Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1719/08.3TBPBL-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: RECURSOS
ADMISSIBILIDADE
DECISÃO
ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
DEVER DE PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS DO FGADM
CESSÃO
Data do Acordão: 05/31/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – POMBAL – INST. CENTRAL – 2ª SEC. FAMÍLIA E MENORES – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 629º, Nº 3 DO NCPC; LEI 75/98, DE 19.11.
Sumário: I – É jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional que a Constituição não consagra um direito geral ao recurso de decisões judiciais, com excep­ção das decisões condenatórias e naqueles casos em que a lesão dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente previstos é directamente imputável, em pri­meira linha, a uma actuação ou decisão dos tribunais.

II - Daí que, atenta a referida jurisprudência do Tribunal Constitucional, deve o art.º 629º, n.º 3, do C. P. Civil, ser objecto de uma interpretação constitucional­mente conforme de modo a nele incluir todas as situações em que as decisões judiciais afectem de forma directa e imediata direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

III - O direito à prestação de alimentos a menores constitui um direito fundamental, consa­grado no artigo 69.º, n.º 1, da Constituição, que nesta dimensão decorre do direito à vida estabelecido no artigo 24.º da Constituição, devendo ser considerado um direito de natureza análogo aos direitos, liberdades e garantias, para os efeitos do artigo 17.º da Constituição.

IV - Assim, qualquer decisão judicial que determine a cessação da obrigação de pagamento desta prestação pelo Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores, constitui a causa primeira e directa da afectação daquele direito fundamental, pelo que, independentemente do valor fixado à causa, deve ser susceptível de reapreciação por instância judicial hierarquicamente superior.

V - Resulta claro do artº 1º, nº 1 da Lei 75/98, de 19.11, que a obrigação do FGADM só cessa com o início do efectivo cumprimento da obrigação da alimentos que impende sobre o pai do menor e não com a verificação de que é possível, atendendo à modificação da sua situação económica, cobrar coercivamente os alimentos devidos.

VI - Considerando a natureza da prestação em causa acima explanada e a pro­tecção dos menores que o Estado visou com a criação do FGADM não faria qualquer sentido que a simples verificação da possibilidade do obrigado cumprir, sem se certificar o cumprimento efectivo, pudesse colocar em perigo a efectividade do direito à alimentos.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

Após ter sido verificado o incumprimento do Requerido relativamente às prestações devidas por alimentos ao menor seu filho, foi, por sentença transitada em julgado e proferida em 7.11.2011, determinado que o FGADM suportasse a prestação alimentar devida ao menor a qual foi fixada em € 150,00.

Na sequência de relatórios sociais elaborados pela Segurança Social e de­mais documentação junta aos autos concluiu-se que o pai do menor efectua descontos para a Segurança Social como membro de órgão estatutário da sociedade T..., L.da, com base num salário de € 505,00, tendo nos meses de Março, Abril e Maio de 2015 auferido, respectivamente, os montantes de € 889,38, € 887,58 e € 887,58.

Face a tais informações o Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser declarada cessada a intervenção do FGADM por ser possível o recurso ao procedimento previsto no art.º 189º da O. T. M..

Veio a ser proferida decisão com data de 6.10.2015 nos seguintes termos:

Face ao exposto, atento o actual rendimento do obrigado a alimentos, torna-se possível o recurso ao disposto no artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, pelo que, de harmonia com o disposto nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, n.º 1, todos da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro e artigos 3.º, n.º 1 al. a) do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, declaro cessado o pagamento da prestação de alimentos a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores.

A Requerente interpôs recurso desta decisão, formulando as seguintes conclusões:

i. Por douta sentença proferida a 07/11/2011, foi fixada a pensão de ali­mentos a pagar ao menor G..., no valor de 150,00€/mês, a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores, em substituição do progenitor incumpridor.

ii. A ratio do regime estatuído para o FGADM é a de tutelar o direito fun­damental a alimentos dos menores.

iii. Salvo melhor entendimento, e sempre com o devido respeito, a sen­tença recorrida não acautela e faz perigar as necessidades básicas do menor, até cumprimento efectivo da prestação de alimentos, através do procedimento pré-executivo do art.189º, da OTM.

iv. Determinando-se a cessação da prestação alimentar pelo FGADM, sem efectivo pagamento da prestação por parte do progenitor relapso, desacautelam-se as necessidades de sobrevivência diárias do próprio menor, até que a entidade patronal do progenitor (constituída pelo próprio, na qualidade de sócio-gerente da sociedade que lhe paga o salário), venha cumprir coercivamente os alimentos vencidos e não pagos, mais os alimentos vincendos, ainda que sob a cominação de multa processual e reversão da divida para a sociedade incumpridora dos descontos ordenados.

v. O recurso a tal procedimento, nos termos da Lei, deverá incumbir ao FGADM, que para efeitos de reembolso deve accionar o devedor de alimentos, sendo esta a forma de acautelar o supremo interesse do menor, que continuará a ver satis­feita a prestação alimentar a que tem direito.

vi. A sub-rogação legal do FGADM em todos os direitos do menor, dá-lhe a possibilidade de obter o reembolso do que tiver pago ou vier a pagar futuramente em substituição do devedor originário, direito que lhe compete exercer com o conhecimento de que o pai do menor aufere rendimentos susceptíveis de penhora, através do accionamento do sistema de cobrança coerciva das dívidas à Segurança Social.

vii. A decisão de que se recorre violou o disposto no artigo 1º, nº 1, da Lei nº 75/98, de 19 de Novembro, e nos artigos 3º, 1 al. a), 5º, do Decreto –Lei nº 164/99, de 13 de Maio, com as alterações introduzidas pela Lei nº 64/2012, de 20 de Dezem­bro.

viii. Termos em que deverá tal decisão ser revogada e substituída por outra que determine a continuação do pagamento da prestação de alimentos ao menor G... pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, até ao início do seu efectivo cumprimento.

O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I. P., apresentou resposta, defendendo que o recurso interposto deve subir em separado e com efeito meramente devolutivo, invocando o disposto no art.º 647º, n.º 1, do C. P. Civil.

Pronuncia-se ainda pela irrecorribilidade da decisão, alegado que a mesma não é desfavorável para a Requerente, quer por que mantém a fixação da pensão de alimentos devidos ao menor pelo seu pai, quer porquanto a mesma não é desfavorável para a Requerente em valor superior a ½ da alçada do tribunal de que recorre, nem se encontra em nenhuma das situações referidas nas alíneas dos n.º 2 e 3, do art.º 629º, do C. P. Civil.

A admitir-se o recurso conclui pela sua improcedência.

O Ministério Publico, notificado das alegações de recurso pronunciou-se no sentido da decisão proferida ser reparada, devendo manter-se a intervenção do FGADM enquanto não estiverem documentados nos autos os descontos no salário do pai do menor e a sua entrega ao progenitor com quem o menor reside.

Justifica a sua posição com a necessidade de evitar hiatos temporais em que o menor ficaria desprotegido e sem alimentos, o que aconteceria a manter-se o despacho recorrido.

O recurso foi admitido como apelação a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.

Foi indeferido o pedido de reparação da decisão formulado pelo Ministério Público.

Recebidos os autos neste tribunal foi proferido despacho, ordenando o cumprimento do disposto no art.º 654º, n.º 2, do C. P. Civil, para a hipótese de não se conhecer do recurso interposto.

A Requerente pronunciou-se, argumentando, em síntese:

- O valor da causa foi fixado em € 30.000,01 e o recurso foi admitido

- O valor da causa será sempre superior ao da alçada do tribunal recorrido, sendo aplicável o critério especial previsto no art.º 293º, n.º 3, do C. P. Civil, o que perfaz o valor de € 9.000,00.

- Quanto à sucumbência defende que, atendendo à idade do menor, à data em que o mesmo atingirá a maioridade e a data em que o FGADM deixou de pagar a prestação em causa, a decisão recorrida apresenta-se desfavorável em € 7.950,00.

 - A decisão colide com o direito constitucionalmente consagrado de pro­tecção da infância – art.º 69º, da C. R. P. – pelo que deve ser conhecido o recurso.

1. Da admissibilidade do recurso

O IGFSS, na qualidade de gestor do Fundo de Garantia de Alimentos De­vidos a Menores, defende a irrecorribilidade da decisão que declarou cessada a sua obrigação de prestar alimentos ao menor, invocando que a mesma não é desfavorável para a Recorrente pois mantém a prestação devida ao menor pelo pai, e que, de qualquer modo a mesma não lhe é desfavorável em valor superior ao da alçada do tribunal de que recorre, valor esse que é de € 5.000,00.

A decisão recorrida, ao declarar cessada a obrigação do FGADM determi­nou a perda do correspondente direito, relativamente ao Fundo, pelo que, sendo a Recorrente a contraparte principal neste incidente, ficou vencida.

E, tendo a decisão recorrida fixado ao incidente de cessação da obrigação do Fundo o valor de € 30.000,01 e tendo sido decretada a cessação imediata e total dessa obrigação, aquela decisão é totalmente desfavorável à Recorrente, pelo que o valor da sucumbência é necessariamente igual ao valor do incidente.

Assim, a alegação do IGFSS segundo a qual o valor da sucumbência é in­ferior a metade da alçada do tribunal de que se recorre, só faria sentido se este tivesse impugnado o valor fixado para o incidente, o que não fez, não podendo este tribunal de recurso oficiosamente corrigi-lo.

Estando o valor do incidente definitivamente fixado em € 30.000,01 e tendo sido decretada a cessação total e imediata da prestação de alimentos a pagar pelo FGADM, é esse o valor que deve ser considerado para verificar a recorribilidade da decisão, nos termos do art.º 629º do C. P. Civil.

Além disso, é jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional que a Constituição não consagra um direito geral ao recurso de decisões judiciais, com excep­ção das decisões condenatórias e naqueles casos em que a lesão dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente previstos é directamente imputável, em pri­meira linha, a uma actuação ou decisão dos tribunais.

Como se escreveu no Acórdão n.º 40/2008 [1]:

“…afigura‑se que – para além dos casos em que este Tribunal tem tradi­cionalmente afirmado a imposição constitucional de um direito ao recurso jurisdici­onal (ou direito a um duplo grau de jurisdição), a saber: as decisões conde­natórias em processo penal ou que impliquem a adopção de medidas res­tritivas da liberdade ou de outros direitos fun­damentais do arguido (…) – é sustentável que, sendo constitu­cional­mente assegurado o acesso aos tribunais contra quaisquer actos lesivos dos direitos dos cidadãos (maxime dos direitos, liberdades e garantias), sejam esses actos provenientes de par­ticulares ou de órgãos do Estado, forçoso é que se garanta o direito à impugnação judicial de actos dos tribunais (sejam eles decisões judiciais ou actuações materiais) que constituam a causa primeira e directa da afectação de tais direitos. Con­si­dera‑se, pois, que quando uma actuação de um tribunal, por si mesma, afecta, de forma directa, um direito fundamental de um cida­dão, mesmo fora da área penal, a este deve ser reconhecido o direito à apreciação judicial dessa situação”.

Daí que, atenta a referida jurisprudência do Tribunal Constitucional, deve o art.º 629º, n.º 3, do C. P. Civil, ser objecto de uma interpretação constitucional­mente conforme de modo a nele incluir todas as situações em que as decisões judiciais afectem de forma directa e imediata direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Ora, no presente caso, a decisão recorrida declarou cessada a obrigação de pagamento da prestação de alimentos a um menor a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores.

Sobre esta prestação, de cariz subsidiário, escreveu-se no Acórdão n.º 54/2011 [2] do Tribunal Constitucional:

“Reflectindo uma sociedade assente no princípio da solidariedade fami­liar, o dever de prover ao sustento das crianças incumbe numa primeira linha aos pais (artigo 36.º, n.º 5, da Constituição), fundando-se esta obrigação de alimentos na relação de filiação e fazendo parte integrante do conteúdo do poder paternal (vide um relato da atribuição do dever jurídico de prestar alimentos aos filhos desde o Direito Romano e acompanhando a sua evolução no direito português, J. P. Remédio Marques, em “Algumas notas sobre alimentos (devidos a menores) “versus” o dever de assistência dos pais para com os filhos (em especial filhos menores) ”, nota 39, da ed. de 2000, da Coimbra Editora).

Contudo, a natural necessidade de protecção das crianças, não podia dei­xar um Estado que visa a realização da democracia económica e social (artigo 2.º, da Cons­tituição) à margem da tarefa de assegurar o seu crescimento saudável, reconhecendo-se expressamente que “as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono” (artigo 69.º, n.º 1, da Constituição), assim como os pais e as mães devem gozar de protecção “na realização da sua insubstituí­vel acção em relação aos filhos” (artigo 68.º, n.º 1, da Constituição).

Em apoio de uma solidariedade familiar impôs-se uma responsabilidade estadual, com obrigatoriedade de convivência.

A necessidade desta intervenção estadual foi também reconhecida no âm­bito das organizações internacionais que emitiram normas vinculativas de direito internacional elaboradas no seu seio, designadamente as Reco­mendações do Conselho da Europa R(82)2, de 4 de Fevereiro de 1982, relativa à anteci­pação pelo Estado de prestações de alimentos devidos a menores, e R(89)l, de 18 de Janeiro de 1989, relativa às obrigações do Estado, designadamente em matéria de prestações de alimentos a menores em caso de divórcio dos pais, bem como o estabele­cido na Convenção sobre os Direitos da Criança, adoptada pela ONU em 1989 e assinada em 26 de Janeiro de 1990, em que se atribui especial relevância à consecução da presta­ção de alimentos a crianças e jovens até aos 18 anos de idade.

É neste espírito que em 19 de Novembro de 1998 é publicada a Lei n.º 75/98, tendo por objectivo criar um sistema público de garantia de satisfação dos alimentos devidos a menores.

Visando colmatar as deficiências apontadas ao regime de direito ordiná­rio então vigente, apoiado apenas na solidariedade familiar (artigo 1878.º, do Código Civil), a Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, determinou que o Estado, através do FGADM, assegure a satisfação dos alimentos a menores residentes em território nacional quando a pessoa judicialmente obrigada a prestá-los não satisfaça as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º, da O.T.M., e o alimentado não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre (artigo 1.º e 6.º).

A intervenção estadual em matéria de alimentos a menores consagrada na Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, reveste, pois, natureza subsidiária, uma vez que tem como pressuposto legitimador a não realização coactiva da prestação alimentí­cia a cargo dos progenitores, judicialmente fixada, através dos meios executivos previstos na lei. Apercebendo-se que, em caso de frustração do cumprimento da obrigação de alimentos no quadro da solidariedade familiar, os menores podiam incorrer numa situação grave de falta ou diminuição de meios de subsistência, entendeu-se que, nestes casos, o Estado não podia deixar de intervir, a título subsidi­ário, de modo a evitar esse cenário de risco.

Como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 306/2005, “(…) a insatisfação do direito a alimentos atinge directamente as condições de vida do alimen­tando e, ao menos no caso das crianças, comporta o risco de pôr em causa, sem que o titular possa autonomamente procurar remédio, se não o próprio direito à vida, pelo menos o direito a uma vida digna” (em ATC, 62.º vol., pág. 649).

A definição de um regime de intervenção do Estado nestas situações de in­su­cesso da solidariedade familiar, mesmo após a tentativa frustrada da sua imposi­ção coactiva, limitou-se a satisfazer claras exigências constitucionais. Na verdade, incumbe ao Estado de Direito Social organizar um sistema de segurança social que assegure inter alia a protecção efectiva desses menores em particular, para, assim, garantir o respec­tivo direito fundamental a uma sobrevivência minimamente con­digna, uma vez que estes se encontram em situação de falta de meios de subsistên­cia e de capacidade para o trabalho (artigo 63.º, n.os 1 e 3, da Constituição, em cujo conteúdo essencial já se mostra suficiente e autonomamente projectado o princípio da dignidade da pessoa humana).

Essa mesma intervenção protectiva do Estado é aliás, especificamente, exi­gida pelo artigo 69.º, n.º 1, da Constituição.

Da imposição constitucional de, nas situações descritas, o Estado dar uma resposta eficaz a estes ditames se apercebeu o próprio legislador ordinário que no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, que veio regulamentar a Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, escreveu:

“A Constituição da República Portuguesa consagra expressamente o di­reito das crianças à protecção, como função da sociedade e do Estado, tendo em vista o seu desenvolvimento integral (artigo 69.º). Ainda que assumindo uma dimen­são programá­tica, este direito impõe ao Estado os deveres de assegurar a garantia da dignidade da criança como pessoa em formação a quem deve ser concedida a necessária protecção. Desta concepção resultam direitos individuais, desde logo o direito a alimentos, pressu­posto necessário dos demais e decorrência, ele mesmo, do direito à vida (artigo 24.º). Este direito traduz-se no acesso a condições de subsistên­cia mínimas, o que, em especial no caso das crianças, não pode deixar de comportar a faculdade de requerer à sociedade e, em última instância, ao próprio Estado as prestações existenciais que proporcionem as condições essenciais ao seu desenvol­vimento e a uma vida digna.

A evolução das condições sócio-económicas, as mudanças de índole cultu­ral e a alteração dos padrões de comportamento têm determinado mutações profun­das a nível das estruturas familiares e um enfraquecimento no cumprimento dos deveres inerentes ao poder paternal, nomeadamente no que se refere à prestação de alimentos, circuns­tância que tem determinado um aumento significativo de acções tendo por objecto a regulação do exercício do poder paternal, a fixação de prestação de alimentos e situações de incumprimento das decisões judiciais, com riscos significativos para os menores.

De entre os factores que relevam para o não cumprimento da obrigação de alimentos assumem frequência significativa a ausência do devedor e a sua situação sócio-económica, seja por motivo de desemprego ou de situação laboral menos estável, doença ou incapacidade, decorrentes, em muitos casos, da toxicode­pendência, e o crescimento de situações de maternidade ou paternidade na adoles­cência que inviabili­zam, por vezes, a assunção das respectivas responsabilidades parentais.

Estas situações justificam que o Estado crie mecanismos que assegurem, na falta de cumprimento daquela obrigação, a satisfação do direito a alimentos.

…”.

O direito a esta prestação constitui, pois, um direito fundamental, consa­grado no artigo 69.º, n.º 1, da Constituição, que nesta dimensão decorre do direito à vida estabelecido no artigo 24.º da Constituição, devendo ser considerado um direito de natureza análogo aos direitos, liberdades e garantias, para os efeitos do artigo 17.º da Constituição.

Assim, qualquer decisão judicial que determine a cessação da obrigação de pagamento desta prestação pelo Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores, constitui a causa primeira e directa da afectação daquele direito fundamental, pelo que, independentemente do valor fixado à causa, deve ser susceptível de reapreciação por instância judicial hierarquicamente superior.

Por todas estas razões é admissível o recurso interposto para este Tribunal da Relação.

2. Do objecto do recurso

Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações cumpre conhecer a seguinte questão:

O pagamento das prestações devidas pelo FGADM em consequência do obrigado não as cumprir só cessa com o efectivo cumprimento das mesmas pelo devedor?

3. Os factos

Com interesse para a decisão estão provados os seguintes factos:

1 – O menor G..., nascido em 31 de Março de 2002, é filho de M... e J...

2 – Por sentença homologatória proferida em 14.10.2008, nos autos do processo principal de divórcio por mútuo consentimento, já transitada em julgado, foi acordado, no que ora releva, que “d) – A título de alimentos, o pai fica obrigado a contribuir com a quantia de 150,00 € (cento e cinquenta euros) mediante transferência ou depósito bancário até ao dia 10 de cada mês com inicio em Outubro de 2008.”

3 – Por decisão devidamente transitada em julgado, proferida em 19.01.2009, foi homologado acordo no âmbito do qual o requerido se obrigou a pagar “(…) a título de alimentos ao seu filho menor a quantia mensal de 100,00 € (…) até aos finais dos próximos 4 meses, com início em Janeiro de 2009”

4 – Por decisão proferida em 16.04.2010, transitada em julgado, declarou-se verificado o incumprimento relativo à prestação de alimentos devidos ao menor, não tendo o requerido nunca entregue qualquer quantia à menor a título de prestação de alimentos.

5 – Por decisão transitada em julgado datada de 7.11.2011 foi proferida a seguinte decisão:

ao abrigo do preceituado nos artigos 1º, 2.º, 3.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º75/98, de 19-11 e artigo 4º do Decreto-lei n.º164/99, de 13-05,00 o Tribunal fixa a presta­ção alimentar de 150,00 € (cento e cinquenta euros) mensais, devida ao menor G..., a ser suportada pelo Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, através do Instituto de Gestão Financeira da Segu­rança Social, como gestor daquele Fundo de Garantia, a favor da beneficiária, que tem a guarda do menor, a sua progenitora M..., e a ser paga no mês seguinte ao da notificação da presente decisão.

6- Na decisão sob recurso foi declarado cessado o pagamento da prestação de alimentos a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores com fundamento em que resulta dos autos o rendimento médio que aufere o obrigado a alimentos, pelo que desde logo não se verifica o pressuposto constante da acima referida alínea do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 164/99 de 13 de Maio, quando afirma que a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satis­faça as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro.

4. O direito aplicável

A questão que se apresenta para decisão resume-se a saber se a obrigação do FGADM cessa logo que sejam conhecidos rendimentos ao obrigado a alimentos que permitam a cobrança coerciva dos mesmos, ou somente quando há cumprimento efectivo da prestação alimentar pelo obrigado, neste caso o pai.

Dos factos que acima foram enumerados como provados resulta que em consequência do pai do menor, obrigado a uma prestação alimentar de € 100,00 mensais, ter deixado de cumprir esta obrigação, foi em 16.04.2010 verificado o incumprimento relativo à prestação de alimentos devidos ao menor, tendo posterior­mente sido fixada uma prestação alimentar de € 150,00 a cargo do FGADM.

A Lei 75/98, de 19.11, dispõe no seu art.º 1º, n.º 1:

1 - Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de outubro, e o alimentado não tenha rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS) nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efetivo cumprimento da obrigação.

Ora, resulta claro desta norma que a obrigação do FGADM só cessa com o início do efectivo cumprimento da obrigação da alimentos que impende sobre o pai do menor e não com a verificação de que é possível, atendendo à modificação da sua situação económica, cobrar coercivamente os alimentos devidos.

Considerando a natureza da prestação em causa acima explanada e a pro­tecção dos menores que o Estado visou com a criação do FGADM não faria qualquer sentido que a simples verificação da possibilidade do obrigado cumprir, sem se certificar o cumprimento efectivo, pudesse colocar em perigo a efectividade do direito à alimentos.

Assim, deve o recurso interposto ser julgado procedente.

Decisão:

Nos termos expostos, julgando-se procedente o recurso interposto revoga-se a decisão proferida.

Sem custas atenta a isenção do IGFSS constante do art.º 4º, n.º 1, V, do Regulamento das Custas Processuais.

Relatora: Sílvia Pires

Adjuntos: Maria Domingas Simões

 Jaime Ferreira





[1] Acessível em www.tribunalconstitucional.pt.

[2] Acessível em www.tribunalconstitucional.pt.