Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6985/18.3T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: REGIME JURÍDICO DO MAIOR ACOMPANHADO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
ADEQUAÇÃO FORMAL
LEGITIMIDADE
Data do Acordão: 09/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JL CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.138, 140, 141, 146 CC, 547, 892, 893, 897, 900 CPC, LEI Nº 49/2018 DE 14/8, LEI Nº 25/2012 DE 16/7
Sumário: 1. Face ao disposto no art.º 26º da Lei n.º 49/2018, de 14.8, sobre a aplicação no tempo, o correspondente regime jurídico é imediatamente aplicável aos processos de interdição e de inabilitação pendentes, devendo o juiz, ao abrigo dos poderes de gestão processual e adequação formal, proceder às adaptações necessárias.

2. A referida lei é aplicável em processos pendentes, de harmonia com a regra da adequação formal, pelo que poderá não determinar a anulação dos actos já praticados ou a observância de requisitos adjectivos depois estabelecidos, mormente relativos à legitimidade para instaurar a acção.

3. Nos termos do art.º 900º, n.º 3 do CPC (na redacção conferida pela Lei n.º 49/2018, de 14.8), perante a comprovada existência de testamento vital e de procuração para cuidados de saúde, a sentença que decretar as medidas de acompanhamento de maior deverá referir expressamente a existência de testamento vital e de procuração para cuidados de saúde e acautelar, se possível (cf., v. g., o art.º 14º, n.º 3 da Lei n.º 25/2012, de 16.7, na redacção conferida pela Lei n.º 49/2018, de 14.8), o respeito pela vontade antecipadamente expressa pelo acompanhado.

Decisão Texto Integral:






            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:                      

I. Em 20.9.2018, P (…) instaurou a presente acção especial de interdição por anomalia psíquica de A (…), seu pai, nascido a 12.10.1945, viúvo, institucionalizado na D (…), sita em (...) .

Solicitou a sua nomeação como tutor e indicou as pessoas para composição do Conselho de Família.

Por decisão de 04.10.2018, foi decretada a interdição provisória do requerido e nomeado o requerente para exercer as funções de tutor provisório.

Anunciou-se a propositura da acção nos termos do art.º 892º do Código de Processo Civil (CPC) e citou-se o requerido, conforme os art.ºs 21º, n.º 1 e 893º, do mesmo diploma.

O M.º Público, em representação do requerido, contestou a acção pedindo que seja julgada conforme for de direito e requereu o prosseguimento dos autos com a produção da prova preliminar nos termos do disposto no art.º 896º do CPC, para além da realização de perícia médico-legal e da diligência de interrogatório previstas nos art.º 897º e 898º do CPC.

Em consequência da entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14.8, no dia 13.02.2019 procedeu-se à audição pessoal e directa do beneficiário e à realização do respectivo exame pericial.

O requerente e o M.º Público pugnaram pela aplicação ao beneficiário da medida de acompanhamento de representação geral, tendo o M.º Público promovido ainda que «(…) face à entrada em vigor do Regime Jurídico do Maior Acompanhado, aplicável aos processo pendentes, (…) o Requerente seja notificado para aperfeiçoar o requerimento inicial apresentado, de acordo com os novos requisitos legais previstos no artigo 892º do CPC, bem como para juntar aos autos documento comprovativo da autorização do beneficiário para requerer o acompanhamento ou requerer o seu suprimento (cf. artigo 141º do CC)» (sic).[1]

Por decisão de 10.4.2019, o Tribunal a quo indeferiu aquele requerimento[2] e, ao abrigo do disposto no art.º 901º do CPC,

- Decretou o regime de acompanhamento de A (…) com a aplicação da medida de representação geral - art.º 145º, n.º 2, alínea b) do CC (Código Civil) (1);

- Nomeou como acompanhante do beneficiário o seu filho, P (…)ao qual fixou uma periodicidade de visitas quinzenal - art.º 146º, n.º 2 do mesmo Código (2);

- Nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 145º, n.º 4, dispensou a constituição do conselho de família (3);

- Fixado o início da patologia em 13.9.2018, considerou a medida conveniente desde essa data - art.º 900º, n.º 1 do CPC (4), a rever no prazo de 5 (cinco) anos - art.º 155º do CC (5).

            Inconformado, o M.º Público apelou formulando as seguintes conclusões:

1ª - A presente acção especial de interdição por anomalia psíquica de A (…)foi instaurada, no dia 20.9.2018, pelo seu filho, P (…).

2ª - No decurso da mesma, entrou em vigor a Lei n.º 49/2018, de 14.8, a qual nos termos do disposto no art.º 26º, n.º 1 é aplicável aos processos pendentes.

3ª - Face ao novo Regime Jurídico (do Maior Acompanhado), a legitimidade para requerer o acompanhamento passou a ser do maior impossibilitado ou mediante a sua autorização, do cônjuge, do unido de facto, de qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, do M.º Público (cf. art.º 141º do CC).

4ª - Quando o maior impossibilitado não possa requerer o seu acompanhamento, a sua autorização pode, no entanto, ser suprida, devendo o pedido de suprimento da autorização do beneficiário ser cumulado com o pedido de acompanhamento, tal como dispõe o citado preceito nos n.ºs 2 e 3. O que, in casu, não se verificou.

5ª - Pese embora a promoção do M.º Público, no sentido do Requerente ser convidado a aperfeiçoar o requerimento inicial apresentado, de acordo com os novos requisitos legais, visando-se, além do mais, a questão da falta de legitimidade do Requerente, a Mm.ª Juiz a quo, em despacho prévio à prolação da sentença, explanou que “a referida lei não tem efeito retroactivo, sendo aplicável apenas a actos futuros em processos pendentes, de harmonia com a regra da adequação formal”.

Concretamente, em relação ao consentimento do beneficiário para o processo de acompanhamento, ou ao respectivo suprimento, entendo que o mesmo não é exigível, porquanto não o era, à data da instauração da presente acção”.

6ª - Alicerçada neste entendimento, sustentou a Mm.ª Juiz na decisão ora em crise que “as partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas”.

7ª - Todavia, constituindo, actualmente, a autorização do acompanhando um dos requisitos da legitimidade do Requerente (art.º 141º, n.º 1 do CC), a sua falta, desacompanhada do pedido de suprimento da autorização do beneficiário, leva à ilegitimidade do Requerente, configurando a excepção dilatória a que alude o art.º 577º, al. e) do CPC, pelo que, não tendo havido um aperfeiçoamento do requerimento inicial, a sentença proferida viola o disposto nos citados preceitos, ao considerar o Requerente parte legítima.

8ª - Por outro lado, atenta a actual redacção do art.º 900º, n.º 3 do CPC, “a sentença que decretar as medidas de acompanhamento deverá referir expressamente a existência de testamento vital ou de procuração para cuidados de saúde e de acautelar o respeito pela vontade antecipadamente expressa pelo acompanhado”.

9ª - Contudo, relativamente a tal aspecto, nada é referido na decisão proferida, não se vislumbrado qualquer menção quanto à existência ou inexistência testamento vital ou de procuração para cuidados de saúde.

10ª - Tal referência assume, hodiernamente, especial relevância, porquanto se trata de uma manifestação da vontade do Acompanhado, acolhendo o referido na Proposta de Lei do Governo n.º 110/XIII (que se converteu na citada Lei n.º 49/2018, de 14.8) que visa, além do mais, “a primazia da autonomia da pessoa, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até ao limite do possível”.

11ª - Pelo que a sentença proferida é nula, nos termos do disposto no art.º 615º, n.º 1, alínea d), do CPC, porque omissa, quanto à existência de tais instrumentos, não obstante o disposto no art.º 900º, n.º 3 do CPC.

Remata dizendo que deve revogar-se a sentença recorrida, a fim de, primeiramente, se diligenciar, além do mais, pelo suprimento da autorização do acompanhado e após proferir sentença que se pronuncie, também, pela existência de testamento vital e de procuração para cuidados de saúde, nos termos ´supra` expostos!

O requerente não respondeu.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa reapreciar, principalmente, se, face à entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14.8 (em 10.02.2019), era ainda exigido o suprimento da autorização do acompanhado e se a sentença devia pronunciar-se expressamente pela existência de testamento vital e de procuração para cuidados de saúde.             


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:[3]

1) O Requerente é filho do Beneficiário.[4]

2) O Beneficiário nasceu em 12.10.1945 e é viúvo.

3) O Beneficiário encontra-se institucionalizado, desde o passado dia 19.6.2018, na instituição D (…), sita (…), (...) .

4) O Beneficiário sofre de demência evidenciando um quadro de Alzheimer, sendo dependente na realização das suas actividades de vida diária.

5) A doença de Alzheimer traduz-se numa demência neurodegenerativa progressiva e sem tratamento curativo, caracterizada por uma deterioração cognitiva acentuada, originando uma total e completa incapacidade de o doente gerir a sua pessoa e administrar os seus bens.

6) Neste tipo de demência - caracterizada por um quadro patológico de perturbação e desorientação do doente, que lhe afecta, de forma séria, a capacidade de entender e querer - o doente vai, progressivamente, perdendo a sua orientação temporal, espacial e afectiva.

7) A doença de Alzheimer é uma doença do cérebro (morte das células cerebrais e consequente atrofia do cérebro), progressiva, irreversível e com causas ainda desconhecidas.

8) Começa por atingir a memória e, progressivamente, as outras funções mentais, acabando por determinar a completa ausência de autonomia dos doentes.

9) O Beneficiário mostra-se actualmente incapaz de realizar a totalidade das tarefas do dia-a-dia, sendo total a confusão na identificação das pessoas que lhe são próximas, tendo deixado de reconhecer rostos que lhe eram familiares.

10) No início da manifestação da referida doença, as pessoas próximas do Beneficiário começaram por observar pequenos esquecimentos e perdas de memória por parte daquele;

11) Tais “falhas de memória” foram-se agravando gradualmente até ao ponto de o Beneficiário, a partir de determinada altura, se mostrar constantemente confuso, passando a apresentar alterações da personalidade.

12) À medida que a doença evoluiu, o Beneficiário tornou-se cada vez mais dependente de terceiros e passou a necessitar de cuidados e supervisão integral, até mesmo para as actividades elementares do quotidiano.

13) O estado do Beneficiário tem sofrido a evolução normal deste tipo de quadro clínico, com a progressiva perda de faculdades psíquicas e maior dependência de terceiros.

14) O Beneficiário padece de queixas progressivas de défice de memória, desorientação no tempo e no espaço, dificuldades executivas e limitação em todas as actividades básicas com vários anos de evolução.

15) O que conduziu ao diagnóstico médico de Doença de Alzheimer, caracterizada por desorientação global (pessoal, temporal e espacial, dificuldade de linguagem, défice grave de memória), encontrando-se o Requerido medicado para esta patologia.

16) O Requerido está totalmente dependente de terceiros para gerir a sua pessoa e os seus bens, carecendo de permanente apoio e acompanhamento de terceira pessoa.

            17) A data provável de início da patologia pode ser fixada a 13.9.2018.[5]

2. Consta da 1ª parte da decisão de 10.4.2019:

« (…)

Os presentes autos de interdição foram instaurados no dia 20.9.2018.

Salvo o devido respeito por opinião contrária, os pressupostos processuais e condições de procedibilidade estão verificados, à luz do regime legal então vigente, anterior à entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14.8, em 10.02.2019.

Efectivamente, o art.º 26º da citada Lei n.º 49/2018, dispõe que:

“1 - A presente lei tem aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor.

2 - O juiz utiliza os poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias nos processos pendentes.

3 - Aos atos dos requeridos aplica-se a lei vigente no momento da sua prática (…)”.

Ora, a interpretação que se faz da referida disposição legal é a de que a referida lei é imediatamente aplicável aos processos pendentes, devendo o juiz, ao abrigo dos poderes de gestão processual e adequação formal proceder às necessárias adaptações, em função do estado processual em que se encontrem.[6]  A referida lei não tem efeito retroactivo, sendo aplicável apenas a actos futuros em processos pendentes, de harmonia com a regra da adequação formal. Não há assim, salvo melhor opinião, efeitos retroactivos e lugar à anulação de actos praticados ou à exigência subsequente de pressupostos que vieram a ser estabelecidos pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto.

Concretamente, em relação ao consentimento do beneficiário para o processo de acompanhamento, ou ao respectivo suprimento, entendo que o mesmo não é exigível, porquanto o não era, à data da instauração da presente acção. O Requerente tinha, então, legitimidade para instaurar a acção, independentemente do consentimento do Requerido - agora beneficiário. O mesmo se diga relativamente à especificação das medidas de acompanhamento adequadas e à articulação de factos que integrem a necessidade da acção de acompanhamento, tendo em conta o disposto no actual art.º 140º, n.º 2 do Código Civil.

Tudo isto sem prejuízo de, por despacho de 20.3.2019, o Requerente ter sido notificado para se pronunciar sobre estes dois aspectos, o que já fez.

Pelo exposto, indefiro o requerido

3. No despacho em que se pronunciou sobre a admissibilidade do recurso, a Mm.ª Juíza a quo, a respeito da pretensa nulidade da sentença, escreveu:

«(…) O Ministério Público invocou a nulidade da sentença proferida nos presentes autos, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 615º, nº 1, al. d), primeira parte, do CPC, por a decisão recorrida nada referir quanto à existência de testamento vital ou de procuração para cuidados de saúde.

Cumpre decidir.

Dispõe o art.º 615º, n.º 1, alínea d) do CPC que “É nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar…”.

Ora considero que a sentença proferida não padece do apontado vício da decisão susceptível de ferir a mesma de nulidade, porquanto não há conhecimento nos autos da existência de testamento vital ou de procuração para cuidados de saúde.

Assim sendo, a sentença não tinha que se pronunciar quanto a tais instrumentos.

Por todo o exposto, considero que inexiste a invocada nulidade e mantenho a sentença proferida

4. A fundamentação jurídica da sentença é a seguinte:

 «Dispõe o art.º 138º do Código Civil que “O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas nesta Código”.

O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar e limita-se ao necessário - art.ºs 140º, n.º 1 e 145º, n.º 1 do mesmo Código. Dispõe, por seu turno o n.º 2 do art.º 145º que em função de cada caso, o tribunal pode cometer ao acompanhante algum ou alguns dos regimes seguintes:

´a) Exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de as suprir, conforme as circunstâncias;

b) Representação geral ou representação especial com indicação expressa, neste caso, das categorias de atos para que seja necessária;

c) Administração total ou parcial de bens;

d) Autorização prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos;

e) Intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas.`

Ora, face aos elementos constantes dos autos, estão reunidas as condições para o decretamento do regime de acompanhamento do maior, com a aplicação da medida de representação geral - art.º 145º, n.º 2, alínea b), que se considera ser a adequada e necessária, considerando o respectivo grau de impossibilidade de exercício dos seus direitos e deveres.

Quanto à pessoa do acompanhante, considerando que o beneficiário não apresentou discernimento para proceder à respectiva escolha, nomeia-se o seu filho P (…) - art.º 143º, n.º 2, alínea c)[7] do Código Civil.

Quanto à periodicidade de visitas, considerando que o acompanhante reside em (...) , deverá a mesma ser fixada num mínimo quinzenal - art.º 146º, n.º 2 do mesmo Código.

Ao abrigo do novo regime legal instituído pela Lei n.º 49/2018, de 14.8, no dia 13.02.2019, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 145º, n.º 4, dispenso a constituição do Conselho de Família

5. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

A Lei n.º 49/2018, de 14.8, criou o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os institutos da interdição e da inabilitação, previstos no Código Civil de 1966, e introduzindo alterações a diversos diplomas legais, entre os quais a Lei n.º 25/2012, de 16.7, que regula as directivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento vital e a nomeação de procurador de cuidados de saúde e cria o registo nacional de testamento vital.

Tendo a Mm.ª Juíza a quo fundamentado o decidido referindo o actual quadro legal, vejamos as demais normas com interesse para a decisão do recurso.

Preceitua o art.º 141º do CC (actual redacção): O acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público (n.º 1). O tribunal pode suprir a autorização do beneficiário quando, em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal considere existir um fundamento atendível (n.º 2). O pedido de suprimento da autorização do beneficiário pode ser cumulado com o pedido de acompanhamento (n.º 3).

            Prevê o CPC, na redacção introduzida pela referida lei:

- O processo de acompanhamento de maior tem carácter urgente, aplicando-se-lhe, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes (art.º 891º, n.º 1);

- Quando determinado pelo juiz, o perito ou os peritos elaboram um relatório que precise, sempre que possível, a afecção de que sofre o beneficiário, as suas consequências, a data provável do seu início e os meios de apoio e de tratamento aconselháveis (art.º 899º, n.º 1);

- A sentença que decretar as medidas de acompanhamento deverá referir expressamente a existência de testamento vital e de procuração para cuidados de saúde e acautelar o respeito pela vontade antecipadamente expressa pelo acompanhado (art.º 900º, n.º 3).

6. A Lei n.º 49/2018, de 14.8, entrou em vigor em 10.02.2019 (art.º 25º, n.º 1), dispondo, quanto à aplicação no tempo: «A presente lei tem aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor (art.º 26º, n.º 1); O juiz utiliza os poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias nos processos pendentes (n.º 2). Aos actos dos requeridos aplica-se a lei vigente no momento da sua prática (n.º 3).

7. Importa também ter em atenção algumas das disposições da Lei n.º 25/2012, de 16.7, que regula o regime das directivas antecipadas de vontade (DAV) em matéria de cuidados de saúde, designadamente sob a forma de testamento vital (TV) e nomeação de procurador de cuidados de saúde e cria o Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV) (art.º 1º).

Assim, estabelece-se na dita Lei, designadamente:

- As directivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento vital, são o documento unilateral e livremente revogável a qualquer momento pelo próprio, no qual uma pessoa maior de idade e capaz, que não se encontre interdita ou inabilitada por anomalia psíquica, manifesta antecipadamente a sua vontade consciente, livre e esclarecida, no que concerne aos cuidados de saúde que deseja receber, ou não deseja receber, no caso de, por qualquer razão, se encontrar incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente (art.º 2º, n.º 1). Podem constar do documento de directivas antecipadas de vontade as disposições que expressem a vontade clara e inequívoca do outorgante, nomeadamente: a) Não ser submetido a tratamento de suporte artificial das funções vitais; b) Não ser submetido a tratamento fútil, inútil ou desproporcionado no seu quadro clínico e de acordo com as boas práticas profissionais, nomeadamente no que concerne às medidas de suporte básico de vida e às medidas de alimentação e hidratação artificiais que apenas visem retardar o processo natural de morte; c) Receber os cuidados paliativos adequados ao respeito pelo seu direito a uma intervenção global no sofrimento determinado por doença grave ou irreversível, em fase avançada, incluindo uma terapêutica sintomática apropriada; d) Não ser submetido a tratamentos que se encontrem em fase experimental; e) Autorizar ou recusar a participação em programas de investigação científica ou ensaios clínicos (n.º 2).

- As directivas antecipadas de vontade são formalizadas através de documento escrito, assinado presencialmente perante funcionário devidamente habilitado do Registo Nacional do Testamento Vital ou notário (art.º 3º, n.º 1).

- Podem outorgar um documento de directivas antecipadas de vontade as pessoas que, cumulativamente: a) Sejam maiores de idade; b) Não estejam em situação de acompanhamento, caso a sentença que a haja decretado vede o exercício do direito pessoal de testar; c) Se encontrem capazes de dar o seu consentimento consciente, livre e esclarecido (art.º 4º, com a alteração introduzida na alínea b) pela Lei n.º 49/2018, de 14.8).

- A procuração de cuidados de saúde é o documento pelo qual se atribui a uma pessoa, voluntariamente e de forma gratuita, poderes representativos em matéria de cuidados de saúde, para que aquela os exerça no caso de o outorgante se encontrar incapaz de expressar de forma pessoal e autónoma a sua vontade (art.º 12º, n.º 1).

- A procuração de cuidados de saúde é livremente revogável pelo seu outorgante (art.º 14º, n.º 1) e extingue-se por renúncia do procurador (n.º 2); pode ser revogada por decisão do tribunal que instaure o acompanhamento de maior (n.º 3, na redacção conferida pela Lei n.º 49/2018, de 14.8).

            - É criado no ministério com a tutela da área da saúde o Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV), com a finalidade de recepcionar, registar, organizar e manter actualizada, quanto aos cidadãos nacionais, estrangeiros e apátridas residentes em Portugal, a informação e documentação relativas ao documento de directivas antecipadas de vontade e à procuração de cuidados de saúde (art.º 15º, n.º 1).

            - O médico responsável pela prestação de cuidados de saúde a pessoa incapaz de expressar de forma livre e autónoma a sua vontade, assegura da existência de documento de directivas antecipadas de vontade e ou procuração de cuidados de saúde registados no RENTEV (art.º 17º, n.º 1). Caso se verifique a sua existência, o documento de directivas antecipadas de vontade, e ou procuração de cuidados de saúde, são anexados ao processo clínico do outorgante (n.º 2).

8. Relativamente à problemática da legitimidade do requerente, afigura-se correcta a solução encontrada pela Mm.ª Juíza a quo.

            Na verdade, ressalvado o devido respeito, não faria o menor sentido notificar o requerente para “aperfeiçoar a petição inicial” segundo os requisitos do regime jurídico instituído pela Lei n.º 49/2018 (maxime, nova redacção do art.º 141º do CC), visando, designadamente, a junção aos autos do “documento comprovativo da autorização do beneficiário” (de todo impossível!) ou “requerer o seu suprimento”.

Porque os autos de interdição foram instaurados em 20.9.2018, os pressupostos e as condições da acção[8] existiam plenamente, considerado o regime legal então vigente, anterior à entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14.8, em 10.02.2019.

E o preceituado no art.º 26º da Lei n.º 49/2018 permite concluir que o respectivo quadro normativo é imediatamente aplicável aos processos de interdição e de inabilitação pendentes[9], devendo o juiz, ao abrigo dos poderes de gestão processual e adequação formal, proceder às adaptações necessárias (em função do respectivo estado processual).

Com um fim: a fixação do benefício do regime do maior acompanhado mais adequado a cada caso.[10]

O princípio da adequação formal encontra o seu actual fundamento legal no art.º 547º do CPC, que define que o juiz deve adoptar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo.

Aplicando-se a referida lei (49/2018, de 14.8) em processos pendentes, de harmonia com a regra da adequação formal, na situação em análise, não se impõe anular quaisquer dos actos praticados ou mandar observar requisitos adjectivos depois estabelecidos, de resto, devidamente observados a partir da sua vigência - além do mais, o requerente tinha legitimidade para instaurar a acção, independentemente do consentimento do requerido/beneficiário.

 Ademais, como se referiu, dado o estado de saúde do requerido/beneficiário, não vemos como seja possível obter o seu consentimento para o processo de acompanhamento, e é por demais evidente, que, ainda que se propendesse para um qualquer “renovar” das condições da acção, o tribunal sempre poderia/deveria determinar o respectivo suprimento (art.º 141º, n.º 2 do CC)[11].

Acresce que o próprio M.º Público/recorrente, em representação do requerido/beneficiário, veio a promover[12] que, «concatenado o teor do exame pericial com a audição do beneficiário, seja aplicada a medida de acompanhamento de representação geral»…[13]

Assim, nesta matéria, antolha-se que nada justifica “retroceder” (na tramitação dos autos) e mandar observar o que (já) se encontra devida e tempestivamente cumprido; qualquer novo acto que viesse a ser praticado envolveria, tão-somente, delonga e excesso (desnecessários e inúteis)!

9. Quanto ao preceituado no art.º 900º, n.º 3 do CPC e sua pretensa inobservância da sentença recorrida, afigura-se que também neste aspecto nenhuma razão assiste ao recorrente.

Por um lado, nada se refere nos autos (“não há conhecimento nos autos”) acerca da existência de testamento vital e de procuração para cuidados de saúde, pelo que a Mm.ª Juíza não tinha que se pronunciar sobre o que não existe ou indicia que exista, e só a sua comprovada existência importa a consequente menção, análise e pronúncia, nos termos legais, acautelando, se possível, o respeito pela vontade antecipadamente expressa pelo acompanhado (cf. o art.º 900º, n.º 3 do CPC e, v. g., o art.º 14º, n.º 3 da Lei n.º 25/2012, de 16.7, na redacção conferida pela Lei n.º 49/2018, de 14.8).

Por outro lado, o M.º Público, em representação do beneficiário, teve oportunidade de efectuar ou sugerir eventuais diligências no sentido de apurar da (eventual) existência de tais documentos/instrumentos, e não o fez (v. g., na sequência do despacho de 20.3.2019 e na promoção 08.4.2019), suscitando a questão, apenas, em sede de recurso.

Finalmente, atenta a factualidade dada como provada, dúvidas não restam de que é recomendável que [o requerido/beneficiário] continue a beneficiar de apoio e cuidados por parte de familiares e/ou instituições vocacionadas para o seguimento deste tipo de casos, bem como de um regular e adequado tratamento médico-neurológico (psicofarmacológico; paliativo), tendente a influenciar positivamente (e na medida do possível) o prognóstico (em todo o caso, reservado) do quadro clínico[14].

Acresce que, na hipótese (extrema) de existirem tais instrumentos (e, repete-se, nada indicia a sua existência…):

- a) A situação dos autos poderia porventura determinar a aplicação do disposto no citado art.º 14º, n.º 3 da Lei n.º 25/2012, de 16.7, tudo apontando no sentido de que têm vindo a ser prestados ao requerido/beneficiário os cuidados médicos reclamados pelo seu estado clínico (cf., v. g., II. 1. 12) e 15), supra);

- b) Os profissionais de medicina devem observar o preceituado no art.º 17º da mesma Lei;

- c) Tratando-se de um processo de jurisdição voluntária, o requerente, representado pelo M.º Público, se assim o entender, poderá/deverá promover as diligências tidas por convenientes (cf., designadamente, os art.ºs 891º, n.º 1; 986º, n.ºs 1 e 2; 987º e 988º, n.º 1[15] do CPC), faculdade que o trânsito em julgado da sentença jamais poderá afectar ou prejudicar...

 Por conseguinte, sem quebra do sempre devido respeito por entendimento contrário, nada será de apontar ao decidido, inclusive, no despacho de 27.5.2019 (aludido em II. 3., supra) - a sentença sob censura também não padece de vício susceptível de a ferir de nulidade (na previsão da 1ª parte da alínea d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC[16], conjugado com o disposto no n.º 2 do art.º 608º do mesmo Código).

10. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


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III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida, ainda que por diverso fundamento.

Sem custas.


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17.9.2019

Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

 Alberto Ruço


 




[1] Consta da 2ª parte da mesma promoção: “Já no que concerne às medidas de acompanhamento, promovo que, concatenado o teor do exame pericial com a audição do beneficiário, seja aplicada a medida de acompanhamento de representação geral – artigo 145º, n.º 2 alínea b) do Código Civil.”
[2] Cf. o ponto II. 2., infra.

[3] Na base de assentos de nascimento, declaração médica, recibo da Fundação (…) documento da C (…), audição pessoal e directa do beneficiário e relatório pericial.
[4] Como decorre do documento junto a fls. 6 do processo físico.
[5] Como resulta do relatório pericial psiquiátrico forense de 21.02.2019, junto aos autos.
[6] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[7] Existe lapso manifesto na indicação da alínea, tratando-se da alínea e).
[8] Vide Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 86.

[9] Sobre a aplicação da referida lei no tempo, cf. o acórdão da RC de 04.6.2019-processo 577/18.4T8CTB.C1 (subscrito pelos Exm.ºs Adjuntos), publicado no “site” da dgsi.
[10] Vide, a propósito, Cadernos do CEJ/Colecção Formação Contínua, O Novo Regime do Maior Acompanhado, designadamente o artigo subscrito pelo Desembargador Nuno Luís Lopes Ribeiro, pág. 105/http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf.
[11] Apresentando algumas reservas relativamente ao preceituado no actual art.º 141º do CC, cf. o Parecer do CSM sobre a proposta de Lei n.º 110/XIII/3.ª (GOV) relativa ao regime do maior acompanhado, em substituição dos institutos da interdição e da inabilitação, emitido em 04.3.2018 e remetido à Assembleia da República, ao Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
[12] Na sequência do despacho de 20.3.2019 e na plena observância dos princípios essenciais estruturantes do processo civil, nomeadamente o da igualdade das partes e o do contraditório.
[13] Cf. a “nota 1”, supra.
[14] Cf. o citado relatório pericial psiquiátrico forense de 21.02.2019.
Vide ainda, a propósito, nomeadamente, Principles and Practice of GERIATRIC PSYCHIATRICRY, Marc E. Agronin e Gabe J. Maletta, 2006, Lippincott Williams & Wilkins, Philadelphia, PA, USA, págs. 283 e seguintes.
[15] Normativo que reza o seguinte: “Nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso.”
[16] Que estabelece: “É nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”.