Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
611/07.3TBPVL-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUIS CRAVO
Descritores: EXECUÇÃO
VENDA JUDICIAL
NULIDADE
MANDATÁRIO JUDICIAL
CONFLITO DE INTERESSES
Data do Acordão: 09/23/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PENACOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 579, 876 CC, 95 D) EOA
Sumário: 1. O imóvel que se encontra penhorado nos autos executivos e que neles é posto em venda não corresponde, em termos de interpretação literal, a uma coisa litigiosa nos termos e para os efeitos da “proibição” da aquisição de coisa ou direito litigioso à luz do regime constante das disposições conjugadas dos arts. 579º e 876º do C.Civil.

2. Tendo presente a proibição constante da al.d) do art. 95º do Estatuto da Ordem dos Advogados – no qual mais concretamente se prescreve que, nas relações com o cliente, é dever do advogado “não celebrar, em proveito próprio, contratos sobre o objecto das questões confiadas” – na situação do mandatário judicial que adquiriu para si próprio, através de arrematação em hasta pública, bens imóveis do Executado que representava, nos autos contra o mesmo movidos, e em que tal venda teve lugar, está basicamente em causa saber se se verificou uma situação de conflito de interesses (particulares) para tal mandatário judicial.

3. Em geral, há um conflito de interesses se a plena satisfação de um interesse acarretar o sacrifício, parcial ou total, de outro.

4. Sendo que a priori tal não sucede quando está em causa uma venda pelo Tribunal através de arrematação em hasta pública.

5. Pelo que apenas se divisam interesses particulares a tutelar, designadamente no contexto da relação de mandato forense e face aos deveres deontológicos do Exmo. Advogado aqui recorrente.

VI – Face ao que não se pode aplicar à situação ajuizada, que é uma lacuna do sistema, por interpretação extensiva a “proibição”, por razões de ordem pública, que resulta das disposições conjugadas dos arts. 579º e 876º do C.Civil.

Decisão Texto Integral:            
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 - RELATÓRIO

Em autos de execução comum em que o Executado se encontrava representado por Advogado constituído pelo próprio através de procuração forense, a saber, pelo Dr. C (…) NIF: (…) com morada na Rua (…) Coimbra, foi determinada a venda, por propostas em carta fechada dos seguintes prédios:

1. prédio urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o artigo 256 e inscrito na matriz sob o artigo 563, anunciado pelo valor base de € 13.608,84;

2. prédio rústico, descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o artigo 11119 e inscrito na matriz sob o artigo 11667, anunciado pelo valor base de € 5,59;

3. prédio urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o artigo 825 e inscrito na matriz sob o artigo 1426, anunciado pelo valor base de € 1.189,97;

4. prédio rústico, descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o artigo 11120 e inscrito na matriz sob o artigo 11675, anunciado pelo valor base de € 7.96.

                                                           *

Publicitada a venda nos termos legais, foi designado o dia 6 de Fevereiro de 2014, pelas 14:00 horas, para abertura das propostas.

Relativamente à verba descrita supra em “3.” não foi apresentada qualquer proposta, tendo sido determinada a realização da sua venda por meio de negociação particular.

Já no que se refere às verbas supra descritas em “1.”, “2.” e “4.” foram apresentadas propostas por parte de “C (…), residente na Rua (…)Coimbra, com o NIF (…)”, as quais foram aceites, tendo sido determinado que fosse dado cumprimento ao disposto no artigo 824.º do Código de Processo Civil.

Relativamente à verba supra descrita em “4.” foi igualmente apresentada proposta por parte M (…), tendo a mesma sido preterida pela proposta de valor superior apresentada pelo proponente C (…).

                                                           *

Encerrada a diligência de abertura de propostas por carta fechada, veio na sequência a Exma. Juíza de 1ª instância a avocar o processo, no qual veio a proferir despacho a declarar oficiosamente a nulidade da venda, com fundamento em que o proponente das propostas de aquisição das verbas que haviam sido aceites detinha o mesmo nome do Mandatário do Executado nos autos, e considerando que nos termos das disposições conjugadas dos arts. 579º e 876º do C.Civil, não podem ser compradores de coisa ou direito litigioso os mandatários Judiciais (advogados ou solicitadores), se o processo decorrer na área em que exercem habitualmente a sua actividade profissional, face ao que se verificava a apontada nulidade, o que tudo se traduziu no seguinte concreto “dispositivo”:

«Por todo o exposto, porquanto a venda a ser efectuada ao proponente C (…) padece do vício de nulidade porque o proponente dispõe de procuração junta aos autos emitida a seu favor por parte do executado - o que se entende ser um plus de gravidade face ao critério legal de exercício da sua actividade profissional como advogado na área da comarca (dado que tal demonstra o seu efectivo exercício) - determina-se não aceitar as propostas pelo mesmo apresentadas, dando sem efeito a aceitação vertida em auto de abertura de propostas nesta data realizado referente aos bens imóveis supra descritos em 1., 2. e 4.».

                                                                       *

            Inconformado com esta decisão, dela apresentou o dito Exmo. Advogado Dr. C (…) recurso, no qual formula, a concluir as alegações que apresentou, as seguintes conclusões:

«1ª – O despacho recorrido fez errada interpretação ao caso do que se dispõe no artº 579º do Código Civil para onde se remete o artº 876º do mesmo código. Na verdade

2ª – Estes artigos apenas se aplicam à interdição a certa categoria de pessoas, de cessão ou compra de direitos ou bens litigiosos.

3ª – O nº 3 do artº 579º do Código Civil define o que sejam direitos (ou bens) litigiosos: diz-se litigioso o direito (ou bem) que tiver sido contestado em juízo contencioso, ainda que arbitral, por qualquer interessado.

4ª – Os bens concretos vendidos em hasta pública através de apresentação de propostas em carta fechada na presente execução, não podem ser considerados bens litigiosos uma vez que não existe qualquer contestação dos mesmos ou dissidio que haja de dirimir em tribunal em relação a eles.

5ª - Não se tratando de bens ou direitos litigiosos não vale aqui a interdição cominada ao mandatário do executado para a aquisição dos mesmos.

6ª - Deve assim o despacho recorrido ser anulado e ser substituído por outro que reconheça o valimento das propostas apresentadas pelo recorrente na hasta pública.

E assim se fará JUSTIÇA.»          

                                                                       *

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                                       *

            A Exma. Juíza a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida devidamente instruído.

            Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 635º, nº4 e 639º do n.C.P.Civil – e, por via disso, a questão a decidir consiste em decidir se o Advogado que representa num processo executivo o aí Executado se encontra interdito de adquirir para si próprio através de arrematação em hasta pública bens imóveis desse Executado que foram penhorados no âmbito dos ditos autos e cuja venda por apresentação de propostas em carta fechada foi determinada.

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos a ter em conta são essencialmente os que decorrem do relatório que antecede.

                                                               *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre então decidir a questão supra enunciada, sendo certo que a mesma reveste alguma singularidade e o presente recurso consiste apenas em eleger a melhor interpretação dos dispositivos legais, isto é, trata-se de matéria de direito.

Na verdade, está “ab initio” assente que o Exmo. Advogado (ora recorrente) com escritório na cidade de Coimbra, se encontrava constituído como tal nos autos executivos em referência pendentes no T.J. de Penacova, aí representando o Executado, cujos bens imóveis foram penhorados e no âmbito da respectiva venda executiva apresentou propostas em carta fechada em nome próprio que chegaram a ser aceites na correspondente diligência judicial.

Será então que o dito Exmo. Advogado se encontrava interdito na circunstância de adquirir para si próprio através de arrematação em hasta pública, bens imóveis do Executado que representava, nos autos contra o mesmo movidos, e em que tal venda teve lugar?

Cremos que a boa solução desta questão está dependente da apreensão do espírito das normas em causa – os arts. 579º e 876º do C.Civil, remetendo como remete o segundo para o primeiro – o que nos parece não poder alcançar-se sem uma breve exegese histórica sobre os normativos que os antecederam.

Senão vejamos.

Em primeiro lugar preceitua-se da seguinte forma naqueles ditos normativos:

«Artigo 876.º

                                                               (Venda de coisa ou direito litigioso)

1. Não podem ser compradores de coisa ou direito litigioso, quer directamente quer por interposta pessoa, aqueles a quem a lei não permite que seja feita a cessão de créditos ou direitos litigiosos, conforme se dispõe no capítulo respectivo.

2. A venda feita com quebra do disposto no número anterior, além de nula, sujeita o comprador, nos termos gerais, à obrigação de reparar os danos causados.

3. A nulidade não pode ser invocada pelo comprador.»

«Artigo 579.º

                                                    (Proibição da cessão de direitos litigiosos)

1.  A cessão de créditos ou outros direitos litigiosos feita, directamente ou por interposta pessoa, a juízes ou magistrados do Ministério Público, funcionários de justiça ou mandatários judiciais é nula, se o processo decorrer na área em que exercem habitualmente a sua actividade ou profissão; é igualmente nula a cessão desses créditos ou direitos feita a peritos ou outros auxiliares da justiça que tenham intervenção no respectivo processo.

2. Entende-se que a cessão é efectuada por interposta pessoa, quando é feita ao cônjuge do inibido ou a pessoa de quem este seja herdeiro presumido, ou quando é feita a terceiro, de acordo com o inibido, para o cessionário transmitir a este a coisa ou direito cedido.

3. Diz-se litigioso o direito que tiver sido contestado em juízo contencioso, ainda que arbitral, por qualquer interessado.»

Por sua vez, eram os seguintes os antecedentes normativos no Código Civil de 1867:

                                                           «Artigo 785.º

                O crèdor pode transmitir a outrem o seu direito ou crédito, por título gratúito ou oneroso, independentemente de consentimento do devedor.

                § único. Mas, se os direitos ou créditos fôrem litigiosos, não poderão  ser cedidos de qualquer forma a juízes singulares ou colectivos, nem a outras autoridades, se êsses direitos ou créditos fôrem disputados nos limites em que elas exercerem as suas atribuïções. A cessão feita com quebra do que fica disposto nêste § será, de direito, nula.»

                                                           «Artigo 1557.º

                A venda de cousa ou direito litigiosos não é defesa; mas, se o vendedor não declarar como a cousa vendida é litigiosa, responderá por perdas e danos, se a dita cousa for evicta, ou se no litígio se provar, que não tinha êsse direito.»

                                                           «Artigo 1562.º

                Não podem ser compradores, nem directamente, nem por interposta pessoa:

1.º Os mandatários ou procuradores, ainda que tenham substabelecido os seus poderes, e os estabelecimentos, quanto aos bens de cuja venda ou administração se acham encarregados.

2.º os tutores e os protutores, quanto aos bens do seus tutelados ou protutelados, durante a tutela ou protutela;

3.º Os testamenteiros, quanto aos bens da herança, enquanto durar a testamentaria.

4.º Os funcionários públicos, quanto aos bens em cuja venda interveem, como tais, quer êsses bens sejam nacionais, municipais ou paroquiais, quer de menores, de interditos ou de quaisquer outras pessoas.»

                                                           «Artigo 1563.º

                Não podem comprar cousa litigiosa os que não podem ser cessionários, conforme o que fica disposto no § único do art. 785.º, excepto no caso de venda de acções hereditárias, sendo os compradores coherdeiros, ou de os compradores possuírem bens hipotecados para a segurança do direito litigioso.»

            Perante este quadro normativo do período anterior (na vigência do Código Civil de 1867), manifestamente se constata que o que se procurava então tutelar/evitar, com o regime legal neste particular, era que “(…) funcionários públicos e magistrados, faltando aos deveres morais dos seus cargos e exercendo ocultas pressões, forcem os credores em litígio a cederem-lhes os seus direitos ou créditos por menos do que o seu justo valor, com grave ofensa da moralidade pública e infracção das estritas normas da probidade. Por isso, regulando a venda de cousa litigiosa, o art. 1563º reproduziu idêntica incapacidade e sanção, fazendo aplicação do preceituado no § único do art.º 788.º[2]

            De referir que neste regime pré-vigente não existia nenhuma proibição directa aplicável aos mandatários judiciais no que à compra de cousa litigiosa dizia respeito…

            Contudo, também não deixavam de ser estabelecidos no art. 1562.º algumas regras no que aos mandatários ou procuradores dizia respeito (cf. nº 1.º do mesmo), a saber, que estes não podiam ser compradores, nem directamente, nem por interposta pessoa, ainda que tivessem substabelecido os seus poderes, quanto aos bens de cuja venda ou administração se achavam encarregados.

                Face a este regime, entendia-se doutamente que “(…)a proibição do n.º 1 do art. 1562.º não é extensiva  aos mandatários que não estejam encarregados de vender, mas apenas de promover a venda, que outras entidades realizarão, como sucede com as vendas judiciais. Nada obsta, a meu ver, que o procurador forense do exequente compre para si as cousas penhoradas e postas em arrematação; pois, a concorrência dos licitantes tira ao caso toda a suspeita de haver o procurador prejudicado o mandante. Quem procede à venda é o juiz e não o procurador. O mandatário do exequente não recebe mandato para vender os bens penhorados; pois, êstes bens pertencem ao ao executado, e quem os vende é o tribunal. O mandato é conferido só para promover a cobrança do crédito exequendo; e desde que este seja cobrado, ao exequente pouco importa saber quem foi o arrematante. Por esta mesma razão, pode comprar os bens da herança inventariada, quando vendidos em hasta pública, o respectivo cabeça de casal.” [3]

                Se era assim no precedente regime, que dizer do actualmente vigente (do Código Civil de 1966)?

                Neste passou a constar expressamente a referência aos mandatários judiciais como “proibidos” (sob pena de nulidade) de adquirir (por via de cessão) ou comprar coisa ou direito litigioso.

Mas será que nesta “proibição” se contempla a situação do mandatário judicial de adquirir para si próprio, através de arrematação em hasta pública, bens imóveis do Executado que representava, nos autos contra o mesmo movidos, e em que tal venda teve lugar?

Cingindo-nos à letra da lei, cremos que a resposta para esta questão está dependente do sentido a dar ao conceito de coisa ou direito litigioso, ou, dito de outra forma, decidir se o imóvel que se encontra penhorado nos autos executivos e que neles é posto em venda corresponde ou não a uma coisa litigiosa.

Temos para nós – e releve-se o juízo antecipatório! – que a resposta tem que ser negativa.

Na verdade, em autos executivos, o imóvel que é penhorado ao executado para através dele se proceder ao pagamento do crédito exequendo, não é uma coisa litigiosa, antes pelo contrário, é por não ser – e assente que não o é! – que a cobrança coactiva sobre ele é admitida a ter lugar (a ser instaurada, prosseguir e finalizar-se).

Daqui decorre, nomeadamente, que quando tem lugar a venda judicial, tal acto só se efectiva e é viabilizado judicialmente porque pressuposto e assente, entre as partes nos autos, que sobre os bens em venda legitimamente pode ter lugar a execução (cf. arts. 817º, 818º e 825º do C.Civil).

Cremos, aliás, que neste mesmo sentido aponta a definição legal, a saber, que se diz “litigioso o direito que tiver sido contestado em juízo contencioso, ainda que arbitral, por qualquer interessado.”

Isto é, em termos de interpretação literal, o imóvel que se encontra penhorado nos autos executivos e que neles é posto em venda não corresponde, a uma coisa litigiosa nos termos e para os efeitos da “proibição” da aquisição de coisa ou direito litigioso à luz do regime constante das disposições conjugadas dos arts. 579º e 876º do C.Civil.

Mas será que se deve entender diversamente por via de interpretação extensiva do regime legal?

Consabidamente, este regime de “proibição” da aquisição de coisa ou direito litigioso tem natureza reconhecidamente excepcional, relativamente à regra geral contida no art. 1305º do C.Civil, de acordo com a qual o proprietário de uma coisa (em sentido lato) pode dela dispor como lhe aprouver.

Assim sendo, ela consentiria interpretação extensiva – por apenas a analogia estar excluída relativamente a normas de tal natureza (cf. art. 11º do C.Civil).

Sucede estar pressuposto na interpretação extensiva, “que dada hipótese, não estando compreendida na letra da lei, o está todavia no seu espírito: há ainda norma, visto que o espírito é que é decisivo. Quando há lacuna, porém, a hipótese não está compreendida nem na letra nem no espírito de nenhum dos preceitos vigentes...num caso estamos ainda a extrair a norma, implícita num texto imperfeito, no outro nada encontramos implícito, porque há uma lacuna[4]

Ora cremos já resultar do vindo de expor que a situação ajuizada corresponde afinal a uma situação que não está contemplada no espírito da norma.

Na verdade, ao tratar-se de uma arrematação/hasta pública, em que está pressuposta a livre concorrência de licitantes, existe desde logo a garantia de não resultar qualquer prejuízo para o Executado da circunstância de a aquisição ser operada por mandatário judicial, ainda que representante nos autos desse Executado nos mesmos.

Acresce que estando em causa nas normas ajuizadas a sanção legal mais severa das legalmente previstas – a nulidade – dada a razão de ordem pública que está na base dessa proibição legal, entendemos que está ela claramente desadequada para uma situação como a ajuizada, em que apenas se divisam interesses particulares a tutelar, designadamente no contexto da relação de mandato forense e face aos deveres deontológicos do Exmo. Advogado aqui recorrente.

Com efeito, a protecção do princípio da independência na relação com os clientes, reclama que os advogados não depositem interesses pessoais sobre o objecto das questões que lhes estão confiadas, já que, não sendo assim, poderiam perder a capacidade de aconselhamento do cliente em função tão somente dos interesses patrocinados, sendo esta a razão de ser da proibição constante da al.d) do art. 95º do Estatuto da Ordem dos Advogados – no qual mais concretamente se prescreve que, nas relações com o cliente, é dever do advogado “não celebrar, em proveito próprio, contratos sobre o objecto das questões confiadas.”[5]  

Desta forma, parece-nos que numa situação como a ajuizada o que está verdadeiramente em causa é saber se se verificou uma situação de conflito de interesses (particulares) para o Exmo. Advogado ora recorrente.   

Em geral, há um conflito de interesses se a plena satisfação de um interesse acarretar o sacrifício, parcial ou total, de outro, donde, por exemplo no negócio con­sigo mesmo, o negócio exclui por sua natureza a possibilidade de um con­flito de interesses quando o representante não se possa fazer valer da sua qualidade para extrair benefícios a seu favor (ou de outrém) com dano para o representado (ou um dos representados), isto é, quando não haja possi­bilidade de lesão do interesse do representado: consti­tuem exemplos desta excepção, a predeterminação do conteúdo do con­trato, de modo a só ficar ao critério do representante a escolha do outro contraente (v.g. o empregado da bilheteira de uma casa de espectáculos adquire para si um bilhete nas condições fixadas para a venda ao público) ou o cumprimento de uma obrigação.[6]

O que entendemos a priori não suceder quando está em causa uma venda pelo Tribunal através de arrematação em hasta pública...        

Aliás, não será por acaso que no próprio regime legal atinente à situação do “negócio consigo mesmo”, se encontra estabelecido que não tem lugar a sanção da anulação quando o negócio exclua por natureza a possibilidade de um conflito de interesses (cf. art. 261º, nº1 do C.Civil)!

Mas se tal efectivamente ocorreu, competirá ao Executado actuar os mecanismos que legalmente lhe assistam para sua defesa, designadamente no contexto da relação de mandato forense e face aos deveres deontológicos do Exmo. Advogado aqui recorrente.

O que sempre se encontra naturalmente salvaguardado!

Assim, afirmar/declarar a ofensa ou prejuízo para o Executado nos autos, ou actuar em defesa do interesse público (qual seja ele?), não é actuação que oficiosamente ao Tribunal in casu compita, ou que se lhe possa reconhecer e tutelar como válida.

Dito de outra forma: corresponde inequivocamente a situação ajuizada a uma lacuna do sistema, donde não se lhe poder aplicar por interpretação extensiva a “proibição” que resulta das disposições conjugadas dos arts. 579º e 876º do C.Civil.

O que tudo serve para dizer que não pode subsistir a decisão recorrida que sancionou com a nulidade a aquisição pelo Exmo. Advogado ora recorrente, para si próprio, através de arrematação em hasta pública, dos bens imóveis do Executado descritos em “1.”, “2.” e “4.” dos autos executivos em causa.

Procedendo nessa medida o recurso.

                                                                       *

5  - SÍNTESE CONCLUSIVA

I – O imóvel que se encontra penhorado nos autos executivos e que neles é posto em venda não corresponde, em termos de interpretação literal, a uma coisa litigiosa nos termos e para os efeitos da “proibição” da aquisição de coisa ou direito litigioso à luz do regime constante das disposições conjugadas dos arts. 579º e 876º do C.Civil.

II – Tendo presente a proibição constante da al.d) do art. 95º do Estatuto da Ordem dos Advogados – no qual mais concretamente se prescreve que, nas relações com o cliente, é dever do advogado “não celebrar, em proveito próprio, contratos sobre o objecto das questões confiadas” – na situação do mandatário judicial que adquiriu para si próprio, através de arrematação em hasta pública, bens imóveis do Executado que representava, nos autos contra o mesmo movidos, e em que tal venda teve lugar, está basicamente em causa saber se se verificou uma situação de conflito de interesses (particulares) para tal mandatário judicial.

III – Em geral, há um conflito de interesses se a plena satisfação de um interesse acarretar o sacrifício, parcial ou total, de outro.

IV – Sendo que a priori tal não sucede quando está em causa uma venda pelo Tribunal através de arrematação em hasta pública.

V – Pelo que apenas se divisam interesses particulares a tutelar, designadamente no contexto da relação de mandato forense e face aos deveres deontológicos do Exmo. Advogado aqui recorrente.

VI – Face ao que não se pode aplicar à situação ajuizada, que é uma lacuna do sistema, por interpretação extensiva a “proibição”, por razões de ordem pública, que resulta das disposições conjugadas dos arts. 579º e 876º do C.Civil.

                                                                       *

6  - DISPOSITIVO

            Pelo exposto, no provimento da apelação apresentada, acordam em revogar o despacho judicial que declarou oficiosamente a nulidade da venda traduzida na aquisição pelo Exmo. Advogado ora recorrente, para si próprio, através de arrematação em hasta pública, dos bens imóveis do Executado descritos em “1.”, “2.” e “4.” dos autos executivos em causa, devendo, consequentemente, ser reconhecida a atinente validade das propostas apresentadas pelo dito Exmo. Advogado ora recorrente, com observância dos subsequentes termos dos autos em conformidade.

            Sem custas.

                                                                       *

                                                                                  Coimbra, 23 de Setembro de 2014   

                                              

 (Luís Filipe Cravo ( Relator )

(António Carvalho Martins)

(Carlos Moreira)


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Carvalho Martins
  2º Adjunto: Des. Carlos Moreira
[2] Citámos CUNHA GONÇALVES, in “Tratado de Direito Civil (em Comentário ao Código Civil Português)”, Volume V, Coimbra Editora Ldª, Coimbra, 1932, a págs. 61-62.
[3] Assim o já citado CUNHA GONÇALVES, in “Tratado de Direito Civil (em Comentário ao Código Civil Português)”, Volume VIII, Coimbra Editora Ldª, Coimbra, 1934, a págs. 476.
[4] Assim OLIVEIRA ASCENÇÃO, in “Introdução ao Estudo do Direito”, Ano Lectivo de 1970-71, com revisão parcial em 1972-73, 1º ano - 1ª turma, Edição dos Serviços Sociais da Universidade de Lisboa, a págs. 381-383.
[5] Neste sentido vide FERNANDO SOUSA MAGALHÃES, in “Estatuto da Ordem dos Advogados (Anotado e Comentado)”, Livª Almedina, Coimbra, 3ª ed., 2006, a págs. 134.  
[6] Mais aprofundadamente sobre a questão, vide JORGE DUARTE PINHEIRO, in “O Negócio Consigo Mesmo”, Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. IV, Livª Almedina, 2003, de págs. 141-177.