Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1488/08.7GBAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: PERDA A FAVOR DO ESTADO
INSTRUMENTO DO CRIME
Data do Acordão: 04/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 109º, N.º 1, DO C. PENAL
Sumário: A norma em apreço (art.º 109º, n.º 1, do C. Penal) não exige como condição do seu funcionamento que os objectos apreendidos tenham uma relação directa com o crime imputado ao arguido.

A relação pode ser meramente indirecta, como sucede no caso do agente que é proprietário de arma de fogo e que ameaça dar um tiro em alguém, desde que essa ameaça seja credível ao ponto de, pelo menos, causar inquietação ao destinatário da ameaça (e portanto, constituindo crime), arrastando para o domínio de hipótese que deve ser acautelada a efectiva utilização de arma de fogo contra o visado.

O facto de o agente ter na sua disponibilidade uma ou mais armas de fogo confere maior gravidade à ameaça, por a sua consumação se oferecer como plausível, reforçando as exigências cautelares tendentes a evitá-la, sendo essa circunstância suficiente, só por si, para justificar tanto a apreensão das armas como a sua ulterior perda, visto as armas de fogo constituírem por natureza objectos dotados de grande perigosidade e a sua perda não poder considerar-se desproporcionada à gravidade do ilícito cometido.

Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

            Nestes autos de processo comum que correram termos pelo Juízo de Instância Criminal da Comarca do Baixo Vouga (Juiz 2), após julgamento com documentação da prova produzida em audiência, foi proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos:

(…)
Por todo o exposto, operada que se mostra a alteração da qualificação jurídica dos factos, decide-se condenar SS... como autor material de um crime de ameaça agravada na forma consumada, p. e p. pelo nº 1 do art. 153º e pela al. a) do nº 1 do art. 155º do Código Penal na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 8,00 (oito euros), perfazendo € 720,00 (setecentos e vinte euros) ou, subsidiariamente, caso não cumpra, na pena de 66 (sessenta e seis) dias de prisão;

(…)

Pelas razões preventivas que se fazem sentir em face de crimes praticados mediante a utilização de armas de fogo, levando a que mesmo o presente crime de ameaça assuma relevo, pela facilidade na obtenção de armas, potenciando a possibilidade de efectivação do mal futuro cominado, declaro perdidas a favor do Estado as armas e as munições apreendidas (fls. 34 e 35), nos termos do nº 1 do art. 109º do Código Penal.

(…)

            Inconformado, o arguido interpôs recurso, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1º - O presente recurso é interposto da sentença que condenou o Arguido pela prática de um crime de ameaça agravado previsto e punido pelos artigos 153 n° 1 e alínea a) do nº 1 do artigo 155° do Código Penal e da decisão constante que declarou perdidas a favor do Estado as armas de caça e munições apreendidas - nÔ 1 do artigo 1090 do mesmo Código.

2º - O arguido entende ter sido incorrectamente dado como provado o seguinte facto que se transcreve integralmente "O arguido agiu de forma livre e voluntária, com o propósito concretizado de, com a conduta descrita intimidar e amedrontar a TV..., ao ameaçar atentar contra a sua vida provocando-lhe medo e inquietação e prejudicando a sua liberdade de determinação;

3° -  Na verdade, se atentarmos nos depoimentos das duas (e únicas) testemunhas da acusação verifica-se que o Tribunal " a quo" não deveria ter dado estes factos por provados e em conformidade deveria ter absolvido o arguido.

4°- Senão vejamos: a testemunha ZC..., (depoimento gravado em sistema integrado digital do tribunal - 11.23.03 a 11.35.05 e contador do sistema informático do mandatário de 0.00 a 8.45), sogra do arguido, referiu com interesse para o caso o seguinte:

A instâncias da Digna Procuradora–Adjunta - respondeu,

" Sim e ele devia estar um bocadinho enervado ou qualquer coisa e disse que ia dar um tiro na minha filha e num velho, que ele diz que é um velho. Mas eu de momento receei, contei á minha filha porque receei que ele o fizesse porque tinha armas em casa. Mas ele como nunca foi uma pessoa agressiva ... "

M.P.- Portanto, ele nunca foi agressivo?

Testemunha- Não, mesmo depois disso, nunca foi agressivo.

O Meritíssimo Juiz questionou então a testemunha:

Mas o arguido tratava mal a filha da senhora de alguma maneira? Chamava-lhe nomes, batia-lhe, havia algum contexto

Testemunha - Não, bater-lhe eu tenho ideia que ele nunca lhe bateu.

Juiz - A senhora já disse que terá proferido esta expressão ... , foi algum nervosismo momentâneo do arguido, ou ele em regra era uma pessoa mais reactiva, que explodia facilmente, que de algum modo reagia perante a presença da filha da senhora com o intuito de a humilhar e tratar mal, ou foi uma coisa naquele momento.

Test - Eu penso que foi uma coisa de momento.

Juiz - Desnorteou-se naquele momento, foi assim?

Test - Sim.

Juiz - E na perspectiva da senhora ele disse aquilo que não queria dizer ou que não devia dizer , foi um momento mais nervoso ou ele em regra agia assim para amedrontar a filha da senhora '?

Test- Eu penso que aquilo foi uma coisa de momento, que ele reagiu assim,

Juiz- Estava de cabeça perdida é assim '?

Test- Devia estar.

5° - Quanto á outra testemunha, TV..., testemunha também arrolada pelo M.P., casada com o arguido á data dos factos referiu o seguinte (depoimento gravado no sistema digital integral do tribunal de 11.32.37 a 11.38.01 e no contador do sistema informático do defensor de 0.00 a 5.24) :

Após o Meritíssimo Juiz a ter informado que teria o direito a não prestar declarações, disse:

" Eu posso falar, eu pensava que isto já estava arquivado".

Mais adiante prossegue o depoimento afirmando, após instada pelo Digna representante do M.P. se após os relatos dos factos que a sua mãe lhe transmitiu, se sentiu ameaçada de alguma forma respondeu:

- Tive um certo receio só.

M.P.- Então concretamente teve receio, porquê ?

Test- Tive receio porque o ambiente em casa não estava muito favorável e depois como ele disse aquilo á minha mãe e havia armas em casa, eu tive um certo receio mas ...

Adiante perguntada se o arguido alguma vez tinha sido agressivo para com ela respondeu: " Nunca" .

... Eu , no momento, não o estaria a ver a fazer isso, mas tive um certo receio, mas ao mesmo tempo também nunca pensei que ele o fizesse, que o acabasse por fazer, mas ...

Perguntada se o receio foi mais momentâneo e se assim não fosse se teria voltado a casa e continuado a viver com o arguido respondeu:

" Claro que não, se tivesse mesmo medo, nem sequer lá punha mais os pés".

Juiz- Antes ou depois, o arguido tratava a senhora mal, agredindo-a que verbal quer fisicamente? Enfim, salvo discussões mais acaloradas, mas em termos reiterados ...

Test- Não.

Juiz- De habitualmente a tratar de maneira injuriosa, chamar nomes, de a tentar denegrir de forma a fragilizar a senhora, de a assustar, atemorizar no casamento?

Test- Não.

Juiz - Nem verbal, nem fisicamente?

Test- Não.

Juiz- Do tempo em que os senhores, a senhora e seu marido viveram juntos houve algum episódio semelhante a este?

Test- Nunca.

Poder-se-á concluir que a ter proferido estas expressões o arguido agiu de alguma maneira, de cabeça perdida, algo desnorteado, naquele momento só?

Test- Sim.

6º - Ora se atentarmos na fundamentação da matéria de facto constante da douta sentença, refere-se o seguinte:

"Tendo o arguido exercido o direito ao silêncio, ZC...relatou os factos em termos coincidentes com o despacho de acusação, esclarecendo contudo, que o arguido, que se encontrava nervoso, num contexto de rotura conjugal, e que terá, no momento, "perdido a cabeça".

" TV... mostrou não ter conhecimento dos factos, esclarecendo contudo, que o arguido tinha armas, o que fez com que interpretasse a ameaça como séria, ainda que nunca tenha sido maltratada pelo arguido. Atribuiu ainda a conduta a um momento de desnorte, num contexto de mau relacionamento conjugal, e em que o arguido, possivelmente agiu com ciúmes".

7°_ Mais adiante (página 3 da sentença) refere ainda o Meritíssimo Juiz o seguinte:

" Já que no concerne á matéria de facto dado como não provada decorreu, desde logo, dos depoimentos de ZC...e de TV..., que de modo claro e assertivo, afirmaram que o arguido agiu de modo impensado e no momento, não tendo tratado mal nem querendo maltratar a esposa."

8° - Ora, tomando em consideração as circunstâncias e modo como o arguido referiu a expressão, pois atendendo a tudo quanto foi dado como provado pelo "Tribunal a quo" referiu tal expressão não na presença da mulher, mas da sogra, num contexto provado de ruptura conjugal, claramente nervoso e desnorteado,

9° - Ele que é tido pelas testemunhas por pessoa pacifica, que apesar de ser caçador e possuir armas de caça nunca antes tinha utilizado qualquer expressão semelhante para com a esposa ( ou qualquer outra pessoa) e não ter antecedentes criminais.

10° - Tudo demonstra que foi uma expressão usada de forma irreflectida, sem ter tido vontade ou querer reflectido e consciente de pretender e querer de praticar o crime pelo qual foi condenado ( que aliás resultou de uma alteração da qualificação jurídica dois factos) .

11º - Na verdade, a ofendida chegou a afirmar que continuou a viver com o marido mais alguns meses e que na mesma data foi para casa e se tivesse medo do que foi dito e entendesse que a ameaça era séria por poder efectivamente cominar um mal que pudesse vir a ser-lhe infligido não" punha mais os pés lá em casa".

12°- Ou seja o arguido disse algo que não queria dizer, proferiu um desabafo ao perceber que o seu casamento s e havia desmoronado, nem sequer repetiu a expressão constante dos autos na presença da mulher,

13° - E portanto no nosso modesto entendimento, o arguido agiu sem dolo, não tendo propósito de intimidar e amedrontar a ofendida e não lhe provocou medo e inquietação, nem prejudicou a sua liberdade de determinação, pois o que parece resultar dos depoimentos prestados,

14° - É que as testemunhas arroladas pela acusação não entenderam a expressão utilizada pelo arguido como séria e grave, pois entenderam que a mesma apenas foi proferida por desnorte e nervosismo momentâneo do arguido, que no momento terá perdido a cabeça, como referiram as testemunhas, parecendo até que o próprio tribunal na sua fundamentação entra em certa contradição com o referido facto dado por provado.

15° - O arguido não procurou criar medo, pois caso contrário, teria proferido as palavras que dirigiu á sogra á sua mulher, tanto mais que não poderia com certeza saber ao proferir tal expressão que a mãe da ofendida iria transmitir as suas palavras.

16° - Também não limitou a liberdade e determinação da ofendida TV... pois a mesma não saiu de casa, continuou a viver durante alguns meses com o arguido, continuou a fazer a sua vida normalmente, tendo interpretado a expressão como um acto irreflectido, nervoso e enciumado do marido, numa altura em que a vida conjugal já era problemática e que levou alguns meses mais tarde ao divórcio.

17° - Face ao supra referido consideramos, na nossa modesta opinião e salvo o devido respeito, que houve incorrecto julgamento da matéria de facto designadamente no ponto já acima transcrito c inexistindo conduta dolosa, isto é, o arguido no momento agiu sem sequer ter representado conscientemente que estaria com a referida conduta a preencher um tipo de criem e sem intenção de o realizar.

18° - Acresce que, em face da condenação, as armas e munições de caça apreendidas foram declaradas perdidas a favor do Estado. Armas essas que, diga-se, que o próprio arguido entregou voluntariamente quando foi cumprido o mandado de busca e apreensão das mesmas á sua residência, pois as mesmas não se encontravam na residência mas num escritório do estabelecimento que era então do casal.

19° - Analisemos então o que consta da douta sentença "Pelas razões preventivas que se fazem sentir em face de crimes praticados mediante a utilização de armas de fogo, levando a que mesmo o presente crime de ameaça assuma relevo, pela facilidade na obtenção de armas, potenciando a possibilidade de efectivação do mal futuro cominado, declaro perdidas a favor do Estado as armas e as munições apreendidas ( fls. 34 e 35), nos termos do n" I do art. 109° do Código Penal."

20º - O Código Penal , designadamente no n" I do referido artigo dispõe que : " São declarados perdidos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos."

21° - Ora, o arguido nunca fez uso das suas armas de caça quando proferiu tal expressão, ou seja, mesmo considerando como faz a sentença que o arguido praticou o crime não consta do processo que sequer alguma vez as tenha exibido, que o uso normal (na caça) das mesmas tivessem atemorizado a ofendida e demonstrou-se pelas próprias palavras desta que não teve medo da ameaça pois nunca deixou de viver com o arguido até á separação definitiva do casal e posterior divórcio.

22º - A própria testemunha mãe da vítima, afirmou que nunca o viu sequer com as armas, afirmando que ele as tinha pois era caçador.

23° - Mais, ainda o facto de terem sido apreendidas não impossibilitava o arguido de adquirir mais, pois possuía todos os requisitos necessários para o efeito, aliás o que fez ao adquirir nova arma de caça como chegou a informar o Digno Procurador que o interrogou no inquérito e nunca houve qualquer tipo de incidente que a ofendida ou qualquer outra pessoa pudesse vir relatar.

24° - De facto, ao contrário do que afirma a decisão as armas de fogo não foram utilizadas, por qualquer forma pelo arguido, nem sequer são referidas na expressão do arguido, pois poderia então ter dito por exemplo, "eu tenho lá as armas e vou dar um tiro ... ;

25° - Não foram as ditas armas exibidas em qualquer momento, quer no dia dos factos, quer anteriormente, quer posteriormente (as apreendidas ou outras), aliás como se infere das declarações da ofendida que afirma que nunca antes se tinha passado uma situação análoga, que o marido nunca antes a havia maltratado por qualquer forma, que na verdade não teve medo pois caso contrário" nunca mais punha os pés lá em casa".

26° - Além disso, se havia risco para o futuro na utilização de armas pelo arguido devia então cuidar-se de impedir a compra de novas armas pelo arguido, o que como se disse também não sucedeu, voltando este a obter uma arma de fogo e ir á caça com a mesma, tendo na sua posse todas as licenças para o efeito.

27° - Mais, haveria de atender pelo Tribunal, no nosso entendimento, á data dos factos e á data da audiência de julgamento (que ocorreu cerca de um ano e meio depois ), bem como ás palavras proferidas pela ofendida pois não houve posteriormente qualquer facto que indiciasse algum perigo de efectivação do mal previsto nas palavras do arguido e foi referido pela ofendida TV... que desde essa data e mesmo após o divórcio que se voltaram a entender razoavelmente bem.

28° Assim, o arguido considera profundamente injusta a decisão do Tribunal, contrária aos factos dados por provados e tudo quanto foi dito em sede de audiência e julgamento, infundamentada e violadora do preceito legal (artigo 109° nº I do Código Penal) que dispõe sobre esta matéria, decisão essa que entende e pretende ver alterada com o presente recurso.

Nestes Termos e nos mais de direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, Deve dar-se provimento ao presente recurso e como consequência, ser o arguido absolvido e dessa forma ou mesmo que assim se não entenda, alterar a decisão do Tribunal " a quo" entregando-se as armas de caça e munições apreendidas nos autos, que se encontravam perfeitamente legalizadas.

            O M.P. respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.

            Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pronunciando-se também pela improcedência do recurso.

            Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

            Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.

            No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões:

            - Impugnação da matéria de facto provada;

            - Declaração de perda das armas e munições apreendidas.

           

                                                                       *

II - FUNDAMENTAÇÃO:

            Na sentença recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos:
. o arguido e TV… foram casados entre si desde 12 de Julho de 1997 e até Agosto de 2009;
. no dia 10 de Dezembro de 2008, pelas 13h30m, o arguido deslocou-se à residência da mãe de TV..., ZC..., sita na Rua …, em ...;
, então, dirigindo-se à sogra, disse “a sua filha é uma vaca. Vou dar um tiro a ela e ao velho”;
. o arguido é caçador e tinha, à data, três espingardas de caça;
. o arguido agiu de forma livre e voluntária, com o propósito concretizado de, com a conduta descrita intimidar e amedrontar a TV..., ao ameaçar atentar contra a sua vida, provocando-lhe medo e inquietação e prejudicando a sua liberdade de determinação;
. o arguido sabia que a sua conduta era prevista e punida por lei penal;
. o arguido é conhecido como pessoa trabalhadora, de bom trato e pacífica;
. ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais;

            Relativamente ao não provado foi consignado o seguinte:

Com relevo para a decisão da causa não ficou provado que:
. com a sua conduta, o arguido pretendeu ofender a honra e consideração de TV..., fragilizando-a perante si e humilhando-a;
. o arguido actuou com o intuito de molestar física e psicologicamente a TV..., bem sabendo que, dessa forma, ofendia ainda a sua honra e consideração.

            A convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos:

Para a decisão da matéria de facto o Tribunal procedeu a uma análise global e criteriosa de toda a prova produzida, que foi interpretada, conjugada e ponderada segundo cânones de razoabilidade, adequação e sempre em observância das regras por que se pauta o processo penal.

Desde logo, o Tribunal teve em consideração os elementos constantes dos autos, nomeadamente o auto de apreensão de fls. 34 e 35, os documentos de fls. 40 e 41, no tocante ao manifesto das armas, de fls. 76 relativamente à titularidade de carta de caçador, e ainda a certidão do assento de nascimento de fls. 71, contendo averbado o casamento.

Tendo o arguido exercido o direito ao silêncio, ZC...relatou os factos em termos coincidentes com o despacho de acusação, esclarecendo, contudo, que o arguido se encontrava nervoso, num contexto de rotura conjugal, e que terá, no momento, “perdido a cabeça”.

TV... mostrou não ter conhecimento dos factos, esclarecendo, contudo, que o arguido tinha armas, o que fez com que interpretasse a ameaça como séria, ainda que nunca tinha sido maltratada pelo arguido. Atribuiu ainda a conduta a um momento de desnorte, num contexto de mau relacionamento conjugal, e em que o arguido, possivelmente, agiu com ciúmes.

AR..., VF... e AX... depuseram acerca da personalidade do arguido sendo, na essência, testemunhas abonatórias.

Da ponderação de toda a prova produzida, desde logo foi em face do modo sentido, mas objectivo, sereno, encadeado e pormenorizado com que ZC...depôs que os factos foram dados como provados, sendo que, não obstante se tratar da única testemunha que assistiu aos factos, não restou qualquer dúvida no espírito do Tribunal acerca da verificação dos mesmos.

Em primeiro lugar, e no que tange ao clima de instabilidade conjugal, nesse sentido esteve igualmente TV..., sendo que ambas as testemunhas atribuíram a actuação ao facto de o arguido julgar que a esposa tinha um relacionamento com terceiro.

Acresce que dos autos constam vários documentos referentes à detenção, pelo arguido, de armas de fogo, que foram inclusivamente apreendidas.

Sendo que a actuação em si mesma acaba por ser compatível com as regras da experiência comum, nomeadamente a própria queixa junto da sogra, que afirmou que o arguido ia a sua casa várias vezes, espelhando um bom relacionamento, foi a matéria factual dada como provada.

No que concerne à noção de que se trata de matéria que constitui crime, é do conhecimento de qualquer cidadão, termos em que foi essa matéria igualmente dada como provada.

O modo como o arguido é conhecido decorreu dos depoimentos de AR..., VF... e AX..., que entre si estiveram em consonância e se mostraram sinceros.

A ausência de antecedentes criminais resulta do teor do certificado do registo criminal junto aos autos.

Já no que concerne à matéria de facto dada como não provada decorreu, desde logo, dos depoimentos de ZC...e de TV..., que, de modo claro e assertivo, afirmaram que o arguido agiu de modo impensado e no momento, não tendo tratado mal nem querendo maltratar a esposa.

De resto, para além da não narração de qualquer acto consubstanciador de uma agressão física, inexistiu prova bastante de que o arguido, tendo, naquele momento, insultado a esposa e a ameaçado de morte, a pretendesse humilhar ou fragilizar, termos em que, também por carência de prova, foi essa matéria factual dada como não provada.

                                                                       *

           

            O arguido e ora recorrente impugna a matéria de facto que em primeira instância se teve como provada, nomeadamente, na parte em que se afirma que “o arguido agiu de forma livre e voluntária, com o propósito concretizado de, com a conduta descrita intimidar e amedrontar a TV..., ao ameaçar atentar conta a sua vida provocando-lhe medo e inquietação e prejudicando a sua liberdade de determinação”. Contudo, a prova produzida em audiência não deixa margem para dúvidas. Na verdade, a testemunha ZC…, mãe da ofendida e sogra do arguido, relatou em audiência, referindo-se ao arguido, que “o meu genro disse-me que ia dar um tiro na minha filha e num outro senhor”; “receei que ele o fizesse porque ele tinha armas em casa”. Por seu turno, a testemunha TV..., que foi casada com o arguido, teve conhecimento dos factos por lhe terem sido relatados pela mãe. Inquirida sobre o estado de espírito para si resultante do facto de ter tomado conhecimento daquelas afirmações do arguido, disse que “tive um receio, só”; “tive receio porque o ambiente em casa não estava muito favorável e depois, como ele disse aquilo à minha mãe e havia armas em casa, tive um certo receio”; “eu no momento não estaria a ver ele a fazer isso, mas claro que tive sempre um certo receio”.           É precisamente esta inquietação causada na vítima que permite afirmar a verificação do crime de ameaça. Vejamos:

            Dispõe o art. 153º, nº 1, do Código Penal, que “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.

            Por seu turno, a al. a) do nº 1 do art. 155º dispõe que “quando os factos previstos nos artigos 153º e 154º forem realizados: a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; (…) o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do art. 153º, (…)”.

            Resulta linearmente do texto do nº 1 do art. 153º que a criação de um sentimento de inquietação na pessoa do ofendido é só por si suficiente para a verificação do crime, suposto, obviamente, estarem verificados os demais requisitos do tipo, nomeadamente, a ameaça, pressupondo esta a cominação de um mal (configurando este, obrigatoriamente, um tipo legal de crime), futuro (porque se o mal estiver eminente, estaremos já no domínio do início da execução do crime ameaçado ou, pelo menos, da tentativa) e de concretização dependente da vontade do agente ou que pelo menos se apresente como tal, aos olhos do homem médio (sob pena de a ameaça não se apresentar como credível e portanto, não poder ser punível como tal).

            Citando Taipa de Carvalho, diremos que o “bem jurídico protegido pelo art. 153º é a liberdade de decisão e de acção. As ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afectam, naturalmente, a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade” [1].

            Revertendo uma vez mais ao caso concreto, o arguido, ao afirmar, dirigindo-se à mãe da ofendida, que ia dar um tiro na sua filha, profere uma ameaça que integra todos os requisitos que antes referimos, tanto quanto é certo que “dar um tiro” é imediata e naturalmente associado à ideia de causar a morte, o carácter futuro é manifesto por a visada nem sequer se encontrar presente no momento da afirmação, sendo no entanto previsível que feita a afirmação dirigida à mãe da ofendida esta a transmitirá à filha, e de concretização dependente da vontade do agente, facilmente interiorizável pela ofendida, já que o arguido possuía armas, facto que era do conhecimento daquela. O “receio” que a ofendida preenche a previsão legal, já que corresponde àquele mínimo exigível para a verificação do crime – “provocar inquietação”.

            Diz o arguido que nunca teve intenção de concretizar a ameaça e que aquela afirmação mais não foi do que um “desabafo”, pelo que agiu sem dolo. Contudo, o dolo pressuposto pelo tipo de ilícito em questão basta-se com a mera consciência da adequação da ameaça proferida para provocar medo ou inquietação no visado, sendo irrelevante que tenha ou não a intenção de concretizar a ameaça [2].

            Conclui-se, pois, que o provado está de acordo com a prova produzida em audiência, nenhuma censura merecendo o julgamento de facto. Quanto aos elementos apontados pelo recorrente, como seja o facto de não ter antecedentes criminais, ser uma pessoa tida como pacífica, vir mantendo com a ofendida uma relação cordata, ter sido aquela expressão proferida num contexto de ruptura conjugal e encontrando-se enervado por essa razão, foram sopesadas pelo tribunal na medida da pena e justificam a opção pela pena de multa e a sua graduação dentro da moldura penal.

            Resta, pois, verificar se neste contexto estão verificados os requisitos da declaração da perda das armas e munições.

            A declaração de perda foi fundamentada nos seguintes termos:

            “Pelas razões preventivas que se fazem sentir em face de crimes praticados mediante a utilização de armas de fogo, levando a que mesmo o presente crime de ameaça assuma relevo, pela facilidade na obtenção de armas, potenciando a possibilidade de efectivação do mal futuro cominado, declaro perdidas a favor do Estado as armas e munições apreendidas (fls. 34 e 35), nos termos do nº 1 do art. 109º do Código Penal”.

            A norma invocada como fundamento legal da declaração de perda dispõe nos termos seguintes: “são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”.

            Resulta desta norma a natureza exclusivamente preventiva da perda dos instrumentos do crime, na medida em que exige que os bens em causa, seja pela sua específica natureza, seja pelas circunstâncias do caso, se possam traduzir num perigo para a segurança das pessoas, para a moral ou a ordem públicas ou que ofereçam risco sério de utilização para o cometimento de novos factos ilícitos. Trata-se, segundo Figueiredo Dias, de uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança, tendo como pressuposto a prática de um facto ilícito típico, em termos idênticos aos que assistem ao facto ilícito típico como pressuposto de aplicação de uma autêntica medida de segurança não privativa de liberdade [3].

            O arguido sustenta que as armas de fogo em causa não foram por si utilizadas em qualquer momento, assim como não foram exibidas, pelo que não estariam preenchidos os pressupostos para a respectiva perda, tal como resultam do art. 109º, nº 1, do Código Penal. Não é esse, no entanto, o raciocínio que deve condicionar o funcionamento daquele mecanismo legal. A norma em apreço não exige como condição do seu funcionamento que os objectos apreendidos tenham uma relação directa com o crime imputado ao arguido, como sucede, por exemplo, com a arma utilizada num crime de roubo. A relação pode ser meramente indirecta, como sucede no caso vertente. O agente que é proprietário de arma de fogo e que ameaça dar um tiro em alguém, desde que essa ameaça seja credível ao ponto de, pelo menos, causar inquietação ao destinatário da ameaça (e portanto, constituindo crime), arrasta para o domínio de hipótese que deve ser acautelada a efectiva utilização de arma de fogo contra o visado. O facto de o agente ter na sua disponibilidade uma ou mais armas de fogo confere maior gravidade à ameaça, por a sua consumação se oferecer como plausível, reforçando as exigências cautelares tendentes a evitá-la, sendo essa circunstância suficiente, só por si, para justificar tanto a apreensão das armas como a sua ulterior perda, visto as armas de fogo constituírem por natureza objectos dotados de grande perigosidade e a sua perda não poder considerar-se desproporcionada à gravidade do ilícito cometido. Aliás, são precisamente estas duas circunstâncias – perigosidade do objecto e proporcionalidade – que condicionam a declaração de perda, que não é de modo algum limitada pela culpa do agente (só assim se justifica o teor do nº 2 do art. 109 do Código Penal).

            Em conclusão, o recurso improcede em todas as suas vertentes.

                                                                       *

            A sentença recorrida carece, porém, de um reparo. Consta do dispositivo que o arguido é condenado na “pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 8,00 (oito euros), perfazendo € 720,00 (setecentos e vinte euros) ou, subsidiariamente, caso não cumpra, na pena de 66 (sessenta e seis) dias de prisão”. Ora, esta referência a 66 (sessenta e seis) dias de prisão traduz um manifesto erro de cálculo, já que a prisão subsidiária é fixada “pelo tempo correspondente reduzido a dois terços” (art. 49º, nº 1, do Código Penal), correspondendo aos noventa dias de multa, sessenta (e não sessenta e seis) dias de prisão subsidiária. Haverá, pois, que rectificar oficiosamente a sentença, nos termos previstos no art. 380º, nº 1, al. b), e nº 2, do CPP, visto a rectificação não implicar modificação essencial.

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III – DISPOSITIVO:

            Nos termos apontados, nega-se provimento ao recurso.

Procede-se, não obstante, à rectificação do dispositivo da sentença, de modo a que onde se lê “…ou, subsidiariamente, caso não cumpra, na pena de 66 (sessenta e seis) dias de prisão”, passe a ler-se “ou, subsidiariamente, caso não cumpra, na pena de 60 (sessenta) dias de prisão”

            Por ter decaído integralmente no recurso interposto, condena-se o recorrente na taxa de justiça de 3 UC.

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Jorge Miranda Jacob (Relator)

Maria Pilar de Oliveira


[1] - in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, pág. 342.
[2] - neste sentido, cfr. ainda Taipa de Carvalho, ob. citada, pág. 351.
[3] - Cfr. autor citado, “Direito Penal Português – As consequência jurídicas do crime”, pág. 628.