foi realizado para financiar a ré D(…), de forma gradual e progressiva, sem ser registada nos registos contabilísticos da Autora;

20) As transferências da Autora para a ré D(…)foram realizadas em cada um dos seguintes momentos:

a) Agosto de 2009: €410.000,00;

b) Setembro de 2009: € 340.000,00;

c) Outubro de 2009: € 463.000,00;

d) Novembro de 2009: €140.000,00;

e) Dezembro de 2009: €215.000,00;

f) Janeiro de 2010: €215.000,00;

g) Fevereiro de 2010: €395.000,00;

h) Março de 2010: €1.147.000,00;

i) Abril de 2010: €1.402.000,00;

j) Maio de 2010: €1.017.000,00;

k) Junho de 2010: €1.097.000,00;

l) Julho de 2010: €1.197.000,00;

m) Agosto de 2010: €1.641.000,00;

n) Setembro de 2010: €1.604.000,00;

o) Outubro de 2010: €1.758.000,00;

p) Novembro de 2010: €1.480.000,00;

q) Dezembro de 2010: €1.552.000,00;

r) Janeiro de 2011: €1.915.000,00;

s) Fevereiro de 2011: €2.730.000,00;

t) Março de 2011: €2.710.000,00;

u) Abril de 2011: €2.981.000,00;

v) Maio de 2011: €2.701.000,00;

w) Junho de 2011: €2.391.000,00;

x) Julho de 2011: €2.914.000,00;

y) Agosto de 2011: €2.523.000,00;

z) Setembro de 2011: €2.290.000,00;

aa) Outubro de 2011: €1.360.000,00;

bb) Novembro de 2011: €1.874.000,00;

cc) Dezembro de 2011: €1.324.000,00;

dd) Janeiro de 2012: €2.189.000,00;

ee) Fevereiro de 2012: €2.189.000,00;

ff) Março de 2012: €2.189.000,00;

gg) Abril de 2012: €2.189.000,00;

hh) Maio de 2012: €2.189.000,00;

ii) Junho de 2012: €2.189.000,00;

jj) Julho de 2012: €2.189.000,00;

kk) Agosto de 2012: €2.179.000,00;

ll) Setembro de 2012: €2.061.000,00;

21) Tais operações não foram informadas aos sócios, nomeadamente ao sócio maioritário, que as desconheciam, e não foram aprovadas por qualquer deliberação dos sócios;

22) Em 31.12.2011 - e tendo presente a incapacidade da ré D(…) em devolver o financiamento num curto espaço de tempo, bem como o facto de o sócio maioritário ter questionado a gerência da discrepância entre os saldos bancários contabilizados e aqueles que deveriam existir efetivamente -, os réus C (…) e M (…) contabilizaram o financiamento à D(…) como «Outras contas a receber»;

23) Fruto das transferências bancárias referidas em 18) e 20), a Autora não pode pagar a dívida que tem para com o seu fornecedor (…) ou distribuir o lucro pelos sócios;

24) Os réus C (…) e M (…) autorizaram que fossem efectuados adiantamentos ao primeiro, no montante de €7.000,00 (sete mil euros), nos anos de 2010 e 2011, sem que, em relação ao valor disponibilizado, tivessem sido apresentados relatórios de despesas ou documentação referente às despesas realizadas;

25) A Ré D (…) tem um capital social titulado por 1.350.000 ações, no valor de 1,00€ cada;

26) Os fundos obtidos através da realização das operações de confirming foram utilizados pelos Réus M (…) e C (…) para financiar a atividade da Ré (…)

27) As transferências bancárias tiveram como único objetivo o financiamento da Ré D (…)

28) A Ré D (…) pagou à Autora a quantia total de 270.628,59€, por conta dos valores das despesas e encargos bancários com as operações de confirming aludidos em 16) e das transferências de dinheiro referidas em 20), do seguinte modo:

a) Duas transferências bancárias, efetuadas em 08.10.2012, no valor global de € 100.000,00, sendo uma delas de € 99.000,00 e a outra de € 1.000,00;

b) Pagamento efetuado ao IGCP, referente a IVA, em nome e por conta da Autora, no valor de € 65.773,43;

c) Pagamento efetuado ao IGCP, referente a pagamento especial por conta, em nome e por conta da Autora, no valor de € 4.855,16;

d) Uma transferência bancária, efetuada em 05.11.2012, no valor de € 100.000,00;

29) Pelo extinto Tribunal Judicial de Oliveira do Hospital, ora secção local da comarca de Coimbra, corre termos o procedimento cautelar com o n.º 446/13.4TBOHP, que a ora Autora moveu aos aqui Réus, M (…) e C (…) foi proferida decisão preliminar, no dia 30.09.2013, ordenado a intimação dos requeridos a restituírem à requerente todos os documentos contabilísticos financeiros e societários da sociedade Autora, bem como o veículo automóvel com a matrícula 29-LJ-01, da marca Volvo, respetivas chaves e documentos;

30) Em meados de 2007, foi manifestado ao Réus M (…) e C (…), através de intermediários, o interesse do grupo A (...) , na pessoa do seu presidente, o senhor (…), em estabelecer um acordo de entendimento comercial com aqueles;

31) Tal interesse tinha por base o facto dos citados Réus representarem e gerirem empresas têxteis que, estando no mercado há mais de 50 anos, tinham firmado relações comerciais estáveis com o principal grupo têxtil europeu, a Inditex, onde se localizavam as marcas Z (...) e M MM(...) , sendo tal grupo têxtil, àquela data de 2007, o principal cliente da sociedade Ré;

32) Tendo em vista a possibilidade de vir a manufaturar no Egito, nas fábricas da sua participada, a sociedade (…) Co (S (...) ), as encomendas da I (...) recebidas pela sociedade Ré, o Grupo A (...) propôs aos Réus a celebração de um Memorando de Entendimento, o qual foi assinado, no Egito, em 30.08.2007;

33) Nos termos do aludido memorando, previa-se a constituição de uma empresa comum em zona franca do Egito, destinada à venda e distribuição de vestuário formal masculino, e a constituição de uma outra empresa comum em Portugal, destinada a centralizar encomendas a colocar na empresa comum egípcia para aí serem fabricadas, nos exatos termos que decorrem do documento de fls. 634 e v.º, traduzido para a língua portuguesa a fls. 635 e v.º, que aqui se dá por integralmente reproduzido;

34) Nessa sequência, e logo a partir de setembro de 2007, estabeleceram-se relações comerciais entre a sociedade Ré e a S (...) , com a colocação nesta das encomendas por aquela recebidas da M MM(...) para a manufatura de fatos de homem, tendo as primeiras mercadorias sido acabadas em novembro de 2007;

35) Durante o resto do ano de 2007 e todo o ano de 2008, assistiu-se ao desenvolvimento do mesmo tipo de cooperação, tendo a sociedade Ré passado também a solicitar à S (...) a manufatura de artigos para um novo cliente, o C C(...) ;

36) Em tal procedimento, a sociedade Ré era quem angariava as encomendas e que as colocava em produção na S (...) , escolhendo, comprando e fornecendo as matérias-primas necessárias ao fabrico, sendo que a S (...) , por sua vez, manufaturava as mercadorias com a supervisão técnica, no local, de funcionários da sociedade D (...) , entregando-as no final a esta, faturando-as;

37) A sociedade Ré, subsequentemente, entregava os produtos acabados aos seus clientes M MM(...) e C C(...) , faturando-os a estes;

38) No intuito de solidificar as relações comerciais que se estabeleceram, a (…)s e a sociedade (…), S.A., representada pelo Réu C (…), outorgaram, em 17.09.2008, um documento denominado Frame Work Agreement (acordo-quadro), a ser regulado pelas Leis da República Árabe do Egito e, em caso de litígio, a ser dirimido com recurso à arbitragem, nos termos que decorrem do documento de fls. 636-637, traduzido para a língua portuguesa a fls. 638-639, que aqui se dá por integralmente reproduzido;

39) Em tal acordo-quadro, com um período de vigência de 10 anos, convencionaram os outorgantes que, sendo a A (...) Company uma empresa de produção de vestuário e a M (…), S.A., uma empresa que comercializa e vende produtos produzidos pela A (...) Holding em Portugal, Espanha, Brasil e PALOP’s, constituir-se-iam duas empresas, uma no Egito e outra em Portugal, destinando-se esta a angariar encomendas em tais mercados e que os produtos seriam manufaturados, principalmente, naquela (prevendo-se que seriam manufaturadas exclusivamente naquela as encomendas oriundas dos PALOP’;

40) As duas empresas a constituir, nos termos acordados, teriam um capital social de 50.000,00€, com uma participação em ambas de 60% por parte da A (…) e de 40% por parte da (…).A.;

41) Nessa sequência, e ainda em 2008, foram constituídas as duas referidas empresas, uma egípcia com a denominação «(…)» e a outra portuguesa, a aqui Autora, registada em 23.01.2009;

42) A partir do início de 2009, passou a ser a aqui Autora a encomendar directamente à S (...) , no Egito, a produção da mercadoria têxtil solicitada pela M MM(...) , Z (...) e C C (...) l, entregando-a e faturando-a subsequentemente a tais clientes, sem que houvesse qualquer intermediação por parte da EP Egito;

43) Concomitantemente, deixou de ser a Ré D (...) a efetuar tal procedimento, o que representou perda de faturação;

44) A sociedade Autora, em 2012, declarou em sede de IES (Informação Empresarial Simplificada), um total de capital próprio de 943.140,82€;

45) A Autora funcionava nas mesmas instalações da Ré (…), sendo que a contabilidade e a comunicação da mesma eram efetuados por funcionários desta;

46) Não obstante aludido em 42), a Ré (…) por vezes, retificava e emendava, na sua fábrica de Oliveira do Hospital, defeitos da mercadoria que era produzida na S (...) , no Egipto, e que escapavam ao controlo dos seus funcionários no local;

47) E ainda adquiriu, por um número de vezes concretamente indeterminado, matérias-primas destinadas à fabricação no Egipto das encomendas lá colocadas pela Autora, fosse a pedido de alguns fornecedores, não concretamente determinados, fosse a pedido expresso da S (...) Coo;

48) Para tanto, a Ré D(…) adquiria as matérias-primas em causa, pagando-as em prazos médios não superiores a 90 dias, sendo que, depois, fornecia-as à S (...) , sendo que esta pagava-as à Ré D(…) em prazos superiores a 150 dias;

49) A Ré D(…) assegurou, por um número de vezes não concretamente determinado, serviços técnicos à produção no Egipto, disponibilizando junto da S (...) pessoal técnico;

50) Em virtude do aludido em 42), 43) e 45) a 49), a Ré D (...) viu-se confrontada com falta de liquidez.

*

De entre os factos alegados e incluídos nos temas da prova não se provaram os seguintes:

a) A W (...) , SGPS, S.A., detém 37% do capital social da Ré (…), M (…) detém 51%, C (…) detém 9% e outros detêm 3%;

b) Os Réus M (…) e C (…), pese embora a ordem judicial emanada do procedimento cautelar n.º 446/13.4TBOHP, ainda não deram cumprimento à mesma;

c) Os Réus M (…) e C (…) representam a 3.ª geração do grupo têxtil B(...) , de Oliveira do Hospital;

d) Destas concretas relações comerciais ocorridas entre 2007 e 2008, a sociedade Ré faturou 2.800.000,00€, com um ganho de 300.000,00€;

e) A A (...) , ao outorgar o Frame Work Agreement, tinha como objectivo fundamental alcançar o mercado espanhol, substituindo nas relações comerciais aludidas em 34) a 37) a Ré D(…) pela nova empresa a constituir em Portugal, a aqui Autora;

f) A A (...) impôs que o Frame Work Agreement fosse regulado pelas leis egípcias e que os litígios existentes fossem dirimidos com recurso à arbitragem;

g) A sociedade «(…)» foi logo desativada operacionalmente, tendo por ela passado apenas 4 faturas, atinentes a fornecimentos de bens, no valor global de 493.444,40€;

h) Tal facto prendeu-se com as conveniências do Grupo A (...) para aproveitar em seu benefício exclusivo os proveitos das exportações;

i) Era o Grupo B(...) que respondia perante os fornecedores e clientes da Autora, seja pela garantia de pagamento, seja pelos prazos de entrega e garantia de qualidade dos produtos entregues a estes;

j) A Ré D(…), muitas vezes, pagou a pronto as matérias-primas que adquiria para fornecer à S (...) ;

k) Em 27.04.2011, a S (...) mantinha para com a Ré D(…)uma dívida de 1.739.654,00€;

l) A Ré D(…) assegurou continuamente os serviços técnicos aluídos em 46);

m) A Ré D(…)assegurou o desenvolvimento de produtos e o controlo de stocks da S (...) ;

n) A perda de faturação aludida em 43) correspondeu a um volume de encomendas de montante global de cerca de 25.000.000,00€, entre 2009 e 2012;

o) A Ré D(…) viu baixar a sua faturação anual de setembro de 2012 a setembro de 2013 em 18.400.000,00€, perdendo uma margem bruta de 1.800.000,00€;

p) Ao longo dos anos de 2008 a 2012, a fim de desenvolver a relação comercial decorrente da joint-venture entre os dois grupos, a Ré D(…) introduziu no seu seio alterações estruturais no número e na qualificação dos seus funcionários e procedeu a

investimentos significativos;

q) O valor global dos investimentos levados a efeito pela Ré D(…) nos anos de 2008 a 2012, reportadas especificamente ao desenvolvimento da relação comercial decorrente da joint-venture entre os dois grupos, foi aproximadamente de 600.000,00€,

incluindo viagens (ao Brasil, inclusive) na importância de 264.033,85€; funcionários e

serviços contratados no valor de 266.226,10€; e investimentos em móveis e imóveis, na

quantia de 63.293,00€;

r) A partir de meados de 2012, os serviços do grupo A (...) começaram a criar dolosamente e de má-fé junto dos serviços da Ré D (...) , e principalmente junto dos clientes tradicionais desta, uma rede de situações que comprometia o bem nome e a capacidade económica desta, em ordem a atingir o seu objetivo: o de eliminarem a intermediação do grupo B(...) , principalmente da Ré (…) a fim de passarem a trabalhar diretamente com os aqueles clientes;

s) O grupo A (...) começou a atrasar deliberadamente as entregas das encomendas dos clientes; a tratar negligentemente as ordens de encomendas colocadas pela Ré D(…)nas suas fábricas; a fazer chantagem de só entregarem as mercadorias aos clientes mediante o pagamento antecipado ou à vista; a questionar várias faturas que lhes eram enviadas e a pretender ver reconhecidos valores a seu favor que não ganhavam justificação; e a transmitir a clientes tradicionais informação que deveria ser reservada às relações entre os dois grupos;

t) O saldo da conta corrente entre a Autora e a Ré D(…) situa-se, neste momento, no montante de 1.773.045,84€, a favor desta;

u) A atuação e comportamento dos Réus M (…) e C (…), consubstanciada nos factos descritos nos n.ºs 15) e 18), só teve em vista o interesse concreto da existência, funcionalidade e objetivos da sociedade Autora.».

                                                                      *

3.2 – (…)

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1– Cumpre agora entrar na apreciação da questão seguinte supra enunciada, integrante do recurso do recurso dos Réus C (…) e M (…), qual seja, a do desacerto da decisão de mérito na parte em que condenou os Réus C (…) e M (…) (por não ter havido por parte destes qualquer violação do dever de lealdade para com a sociedade A., antes terem eles atuado em consideração do interesse dos sócios, únicos para que aponta a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade A.):

Se bem captamos o sentido do alegado pelos RR./recorrentes, este seu fundamento nunca dispensaria, como pressuposto lógico e jurídico necessário, a alteração da matéria de facto nos termos propugnados pelos mesmos, mais concretamente em ordem a evidenciar que a atuação e comportamento deles RR. (M (…9 e C (…)), mormente o financiamento utilizado havia sido efetivamente efetuado em beneficio da sociedade Autora e dos seus sócios, atendendo aos interesses imediatos e de longo prazo destes últimos.

Isto porque – nos termos literais expressos na alegação recursiva dos mesmos – importava ponderar “sempre os interesses destes na continuidade, sobrevivência e alavancagem de um negócio que desde 2007 se vinha consolidado e dando frutos entre os Grupos A (...) e B (...) , no fundo os dois sócios efetivos da A.

Daí que tivessem, com especial afinco, procurado justificar a essa luz o comportamento e atuação dos ditos RR. M (…) e C (…), na utilização concreta que fizeram enquanto gerentes da sociedade dos valores pertencentes à sociedade “E.P. (…) ,LDª” (a aqui A.).

Salvo o devido respeito, não lograram minimamente esse objectivo, desde logo em termos de impugnação da matéria de facto – como flui da decisão antecedente.

Acresce que, em tese, sempre seria, em nosso entender, muito discutível que essa linha de defesa pudesse ser eficaz e bastante para o efeito.

Senão vejamos.

Preceitua sobre esta matéria o artigo 72º, nº 1, do C. Soc. Comerciais, que os gerentes ou administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por atos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa, sendo que, no nº 2 desse mesmo preceito, se prevê que a responsabilidade é excluída se alguma das pessoas referidas no número anterior provar que atuou em termos informados, livre de qualquer interesse empresarial e segundo critérios de racionalidade empresarial.

A sentença recorrida assentou a condenação dos ditos RR. essencialmente estruturada no seguinte entendimento:

«Os Réus C (…9 e M (…) foram os únicos gerentes da sociedade Autora, EP (…), Ld.ª, desde 23.01.2009 até 22.03.2013, e simultaneamente acionistas e administradores da sociedade Ré, (…), S.A., sendo que ambas as empresas funcionavam no mesmo local ( x(...) , y(...) , Oliveira do Hospital).

No exercício da gerência da sociedade Autora, os Réus C (…9 e M (…) solicitaram a antecipação de fundos de créditos comerciais por via de confirming (forma de financiamento a curto prazo que possibilita antecipar recursos referentes à venda de bens e prestação de serviços, sem a necessidade de recorrer a uma linha de crédito, serviço que é prestado pelas instituições financeiras, as quais procedem à liquidação e antecipação dos montantes que constam das ordens de pagamento antes da data de vencimento e pagamento das correspondentes faturas, sendo remuneradas pelo crédito que, desta forma, é concedido), importando despesas e encargos, suportados por aquela, no valor de 126.452,57€, os quais foram utilizados por aqueles para financiar a atividade da Ré (…).

Também na sua qualidade de gerentes da Autora, os mesmos Réus C (…) e M (…) procederam, no período compreendido entre agosto de 2009 e setembro de 2012, a diversas transferências bancárias da conta da Autora para conta bancária da Ré (…)s quais ascendiam, em setembro de 2012, a um valor de 2.061.000,00€.

Tais transferências, que serviram para, de igual forma, financiar, de forma gradual e progressiva, a Ré (…), não foram informadas aos sócios, nomeadamente ao sócio maioritário que a desconhecia, não foram aprovadas por qualquer deliberação dos sócios, nem foram inicialmente registadas nos registos contabilísticos da Autora.

Ora, atento o propósito com que os Réus C(…) e M (…) agiram, tanto nas operações de confirming como nas transferências bancárias realizadas – qual seja, o financiamento da atividade da Ré D (…) –, outra conclusão não é possível retirar que não seja a de que ambos violaram o dever de lealdade a que estavam adstritos enquanto gestores da sociedade Autora.

Na verdade, tais atos visaram a realização de interesses da sociedade Ré, de que aqueles Réus eram acionistas e administradores, não visando, como seria exigível, o exclusivo interesse da sociedade Autora (…)»

Será então que é questionar ter neste contexto o dito financiamento da atividade da Ré “D (…)” constituído inapelavelmente um ato ilícito?

Cremos bem que não.

Atente-se que tendo a decisão tomada pelos RR. tido lugar no exercício da gerência da A., do objecto social desta não constava seguramente a actividade de “financiamento” de outras entidades, ainda que tal fosse a uma sociedade (terceira, a “(…)n”) detida (enquanto dela são acionistas e administradores) pelos ditos RR., simultaneamente representantes legais de uma das sócias da Autora (a sociedade “(…) SGPS, S.A.”), isto é, esse não é, nem era, o core business da A. (na linguagem técnica de cariz sócio-económico que é usada vulgarmente a este propósito)…

Ademais, está em causa um montante vultuoso – que ascendia em Setembro de 2012 a € 2.061.000,00 – tendo sido um processo gradual e progressivo, com início em Agosto de 2009, sem que os ditos RR. tivessem cuidado minimamente de obter a anuência dos demais sócios da A. (através de uma deliberação social, sendo disso caso), ou sequer os mesmos de tal informar.

A tudo acrescendo que tal “financiamento” nem sequer estava devidamente retratado em termos contabilísticos, o que só veio a ser suprido, após a situação ser detetada, em Dezembro de 2011.

Por outro lado, esta situação causou danos à Autora, estando expressamente  apurado que “Fruto das transferências bancárias referidas em 18) e 20), a Autora não pode pagar a dívida que tem para com o seu fornecedor S (...) ou distribuir o lucro pelos sócios” [cf. facto “provado” sob o ponto “23)”].

Finalmente, resultou igualmente apurado que os mesmos RR. “C (…) e M (…) autorizaram que fossem efectuados adiantamentos ao primeiro, no montante de €7.000,00 (sete mil euros), nos anos de 2010 e 2011, sem que, em relação ao valor disponibilizado, tivessem sido apresentados relatórios de despesas ou documentação referente às despesas realizadas” [cf. facto “provado” sob o ponto “24)”].

Neste quadro, cremos não se suscitar qualquer dúvida nem dificuldade em se tirar a conclusão de que os ditos RR. praticaram actos ilícitos – precisamente na medida em que traduzem a inexecução das obrigações a que estavam vinculado os RR. enquanto gerentes da Autora, e por força do exercício dessa função na e para com a Autora.

De facto, ex abundanti, ficou provada a verificação de apropriação de património societário (da Autora) por parte dos ditos RR., sendo certo que se tratou de uma clara (e reiterada) violação do dever de lealdade.

Ora, como igualmente bem sublinhado ficou na sentença recorrida, «A apropriação de património societário é um dos casos clássicos apontados pela doutrina de violação de dever de lealdade – cf. Pedro Caetano Nunes, ob. citada, págs. 207 e 208, e J. M. Coutinho de Abreu, in «Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades», Cadernos do IDET, n.º 5, Almedina, 2007, págs. 26 e 33 a 34, e bem assim os arestos citados pelo primeiro: Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 04.12.99, do Tribunal da Relação do Porto de 22.05.01, do STJ de 13.03.03, e do Tribunal da Relação de Guimarães de 09.11.05, tratando como tal casos de levantamento de dinheiro em caixa ou de apropriação de dinheiro entregue por clientes, ou, visando desvios patrimoniais indiretos, através do pagamento pela sociedade a terceiros de despesas pessoais dos gerentes e familiares.»

Temos assim inequivocamente apurada a violação de deveres de lealdade[2], previstos como fundamentais pelo artigo 64º, nº 1, alínea b), do C.Soc.Comerciais.

O que idem se diga quanto aos demais pressupostos da responsabilidade civil –  que consabidamente são facto ilícito, culpabilidade, prejuízos e nexo de causalidade.[3]

De referir, quanto à culpa, que esta se presume, donde, bastar ao Autor, neste tipo de ação, a prova da violação dos deveres por parte do gerente, ao qual, para afastar tal pressuposto, incumbe provar que actuou tal como, naquelas circunstâncias, faria um gestor criterioso.

Prova esta que cremos, convictamente, não ter sido feito pelos RR.!

Sem embargo, em nosso entender, ainda que se pudesse concluir que os RR. estavam a colmatar a falta de liquidez da sociedade “D(…)”, não vemos como é que por via de tal se podia ou pode considerar que, no fundo, esses RR. estavam a prosseguir o interesse concreto da existência, funcionalidade e objetivos da sociedade Autora!

Na verdade, como é que essa atuação dos Réus gerentes – de, no fundo, “descapitalizar” a Autora – podia servir (exclusivamente) os interesses da sociedade Autora (ou dos seu sócios)?

Com o devido respeito, não vislumbramos como tal se pode insofismavelmente considerar!

Sendo certo que sócio maioritário da Autora era a sociedade “(..)S”, com uma quota de € 30.000,00 [cf. facto “provado” sob o ponto “2)”], a qual por via de tal não viu serem-lhe distribuídos quaisquer lucros, nem, aliás, puderam ser pagos a uma sociedade participada daquela [a sociedade (…) Co (S (...) ], os fornecimentos feitos à Autora [cf. facto “provado” sob o ponto “32)”].

Ora, a não actuação em conflito de interesses com a sociedade protegida, vem precisamente associada paradigmaticamente ao dever de lealdade.[4]

O que tudo serve para dizer que, face ao quadro fáctico efetivamente apurado,  quando os RR./recorrentes invocam e relevam «os INTERESSES de longo prazo dos sócios», como justificativa para a sua atuação, não estão seguramente a ter em conta os interesses dessa sócia maioritária da Autora.

Temos ainda presente que, a este propósito, os RR./recorrentes invocam nas suas alegações recursivas que “os interesses concretos da existência funcionalidade e objetivos da sociedade AUTORA só se alcançam com a DESCONSIDERAÇÃO DA SUA PERSONALIDADE JURIDICA, uma vez que ela resultou de uma criação formal como sociedade-veículo, para representar e executar, num certo momento histórico a partir de 2008 e para certos efeitos determinados os INTERESSES COMERCIAIS COMUNS de dois grupos económicos concretos bem definidos – o Grupo Egipcio (…)e o Grupo Português (…)

Sendo que, prosseguindo na mesma linha, sustentam a «inutilidade da A. como entorse à relação normal que deveria ter sido a da (…)», para de seguida aludir à «“FUSÃO” de interesses entre a A. e a Ré D(…) no conspecto da manutenção da relação económica com a S (…)».

 Mais uma vez com o devido respeito, só se compreende esta linha de raciocínio como fruto de uma apreciação crítica, quase moralista, a opções e escolhas que estão a montante da realidade que veio a ser a resultante da livre definição e acordo contratual das partes ora em litígio.

Ora, isso, só por si e nesses termos, não é critério válido nem determinante para a solução a que se intenta chegar nos autos, mormente face a um quadro fáctico apurado muito mais restrito do que o tido como pressuposto para essa linha de argumentação.

Finalmente, não vemos que a invocação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade Autora seja via adequada à tutela do caso ajuizado, sob o prisma dos interesses dos RR./recorrentes.

 Decorre do quadro normativo estabelecido nesta matéria, nomeadamente do art. 5º do C. Soc. Comerciais, o princípio fundamental de separação entre a sociedade e os sócios, assim como entre a sociedade e os titulares dos seus órgãos.

Tal separação é sobretudo importante do ponto de vista patrimonial: a  sociedade torna-se, assim, um instrumento jurídico ao serviço da vida económica.

Todavia, o nosso ordenamento jurídico prevê excepções que surgiram inicialmente na Doutrina, posteriormente acolhidas pela Jurisprudência, motivadas pela protecção de terceiros, que originaram que perante certos tipos de utilização abusiva da personalidade jurídica, pudesse operar a “desconsideração da personalidade jurídica da pessoa colectiva “, responsabilizando-se os seus sócios.

A desconsideração ou levantamento da personalidade colectiva surgiu na doutrina e, posteriormente, na jurisprudência como meio de cercear formas abusivas de actuação, que ponham em risco a harmonia e a credibilidade do sistema, não se encontrando previsto ou regulado pelo direito positivo português.

Na ordem jurídica portuguesa, a desconsideração da personalidade jurídica teve acolhimento por via doutrinária, não tanto a nível jurisprudencial, devendo-se as primeiras perscrutações a FERRER CORREIA aquando da análise do regime das sociedades unipessoais e os problemas advenientes do abuso da personalização na persecução de interesses pessoais contraditórios com interesses sociais, tendo sido na doutrina portuguesa, Lamartine Corrêa de Oliveira quem aprofundou a matéria e propôs a designação de “desconsideração da personalidade colectiva”, adoptada também por Oliveira Ascensão, Coutinho de Abreu, Pereira de Almeida e Pedro Cordeiro. Menezes Cordeiro preferiu a designação de “levantamento da personalidade colectiva” e Carvalho Fernandes a de “superação da personalidade colectiva” (corresponde ao "disregard of legal entity" ou "lifting the corporate veil", do direito anglo-americano).

A recepção do instituto da desconsideração da personalidade jurídica pelos tribunais portugueses é recente e prende-se naturalmente com a necessidade de assegurar a tutela dos credores sociais atacando o património dos sócios.

Como já foi doutamente esclarecido[5], são também excepções ao princípio da limitação da responsabilidade.

No fundo, trata-se de deixar de reconduzir à sociedade actos abusivos das pessoas singulares que agem como titulares dos seus órgãos: neste género de casos, um elementar sentido de justiça leva a defender a responsabilização directa e ilimitada dos sócios (e algo de semelhante se pode dizer dos membros dos órgãos sociais) por actos formalmente imputáveis à sociedade e apesar do princípio da separação de patrimónios.

De referir que a Lei Portuguesa prevê vários casos em que, por actos juridicamente imputáveis à sociedade/pessoa colectiva, respondem, não só esta, mas também os sócios ou/e os membros dos órgãos sociais - são, por exemplo, os casos de responsabilidade civil dos administradores (como tais, por actos praticados em nome da sociedade) e de outros membros de órgãos sociais para com os credores sociais e para com os sócios e terceiros (arts. 78º a 82º do C. Soc. Comerciais ); de responsabilidade solidária do sócio por actos de membros de órgãos sociais por ele designados (art. 83° do C. Soc. Comerciais); de responsabilidade do sócio único em caso de falência da sociedade (art. 84° do C. Soc. Comerciais); de responsabilidade da sociedade directora ou dominante para com os credores da sociedade subordinada ou dependente (arts. 501° e 491° do C. Soc. Comerciais) e por perdas da sociedade subordinada ou dependente (arts. 502° e 491° do C. Soc. Comerciais), sendo certo que tais casos podem considerar-se abrangidos no conceito de desconsideração em sentido amplo.

O tema ganha particular acuidade quando, não havendo disposição legal, o abuso da personalidade jurídica deva levar, para sancionar o abuso do direito perpetrado por detrás do véu da personalização, a imputar directamente o acto ao seu autor material, ou a responsabilizá-lo directamente por esse facto.[6]

Este instituto não se encontra regulamentado na lei portuguesa, mas isso não significa que o nosso direito civil não disponha, na sua positividade, de regras fundamentais que o permitem acolher particularmente, o art. 334º do Código Civil (abuso de direito), entendendo que a generalidade das pessoas têm o direito de constituir pessoas colectivas e de exercer actividades por intermédio delas, mas que esse direito tem “limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito” – estes os casos de desconsideração em sentido estrito.[7]

Ou seja, a desconsideração pode ser entendida sob dois prismas: 1) num mais amplo, como desrespeito pelo princípio da separação entre a pessoa colectiva e os seus sócios ou os membros dos seus órgãos; e 2) noutro mais restrito, como a correção a uma primeira imputação legal de direitos à pessoa colectiva ou aos seus membros, feita, imediatamente, com base num abuso de instituto e em qualquer caso a desconsideração tem carácter excepcional, já que derroga o princípio da separação consagrado pelo legislador.[8]

Em síntese, em todos estes casos estão a transferir-se riscos para os outros e isso justifica o recurso à desconsideração, donde, termos como indispensável examinar a justificação legitimadora da aplicação do instituto àqueles grupos de casos, ou seja, o facto ilícito de onde decorre e a sua justificação.

Na Doutrina, é pacífico que a desconsideração significa uma derrogação do princípio legal da separação, que só pode admitir-se a título excecional, para certos casos concretos. A desconsideração consiste, na verdade, numa correcção das consequências jurídicas da imputação à sociedade, segundo as regras gerais, de certos actos que, pelo seu carácter abusivo ou pela sua finalidade extra-societária, se entende que, excepcionalmente, devem obrigar outras pessoas (ou outros patrimónios).

Surgindo as divergências quanto à definição dos pressupostos ou requisitos da responsabilização dessas outras pessoas, a Doutrina tem autonomizado as condutas societárias reprováveis que podem conduzir à aplicação do instituto da desconsideração da personalidade, avultando : 1) a confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas de duas ou mais pessoas, normalmente entre a sociedade e os seus sócios (ainda que não tenha de ser obrigatoriamente assim); 2 ) a subcapitalização da sociedade, por insuficiência de recursos patrimoniais necessários para concretizar o objecto social e prosseguir a sua actividade; 3 ) e as relações de domínio grupal.[9]

Ou seja, o recurso a esse instituto é possível quando ocorram situações de responsabilidade civil assentes em princípios gerais ou em normas de protecção, nomeadamente dos credores, ou em situações de abuso de direito e não exista outro fundamento legal que invalide a conduta do sócio ou da sociedade que se pretende atacar, ou seja, a desconsideração tem carácter subsidiário.[10]

Admite-se, embora só excepcionalmente, a responsabilidade dos sócios ou membros dos órgãos sociais perante os credores sociais, outros sócios ou até terceiros, quando aqueles utilizem a pessoa colectiva para um fim contrário ao direito.

Por outro lado, tendo vindo a Jurisprudência a reconhecer que “a desconsideração ou levantamento da personalidade colectiva das sociedades comerciais - disregard of legal entity - tem na sua base o abuso do direito da personalidade coletiva […] e que a desconsideração, como instituto assente no abuso do direito - art. 334.º do CC -, tem em si abrangida a violação das regras da boa fé no interagir com terceiros, implica a existência de uma conduta censurável que só foi possível alcançar mediante a separação jurídica do ente societário - através da personalidade jurídica que a lei lhe atribui - e a pessoa dos sócios, para assim almejar um resultado contrário a uma reta atuação”[11]; ou ainda que, na vertente do abuso de personalidade, podem perfilar-se algumas situações em que a sociedade comercial é utilizada pelo(s) sócio(s) para contornar uma obrigação legal ou contratual que ele, individualmente assumiu.[12]

Ora se assim é, a situação que os RR./recorrentes invocam não constitui de todo uma das situações-quadro para as quais o dito instituto tem sido convocado, antes é uma situação diametralmente oposta.

O que tudo serve para dizer que não se vislumbra qualquer possível acolhimento à tese recursiva dos RR./recorrentes por esta via de enquadramento, donde a inapelável improcedência do recurso deduzido pelos mesmos.

                                                           *

4.2 – Vejamos agora a remanescente questão, esta suscitada no recurso da Autora – desacerto da decisão de mérito na parte em que absolveu a Ré “D(…)” da condenação solidária com os Réus C (…) e M (…) no pagamento dos danos causados e objeto do pedido:

De referir que a declaração de improcedência constante da sentença do Tribunal a quo relativamente ao pedido de condenação solidária da Ré “D(…)” com os demais RR., assentou na seguinte linha de entendimento:

«O pedido da Autora em relação aos Réus gerentes baseou-se, como vimos, no disposto nos artigos 64.º e 72.º do CSC, preceitos que versam sobre a responsabilidade civil dos administradores perante a sociedade, o que pressupõe, necessariamente, a violação por parte daqueles dos especiais deveres dos administradores. Ou seja, a responsabilidade a que alude o artigo 72.º do CSC, sendo também de natureza delitual, é, portanto, pessoal e direta dos próprios gerentes.

Nessa medida, e desde logo, entendemos não ser juridicamente possível cumular a condenação da Ré sociedade à condenação dos Réus gerentes, fazendo refletir naquela o efeito jurídico resultante do dever de indemnizar que sobre estes recaiu em virtude da apontada atuação ilícita, e muito menos de forma solidária (cf. artigo 513.º do Código Civil).

Sendo certo que, em relação à obrigação de indemnizar resultante de responsabilidade civil por facto ilícito, a lei consagra a solidariedade de todos os responsáveis pelos danos (artigo 497.º, n.º 1, do Código Civil), este preceito não é aplicável à responsabilidade contratual, como é o caso dos presentes autos.

Por outro lado, sempre se diria que a via preconizada pela Autora para a condenação da Ré sociedade assenta numa fonte de obrigações dotada duma particularidade que a distingue das demais: a sua natureza subsidiária, expressamente consagrada no artigo 474.º do Código Civil.»

Perante isto a discordância da Autora, que deduz o seu recurso assente nos dois seguintes argumentos:

«(i) Em primeiro lugar, porque a admissibilidade de cumulação de pretensões em Processo Civil tem que ser analisada e verificada no âmbito do regime atinente ao litisconsórcio e à coligação, tal como este se mostra previsto na legislação processual civil, maxime no Código de Processo Civil, e não, conforme efetuado pelo Tribunal a quo, perante normas de direito material;

 (ii) Em segundo lugar, porque contrariamente ao defendido pelo Tribunal a quo, é amplamente defendido pela jurisprudência que o caráter subsidiário do enriquecimento sem causa não impede a sua cumulação com o instituto da responsabilidade civil.»

Que dizer?

Quanto à primeira ordem de razões, salvo o devido respeito, na sentença do Tribunal recorrido não se apontou qualquer óbice sob o ponto de vista processual à cumulação de pretensões indemnizatórias, pelo que, nos dispensamos de apreciar o que a Autora/recorrente aventa para este efeito, com que, aliás, globalmente nada temos a objetar.

Sucede que, relativamente à inadmissibilidade de cumulação perante normas de direito material – basicamente por a responsabilidade a que alude o artigo 72.º do CSC, na qual foi estruturada a condenação dos RR. C (…) e M (…) ser uma responsabilidade pessoal e direta deles enquanto sendo os próprios gerentes – donde, não ser admissível a condenação solidária, sob o ponto de vista jurídico-substantivo, dos mesmos com a Ré “D(…)”, nada aduziu a Autora/recorrente.

Na verdade, qual é o ato ilícito em que a Autora/recorrente funda a responsabilidade da Ré “D(…)” na circunstância ajuizada, que o é em termos solidários com os RR. C (…) e M (…) – interrogação que colocamos em termos de responsabilidade extra-contratual?

Já em termos de responsabilidade contratual, qual é o concreto incumprimento por parte da Ré “D(…)” que gera a sua eventual e invocada obrigação solidária (que é disso que estamos por ora a tratar)?

Salvo o devido respeito, para além de não ter sido em concreto enunciado, não o conseguimos descortinar, nem para um caso, nem para o outro!

Atente-se que foi a própria Autora que invocou na p.i. que “O financiamento operado pelos réus C (…) e M (…) à ré D (…)não se fundou em nenhum contrato ou operação comercial” e bem assim que se tratava de uma “atribuição patrimonial sem título (sem causa)”(cf. arts. 101º e 102º da p.i.)…

Acresce que manifestamente não é caso – nem foi invocada! – de responsabilidade objetiva ou por factos lícitos.

Sendo certo que o regime-regra nesta matéria é o das obrigações conjuntas ou parciárias, como se extrai da norma que preceitua sobre as fontes da solidariedade – o  art. 513º do C.Civil – ao dizer-se que a solidariedade existe quando resulte da lei ou das vontade das partes.[13]

E que dizer da argumentação de que “a Recorrente não dirige qualquer pretensão indemnizatória ou de outra índole contra a Ré D (…), da mesma forma que não dirige qualquer pretensão fundamentada com base no enriquecimento sem causa contra os Réus C (…) e M (…)”, razão pela qual “não nos parece ser aplicável o princípio da subsidiariedade do enriquecimento sem causa quando os devedores são distintos e, consequentemente, quando distintos são também os fundamentos da responsabilidade de cada devedor”.

Esta é já a segunda vertente da argumentação – a discordância quanto ao entendimento perfilhado em termos de “subsidiariedade” do enriquecimento sem causa.

É certo que, de acordo com o disposto no artigo 474º do Código Civil “não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outros meios de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.

 De acordo com esta norma, o empobrecido só pode socorrer-se das regras do enriquecimento sem causa quando a lei não faculte aos empobrecidos outros meios de reação.

Sucede que, esta regra da subsidiariedade não é absoluta, pois que, conforme nos ensina a melhor doutrina, é manifesto que a ação de enriquecimento poderá concorrer com a responsabilidade civil, sempre que esta não atribua uma proteção idêntica à ação de enriquecimento.[14]

Daí que já tenha sido doutamente afirmado – como invocado pela Autora/recorrente nas suas alegações recursivas – que os dois institutos podem concorrer na qualificação da mesma situação, principalmente nos casos de intromissão em bens ou direitos alheios.[15].

Sem embargo, importa compreender o exato significado e alcance de tal, a  saber: “Se a intromissão não envolve responsabilidade civil (por exemplo, porque não há culpa ou porque não há dano) mas existe enriquecimento sem causa justificativa, o caráter subsidiário da obrigação de restituir nele fundada não impede a sua aplicabilidade.

Mas se a intromissão gera um enriquecimento para o intrometido e ao mesmo tempo um dano para o lesado, só na falta de um dano reparável é que o lesado poderá fazer uso da restituição por enriquecimento.”[16]

Dito de outra forma: “(…) o enriquecimento de um coincidirá muitas vezes com o empobrecimento do outro; nesses casos, o carácter subsidiário da obrigação de restituir levará a conceder primazia à obrigação de indemnizar.

Mas pode haver (e frequentes vezes isso acontecerá) divergência maior ou menor entre os dois valores, em virtude de o uso, fruição, consumo ou alienação da coisa que fez o intrometido não coincidir com a actuação que teria o titular do direito.

Quando assim seja, se o montante do enriquecimento exceder o do dano, a regra da subsidiariedade não deve impedir que se exercite o direito à restituição, visto que as regras da responsabilidade civil não consentem ao lesado meio de ser compensado de tudo quanto o outro obtém à sua custa.

Mesmo, aliás, que o dano seja igual ou superior ao enriquecimento, como a indemnização, não havendo dolo do agente, pode ser sempre inferior ao valor do dano causado, nos termos do artigo 494.º, ao lesado será lícito invocar o enriquecimento injusto, para impedir que a outra parte seja condenada a entregar-lhe montante inferior a este enriquecimento obtido à sua custa.

Devendo invocar embora, em primeira linha, o direito à indemnização, sempre que compute o dano em montante igual ou superior ao enriquecimento, o lesado poderá recorrer subsidiariamente ao montante deste, para obstar a que o tribunal, no uso da faculdade que lhe confere o artigo 494.º, fixe um montante inferior a esse enriquecimento.”[17]

Isto é: era necessário que houvesse uma divergência de valores entre o que o lesado/empobrecido obteria por um ou outro meio, assim se justificando o recurso ao meio complementar, ou então uma insuficiente cobertura pela via da indemnização, para se lançar mão do pedido de restituição; mas, tanto quanto nos é dado perceber, estando sempre em causa o mesmo devedor e não devedores distintos.

 Ora, no caso concreto em apreço, a Autora, para sustentar o pedido de restituição da quantia peticionada da Ré “D(…)” à luz do instituto do enriquecimento sem causa, para além de o fazer de um diverso/distinto devedor, não invoca que um concreto dano ou parcela do dano não tenha sido ressarcida pelo outro devedor (os RR. C (..:) e M (…)

O que por si, quanto a nós, bastaria para se concluir pela sem razão desta pretensão recursiva.

E nem se argumente – como por último invoca a Autora/recorrente nas suas alegações recursivas – que estava legitimada a via do recurso ao instituto do enriquecimento sem causa contra a Ré “D(…)”, na medida em que “a ação de indemnização por responsabilidade civil poderá revelar-se incapaz de eliminar o dano causado, nomeadamente por os agentes do facto danoso não disporem de património suficiente para pagar ao lesado o valor da indemnização devida” (sublinhado nosso).

É que, salvo o devido respeito, uma situação hipotética (receio de não pode vir a ser efetivada a via indemnizatória, ou de vir ela a revelar-se insuficiente) não pode de todo ser argumento para este efeito: a doutrina e jurisprudência alude a situações com aparente paralelismo com a invocada, mas é “quando o direito, cuja existência afasta a obrigação (subsidiária) de restituir, se extinguir por qualquer razão, pode essa obrigação surgir ou renascer com base no enriquecimento sem causa. Cfr., a título de exemplo, o disposto no n.º 4 do artigo 498.º”.[18]

Ou seja: legitima-se neste particular e para este efeito a restituição à luz do instituto do enriquecimento sem causa, quando, e só quando, a originária via (indemnizatória) não subsiste ou já deixou de existir.    

Por isso, tinha de improceder, como improcedeu, o pedido de condenação solidária da Ré “D (...) ” com os RR. C (…) e M (…).

Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, igualmente improcede o recurso da Autora.

                                                           *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – No exercício das suas funções os gerentes e/ou administradores são responsáveis pelos danos que, com preterição dos deveres legais ou contratuais (contrato de administração) causem, nomeadamente para com a própria sociedade (cf. art. 72.º, n.º 1, do C. Soc. Comerciais).

II – De entre os deveres a que estão adstritos, os gerentes estão vinculados à observância dos deveres de diligência (definido em função de um padrão objectivo, de um gestor criterioso e ordenado), e de cuidado e lealdade, sendo que ao dever de lealdade costuma ser associado nomeadamente a obrigação de não actuação em conflito de interesses com a sociedade protegida, maxime de não apropriação de património societário desta.

III – O recurso ao instituto da desconsideração da personalidade colectiva é possível quando ocorram situações de responsabilidade civil assentes em princípios gerais ou em normas de protecção, nomeadamente dos credores, ou em situações de abuso de direito e não exista outro fundamento legal que invalide a conduta do sócio ou da sociedade que se pretende atacar, ou seja, a desconsideração tem carácter subsidiário.

IV – Ou seja, admite-se, embora só excepcionalmente, a responsabilidade dos sócios ou membros dos órgãos sociais perante os credores sociais, outros sócios ou até terceiros, quando aqueles utilizem a pessoa colectiva para um fim contrário ao direito.

V – Se de acordo com o art. 474º do C. Civil o empobrecido só pode socorrer-se das regras do enriquecimento sem causa quando a lei não faculte aos empobrecidos outros meios de reacção, sucede que esta regra da subsidiariedade não é absoluta, pois que, conforme nos ensina a melhor doutrina, é manifesto que a ação de enriquecimento poderá concorrer com a responsabilidade civil, sempre que esta não atribua uma proteção idêntica à ação de enriquecimento.

VI – Sem embargo, para que a regra da subsidiariedade não impeça que se exercite o direito à restituição, é necessário que haja uma divergência de valores entre o que o lesado/empobrecido obteria por um ou outro meio, assim se justificando o recurso ao meio complementar, ou então uma insuficiente cobertura pela via da indemnização, para se lançar mão do pedido de restituição, mas tanto quanto é possível alcançar, estando sempre em causa o mesmo devedor e não devedores distintos.

VII – Por outro lado, legitima-se neste particular e para este efeito a restituição à luz do instituto do enriquecimento sem causa, quando, e só quando, a originária via (indemnizatória) não subsiste ou já deixou de existir, obviamente não bastando uma situação hipotética (receio de não pode vir a ser efetivada a via indemnizatória, ou de vir ela a revelar-se insuficiente).

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, pela improcedência de ambos os recursos, mantendo-se a sentença recorrida nos seus precisos termos.  

            Custas de cada um dos recursos pelo respetivo recorrente.

                                                                       *

Coimbra, 9 de Janeiro de 2017.

Luís Filipe Cravo ( Relator )

Fernando Monteiro

António Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins
 
[2] Atente-se que o dever de lealdade impõe que os administradores, no exercício das suas funções, considerem e intentem em exclusivo o interesse da sociedade, com a correspetiva obrigação de omitirem comportamentos que visem a realização de outros interesses, próprios ou alheios, isto é, o dever de lealdade implica a obrigação de contemplação exclusiva dos interesses da sociedade e exclusão de interesse pessoal.
[3] Nesse sentido, como expressão duma jurisprudência alargada, veja-se os acórdãos do S.T.J. de 31.03.2011 (no proc. nº 242/09.3YRLSB.S1) e de 28.02.2013 (no proc. nº 189/11.3TBCBR.C1.S1), ambos acessíveis em www.dgsi.pt/jstj, aliás ambos invocados nas contra-alegações recursivas da Autora.
[4] Assim por ARMANDO MANUEL TRIUNFANTE, in “Código das Sociedades Comerciais” a págs. 61.
[5] Vide A. PEREIRA DE ALMEIDA, in “Sociedades Comerciais”, 4.ª edição, Setembro de 2006.
[6] Neste sentido, PINTO FURTADO, in “Curso de Direito das Sociedades, 4.ª ed., 2001, a págs. 261-262.
[7] Assim LUÍS BRITO CORREIA, in “Direito Comercial”, 2.º vol. Sociedades Comerciais, 1989, edição da AAFDL, a págs. 227, 230, 232, 233, e 237 a 245, maxime, 240 e 244.
[8] Neste sentido, PEDRO CORDEIRO, in “A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais”, 3ª ed. Univ. Lusíada Editora, 2008, a págs. 109.
[9] Cf. MENEZES CORDEIRO, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 1º Vol., Lisboa, 1986/87, a págs. 364 e segs.
[10] cf. acórdão do T. Rel. Coimbra de 03.07.2013, no proc. nº 943/10.8TTLRA.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[11] Assim no acórdão do S.T.J. de 30.11.2010, na revista nº 1148/03.5TVLSB.S1- 6ª secção.
[12] Assim no acórdão do S.T.J. de 21-2-2006, na revista n.º 3704/05.
[13] Assim PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, 1987, a págs. 529.
[14] cfr. MENEZES LEITÃO, in “Direito das Obrigações”, volume I, a págs. 384, e  MENEZES CORDEIRO, in “Tratado de Direito Civil Português”, volume II, 2010, a págs. 251.
[15] Assim pelos autores citados na antecedente nota [22], in mesma obra e local, ora a págs. 460, em anotação ao referido artigo 474º.
[16] Citámos agora o acórdão do S.T.J. de 18.12.2012, no proc. nº 978/10.6TVLSB-A.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[17] Citámos agora ANTUNES VARELA, in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 10ª ed., Livª Almedina, 2004, a págs. 503-504.
[18] Assim o autor referido na nota antecedente, na mesma obra e local, ora na nota (3) a págs. 505.