Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
62/18.4YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
CABEÇA DE CASAL
INCIDENTE DE REMOÇÃO
Data do Acordão: 04/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CARTÓRIO NOTARIAL DE S (...)
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.2086 CC, 292 CPC, 23 RJPI
Sumário:
I – No tocante à “incompetência para o exercício do cargo” enquanto fundamento para o incidente de remoção do cargo de cabeça de casal à luz do disposto no art. 2086º, nº1, al.d) do C.Civil, trata-se de norma em branco a preencher casuisticamente.
II – Enquanto “incidente” da instância do inventário, o respetivo ónus será da Requerente, nos termos das regras gerais dos arts. 292º e segs. do n.C.P.Civil.
III – Nesta dita al. d), atinge-se o caso de inexistirem no cabeça-de-casal qualidades bastantes para a administração ou para esse cumprimento, sendo que a pena/remoção só terá aplicação quando a falta cometida revestir gravidade e, raras vezes, resultará em consequência da involuntária omissão ou demora no cumprimento dos deveres.
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
Relator: Des. Luís Cravo
1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
2º Adjunto: Des. Carvalho Martins *
1 – RELATÓRIO
No Processo de Inventário para partilha dos bens do dissolvido casal de M (…) e A (…), pendente no CARTÓRIO NOTARIAL DE S (…) – Coimbra, sob o nº 1093/2015, em que é Requerente a dita M (…) e em que se encontra nomeado como cabeça-de-casal o referido A (…), na tramitação normal dos autos, veio a dita Requerente requerer a remoção do cabeça de casal nomeado.
Alegou, nuclearmente, que tendo sido no dia 25/10/2016 o cabeça de casal nomeado e ordenada a sua notificação para prestar compromisso de honra e primeiras declarações no dia 22/11/2016, neste dia tal foi pelo mesmo feito e bem assim elaborado o auto de declarações de cabeça de casal, sendo que tendo-lhe sido concedido o prazo de 60 dias para apresentação da relação de bens em falta, esta veio a ser junta no dia 22 de maio de 2017, na sequência do que foi notificado para aperfeiçoamento da relação/suprimento das irregularidades da mesma no prazo de 10 dias, sendo que tal não se mostrava cumprido decorridos que estavam 5 meses, com o que não demonstra qualquer interesse em dar andamento processual ao inventário, para além de evidenciar uma notória incompetência para o exercício de tal cargo, termos em que, para além de requerer a já aludida remoção do Requerido do cargo de cabeça de casal, requereu a nomeação da própria para o exercício de tal cargo.
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O pedido de remoção foi indeferido, através do seguinte concreto despacho da Exma. Notária datado de 5.12.2017 (cf. “Despacho nº 3”):
«Recebido o requerimento de incidente de remoção de cabeça de casal apresentado pela requerente em trinta de outubro de dois mil e dezassete, junto à plataforma com o número de documento 994136, cumpre decidir:
Por documento junto aos autos em 22.05.2017, com o número 838940, foi o ora cabeça de casal notificado para no prazo de 10 dias proceder ao aperfeiçoamento da relação de bens apresentada.
Em 04.06.2017 veio o ora cabeça de casal por email proceder à junção da referida relação de bens rectificada, cumprindo assim o referido prazo, sendo que a referida relação de bens ainda se encontra em análise por este Cartório Notarial, motivo pelo qual não foi ainda junta à plataforma e a requerente notificada da mesma.
Assim, pelo exposto, determina-se o indeferimento do requerimento de remoção de cabeça de casal apresentado.
Notifique-se a requerente, na pessoa do seu mandatário.»

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Inconformada com essa decisão, apresentou a Requerente recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
(…)
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Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.
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De referir que a Exma. Notária não admitiu inicialmente este dito recurso, louvando-se no entendimento de que os recursos só poderiam subir nos termos do artigo 76º nº 3 do RJPI e nº 3 do artigo 644º do C.P.Civil, isto é, com a decisão da partilha (cf. “Despacho nº 4”), mas a Requerente, irresignada, apresentou de tal Reclamação (ao abrigo do disposto no art. 643º do n.C.P.Civil), visando obter o recebimento do recurso que havia interposto, a qual obteve deferimento neste Tribunal da Relação de Coimbra, através de decisão do ora Relator, por se haver concluído pela admissibilidade imediata do recurso que a Requerente/Reclamante pretendia deduzir.
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Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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2 – QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 635º, nº4 e 639º do n.C.P.Civil – e, por via disso, a questão a decidir consiste em saber se houve desacerto da decisão (através do “Despacho nº 3” da Exma. Notária) de indeferimento do pedido de remoção de cabeça de casal.
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3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos a ter em consideração para a decisão são os que decorrem do relatório supra.
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4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Sustenta a Exequente/recorrente que a execução por onde corre os autos onde foi proferida a decisão recorrida é o processo e meio competente para conhecer da liquidação feita no requerimento executivo, face aos preceitos do artigo 716º nº 1 e 2, do Código de Processo Civil, e, também, atento o nº 5 do citado artigo, já que se trata de uma execução de sentença em que a liquidação depende apenas de simples cálculo aritmético.
Será assim?
Em vista da decisão sobre a questão em apreciação, importa perscrutar o quadro legal atinente.
Consabidamente, de acordo com a legislação aplicável (“Regime Jurídico do Processo de Inventário”, aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de Março), nos termos do atinente art. 22º, n.º3, a remoção do cabeça casal constitui um incidente do processo de inventário, sendo, em sede substantiva, de aplicar o artigo 2086º do Código Civil. agora com a alteração do art. 3º da referida Lei nº 23/2013.
São assim, no quadro normativo vigente e que é o aplicável à situação vertente, causas de remoção de cabeça de casal (cf. art. 2086º do C.Civil), a ocultação dolosa da “existência de bens pertencentes à herança, ou de doações feitas pelo falecido, ou se, também dolosamente, denunciou doações ou encargos inexistentes” [nº1, al.a)]; a não administração do “património hereditário com prudência e zelo” [nº1, al.b)]; o não cumprir “no inventário os deveres que a lei lhe impuser” [nº1, al.c)]; “revelar incompetência para o exercício do cargo” [nº 1, al.d)].
De referir que aquelas causas já foram doutamente divididas em seis grandes grupos: “sonegação e declarações dolosamente inexactas”; “má administração do património hereditário”; “falta de cumprimento dos deveres processuais”; “revelação de incompetência para o exercício do cargo”; “falta de idoneidade física ou moral”; “falta de distribuição dos rendimentos pelos interessados” Assim por LOPES CARDOSO, in Partilhas Judiciais”, Vol. III, 4ª ed., a págs. 15 e segs..
Contudo, como já supra se sublinhou, a lei actual consagra o primeiro, segundo, terceiro e quarto grupos.
No caso vertente está em causa a alegada “incompetência para o exercício do cargo”.
Ora, logo ressalta que se trata de norma em branco a preencher casuisticamente.
A este propósito já nos foi igualmente ensinado que:
«Tanto o Cód. Proc. Civil de 1876, como os que se lhe seguiram (1939 e 1961) foram omissos quanto à questão de saber se a incompetência para o exercício do cargo podia ser causa de remoção. Assim também o Anteprojecto do Direito das Sucessões e o próprio Projecto provisório do Cód. Civ. vigente. É no Projecto definitivo que tal fundamento surge pela primeira vez e daí a sua inserção no actual art. 2086.°-l-d). Compreende-se e aceita-se o dispositivo legal; compreende-se porque não é de presumir no que exerce o cabeçalato um conjunto de conhecimentos que lhe permitam abarcar toda e qualquer administração, ainda menos quando esta haja de exercer-se em unidades fabris ou comerciais, ou grandes explorações agrícolas que exigem habilidade e idoneidade profissional; aceita-se porque desde sempre foi preferível prevenir que remediar.
Este fundamento não se confunde com o respeitante à administração do património hereditário com imprudência ou falta de zelo (alínea b). Na alínea b), prevê-se o caso de, sendo embora competente profissionalmente, o cabeça-de-casal se meta em aventuras perigosas ou se desleixe no cumprimento dos deveres que lhe incumbem; na alínea d), atinge-se o caso de inexistirem no cabeça-de-casal qualidades bastantes para a administração ou para esse cumprimento.
Ponto comum a ambos os fundamentos é o que implica o próprio exercício do cabeçalato, pois é através deste exercício que há-de revelar-se a incompetência causal da remoção.
Não basta, pois, que de antemão se saiba que lhe falece competência; é mister que dê provas da incompetência através de um exercício, mais ou menos prolongado, das respectivas funções. Na averiguação dela também há grande margem para arbítrio judicial, por isso que a lei a não define; será legítimo, por analogia, tomar como bons os critérios que ficaram expostos quanto à administração imprudente ou não zelosa, sem prescindir da natureza dos bens, sua grandeza e dificuldades de gerência.
(….)
Atente-se, porém, em que se não está perante uma norma taxativa (o artigo 2086° do Código Civil), como facilmente resulta dos seus dizeres e da própria interpretação jurisprudencial. Mas daqui não se concluirá que deva generalizar-se o seu conteúdo e por forma a dar-lhe interpretação extensiva. São graves as consequências da remoção, e a situação em que moralmente se coloca aquele que prevaricou e foi removido é de molde a impressionar o julgador e diminuir, consequentemente, o prestígio e bom nome do que até então desempenhava o respectivo cargo.
Por isso mesmo a pena só terá aplicação quando a falta cometida revista gravidade e raras vezes resultará em consequência da involuntária omissão ou demora no cumprimento dos deveres. A lei exemplifica os casos em que a pena de remoção pode ser imposta e na apreciação deles e na interpretação dos fundamentos legais, ainda fica margem para um grande arbítrio do julgador.
O prejuízo causado à herança ou a potencialidade desse prejuízo são factores primaciais a atender na aplicação da referida pena.» Citámos, novamente, o autor referido na nota antecedente, em mesmo local e obra, ora a págs. 26 .

Nesta mesma linha de entendimento, já foi doutamente entendido que “A má administração tem de se deduzir de factos que inequivocamente a revelem, captadas através de prova suficiente para se poder ajuizar da conduta do cabeça-de-casal”. Trata-se do acórdão do T. Rel. de Lisboa de 10 de Dezembro de 2009, no proc. nº 1775/06.6YXLSB-E.L1.1; no mesmo sentido, o acórdão do mesmo T. Rel. de Lisboa de 23 de Março de 2014, no proc. nº 1318/11.2YXLSB.L1.7, ambos acessíveis em www.dgsi.pt/jtrl.
Revertendo estes ensinamentos ao caso ajuizado, temos que não foi oferecida nem produzida prova demonstrativa de qualquer das situações elencadas no dito art. 2086º, nº1 do C.Civil, mormente da sua invocada al.d).
Antes e ao invés, a Requerente parece confundir ou querer ver “comunicada” uma também alegada dilação por parte da Exma. Notária – em disponibilizar na plataforma informática a relação de bens retificada que foi junta pelo Requerido cabeça de casal, pelo que, “tendo já decorrido aproximadamente seis meses sobre a alegada receção do email, verifica-se uma violação grosseira dos prazos processuais”! – para daí concluir pela verificação do fundamento para a requerida remoção do cargo de cabeça de casal.
Sucede que, obviamente, qualquer incumprimento de prazos processuais ou dos demais deveres funcionais por parte de quem tem presentemente a tutela jurisdicional do processo de inventário (leia-se, a Exma. Notária “(…)”) não pode originar nem muito menos significar ou “revelar incompetência para o exercício do cargo” [cf. art. 2086º, nº1, al. d) do C.Civil] por parte do cabeça de casal, em ordem a justificar e fundamentar a remoção deste do cargo de tais funções.
Posto que, naturalmente, não se prova, nem, aliás, foi alegado Atente-se que no referido requerimento de remoção do cabeça de casal se alegou a este propósito pouco mais do que a dilação “obriga a que a requerente permaneça eternamente numa indivisão de bens que não quer manter”. , uma situação de prejuízo causado à herança ou a potencialidade desse prejuízo
Ora, tratando-se, como se tratava, de “incidente” da instância do inventário, o respetivo ónus era da Requerente, nos termos das regras gerais dos arts. 292º e segs. do n.C.P.Civil.
Acresce que nem sequer se verifica a invocada dilação por parte do cabeça de casal na junção da relação de bens retificada – tendo sido notificado em 22.05.2017, por via electrónica, para, no prazo de 10 dias, proceder ao aperfeiçoamento da mesma, cumprindo tal desiderato no dia 4.06.2017, donde se presumindo notificada em 25.05.2017, fê-lo até antes do último dia do prazo (cf. art. 9º, nº1 da Portaria n.º 278/2013, de 26 de Agosto No qual se preceitua o seguinte:«As notificações efetuadas pelo cartório notarial aos mandatários dos interessados que já tenham intervindo no processo são realizadas através do sistema informático de tramitação do processo de inventário, para área de acesso exclusivo do mandatário no referido sistema, considerando-se o mandatário notificado no 3.º dia após a disponibilização da notificação na sua área de acesso exclusivo, ou no 1.º dia útil seguinte a esse, quando o não seja.» ).
Ademais, estando em causa nessa al.d) do nº1 do art. 2086º do Civil a inexistência no cabeça-de-casal de qualidades bastantes para a administração ou para esse cumprimento, não podemos deixar de aderir ao entendimento de que a pena/remoção “só terá aplicação quando a falta cometida revestir gravidade e, raras vezes, resultará em consequência da involuntária omissão ou demora no cumprimento dos deveres Cf., neste sentido, o acórdão do T. Rel. de Lisboa de 23.03.2017, no proc. nº 745-13.5TJLSB-A.L1-6, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtrl..
Importa, pois, concluir que, decaindo sob qualquer enquadramento o entendimento sufragado na alegação recursiva, mormente por ausência de prova de conduta censurável do Requerido cabeça de casal, em termos de se justificar a sua remoção do cargo, improcede inapelavelmente o recurso interposto da decisão que tal situação não julgou verificada.
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5 – SÍNTESE CONCLUSIVA
I – No tocante à “incompetência para o exercício do cargo” enquanto fundamento para o incidente de remoção do cargo de cabeça de casal à luz do disposto no art. 2086º, nº1, al.d) do C.Civil, trata-se de norma em branco a preencher casuisticamente.
II – Enquanto “incidente” da instância do inventário, o respetivo ónus será da Requerente, nos termos das regras gerais dos arts. 292º e segs. do n.C.P.Civil.
III – Nesta dita al. d), atinge-se o caso de inexistirem no cabeça-de-casal qualidades bastantes para a administração ou para esse cumprimento, sendo que a pena/remoção só terá aplicação quando a falta cometida revestir gravidade e, raras vezes, resultará em consequência da involuntária omissão ou demora no cumprimento dos deveres.
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6 – DISPOSITIVO
Pelo exposto, decide-se a final julgar improcedente o recurso interposto, mantendo o despacho apelado.
Custas pela Requerente/recorrente.
Coimbra, 12 de Abril de 2018

(Luís Filipe Cravo (Relator))
(Fernando Monteiro)
(António Carvalho Martins)