Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3658/09.1TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
INCUMPRIMENTO
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
Data do Acordão: 05/08/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA 1º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 610º E 612º DO CC
Sumário: I – Incumprido definitivamente o contrato-promessa de compra e venda por acto imputável à promitente-compradora, que alienou o objecto do negócio a terceiro, não obsta ao exercício da acção de impugnação pauliana o facto de o crédito das credoras não ser ainda exigível, nem líquido, por falta de resolução do contrato, o crédito que se traduziu no pagamento integral do preço do bem alienado;

II – Tendo a resolução eficácia retroactiva à celebração do contrato-promessa, assim se preenche o requisito da impugnação pauliana de anterioridade do crédito relativamente ao acto a impugnar;
III – Pedida incorrectamente a nulidade do acto em acção de impugnação pauliana, é lícito ao juiz convolar esse pedido para o de ineficácia do acto, o que deve fazer oficiosamente, de acordo com o AUJ n.º 3/01, de 23.1.01;
IV – Na acção de impugnação pauliana não pode ser pedido, nem decretado, o registo de cancelamento do registo predial da alienação.
Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

A... e B... propuseram, no 1.º Juízo Cível de Leiria, acção de impugnação pauliana sob a forma de processo ordinário contra “C... , Lda.” e D... formulando os seguintes pedidos:

a) - Nos termos do disposto no artigo 610º e seguintes do CPC ser declarada a nulidade da transmissão da propriedade do lote nº 10 celebrado por escritura de 17 de Fevereiro de 2005, no 1º Cartório Notarial de Tomar, pelo valor de € 36.500,00 entre os RR., ordenando-se o seu cancelamento no registo predial;

b) - Ser reconhecido o direito das AA. sobre o supra-aludido lote n.º 10 e prédios nele sitos, desonerado desses ónus, para satisfação integral dos seus créditos;

c) - Ser reconhecido o direito de as AA., sobre os mesmos bens, poderem praticar todos os actos de conservação da garantia patrimonial;

d) – Serem os RR. condenados nos pedidos deduzidos nesta acção e consequentemente a reconhecer o direito das AA., abstendo-se de praticar quaisquer actos que contendam com o objecto da acção;

Alegaram, para o efeito, em síntese, que:

- Celebraram com a “ C...” uma escritura pública de compra e venda, sendo que relativamente aos prédios identificados na mencionada escritura eram donas e legitimas proprietárias e a venda se destinava a uma operação de loteamento que a R. C...veio concretizar;

- Ao mesmo tempo foi celebrado entre as AA. e aquela R. o contrato-promessa de compra e venda junto relativamente a 3 lotes para construção urbana (8, 9 e 10);

- O contrato-promessa foi outorgado pelo sócio gerente com a intervenção do advogado da C..., Dr. D...;

- Para fazer face ao preço acordado pelos lotes supra-descritos entregaram as AA. aos RR. 2 cheques de 10 e 20 mil euros, respectivamente;

- Ulteriormente, o lote n.º 10, parte integrante dos 3 lotes vendidos às AA., foi vendido através do sócio gerente, por escritura do 1º Cartório Notarial de Tomar, pelo valor de € 36.500,00, ao R. D...;

- O R. D... era advogado da R. “ C...” pelo que resulta óbvio o necessário conhecimento de ambos os RR. do negócio celebrado anteriormente, ou seja, de que o mesmo havia sido objecto de contrato-promessa de 11 de Setembro de 2001 e pelo qual tinha sido efectivamente pago o respectivo preço acordado;

- Os RR. não podiam deixar de ter consciência desses factos (do negócio anterior) e da declaração de que a venda era de bem livre de ónus e encargos, sendo que ao efectuarem tal compra/venda agiram de má-fé e ilicitamente;

- O R. D... esteve presente na escritura de compra e venda acima referido e no acto de assinatura do contrato-promessa de compra e venda;

- As AA. entregaram os cheques para pagamento do negócio de promessa de compra e venda na presença do R. D...;

- Os RR. tiveram um claro propósito de defraudar os créditos das AA. e com aquele acto pretenderam subtrair o referido lote ao património das AA. e impedindo-as de obter a satisfação dos seus créditos;

- A R. “ C...” encontra-se em situação de precariedade e elevado risco de inexistência de património para saldar os seus compromissos;

- Os RR. tiveram a intenção dolosa de impedir a futura satisfação dos créditos e prejudicar as AA. e, assim, obter um enriquecimento;

Citados, a Ré editalmente, apenas o R. contestou, fundamentalmente alegando que, como advogado, patrocinou a Ré em vários processos judiciais, esteve presente no acto de outorga da escritura referida no art.º 1.º da petição inicial (p. i.), mas impugnou ter assistido à assinatura do contrato-promessa referido no art.º 3.º e quando foi confrontado e se apercebeu que o lote que havia adquirido da Ré (n.º 10) fora objecto de contrato-promessa de compra e venda celebrado pela mesma Ré com as AA. questionou o seu gerente, que lhe enviou um documento comprovativo de que as AA. haviam, entretanto, permutado o lote n.º 10 pelo lote n.º 46.

Mais alegou que à data em que a Ré lhe vendeu o lote a mesma tinha bens de valor muito superior ao alegado crédito dos AA., concretamente superior a € 1.500.000,00.

Concluiu pela improcedência da acção.

Houve lugar a resposta à matéria de excepção reportada à alegada permuta de lotes, cujo documento e assinaturas as AA. arguiram de falsidade.

Foi proferido despacho saneador-sentença que concluiu, por um lado, pela nulidade do processo, por ineptidão da p. i. por incompatibilidade de pedidos, na medida em que se pretendeu impugnar a venda de um bem pertença de um terceiro e ao mesmo tempo o reconhecimento do seu domínio sobre esse bem e, por outro lado e com base em falta dos requisitos da acção de impugnação pauliana, julgou improcedente a acção e absolveu os RR. dos pedidos.

Inconformadas, recorreram as AA. apresentando alegações que remataram com as seguintes conclusões:

1) A pedida anulação da escritura de compra e venda decorrente da nulidade da transmissão do lote nº 10, harmoniza-se, nos seus efeitos, com o reconhecimento do direito de as AA. praticarem ulteriormente actos conservatórios da tutela dos seus direitos sobre o lote nº 10;

2) Perante a situação crítica da “ C..., Lda.”, contra a qual correm execuções fiscais (Serviço de Finanças de Ourém, Serviço de Finanças de Marinha - Grande, Serviço de Finanças de Lisboa 4 e Serviço de Finanças de Coimbra), é perfeitamente compatível com o pedido da declaração de nulidade da transmissão do imóvel que as AA. pretendam requerer providências cautelares sobre o lote nº 10 após a reversão deste para o património da “ C...,Lda.”;

3) A concilibiabilidade dos pedidos afere-se através dos seus efeitos os quais, para valer em todos, têm de ser harmonizáveis entre si – art.º 470.º do C.P.C.;

4) No caso sub judice as A.A. pedem a declaração de nulidade da transmissão do imóvel, nomeadamente e além do mais para intentar, ulteriormente, a resolução do contrato-promessa com a devolução pela Ré (“ C..., Lda.”) do preço do lote nº 10 já pago – art.ºs 432.º e 801.º, n.º2, do C. Civil;

5) A celebração da escritura pública de compra e venda junta à p. i. (doc. nº 2) consubstancia uma situação de incumprimento contratual definitivo da R. “ C..., Lda.” do contrato - promessa celebrado com as AA.;

6) Tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro (art.º 801.º do C. Civil);

7) Assiste às AA. o direito de exigir da “ C..., Lda.” a restituição do preço do lote nº 10 que corresponde a 1/3 do valor de, ao tempo, 30.000.000$00 (30.000.000$00 : 3 = 10.000.000$00) ou, pelo menos, a restituição do valor do preço declarado na identificada escritura de compra e venda do montante de 36.500,00 Euros;

8) As AA. são titulares, além do mais, de um crédito pecuniário - porquanto pela sua natureza é convertível em obrigação pecuniária - referente às quantias atrás referidas reportadas ao preço do lote nº 10;

9) As AA. pagaram à “ C..., Lda.” em 11/Set. 2001, (por meio da entrega dos cheques nº 0861512751 do B.P.I., do valor de 10.000.000$00 e cheque nº 9351916759 do E..., com o valor de 20.000.000$00) a quantia de, ao tempo, 30.000.000$00;

10) As A.A. pagaram, assim, à Ré C..., Lda., em data muito anterior à celebração, em17/Fev./2005, da escritura pública de compra e venda junta aos presentes autos com a p. i. (doc. nº 2), a quantia de 30.000.000$00 atrás referida;

11) À data da celebração, em17/Fev./2005, dessa escritura pública de compra e venda, a “ C..., Lda.” já se encontrava numa situação de precariedade e elevado risco de inexistência de património para saldar os seus compromissos (como se veio a revelar pelas execuções fiscais contra ela intentadas - v. anúncio de citação de credores desconhecidos - doc. nº 7 da p. i.;

12) Da celebração da escritura de compra e venda de 17/Fev./2005 resulta a impossibilidade ou o agravamento da impossibilidade da satisfação do crédito das AA. atrás aludido (conclusão nº 8);

13) Os RR. (ora recorridos) agiram de má-fé (v. art.ºs 14.º a 27.º e 31.º a 36.º da p. i.), circunstância que preenche o requisito da má fé previsto no art.º 612.º do C. Civil;

14) Da p. i. constam abundantes factos que preenchem os requisitos gerais da impugnação pauliana consignados nas alíneas a) e b) do art.º 610.º do C. Civil;

15) Consta da p. i. que:

a) As A.A. pagaram à C..., Lda. em 11/Set./2001, a quantia da celebração do contrato-promessa (doc. nº 3 da p. i.) trinta milhões de escudos, pela compra dos lotes nº 8, 9 e 10;

b) A escritura de compra e venda do lote nº 10, foi celebrada entre os R.R. em 17/Fev. /2005;

c) A compra e venda atrás referida foi realizada dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito das AA. à devolução do preço do lote nº 10 por elas pago à “ C..., Lda.”;

d) Da escritura pública de compra e venda do lote nº 10 de 17/Fev./2005 celebrada entre os RR. resulta a impossibilidade prática para as AA., ora recorrentes, de obter a satisfação integral do seu crédito e (ou) o agravamento dessa impossibilidade;

16) Da p. i. constam factos que bem revelam a existência de um acordo simulatório entre os RR. (v. art.ºs 31.º, 32.º e 33.º da p. i);

17) O R. comprador nada pagou à R. vendedora, sendo inverídica a declaração, segundo a qual a “ C..., Lda.”, recebeu do comprador o preço de trinta e seis mil e quinhentos euros,

18) O que bem revela a existência do acordo simulatório;

19) As A.A. alegaram na p. i. factos que consubstanciam uma divergência entre a declaração negocial plasmada na escritura de 17/Fev./ 2005 e a vontade real dos declarantes cujo negócio, está, assim, ferido de nulidade, conforme dispõe o art.º 240.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil;

20) Os factos alegados pelas AA. na p. i., na sua globalidade e no contexto concreto dos art.ºs 5.º, 6.º, 9.º a 41.º desse articulado, consubstanciam uma situação que excede claramente os limites das regras morais aceites pela consciência social portuguesa subjacentes aos bons costumes, tal como eles são entendidos pela generalidade do cidadão comum do nosso país;

21) É ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito (vid. art.º 334.º do C. Civil);

22) Quem negociar com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares, como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé (v. n.º 1 do art.º 227.º do C. Civil);

23) No cumprimento da obrigação, assim, como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé (v. art.º 280.º, n.º 2, do C. Civil);

24) É neste sentido que a “boa fé” nos aparece referida no instituto da impugnação pauliana, à qual se reportam os art.ºs 610.º e 612.º do C. Civil;

25) A sentença recorrida, dando como deu, prevalência à decisão de forma sobre a decisão de fundo violou o princípio constitucional da tutela judicial efectiva consagrado no art.º 20.º da C.R.P;

26) Decidindo como decidiu, o “tribunal a quo” violou os art.ºs 31.º e 470.º do C.P.C. e os art.ºs 227.º, nº 1, 240.º, n.ºs 1 e 2, 280.º, nº 2, 334.º, 371.º, n.º 1, 432.º, 610.º, 612.º; 762.º, nº 2 e 801.º, nº 2, do Código Civil e art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa, pelo que deve ser dado provimento ao recurso, nomeadamente ordenando-se o prosseguimento dos autos.

Houve lugar a resposta do R. no sentido da manutenção da decisão recorrida.

Dispensados os vistos, cumpre decidir, sendo que são questões a apreciar:

a) – Qual a causa de pedir da acção;

b) – Se há incompatibilidade de pedidos ou qualquer outro vício ou irregularidade;

c) – Se o processo dispõe de todos os elementos para ser decidido, como foi, no despacho saneador;

d) – Se há violação das normas legais ou inconstitucionais invocadas.


*

            2. Fundamentação

            A factualidade relevante a ter em conta no julgamento do recurso é a que consta do antecedente relatório, para onde se remete.

            Quanto ao direito e à apreciação daquelas questões começar-se-á por dizer que a petição inicial não prima pelo rigor, não podendo dizer-se, salvo o muito devido respeito, tratar-se de uma peça modelar.

            Embora começasse por dizer propor-se acção nos termos do art.º 610.º do CC, ou seja, uma acção de impugnação pauliana, nela se misturaram outras causas de pedir (como o enriquecimento sem causa ou o abuso de direito, a que serodiamente havia de acrescer, nas alegações, a simulação).

            Desde já se adiante que à excepção da 1.ª (impugnação pauliana) onde se descortinam os requisitos de facto (e de direito) mínimos, as demais carecem em absoluto de factualidade relevante e concreta e poderiam incorrer, até, em incompatibilidade entre elas.

            Também os pedidos não primam pela clareza, embora, como iremos ver, não comunguemos da decisão recorrida que os teve como incompatíveis entre si.

            De acordo com o disposto nos art.ºs 610.º e 612.º do CC são requisitos da acção de impugnação pauliana (art.ºs 610.º e 612.º, do CC):

a) – A existência de um crédito;

b) – A prática pelo devedor de um acto que não seja de natureza pessoal que provoque no credor um prejuízo traduzido na impossibilidade de obtenção da satisfação integral do seu crédito ou agravamento dessa possibilidade;

c) – A anterioridade do crédito relativamente ao acto ou, se posterior, ter sido o acto dolosamente praticado com finalidade de impedir a satisfação do direito do futuro credor;

d) – Que o acto seja de carácter gratuito ou, se oneroso, que o devedor e 3.º tenham agido de má fé.

            Será que tais requisitos se revêem na factualidade vertida na p. i.?

            Desde logo, quanto à existência de um crédito por parte das AA., em causa está a importância de € 150.000,00 paga pelo preço da promessa de compra e venda (sem eficácia real) de 3 lotes quando, relativamente a um deles (n.º 10), a promitente vendedora o alienou a terceiro (Réu), entendendo, assim, as AA. (ainda que só agora, nas alegações) que o seu preço proporcional é de € 50.000,00 ou, então, de € 36.500,00, preço por que foi alienado.

            Trata-se de um crédito manifestamente pecuniário, na medida em que se trata do preço adiantado pelas AA. promitentes-compradoras e porque se presume a sua natureza de sinal (art.º 441.º do CC) e porque (excluindo-se aqui a hipótese da permuta entre os lotes que o Réu refere na sua contestação) o cumprimento do contrato-promessa se tornou impossível por acto imputável à Ré promitente-vendedora, gerando-se, assim, o seu incumprimento definitivo, nos termos do art.º 801.º do CC o credor tem o direito a resolver o contrato, bem como à restituição da sua prestação por inteiro e em dobro, nos termos do n.º 2 do art.º 442.º do CC.

            De acordo com o disposto no art.º 614.º do CC não obsta ao exercício da impugnação o facto de o direito do credor não ser ainda exigível e, por maioria de razão e como referem Pires de Lima e Antunes Varela[1], pode também servir de base à impugnação um crédito ilíquido.

            Ora, transpondo este quadro legal para a matéria articulada (que não ainda provada) poder-se-á dizer que por falta de resolução do contrato-promessa (poderá sustentar-se que a própria acção poderia cumprir tal função) o crédito não é ainda exigível nem líquido, na medida em que o preço pago englobou outros 2 lotes, podendo até o n.º 10 aqui em causa ter valor diverso dos restantes.

            Todavia, tal circunstancialismo, nos termos legais não obsta ao exercício da impugnação e, daí, prima facie, se possa ter por verificado o crédito e preenchido o correspondente requisito da impugnação.

Quanto ao 2.º requisito (impossibilidade para o credor de obter satisfação integral do seu crédito ou agravamento dessa impossibilidade) trata-se de presunção favorável às AA. enquanto credoras e que aos RR. compete ilidir (art.º 611.º do CC), mormente a partir da matéria que o Réu alegou na contestação (art.ºs 28.º a 31.º).

Quanto ao 3.º, da anterioridade do crédito, porque a resolução a operar confere ao crédito eficácia retroactiva (art.º 434.º, n.º 1, do CC), a mesma poderá reportar o seu vencimento à data do pagamento, ou seja, da celebração do contrato-promessa em 11.8.01, anterior ao acto impugnado (17.2.05).

Quanto ao 4.º pressuposto (carácter oneroso do acto e má fé dos RR.) é manifesto (art.ºs 13.º da p. i. e 16.º da contestação) que a alienação integra uma dação em cumprimento (datio in solutum) permitida pelo art.º 837.º e que é manifestamente um negócio oneroso e, quanto à má fé, foi alegada matéria bastante na p. i.

Conclui-se, assim, que a p. i., contestação e resposta a esta, contêm factualidade que num mínimo é susceptível de permitir o julgamento do mérito da causa.

Quanto à questão dos pedidos e sua harmonização ou incompatibilidade, as AA. tratam a acção de impugnação como se se tratasse de uma acção anulatória, como assim já foi concebida no nosso antigo direito.

A acção de impugnação pauliana deixou de ter, com o CC de 1966, a aparência de uma verdadeira acção anulatória, sendo-lhe atribuído um carácter pessoal, aproveitando apenas ao credor que a tenha requerido, a quem são conferidos 3 direitos: à restituição na medida do interesse do credor, de praticar os actos de conservação da garantia patrimonial e de execução no património do obrigado à restituição. Converteu-se, assim, a antiga anulação em verdadeira ineficácia do acto em relação ao credor impugnante, pelo que a atitude correcta do credor que faz uso da impugnação pauliana é deduzir o pedido de declaração de ineficácia do acto e não de anulação ou nulidade. Sendo pedida a nulidade é, contudo, lícito ao juiz corrigir esse erro, sem ofensa do princípio dispositivo tal como o disposto no art.º 664.º do CPC.

Deve, aliás, fazê-lo oficiosamente, de acordo com a doutrina, que se impõe seguir, do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) n.º 2/01, de 23.1.01 (DR, I-A, de 9.2.01).

Mais se entendeu nesse douto aresto, que subscrevemos, que na acção onde se exerce a impugnação, porque não se visa a extinção de direitos de propriedade que o adquirente tenha obtido pelo acto impugnado, mas a possibilidade de o credor executar os bens do património do obrigado à restituição, não há lugar ao cancelamento de qualquer registo, pelo que o mesmo não tem que ser pedido, nem pode ser decretado.

Assim sendo, quanto ao pedido da alín. a), desde já se corrige o vício do pedido de nulidade para ”ineficácia” e se rejeita o pedido de cancelamento do registo predial e se admite o das alín.s c) e e), rejeitando-se ainda os da alín.s b), por incompatibilidade com a causa pedir (impugnação e ineficácia do acto na medida do interesse do credor) e d), por conclusivo e tautológico.

Finalmente, porque o mérito da causa não podia ter sido conhecido no despacho saneador, importa revogar o saneador-sentença para prosseguir com a selecção dos pertinentes factos controvertidos, no quadro legal acima enunciado, seja da p. i., da contestação ou da resposta a esta, com organização da base instrutória, além do mais se considerando que a Ré foi citada editalmente e se encontra em situação de revelia absoluta (art.º 485.º, alín. b) do CPC).


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            3. Sumariando (n.º 7 do art.º 713.º do CPC)

            I – Incumprido definitivamente o contrato-promessa de compra e venda por acto imputável à promitente-compradora, que alienou o objecto do negócio a terceiro, não obsta ao exercício da acção de impugnação pauliana o facto de o crédito das credoras não ser ainda exigível, nem líquido, por falta de resolução do contrato, o crédito que se traduziu no pagamento integral do preço do bem alienado;

            II – Tendo a resolução eficácia retroactiva à celebração do contrato-promessa, assim se preenche o requisito da impugnação pauliana de anterioridade do crédito relativamente ao acto a impugnar;

            III – Pedida incorrectamente a nulidade do acto em acção de impugnação pauliana, é lícito ao juiz convolar esse pedido para o de ineficácia do acto, o que deve fazer oficiosamente, de acordo com o AUJ n.º 3/01, de 23.1.01;

            IV – Na acção de impugnação pauliana não pode ser pedido, nem decretado, o registo de cancelamento do registo predial da alienação.


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            4. Decisão

            Face ao exposto, na procedência da apelação, nos termos que se assinalaram, acordam em revogar a decisão recorrida e determinar que os autos prossigam com a selecção da matéria de facto pertinente e correspondente organização da base instrutória, com vista à posterior audiência de discussão e julgamento.

            Custas pelos recorridos.


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Francisco Caetano (Relator)

António Magalhães

Ferreira Lopes


[1] “Código Civil, Anot.”, I, pág. 631.