Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
524/13.0TBTND-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: CITIUS – CONSTRANGIMENTOS TÉCNICOS.
JUSTO IMPEDIMENTO. CASO JULGADO MATERIAL – SEUS EFEITOS.
CONFISSÃO JUDICIAL.
AVALISTA
Data do Acordão: 06/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: DL 150/2014, DE 13/10; ARTºS 355º, Nº 2, DO C. CIVIL; 619º E 621º NCPC; 17º DA LULL.
Sumário: I - O DL nº 150/2014 de 13/10, dados os “constrangimentos técnicos” que afectaram o Citius (aquando da instalação das novas Comarcas) criou um regime temporário e excepcional aplicável à prática de actos processuais, utilizando dois instrumentos ou institutos: o justo impedimento e a suspensão dos prazos.

II - O diploma alargou subjectivamente o âmbito do justo impedimento e relativamente aos “actos em suporte electrónico” (no sistema informático do Citius), o justo impedimento é oficioso e automático, não carecendo de alegação e prova, por se tratar de regime especial, em relação ao previsto no art.140º CPC.

III - O caso julgado material (arts.619 e 621 do CPC) implica dois efeitos - um negativo e outro positivo – sendo em face deles que se distingue a excepção de caso julgado e a autoridade de caso julgado.

IV - O caso julgado incide sobre a decisão e não abrange os fundamentos de facto, de modo a impor-se extraprocessualmente.

V - A prova por confissão (judicial) (art.355º, nº2 CC) feita num processo só vale como judicial nesse processo, mas não pretende excluir a eficácia extraprocessual da confissão judicial.

VI - O art.352º, nº2 CC deve ser interpretado no sentido de que a confissão extrajudicial só conduz à prova plena se esta resultar do documento em que se insere e for feita à parte contrária ou a quem a represente , logo a confissão extrajudicial escrita (enquanto declaração receptícia) apenas assume força probatória plena quando dirigida à parte contrária, pois em relação a terceiros é livremente apreciada pelo tribunal.

VII - O avalista não pode opor, como o fiador, os meios pessoais de defesa do devedor principal contra o portador, as excepções pessoais nos termos do art. 17º LULL, já que de contrário seria negar a natureza do aval, como acto cambiário abstracto.

VIII - Porém, a inoponibilidade não é absoluta, pois o avalista pode opor ao portador a excepção de liberação, por extinção da obrigação do avalizado.

IX - O avalista está legitimado a excepcionar o preenchimento abusivo se ele próprio interveio no pacto de preenchimento, cabendo-lhe o respectivo ónus de alegação e prova (art.342º, nº2 CC), por se tratar de excepção material

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO
1.1.A exequente – P..., SA – instaurou acção executiva para pagamento de quantia certa, com forma de processos comum, contra os executados
A...
M...
F..., Unipessoal Lda
A..., Lda
U...,Lda
T... Limited.
Com fundamento numa livrança subscrita por U..., Lda e avalizada por B..., A... e M..., no valor de €1.329.332,16, emitida em 24/9/2010, com data de vencimento em 15/10/2010, a favor do Banco P..., SA, e na cessão de crédito, reclamou o pagamento global de €1.490.181,35.
1.2. Os executados A... e M... deduziram (5/12/2013) oposição por embargos de executado, alegando, em resumo:
A cessão de créditos entre o B... e a exequente é inoponível porque nunca lhe foi notificada. A acção cambiária prescreveu, porque vencendo-se a livrança em 15/10/2010, a execução deu entrada em 18/10/2013.A livrança foi preenchida abusivamente. O pagamento da quantia exequenda por compensação de créditos
Contestou a exequente/embargada defendendo, em síntese:
Os executados foram notificados da cessão de créditos. A acção cambiária não está prescrita porque foi proposta em 9 de Outubro de 2013 e não na data que consta dos autos, o que apenas se ficou a dever a problemas informáticos do próprio sistema informático e, portanto, tal circunstância não lhe é imputável. Negou o preenchimento abusivo da livrança.
1.3. No saneador decidiu-se julgar improcedente a excepção de inoponibilidade, afirmando-se a validade e regularidade da instância.
1.4. Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar procedentes os embargos e extinta a execução.
1.5. Inconformada, a exequente recorreu de apelação com as seguintes conclusões:
...
1.6.- Os embargantes recorreram subordinadamente de apelação, com as seguintes conclusões:
...
A exequente contra-alegou no sentido da improcedência do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. – Delimitação do objecto dos recursos
As questões essenciais submetidas nos recursos, delimitados pelas conclusões, são as seguintes:
A prescrição da acção cambiária e o justo impedimento;
A impugnação de facto (pontos 3) e 7) dos factos provados);
A responsabilidade dos embargantes enquanto avalistas e a excepção do preenchimento abusivo da livrança.
2.2.- Os factos provados ( descritos na sentença )
...
2.4. - A prescrição da acção cambiária e o justo impedimento
A sentença considerou estar prescrito o direito da exequente com base nos seguintes tópicos de argumentação:
Aquando da citação dos executados o prazo de prescrição de três anos, a contar do vencimento da livrança (15/10/2010), já se tinha consumado;
Por outro lado, não se verificou a interrupção, nos termos do art.323 nº2 CC, porque a acção considera-se proposta, não no dia 9/10/2013, mas no dia 10/10/2013, data em que procedeu ao pagamento da quantia devida ao agente de execução e, por conseguinte, instaurou a execução já fora do prazo de cinco dias;
Muito embora tenha requerido a citação urgente em 9/10/2013 (quando da apresentação do requerimento executivo) não procedeu de imediato ao pagamento, nem alegou logo, nem fez prova de qualquer justo impedimento.
A exequente/Apelante objecta dizendo haver constatado, aquando do envio do requerimento executivo, não ser possível proceder ao pagamento no próprio dia, porque a referência ao multibanco gerada pelo sistema não ficava disponível para pagamento nesse mesmo dia, como é do conhecimento geral. A exequente fez prova ao juntar com a contestação dos embargos um documento, nesse sentido, pelo que o não pagamento no dia 9/10/2013 deveu-se a uma impossibilidade do sistema informático.
O prazo de prescrição da obrigação cambiária é de três anos a contar do vencimento (art.70 LULL) e tem natureza extintiva.
A prescrição interrompe-se com a citação (art.323 nº1 CC), mas segundo dispõe o nº2 – “Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias”.
A prescrição interrompe-se quando não puder ser feita por motivo de índole processual, de organização judiciária ou do regime tributário, nos cinco dias seguintes ao da apresentação em juízo da petição, mesmo que entretanto decorra bastante tempo, não sendo, neste caso, inconstitucional a norma do art.323 nº2 CC ( cf., por ex., Ac TC de 21/1/2014, publicado no DR II Série de 21/2/2014).
A expressão “causa não imputável ao requerente” deve ser interpretada em termos de causalidade objectiva, ou seja, a conduta do requerente só exclui a interrupção da prescrição quando tenha violado objectivamente a lei em qualquer termo processual até à efectivação da citação (cf., por ex., Ac do STJ de 9/2/95, BMJ 444, pág.570, de 4/3/2010 ( proc. nº 1472/04), em www dgsi.pt ).
O requerimento executivo deu entrada em 9 de Outubro de 2013, com o pedido de citação urgente, mas só no dia seguinte (10 de Outubro de 2013) é que a exequente pagou os honorários e despesas devidas, sendo que a lei (art.724 nº6 a) CPC) preceitua que o requerimento executivo só se considera apresentado na data do pagamento da quantia inicialmente devida ao agente de execução.
Coloca-se a questão de saber se ocorre justo impedimento no pagamento da quantia inicialmente devida e se deve ter-se como efectivamente paga em 9 de Outubro de 2013.
A este respeito a sentença disse que a exequente não comprovou o justo impedimento e a Apelante alega tratar-se de conhecimento geral, em virtude do constrangimento do sistema informático de suporte aos tribunais, para além de o ter alegado na contestação dos embargos.
No actual Código de Processo Civil (aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/6) a apresentação em juízo dos actos que devem ser praticados por escrito pelas partes é feita, em regra, por “transmissão electrónica de dados” através do sistema informático Citius (cf. arts. 132, 144 nº1 CPC, Portaria nº 280/2013 de 26/8).
O DL nº 150/2014, de 13/10, em face dos “constrangimentos técnicos” que afectaram o Citius (aquando da instalação das novas Comarcas) criou um regime temporário e excepcional aplicável à prática de actos processuais, utilizando dois instrumentos ou institutos: o justo impedimento e a suspensão dos prazos.
Estatui o art.2 nº1 que “Para todos os efeitos legais, considera-se que desde o dia 26 de agosto de 2014, inclusive, o sistema informático de suporte à atividade dos tribunais (CITIUS) apresenta constrangimentos ao acesso e utilização que muito dificultam ou impossibilitam a prática de qualquer ato no mesmo sistema informático, pelos sujeitos e intervenientes processuais, magistrados e secretarias judiciais ou do Ministério Público”.
O regime é temporário, porque aplicável enquanto se mantiver a situação de constrangimento no CITIUS (cessando com a declaração do IGFEJ I.P.) e excepcional porque divergente do regime geral previsto no CPC para a prática dos actos processuais.
O diploma classifica, para tanto, os actos processuais em duas categorias: “ actos em suporte electrónico” (os actos praticados por via electrónica) e os “actos em suporte físico”. Embora não explicite em que consistem os actos em “suporte físico”, deve entender-se (relativamente às partes) que são os previstos no art.144 nº7 a), b) e c) CPC, ou seja, escrito entregue na secretaria, remessa pelo correio ou por telecópia.
O diploma alargou subjectivamente o âmbito do justo impedimento, não agora como instrumento apenas da parte (“ sujeitos e intervenientes processuais”) e estabeleceu, no plano objectivo, um duplo regime, consoante o impedimento incida sobre o acto processual electrónico ou em suporte físico.
No entanto, relativamente aos “actos em suporte electrónico” (no sistema informático do Citius), o justo impedimento é oficioso e automático (“ independentemente de requerimento, alegação ou prova (…)” (cf. art.3 nº1).Já quanto aos “actos em suporte físico”, o justo impedimento depende da confirmação pela secretaria do tribunal judicial da “ impossibilidade de acesso ao processo ou a parte dele”, quer em suporte electrónico, quer em suporte físico (cf. art.3 nº2).
Daqui resulta que tendo o acto sido praticado no período legal em que a lei pressupôs a existência de constrangimentos técnicos que afectaram o sistema informático, o justo impedimento é oficioso e automático, não carecendo de alegação e prova, por se tratar de regime especial, em relação ao previsto no art.140 CPC.
Importa realçar as circunstâncias do tempo em que a lei (DL nº 150/2014) foi elaborada aquando da instalação das novas Comarcas, com a consequente migração de processos e a notória instabilidade criada, nomeadamente com o colapso do Citius, o que impeliu o legislador a “clarificar o regime aplicável à prática de actos processuais”, pelo que uma interpretação conforme à Constituição e ao direito fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (art.20 CRP) leva a que se acolha um sentido interpretativo menos restritivo dos direitos dos sujeitos processuais e em favor do “ princípio pro actione”.
Neste contexto, considera-se justificado o impedimento e instaurada a acção executiva em 9 de Outubro de 2013, e porque a demora da citação não é imputável à exequente, a prescrição interrompeu-se decorridos cinco dias após a apresentação em juízo da petição inicial da acção executiva.
Neste contexto, a acção cambiária não prescreveu, pelo que a livrança é válida como título executivo, ficando prejudicada a questão da fiança.
2.5. A impugnação de facto
O tribunal deu como provado que:
3) Em razão do referido acordo, a exequente é dona e legítima portadora da livrança dada em execução com o valor de 1.329.332,16€ (um milhão trezentos e vinte e nove mil trezentos e trinta e dois euros e dezasseis
cêntimos), vencida em 15/10/2010, subscrita pela sociedade Executada “U..., LDA”, avalizada pelos executados A..., M... e B..., este último declarado insolvente.
7) Os referidos executados não devolveram à exequente, até ao termo do prazo contratualmente estabelecido, o capital mutuado e não procederam ao pagamento dos juros vencidos sobre aquele capital.
Conforme fundamentação da sentença, o tribunal justificou a decisão do facto 3) no “próprio requerimento executivo e documentos que o acompanham” e do facto 7) na “ausência de prova nesse sentido. A prova do cumprimento do contrato e do pagamento da livrança competia aos executados. Todavia, não foi feita prova que tivessem cumprido o contrato nos exactos termos acordados e tão pouco que tivessem pago os valores inscritos na livrança”.
Alegando erro na apreciação da prova, os embargantes/Apelantes (recurso subordinado) pretendem que se julguem não provados, indicando como prova que impõe decisão diversa, a prova documental e testemunhal (...).
Os Apelantes baseiam-se nos seguintes documentos:
...
A eficácia probatória dos factos descritos na sentença de 22/7/2010 proferida no proc. nº ...:
O caso julgado material (arts.619 e 621 do CPC) implica dois efeitos - um negativo e outro positivo – sendo em face deles que se distingue a excepção de caso julgado e a autoridade de caso julgado.
Contudo, o caso julgado incide sobre a decisão e não abrange os fundamentos de facto, conforme orientação doutrinária e jurisprudencial prevalecente.
Neste sentido, elucida Antunes Varela (Manual de Processo Civil, 1984, pág 697) – “Os factos considerados como provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final”.
Também Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 577), para quem “os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado”.
No âmbito jurisprudencial, por ex. Ac do STJ de 2/03/2010, ( proc. n.º 690/09.9 ), disponível em www.dgsi.pt/jstj, onde se afirma – “(…) a problemática do respeito pelo caso julgado coloca-se sobretudo ao nível da decisão, da sentença propriamente dita, e, quando muito, dos fundamentos que a determinaram, quando acoplados àquela. Os fundamentos de facto, nunca por nunca, formam, por si só, caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente (…)”.
No mesmo sentido, o Ac STJ de 5/5/2005 (proc. nº 05B691), disponível em www dgsi.pt, ao decidir que “ Não pode é confundir-se o valor extraprocessual das provas produzidas (que podem ser sempre objecto de apreciação noutro processo) com os factos que no primeiro foram tidos como assentes, já que estes fundamentos de facto não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respectiva decisão judicial. Transpor os factos provados numa acção para a outra constituiria, pura e simplesmente, conferir à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui”.
Por outro lado, perspectivando-se no âmbito do valor probatório da sentença, enquanto documento público, os factos apreciados num processo não se impõem noutro processo, porque a sentença prova plenamente a realização do julgamento ( dos actos praticados pelo juiz), mas não quanto à realidade dos factos dados como provados. Daqui resulta, na esteira de Calamandrei, a rejeição de qualquer “eficácia probatória “ das premissas de uma decisão (cf. Maria José Capelo, A Sentença entre a Autoridade e a Prova, pág.114 e segs.).
Por isso, os factos descritos na sentença absolutória não relevam, quer através do caso julgado, quer como prova plena, para esta acção.
A eficácia extraprocessual das provas – a confissão extrajudicial:
Os Apelantes sustentam que tendo o B... alegado na petição da acção de insolvência que o seu crédito perante os demandados devedores (aqui embargantes) era de €738.379,57 (art.44), constitui prova plena sobre tal valor, infirmando, assim, o montante reclamado na execução e constante da livrança exequenda.
O valor extraprocessual das provas, por vezes designado por “prova emprestada” significa a possibilidade de utilização de provas em processo diferente daquele em que foram produzidas, tem consagração legal no art.421 do CPC. Porém, a eficácia extraprocessual não serve para quaisquer meios de prova, mas apenas para o depoimento da parte, para a prova testemunhal, para a prova por exame, vistoria ou avaliação.
A prova por confissão (judicial) (art.355 nº2 CC) feita num processo só vale como judicial nesse processo, mas não pretende excluir a eficácia extraprocessual da confissão judicial, significando “que só como confissão extrajudicial ela pode ser invocada fora do processo em que é produzida, isto é, em obediência aos requisitos e com a produção dos efeitos da confissão extrajudicial“ (Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, pág. 322).
Quanto à confissão extrajudicial, estatui o art.358 nº2 do CC que a “confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena”, pelo que essa confissão escrita “só vincula o confitente (e través dele o juiz) quando dirigida à parte interessada ou seu representante; se for feita a um terceiro ou ainda se contida em testamento o juiz apreciá-la-á livremente “ (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág.247, 255).
O art.352 nº2 CC deve ser interpretado no sentido de que a confissão extrajudicial só conduz à prova plena se esta resultar do documento em que se insere e (ainda) for feita à parte contrária ou a quem a represente (cf., por ex., Ac STJ de 2/3/2011 (proc. nº 888/07), em www dgsi.pt ), logo a confissão extrajudicial escrita (enquanto declaração receptícia) apenas assume força probatória plena quando dirigida à parte contrária, pois em relação a terceiros é livremente apreciada pelo tribunal.
Pois bem, na petição inicial da acção nº ... não está sequer referenciado o crédito exequendo, constante da livrança exequenda (as mencionadas reportam-se a montantes e datas diversas) e, pelas razões enunciadas, tal alegação não tem o valor de confissão extrajudicial. Aliás, a petição inicial data de 17/4/2010 e a livrança dada à execução foi preenchida em 15/10/2010, logo em momento posterior.
Por fim, na carta de 24/9/2010 dirigida à executada M... é mencionado o crédito com o valor de € 1.134.689,54, mas a verdade é que posteriormente o B... endereçou a carta de 12/11/2010 a rectificar expressamente tal montante, pelo naquela jamais pode operar a confissão extrajudicial.
Quanto à prova testemunhal indicada, ouvida a gravação, verifica-se, em síntese: ...
Da conjugação e análise crítica desde depoimentos de forma alguma se pode concluir pela infirmação dos factos provados em 3) e 7), improcedendo a impugnação de facto.
2.6.- A responsabilidade dos executados/embargantes enquanto avalistas e o preenchimento abusivo
Nos termos do art.10 CPC ( anterior art.45) toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam os fins e os limites da acção executiva.
O título executivo, enquanto documento certificativo da obrigação exequenda, assume uma função delimitadora (por ele se determinam o fim e os limites, objectivos e subjectivos), probatória e constitutiva, estando sujeito ao princípio da tipicidade.
Por regra o título executivo é simples, ou seja, integrado por um único documento, mas pode sê-lo de forma complexa, sendo neste caso constituído por vários documentos que se completam entre si de molde a demonstrar a obrigação exequenda.
A causa de pedir não se confunde com o título, sendo antes a obrigação exequenda (pressuposto material) nele certificada ou documentada, pelo que a desconformidade objectiva e absoluta entre o pedido e o título situa-se ao nível da inviabilidade por inexistência de título, o que significa a ausência de direito à prestação e consequentemente a absolvição, não da instância, mas do pedido. Dito de forma mais sugestiva, “ o título executivo é o invólucro sem o qual não é possível executar a pretensão do direito que está dentro” (Ac STJ de 19/2/2009 (proc. nº 07B427), em www dgsi.pt). E dentro só pode estar uma obrigação (exequibilidade intrínseca), enquanto condição material de efectivação coactiva da prestação.
São títulos executivos os “títulos de crédito”, nomeadamente as livranças (art.703 nº1 c) actual CPC).
Os subscritores e os avalistas de uma livrança são todos solidariamente responsáveis para com o portador, o qual tem o direito de accionar todas as pessoas individual ou colectivamente, sem estar adstrito a observar a ordem por que eles se obrigaram (art.47 e art.77 da LULL.).
Segundo o art.30 LULL, o pagamento de uma livrança pode ser em todo ou em parte garantido por aval, configurando-se a obrigação do avalista como uma obrigação de garantia autónoma, cuja extensão e conteúdo se afere pela obrigação do avalizado (arts.7 e 32 LULL).Com efeito, dada a natureza jurídica do aval, quer o mesmo seja havido como uma “fiança com regime jurídico especial”, quer se lhe atribua o carácter de uma “garantia objectiva”, sempre se trata de uma garantia autónoma, distinta de qualquer outra obrigação cambiária (cf., por ex., Gonsalves Dias, Da Letra e da Livrança, vol.VII, pág.329, Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, III, pág.205).
E o facto de o avalista responder da mesma maneira que o avalizado (art.32 LU), apenas pretende significar que o conteúdo da obrigação do avalista é o mesmo que a da obrigação do avalizado. Daqui resulta que embora a obrigação do avalista seja igual à do avalizado, não assume a mesma figura cambiária deste.
Pelo aval constituem-se dois grupos de relações: as do portador com o avalista e as do avalista com o avalizado e obrigados precedentes.
O avalista não pode opor, como o fiador, os meios pessoais de defesa do devedor principal contra o portador, as excepções pessoais nos termos do art. 17 LULL, já que de contrário seria negar a natureza do aval, como acto cambiário abstracto.
Ao avalista apenas é lícito opor as excepções derivadas da relação causal existente entre si e o portador, nos termos gerais do direito cambiário.
Há que ter presente, contudo, que a inoponibilidade não é absoluta, pois tem-se entendido que o princípio da independência das obrigações cambiárias e das obrigações do avalista e do avalizado não obsta a que o avalista possa opor ao portador a excepção de liberação, por extinção da obrigação do avalizado (cf. Vaz Serra, RLJ ano 113, pág.187, Ac STJ de 23/1/86, BMJ 353, pág.482). Neste caso, o avalista usa de um meio de defesa que longe de ser pessoal do principal obrigado (atende-se ao regime do art.17 LULL) se comunica aos que solidariamente estejam adstritos ao pagamento da prestação, ou seja nas hipóteses em que a doutrina qualifica como “falta de causa” ou “falta de fundamento jurídico” do possuidor.
Entre o B... e da sociedade U... foi celebrado um contrato de mútuo no valor inicial de €1.748.500,00, cuja quantia foi entregue, havendo sido emitida, para garantia do pagamento, uma livrança em branco, subscrita pela sociedade e avalizada pelos executados/embargantes, e, em regra, a emissão de uma letra ou livrança não importa a novação, consubstanciando uma “datio pro solvendo” (art.840 CC), ficando a existir, para além da relação subjacente, uma relação jurídica cambiária, destinada a tornar mais segura a satisfação dos interesses do credor.
O contrato de preenchimento é o acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária. A sua inobservância é inoponível ao portador mediato, o único a quem aproveita a boa fé, conforme resulta do texto do art.10 L.U., a menos que se verifique a “exceptio doli” prevista no art.17 (in fine) L.U.
Sendo a obrigação do avalista autónoma, em princípio não pode defender-se com as excepções do avalizado atinentes à relação subjacente ( por ex., preenchimento abusivo, nulidade ou incumprimento do contrato, etc.), salvo quanto ao pagamento, conforme entendimento jurisprudencial uniforme, porque o avalista presta uma garantia à obrigação cambiária do avalizado (subscritora da livrança) e não directamente à obrigação causal subjacente. Porém, já estará o avalista legitimado a excepcionar o preenchimento abusivo se ele próprio interveio no pacto de preenchimento, cabendo-lhe o respectivo ónus de alegação e prova (art.342 nº2 CC), por se tratar de excepção material (cf., por ex., Ac STJ de 12/2/2009, de 11/2/2010, 13/4/2011, disponíveis em www dgsi.pt).
Sendo assim, tendo os executados embargantes intervenção no acordo de preenchimento, podiam excepcionar a sua violação, incumbindo-lhes o respectivo ónus. Não era sobre o exequente quem impendia o ónus de alegar que o preenchimento foi feito segundo o acordado, mas antes sobre os executados/oponentes que houve violação desse acordo.
Ora, os Apelantes não lograram demonstrar a alegada excepção do preenchimento abusivo, sendo uniforme o entendimento de que cabe ao devedor o ónus da prova (art. 342, nº2 CC) da violação do pacto de preenchimento.
2.7. – Síntese conclusiva
a)O DL nº 150/2014, de 13/10, dados os “constrangimentos técnicos” que afectaram o Citius (aquando da instalação das novas Comarcas) criou um regime temporário e excepcional aplicável à prática de actos processuais, utilizando dois instrumentos ou institutos: o justo impedimento e a suspensão dos prazos.
b) O diploma alargou subjectivamente o âmbito do justo impedimento e relativamente aos “actos em suporte electrónico” (no sistema informático do Citius), o justo impedimento é oficioso e automático, não carecendo de alegação e prova, por se tratar de regime especial, em relação ao previsto no art.140 CPC.
c) O caso julgado material (arts.619 e 621 do CPC) implica dois efeitos - um negativo e outro positivo – sendo em face deles que se distingue a excepção de caso julgado e a autoridade de caso julgado.
d) O caso julgado incide sobre a decisão e não abrange os fundamentos de facto, de modo a impor-se extraprocessualmente.
e) A prova por confissão (judicial) (art.355 nº2 CC) feita num processo só vale como judicial nesse processo, mas não pretende excluir a eficácia extraprocessual da confissão judicial.
f) O art.352 nº2 CC deve ser interpretado no sentido de que a confissão extrajudicial só conduz à prova plena se esta resultar do documento em que se insere e for feita à parte contrária ou a quem a represente , logo a confissão extrajudicial escrita (enquanto declaração receptícia) apenas assume força probatória plena quando dirigida à parte contrária, pois em relação a terceiros é livremente apreciada pelo tribunal.
g) O avalista não pode opor, como o fiador, os meios pessoais de defesa do devedor principal contra o portador, as excepções pessoais nos termos do art. 17 LULL, já que de contrário seria negar a natureza do aval, como acto cambiário abstracto.
h) Porém, a inoponibilidade não é absoluta, pois o avalista pode opor ao portador a excepção de liberação, por extinção da obrigação do avalizado.
i) O avalista está legitimado a excepcionar o preenchimento abusivo se ele próprio interveio no pacto de preenchimento, cabendo-lhe o respectivo ónus de alegação e prova (art.342 nº2 CC), por se tratar de excepção material
III – DECISÃO
Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar improcedente o recurso subordinado.
Julgar procedente a apelação principal e, revogando a sentença recorrida, julgar improcedentes os embargos de executado e ordenar o prosseguimento da acção executiva.
2)
Condenar os embargantes nas custas, em ambas as instâncias.
Coimbra, 5 de Junho de 2018.
( Jorge Arcanjo )
( Isaías Pádua)
( Manuel Capelo )