Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
100/18.0T8SEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PER
PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO
PEAP
PLANO
HOMOLOGAÇÃO
DIREITO DE VOTO
Data do Acordão: 12/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - SEIA - JUÍZO C. GENÉRICA - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS17-F, 215, 212 CIRE, DL Nº 26/2015 DE 6/2
Sumário: Ao Processo Especial de Revitalização ( PER) e ao Processo Especial para Acordo de Pagamento ( PEAP) é aplicável o que consta do art. 212.º/2/a) do CIRE, significando que não conferem direito de voto os créditos que não foram modificados pelo Plano ou pelo Acordo.
Decisão Texto Integral:






Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

“C (…), SA.”, com os sinais dos autos, veio requerer processo especial de revitalização.

Nomeado administrador judicial provisório, cumprida a demais tramitação e concluídas as negociações, veio a ser aprovado por credores representativos das maiorias legalmente exigidas plano de recuperação conducente à sua revitalização; tendo votado contra o B (…) , o S (…)  a C (…) a I (…) e a L (…), todos identificados nos autos.

Após o que a C (...) veio requerer a não homologação do Plano, por o mesmo violar o princípio da igualdade dos credores e por proporcionar a um credor (à C (…) CRL) um valor superior ao montante do seu crédito.

Tendo-se, em resposta, o A.J.P. e a devedora pronunciado pela homologação do Plano.

Remetido o plano de recuperação aprovado ao tribunal, este, conclusos os autos, proferiu decisão a não homologar tal plano de recuperação (que previa a revitalização da devedora através da reestruturação do passivo – moratória, modificação dos prazos de vencimento e redução dos juros).


*

Inconformada com tal decisão de recusa de homologação, veio a devedora “C (…), SA.” interpor recurso, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que homologue o plano de recuperação aprovado.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

(…)

Não foi apresentada qualquer resposta.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II – Fundamentação de Facto

A) A “C (…), SA.” foi constituída em 23/02/1977, tendo como objecto social a indústria de curtimenta e acabamento de couros e peles.

B) Ascendendo – segundo a proposta do plano de recuperação apresentado pela devedora/requerente – o seu capital próprio, no final de 2017, a € 1.647.858,13; e o passivo, na mesma data, a € 3.089.990,27 (sendo € 1.137.715,40 de financiamentos).

C) O plano de recuperação proposto pela devedora/requerente foi o seguinte:

“ (…)

3.1.1 - Os credores do processo especial de revitalização registarão as seguintes alterações:

1 – ESTADO – Fazenda Pública

Plano de Regularização:

1.1.- Pagamento da totalidade da dívida em regime prestacional, até 36 prestações mensais, iguais e sucessivas, nos termos e com os fundamentos previstos no artigo 196º nº 6 do CPPT, por se considerar demonstrada “…a indispensabilidade da medida e, ainda, (…) os riscos inerentes à recuperação dos créditos (…)”, vencendo-se a primeira prestação até ao final do mês seguinte ao terminus do prazo previsto no nº 5 do artigo 17º - D do CIRE.

1.2- A redução dos créditos fiscais só se dará, por juros de mora vencidos e vincendos, nos termos do DL 73/99 de 16/03, aceitando-se as taxas praticadas para os créditos da Segurança Social, face à renúncia dos demais credores e às garantias constituídas e/ou a constituir;

1.3- Neste sentido, a taxa de juros vincendos a aplicar será a que for aceite pela Fazenda Nacional;

1.4- Não haverá lugar à redução de coimas e custas;

1.5 – Não haverá lugar a qualquer moratória;

1.6- Requer-se a dispensa da obrigação de substituição da gerência dado que a sua manutenção em funções é vital para assegurar a credibilidade da presente recuperação, mormente e no que tange ao relacionamento com fornecedores e clientes, nos termos do nº 3 al. a) do artigo 196º do CPPT.

1.7- A revitalizanda fará demonstração do pagamento integral de todas as obrigações fiscais, após o despacho a que se refere o artigo 17º-C, nº 3, a).

1.8- Assim, considera-se notificada a Administração Fiscal do requerimento a que alude o artigo 196º, n.º 1 do CPPT.

1.9 – Para os efeitos previstos no nº 1 do artigo 17º E do CIRE, determina-se nos termos da sua parte final, que a extinção dos processos fiscais só se dará nos termos do Código de Procedimento e Processo Tributário. A suspensão prevista neste normativo cessa, conforme o que ocorrer primeiro, com o decurso das negociações ou do prazo previsto na lei para conclusão das mesmas (nº 5 do artigo 17º-D do CIRE).

1.10 - Dispensa de prestação garantia de acordo com o disposto no artigo 199º nº 13 do CPPT.

2 – ESTADO - Segurança Social

Plano de Regularização:

Toda a dívida á Segurança Social deve ser enquadrada em sede de processo executivo através de plano de pagamento em 150 prestações.

O pedido deve ser formalizado Junto da secção de Processo competente, vencendo-se a primeira prestação no último dia útil do mês seguinte ao do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de pagamentos.

Garantias: dispensa da constituição de garantias adicionais nos termos do art.º 199º nº 13 do CPPT.

3 - Pessoal

Créditos Privilegiados

Plano de Regularização:

Pagamento da totalidade da dívida em 96 prestações mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira no último dia útil do mês seguinte ao do trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Recuperação.

Créditos Privilegiados (Sob Condição)

Plano de Regularização:

Aos créditos cuja condição se verificou na pendência do processo ou venha a verificar, a administração da devedora propõe proceder ao seu pagamento nos mesmos e exatos termos em que fica estabelecido para os créditos do mesmo tipo e natureza, já verificados sem condição, aproveitando o prazo remanescente à referida verificação da condição.

4- Fornecedores, Banca e Outros Credores:

Créditos Comuns

Plano de regularização:

- Os juros vencidos, comissões e despesas vencidas desde a reclamação de créditos até à data de trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de recuperação, calculados às taxas contratualizadas, serão capitalizados naquela data;

- Os juros vincendos a partir da data de trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de recuperação serão pagos mensalmente à taxa Euribor a 12 meses acrescida de um spread de 1.5% nos primeiros 24 meses e 2% nos meses seguintes, vencendo-se a primeira prestação no último dia útil do mês seguinte ao do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de recuperação;

- Carência de capital nos 12 meses seguintes à data do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de recuperação;

- Pagamento da totalidade da dívida, sendo que 75% da dívida será amortizada em 120 prestações mensais e sucessivas de capital e juros vencendo-se a primeira no último dia útil do mês seguinte ao do término do período de carência supra proposto, e os restantes 25% serão pagos no mês seguinte numa prestação bullet.

- A taxa de juro não pode ser inferior ao respetivo spread aplicável. Por conseguinte, sempre que das regras aplicáveis à determinação da taxa de juro resulte um valor inferior ao valor do spread, deverá ser considerada uma taxa de juro igual ao spread aplicável.

Créditos Sob Condição

Plano de Regularização:

Aos créditos cuja condição se verificou na pendência do processo ou venha a verificar, a administração da devedora propõe proceder ao seu pagamento nos mesmos e exatos termos em que fica estabelecido para os créditos do mesmo tipo e natureza, já verificados sem condição, aproveitando o prazo remanescente à referida verificação da condição.

5 - Financiamento Obtidos

5.1 - Créditos Garantidos – C (…), CRL

Plano de Regularização:

- Dação em pagamento do imóvel descrito na Conservatória de Registo Predial de (...) sob o nº 11(...) - x(...) e inscrito na matriz da UF de x(...) e y(...) sob os artigos 22(...) e 33(...) (anteriores artigos 44(...) e 55(...) da freguesia de x(...) ), e do imóvel descrito na Conservatória de Registo Predial de (...) sob o nº 66(...) - x(...) e inscrito na matriz da UF de x(...) e y(...) sob o artigo R 77(...) (anterior artigo 88(...) da freguesia de x(...) ), para regularização da totalidade da divida.

5.2 - Créditos Garantidos – B (…)

Plano de regularização: O depósito nº (...) no valor de 50.000,00€ de que é titular a Devedora no B (…) sobre o qual foi constituído um penhor a favor desta Instituição Bancária, será utilizado para pagamento integral deste crédito garantido, na data do trânsito em julgado da sentença que homologar o presente plano de recuperação.

5.3 - Créditos Garantidos N (…), S.A.

Plano de regularização: Os créditos reclamados pela N (…), S.A. garantidos pelo penhor de duas mil duzentas e cinquenta acções do capital da própria credora e detidas pela Devedora, serão a esta credora entregues na data do trânsito em julgado da sentença que homologar o presente plano de recuperação, para amortização do mesmo valor em divida de tais créditos garantidos.

Créditos Garantidos Sob Condição

Plano de Regularização: Aos créditos cuja condição se verificou na pendência do processo ou venha a verificar, a administração da devedora propõe proceder ao seu pagamento nos mesmos e exatos termos em que fica estabelecido para os créditos do mesmo tipo e natureza, já verificados sem condição, aproveitando o prazo remanescente à referida verificação da condição.

6 – Acionistas/Sócios

Plano de Regularização:

Pagamento da totalidade da dívida nas mesmas condições supra mencionadas para os credores comuns, vencendo-se a primeira prestação no ano seguinte àquele em que se verificar o pagamento da última prestação aos restantes credores.

7 - Manutenção das garantias existentes

As garantias existentes mantêm-se sem qualquer alteração. Caso o plano seja aprovado, tal não constitui novação da dívida mantendo-se as garantias nos exatos termos inicialmente prestados.

8 - Distribuição de resultados

Durante a vigência do Plano de Recuperação, não será efetuada qualquer distribuição de resultados aos sócios da devedora.

9 - Cláusula salvo regresso de melhor fortuna

O Plano de Recuperação fica subordinado à cláusula salvo regresso de melhor fortuna à devedora, que produz efeitos durante o período da sua vigência, nos termos em que, se e quando, a sua situação económico-financeira melhorar (o que será verificável pela regular informação contabilística) permitindo a libertação de meios, que, para além das prestações do Plano, lhe possibilite efetuar pagamentos aos credores sem comprometer o seu regular funcionamento, a devedora compromete-se a, de forma rateada, a efectuar reembolsos, totais ou parciais, da dívida.

 (…)”

D) A lista definitiva de créditos (muitos deles sob condição) ascende, de acordo com a “contagem de votos”, a € 4.196.708,59.

E) Consta da acta da “diligência para contagem de votos”:

“ (…)

d) o quórum deliberativo encontra-se reunido, nos termos do disposto no n.º 5/a) do art. 17.º-F do CIRE, constituindo mais de um terço do total dos créditos com direito de voto: total dos créditos com votos emitidos/total dos créditos (€ 3.665.412,76 : € 3.988.191,99 = 91,91%)

e) estando reunidos mais de 2/3 da totalidade dos votos emitidos em sentido favorável: 80,08%[1]

f) e mais de metade dos votos emitidos, em sentido favorável, correspondentes a créditos não subordinados: 73,70%.

O Plano de recuperação apresentado é, com os considerandos expressos aprovado.

 (…)”

F) Os créditos subordinados somam o valor global de € 889.185,41

G) Da lista definitiva de créditos, entre muitos outros, constam:

Do Instituto de Segurança Social: o crédito global de € 31.474,66.

Da Fazenda Nacional: o crédito global de € 4.050,13.

Da C (…), CRL: o crédito global de € 686.976,39, estando o valor de € 491.447,75 garantido por hipoteca (sobre os imóveis que, segundo o Plano, lhe irão ser dados em pagamento para a regularização da totalidade da dívida) e revestindo o valor restante, no montante de € 195.528,64, natureza comum.

H) O Plano apresentado estima que os imóveis – que, segundo o Plano, irão ser dados em pagamento à C (…), CRL para a regularização da totalidade da dívida – têm o valor global de € 941.165,00.

I) O Instituto de Segurança Social, a Fazenda Nacional e a C (…) CRL votaram favoravelmente e os seus votos foram considerados na contagem de votos.


*

III – Fundamentação de Direito

No centro da decisão sob recurso (e da prévia solicitação nesse sentido, nos termos dos art. 215.º e 216.º do CIRE, por parte da C (…)), de recusa de homologação do Plano, está o ponto 5.1. do Plano (transcrito em C), segundo o qual a credora C (…) CRL, fica regularizada da totalidade do seu crédito contra a entrega – dação em pagamento – de vários imóveis (os prédios onde a devedora desenvolve a sua actividade industrial); sendo que, conforme também consta dos factos (alíneas G) e H)), do seu crédito global de € 686.976,39 (que fica integralmente regularizados), apenas o valor de € 491.447,75 estava garantido por hipoteca sobre tais imóveis (tendo o restante crédito, no montante de € 195.528,64, natureza comum), estimando o Plano (noutro passo do seu texto) que os imóveis que, segundo o mesmo, irão ser dados em pagamento à CCAMSE, para a integral regularização da totalidade da dívida, têm o valor global de € 941.165,00.

Em face disto (de tal tratamento dado pelo Plano ao crédito da C (…)), considerou-se, na decisão sob recurso, que o Plano favorece, sem razões objectivas, o crédito comum da C (…) o que viola o princípio da igualdade dos credores consagrado no artigo 194.º do CIRE; para além da situação ser também enquadrável na previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 216.º do CIRE, uma vez que “o plano proporciona [à C (…)] um valor económico superior ao montante dos seus créditos”.

Contrapõe a devedora/recorrente, em resumo, que a dação proposta é efectuada por um valor totalmente justo e equilibrado “até pelo facto da recorrente se ir manter como sua inquilina, podendo assim manter a sua actividade industrial”; e que “a solução preconizada com a credora hipotecária é a única que permite a viabilização da recorrente, pelo que vai de encontro à finalidade do próprio processo especial de revitalização ínsita no artigo 17º A nº 1 do CIRE, a qual reside na conclusão de um acordo conducente à sua revitalização.

Assim, segundo a devedora/recorrente, o Plano de recuperação devia ter sido homologado por o mesmo não violar o princípio da igualdade (art. 194.º do CIRE), interpretado de forma “abrangente, ponderada e equilibrada”, única interpretação “consentânea com a realidade da economia portuguesa e com os verdadeiros princípios que nortearam a criação do processo especial de revitalização ou seja, a efectiva recuperação da empresa”; e por não se verificar a previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 216.º do CIRE.

O centro do objecto do recurso é pois a interpretação/aplicação prática do princípio da igualdade, porém, uma vez que a decisão de homologação (ou não homologação, como é o caso) deve começar por escrutinar se o Plano foi ou não devidamente aprovado, não será despiciendo começar por referir que, embora o Plano se deva considerar devidamente aprovado, o que que consta da acta da “diligência para contagem de votos”, transcrito em E), não está correcto.

Efectivamente, é aplicável, ao PER, o que consta do art. 212.º/2/a) do CIRE, o que significa que não conferem direito de voto os créditos que não sejam modificados pelo acordo, ou seja, a C (…), o Estado (Finanças) e o Instituto da Segurança Social – que não vêem os seus créditos modificados pelo Plano – não tinham, no caso, direito de voto.

Expliquemo-nos[2]:

No âmbito do PER, discutiu-se o sentido a dar à remissão que o então art. 17.º-F/3 do CIRE (na redacção anterior ao DL 26/2015[3]) fazia para o 212.º do CIRE.

Argumentava-se que, se o art. 17.º-F/3 remetia para o art. 212.º/1, não fazendo qualquer alusão ao nº 2 do mesmo artigo[4], então os créditos que não fossem modificados pela parte dispositiva do plano não estariam inibidos do direito de voto.

Argumento este, formal/literal, que acabou por ceder perante o atinente argumento racional, ou seja, o de o art. 212.º/1 do CIRE só ser inteiramente inteligível se associado com o seu n.º 2, podendo/devendo dizer-se que a remissão para o art. 212.º/1 contém implícita a remissão para o seu n.º 2 (sendo deste que resulta, por exclusão de partes, quais são os créditos com direito de voto[5])[6]; por outro lado – acrescentava-se ainda – nos termos do art. 17.º-F/5 (hoje 17.º-F/7), o juiz aplica “com as necessárias adaptações as regras previstas no título IX”, em que se incluem as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência, as quais se iniciam no art. 209.º e vão até ao art. 216.º do CIRE.

Em resumo, a remissão do então art. 17.º-F/3 do CIRE (na redacção anterior ao DL 26/2015) significava que os créditos que não fossem modificados pela parte dispositiva do plano não conferiam direito de voto; interpretação essa que a redacção que o DL 26/2015 trouxe ao “novo” art. 17.º-F/3/a) (hoje 17.º-F/5/a)) confirmou[7], na medida em que a explícita referência aos créditos relacionados com direito a voto incute, fora de toda a dúvida, que será aplicável o disposto no art. 212.º/2 do CIRE[8].

Enfim, como refere Catarina Serra[9], “atendendo àquilo que [o art. 212.º/2/a) do CIRE] visa, justamente, evitar, ou seja, que o plano de insolvência seja imposto aos credores afectados por aqueles que o não são, é aconselhável, por igualdade de razões, que ela se aplique ao PER. Tem sido esta, aliás, a posição da maioria esmagadora da jurisprudência portuguesa (…)”.

E esta “mesmíssima igualdade de razões” que também se verifica em relação ao PEAP.

Também no PEAP o art. 222.º-F/5 manda, a propósito da decisão de homologar ou não homologar o acordo de pagamento, aplicar “(…), com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX”, em que, repete-se, se incluem as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência, as quais se iniciam no art. 209.º e vão até ao art. 216.º do CIRE.

Também no PEAP há que evitar que o acordo de pagamento seja imposto aos credores afectados por aqueles que não são afectados.

É pois a nosso ver indiscutível o que começámos por referir, ou seja, que ao PER e ao PEAP é aplicável o que consta do art. 212.º/2/a) do CIRE, o que significa que não conferem direito de voto os créditos que não foram modificados pelo Plano ou pelo Acordo, isto é, revertendo ao caso sob recurso, que a C (…), o Estado (Finanças) e o Instituto da Segurança Social – que não viram os seus créditos modificados pelo Plano – não tinham, no caso, direito de voto.

Efectivamente, como consta da alínea C) dos factos, em relação à C (…), o Plano prevê a liquidação integral do seu crédito; em relação ao Estado, o Plano prevê a liquidação da dívida existente, na presente data, nas condições dos diplomas legais que estabelecem o seu pagamento em prestações; e, em relação ao Instituto de segurança Social, diz-se que será enquadrada em sede de processo executivo através de plano de pagamento em 150 prestações.

Não tinham pois tais 3 credores direito de voto, não podendo assim tais credores impor (votando favoravelmente) aos outros credores, afectados[10], um Plano em que eles não são afectados, por outras palavras, era a partir de votos dos restantes credores que teriam que ser encontrados/computados o “mínimo de participação” e, depois, o “mínimo de votos favoráveis” (de que falam as alíneas a) e b) do n.º 5 do art. 17.º-F do CIRE[11])[12].

Em todo o caso, não estando correctas as percentagens que constam da acta (transcrita em E)) da “diligência para contagem de votos” – uma vez que foram computados, para o “mínimo de participação” e, depois, para o “mínimo de votos favoráveis”, os “votos favoráveis” dos 3 referidos credores – a verdade é que, descontando tais votos (indevidamente considerados), ainda assim, foi ultrapassado o mínimo de participação de 1/3 e o mínimo de votos favoráveis de 2/3, sendo que mais de metade dos votos emitidos corresponderam a créditos não subordinados[13].

Concluindo pois, tendo presente as regras vigentes para poder ser considerado como aprovado (constantes dos referidos art. 17.º-F/5 e 212.º/2, ambos do CIRE), foi o Plano devidamente aprovado (embora com percentagens inferiores às constantes da acta referida em E)) e, sendo assim, podemos passar ao fundamento invocado para a não homologação na decisão sob recurso e consistente essencialmente na violação do princípio da igualdade.

É sabido que toda a disciplina da insolvência e da recuperação de empresas têm como um dos princípios fundamentais o princípio par conditio creditorum ou da igualdade dos credores; e que, em função disso, o plano de insolvência, o plano de recuperação/revitalização e o acordo de pagamento devem obedecer ao princípio da igualdade, “sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas” (como se refere no art. 194.º do CIRE, sobre o princípio da igualdade).

Princípio da igualdade – é também sabido – que tem uma dimensão material, o que significa que devem ser tratadas igualmente situações iguais e distintamente situações distintas, sendo que, perante situações distintas, o tratamento distinto pode estar em conformidade com o princípio da igualdade ou ser uma desigualdade justificada.

Assim, haverá casos em que as discriminações contidas no acordo de pagamento podem ser consideradas justificadas com base numa leitura material do princípio da igualdade; como também haverá casos em que uma diferença ostensiva de tratamento dos créditos configura uma violação não negligenciável, logo, fundamento para a recusa de homologação do acordo de pagamento.

Nesta linha de raciocínio, a devedora/recorrente procura justificar a diferença de tratamento dada à C (…) com o facto da dação em pagamento ser uma “operação para além de extremamente benéfica, imprescindível para a recorrente porquanto, não só fica com um crédito imediatamente pago do valor de € 686.976,39, como ainda consegue manter a sua actual actividade industrial nesses mesmos prédios através da celebração de um contrato de arrendamento[14]; desvalorizando os cerca de € 255.000,00, em que o valor estimado dos bens ultrapassa o crédito global da C (…), por os € 941.165,00 estimados para os bens ser um valor que apenas “poderia resultar numa venda a ocorrer em situações ideais de mercado, sendo a realidade outra.

Trata-se, a nosso ver, de argumentação que, no essencial, assenta em hipóteses e não em factos palpáveis e que decorram dos autos.

Sendo o Plano, subscrito pela própria devedora, a estimar o valor dos bens em € 941.165,00, vir dizer agora que o seu valor de mercado é inferior não passa duma hipótese e duma hipótese que, além do mais, vai ao arrepio do que a própria devedora antes declarou, ou seja, duma hipótese sem assento nos autos.

Identicamente quanto ao arrendamento, cujos termos – em modo de contrato-promessa – não constam sequer do Plano, ou seja, não passa duma hipótese, não se podendo assim afirmar/concluir, em face do montante da renda estabelecido, do tempo de duração do contrato, etc., que a “operação”, em toda a sua economia/globalidade, é tão “extremamente benéfica” como a devedora agora afirma, ou seja, não se pode afirmar que se está perante uma realidade e “razões objectivas” que justificam a diferenciação de tratamento concedida ao crédito comum da C (…)

Enfim, verdadeiramente, temos apenas os factos, nus e crus, de tal diferenciação de tratamento.

Efectivamente, como está já referido, o Plano prevê, é certo, o pagamento da totalidade dos créditos a todos os credores, porém, enquanto a generalidade dos credores (designadamente, os comuns) são sujeitos a um período de carência de 1 ano, recebem 75% em 10 anos e os restantes 25% no mês seguinte a tais 10 anos, a C (…)recebe de imediato todo o seu crédito, incluindo os cerca de 2/7 do seu crédito (€ 195.528,64) que tem natureza comum, sendo aqui, quanto a tal crédito comum, que há, sem uma qualquer aparente e razoável justificação, um tratamento favorável da credora C (…).

Diz-se/dá-se a entender que o plano de recuperação só é viável com tal apoio da C (…), porém, não se vislumbra qualquer apoio da C (…), que, segundo o Plano, repete-se, recebe de imediato todo o seu crédito.

Admitimos que com o “apoio” da C(…) se está a aludir ao valor/importância dos seus votos para a aprovação do acordo de pagamento[15].

Só que tal “tipo” de valor/importância é algo que não pode ser invocado para influenciar ou condicionar o princípio da igualdade entre credores, ou seja, a circunstância de um credor ter um número de votos que inclina a “balança” para aprovar ou “desaprovar” um Plano não é fundamento para, sem desrespeito pelo princípio da igualdade, lhe dar um tratamento mais favorável no conteúdo do Plano.

Coisa diferente é em função do carácter garantido do seu crédito[16] poder dar-lhe um tratamento mais favorável, porém, mesmo aqui, com fundamento em estar-se perante situações/créditos distintos, é preciso encontrar as justas e devidas proporções que respeitem o referido princípio da igualdade.

Seja como for, este último argumento – sobre o carácter garantido do crédito – só vale em relação a parte do crédito da C (…)  ou seja, só vale em relação ao crédito de € 491.447,75 (garantido por hipoteca sobre os imóveis que, segundo o Plano, lhe iriam ser dados em pagamento para a regularização da totalidade da dívida) e não em relação ao valor restante do crédito, no montante de € 195.528,64 e de natureza comum.

Importando aqui acentuar que o modo, já referido, como tal crédito comum da C(…) vai ser recebido, isto é, de imediato, sem aguardar o lapso de tempo que os outros créditos comuns têm que aguardar e, acima de tudo, sem estar sujeito às “contingências” a que os outros créditos estarão sujeitos, vai contra as justas e devidas proporções que, no caso, um tratamento diferenciado deve respeitar para não violar, em termos não negligenciáveis, o princípio da igualdade[17].

Mais, da mesma forma que não é o número de votos que deve influenciar e condicionar o funcionamento e a aplicação prática do princípio da igualdade entre credores, também não é a circunstância de, caso se estivesse em processo de insolvência[18], certos créditos obterem um fraco pagamento que é fundamento para, no Plano, lhes dar um tratamento desfavorável.

Argumento este, também utilizado na alegação recursiva, que no caso até seria bastante reversível: efectivamente, em situação de insolvência, os créditos privilegiados dos 36 trabalhadores, no montante de cerca de € 762.300,00, iriam, nos termos do art. 333.º do CPT, ser graduados à frente do próprio crédito hipotecário da C (…), o que significaria que, em situação de insolvência, a C (…) pouco ou nada receberia do seu crédito (inclusive da parte do crédito que goza de hipoteca).

Não faz directamente parte do objecto válido da apelação – desde logo por a solicitação de não homologação, ao abrigo do art. 215.º do CIRE, não ter partido dos trabalhadores[19] – mas, a propósito da preocupação (constante da alegação recursiva) com “os postos de trabalho que dificilmente encontrarão emprego alternativo”, não se pode deixar de observar que o Plano proposto/aprovado, a ser homologado, deixaria os trabalhadores sem qualquer garantia patrimonial, uma vez que todo o património tangível da devedora, sobre o qual eles gozam de privilégio imobiliário especial (cfr. art. 333.º/1/b/do CPT), seria passado, em dação em pagamento, para a C (…)[20]; o que significa, embora não tenha sido invocada na decisão recorrida a alínea a) do art. 216.º/1 do CIRE, que se passa o contrário do que a devedora/apelante refere nas conclusões Y) e ss, ou seja, a situação dos trabalhadores, ao abrigo do Plano, é previsivelmente menos favorável que aquela que teriam na sua ausência[21].

É certo, dir-se-á para terminar, que à C (…) Plano não causará qualquer prejuízo (em liquidação insolvencial, a C (…)não veria/á certamente satisfeito nada do seu crédito comum), porém, isso não é obstáculo a que invoque, como fez, a violação do princípio da igualdade ou a verificação da situação prevista no art. 216.º/1/b) do CIRE; assim como é irrelevante, para apurar quer da violação do princípio da igualdade quer da verificação da situação prevista no art. 216.º/1/b) do CIRE, a percentagem de votos/créditos da C (…) e/ou a percentagem de votos/créditos que aprovaram o Plano.

Como claramente resulta do art. 215.º do CIRE (aplicável ex vi art. 17.º-F do CIRE), o juiz deve recusar oficiosamente o Plano aprovado em caso de violação não negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo (aqui cabendo, como é sabido, a violação do princípio da igualdade referido no art. 194.º do CIRE) e qualquer credor (independentemente da sua percentagem de créditos) pode solicitar ao juiz a não homologação do Plano com fundamento em o Plano proporcionar a outro credor “um valor económico superior ao montante nominal” do crédito de tal credor (cfr. art. 216.º/1/a) do CIRE)[22].

Ora, como se explicou, resulta da globalidade do Plano a objectiva violação do referido princípio da igualdade e que a C (…)recebe, através do Plano, um valor/montante que é superior em cerca de 255 mil euros ao seu crédito.

E, em face do que consta dos autos, não se divisa ou apreende que o (duplo) favorecimento que o Plano concede à C (…) esteja alicerçado em razões e interesses superiores e objectivos[23].

Concluindo, entendemos que o conteúdo do Plano viola o princípio da igualdade, que estamos perante uma violação não negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo (art. 194.º do CIRE)[24], e, ainda, que o Plano proporciona à C (…) um valor económico superior ao montante nominal do seu crédito, e, sendo assim, não podia o Plano ser homologado.

É quanto basta para julgar improcedente a apelação.


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IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se julgar improcedente a apelação interposta e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida, que não homologou o Plano de Recuperação aprovado.

Custas pela apelante.


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Coimbra, 19/12/2018

Barateiro Martins ( Relator)

Arlindo Oliveira

Emídio Santos



[1] € 2.935.352,84 : € 3.665.412,76.
[2] Seguimos de perto o que já escrevemos noutros acórdãos; e o que se refere vale para o PER e para o PEAP.

[3] Dispunha-se então no art. 17.º-F/3 do CIRE: «Considera-se aprovado o plano de recuperação que reúna a maioria dos votos prevista no n.º 1 do artigo 212.º, sendo o quórum deliberativo calculado com base nos créditos relacionados contidos na lista de créditos a que se referem os n.ºs 3 e 4 do artigo 17.º-D, podendo o juiz computar os créditos que tenham sido impugnados se considerar que há probabilidade séria de tais créditos deverem ser reconhecidos, caso a questão ainda não se encontre decidida».

[4] Que estipula: «Não conferem direito de voto: a) Os créditos que não sejam modificados pela parte dispositiva do plano; b) Os créditos subordinados de determinado grau, se o plano decretar o perdão integral de todos os créditos de graus hierarquicamente inferiores e não atribuir qualquer valor económico ao devedor ou aos respectivos sócios, associados ou membros, consoante o caso».
[5] Resulta do art. 212.º/1 do CIRE que a proposta se considera aprovado se da lista de créditos relacionados na lista de créditos provisória/definitiva elaborada pelo administrador judicial provisório tiverem votado credores cujos créditos constituam, pelo menos, um terço do total dos créditos com direito de voto e recolher mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções, ou seja, o art. 212.º/1 do CIRE só é inteiramente inteligível se associado com o seu n.º 2, razão pela qual se podia/devia dizer que continha implícita a remissão para o seu n.º 2
[6] Nesse sentido, Luís M. Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, Almedina, 2012, pág. 62/3; e Ac. Rel de Lisboa de 23/01/2014, in ITIJ.

[7] Em que deixou de haver a alusão ao art. 212.º/1 do CIRE, passando a dizer-se que se considera aprovado o plano de recuperação que “a) sendo votado por credores cujos créditos representem, pelo menos, um terço do total dos créditos relacionados com direito de voto, contidos na lista de créditos a que se referem os n.º 3 e 4 do art. 17.º-D, recolha o voto favorável de mais de 2/3 da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções”.

[8] Embora a falta de remissão expressa possa sempre conduzir ao surgimento de novas indecisões, como refere Soveral Martins, obra citada, pág. 489, “com o DL 26/2015 (…) muitas das dúvidas atrás expostas foram resolvidas. Outras surgirão.” Em todo o caso, continuará a “valer” o art. 17.º-F/5, em que se diz, lembra-se que o juiz aplica “com as necessárias adaptações as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência”.
[9] In Lições de Direito da Insolvência, pág. 426.
[10] Afectados, na medida em que, embora o Plano preveja o pagamento da totalidade de tais créditos, estes vão ser sujeitos a um período de carência e, após, ao pagamento em 10 anos + 1 ano.

[11] E de que falam, identicamente, as alíneas a) e b) do n.º 3 do art. 222.º-F do CIRE.
[12] No art. 212.º/2/a) do CIRE procede-se a uma delimitação negativa do universo da lista de créditos incluídos na lista: os créditos não afectados pelo plano, uma vez que não emitem direito de voto, devem ser deduzidos da lista de créditos incluídos na lista para efeitos de voto.

[13] Também aqui há um lapso na acta transcrita em E: não se exige que sejam favoráveis metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, mas apenas que entre os votos emitidos (independentemente do seu sentido) metade correspondam a créditos não subordinados.

[14] Diz mesmo, na conclusão J), que “decorre do segundo parágrafo da página 35 do plano que “a operação de dação em pagamento supra mencionada é vital para a Sociedade pois consegue assim eliminar o valor do crédito hipotecário que era substancial, passando a ter uma acordo locatício com a nova proprietária do prédio, o qual importará o pagamento de uma renda mensal comportável, permitindo assim a normal continuidade da sua actividade industrial.”; porém, não encontremos isto escrito na página do Plano que se indica.
[15] Efectivamente, se somarmos os possíveis votos desfavoráveis da C (…) aos votos desfavoráveis emitidos, constatamos que o Plano ficaria sem os 2/3 de votos favoráveis necessários à sua aprovação.
[16] Ou privilegiado, como acontece com os créditos do Estado, Seg. Social e trabalhadores.

[17] A nosso ver, em face de todos os elementos e pressupostos constante do Plano, a circunstância de receber de imediato e sem “contingências” é bastante relevante; a recorrente enfatiza que todos os credores comuns “vão receber a totalidade dos seus créditos, sem qualquer constrangimento e/ou ónus, com uma proposta extremamente atractiva, conforme resulta do ponto 4, páginas 12 e 13 do plano de recuperação aprovado”, porém, tal não passa duma “promessa”, sujeita a “contingências” e à certeza da devedora, homologado o Plano, ficar sem património.
[18] É que esta é uma hipótese que não se verifica e que a devedora quer evitar, tendo para isso usado o presente PER.
[19] Aliás, não podia ter partido, uma vez que votaram todos favoravelmente o Plano.

[20] E o que acabamos de referir não é sequer algo hipoteticamente improvável: segundo referiu a CEMG, sem qualquer oposição da devedora, esta já recorreu antes ao PER e, terminado o respectivo período de carência (12 meses), apresentou-se a este novo PER.
[21] Seja como for, repete-se, os trabalhadores não reclamam de tal situação, votaram favoravelmente o Plano e não solicitaram a sua não homologação.

[22] A intervenção do juiz no processo do PER é limitada: verifica-se, essencialmente, na abertura, na decisão das impugnações e justamente aqui, na homologação, momento em que o juiz está vinculado ao dever de controlar a legalidade do plano recuperação (referente ao processo especial de revitalização) aprovado pelos credores.

[23] Aliás, não se percebe quais os benefícios que possam levar alguém em situação economicamente difícil a pagar a um credor mais do que lhe deve.

[24] Aa normas aplicáveis ao conteúdo do plano de recuperação reportam-se ao dispositivo do plano de revitalização, bem como aos princípios que devam estar sempre subjacentes a qualquer Plano; quanto à definição do conceito de “normas não negligenciáveis”, entende-se que revestem tal natureza todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza, todas as normas que interfiram com a justa salvaguarda dos interesses/posições dos credores.