Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1319/08.8TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: QUESTÃO PREJUDICIAL
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL NA FUNDAMENTAÇÃO
APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 03/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 7º,127º E 410º DO CPP
Sumário: 1 Uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão da primeira é decisiva para a decisão da segunda, devido à sua complexidade e especialidade, as quais aconselham a que a sua resolução seja feita pelo tribunal normalmente competente.
2.No artigo 7º do CPP está consagrada um regime em que a regra é a questão prejudicial ser resolvida no processo penal e a excepção é a de ser resolvida no tribunal competente quando não possa ser convenientemente resolvida no processo penal


3.Para efeitos do artigo 410º,nº2, al. b) do CPP constitui contradição (insanável) apenas e tão só aquela que não pode ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.
4. O exame crítico das provas exige, para além do mais, que o juiz explicite de forma clara, se bem que concisa, as razões pelas quais deu ou não credibilidade a um determinado depoimento.
Decisão Texto Integral: 16
Proc.º nº1319/08.8TACBR.C1
RELATÓRIO

Em Processo Comum Singular do 1º Juízo dos Juízos Criminais de Coimbra, por sentença proferida em 09…..02, foi para além do mais decidido, condenar o arguido A, pela prática em autoria material de um crime de introdução em lugar vedado ao público p. e p. pelo artº 191º CP, na pena de 40 dias de multa à taxa diária de 7 euros e pela prática de um crime de dano p. e p. pelo artº 212º nº 1 CP, na pena de 200 dias de multa à mesma razão diária.
Em cúmulo jurídico foi o arguido condenado na pena única de 220 dias de multa à taxa de € 7,00 diários.
Inconformado, o condenado interpôs recurso, concluindo a sua motivação:
“Primeiro. O Recorrente foi condenado pela prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público e um crime de dano simples, um na pena de quarenta dias de multa e outro na pena de duzentos dias de multa e, após efectuado o cúmulo jurídico, fixou a pena única em duzentos e vinte dias de multa à razão de sete euros dia, num total de mil quinhentos e quarenta euros;
Segundo. O douto Tribunal "a quo" reiterando o arguido, o que já alegou em sede de contestação, ou seja, que o acesso ao local sempre foi livre para ele, sendo a sua residência, tendo aliás, sido dado como provado, o facto enunciado no ponto 14 da douta sentença sob a epígrafe "Da defesa" não poderia o douto Tribunal a quo ignorar a questão prejudicial;
Terceiro. Conjugando este facto, com as directrizes da problemática em questão entende-se que o douto Tribunal a quo, deveria ter suspendido o processo para efeitos de conhecimento de questão prejudicial que se prende com a natureza eminentemente civil da questão, ou seja, de avaliar as circunstâncias civis da posse do bem pelo arguido;
Quarto. Não o tendo feito, violou o disposto no art. 7.° nº 3, do Código de Processo Penal;
Quinto. Deve o douto Tribunal da Relação de Coimbra, fazer uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do Tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifica como incorrectamente julgados. Os pontos de facto questionados não têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, pelo que este considera imporem uma decisão diversa;
Sexto. Devem ser dados por não provados os artºs 5.°; 6.°; 15.° e 17.° pelas razões enunciadas nas motivações, nomeadamente porque o tribunal "a quo" julgou incorrectamente a matéria neles constante;
Sétimo. Não estando provado, o artºs 6.° dos factos dados por provados, não pode ser considerado que o arguido agiu com dolo;
Oitavo. Com o devido respeito por entendimento contrário, a prova produzida e analisada em audiência de julgamento, não permite dar como provado que o arguido tenha agido de modo livre e consciente, nem presumir que assim tenha sido;
Nono. Pelo que, deve este ser absolvido de ambos os crimes por falta de prova de culpa;
Décimo. Entendendo o arguido que não se encontram provados os art.ºs 5.°, 15.° e 17º dos factos dados por provados, temos por assente que arguido não agiu, ao introduzir-se e permanecido no imóvel identificado nos autos, à revelia e consentimento dos assistentes;
Décimo primeiro. Não se encontra assim preenchido um dos elementos da acção típica essencial para a aplicabilidade da norma do ar. 191.° do Código Penal;
Décimo segundo. Pelo que, deve este ser absolvido do crime de introdução em lugar vedado ao público, por não se encontrarem preenchidos os pressupostos de que depende a aplicação da disposição normativa;
Décimo terceiro. Não considerando o depoimento das testemunhas indicadas pelo arguido, nem tendo ficado expostos na sentença os motivos que estiveram por detrás dessa decisão, nomeadamente o porqu8, da falta de credibilidade dos mesmos em detrimento de outros não isentos, o douto Tribunal o quo violou o art. 379.° n.o 1 aI. c) do Código de Processo Penal;
Décimo quarto. Não tendo sido colocada a hipótese de o arguido ter agido ao abrigo de uma causa de exclusão da i1icitude, com intervenção privilegiada ao abrigo do direito de necessidade previsto no artº 34º do Código de Processo Penal violou o Douto Tribunal a quo também art. 379º nº 1 al. c) do Código de Processo Penal;
Décimo quinto. O douto Tribunal "a quo" entrou em insanável contradição entre a fundamentação e a decisão, vício enunciado no art. 410º nº 2 al. b) do Código de Processo Penal, quando:
a) Existe uma contradição no texto da sentença entre os factos dados como provados e a fundamentação, foi dado como provado o ponto quinto (fls. 2 da sentença), segundo o qual a assistente disse que queria a casa, quando na fundamentação foi dado por provado, que a mesma queria uma chave para fazer a manutenção da casa e o pai pô-la fora da casa e disse que não (fls. 4 da sentença);”.
O Ministério Público e os assistentes apresentaram respostas ao recurso, concluindo ambos pelo seu não provimento.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto nesta Relação, no seu douto parecer pugna pelo reenvio do processo face à existência de contradição insanável de fundamentação entre matéria de facto que foi dada como provada.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

Foram dados como provados na 1ª instância os seguintes factos:
“ 1. No dia 12 de … de 2008, cerca das 15:40 horas, o arguido com o propósito de penetrar no interior do n.º .. da Rua …. Coimbra, arrombou uma janela do dito prédio urbano e retirou a fechadura da porta de entrada com um pé de cabra, fazendo um buraco na ombreira da porta por onde fez passar uma corrente com um cadeado, da qual só ele tinha a respectiva chave.
2. A partir dessa data passou o arguido a aceder quando bem o entendeu a essa casa, limitando-se para o efeito a abrir a corrente com o cadeado.
3. Voltou a fazê-lo por mais de uma vez e no período compreendido entre as datas de 12 de … de 2008 e … de 2009.
4. O dito prédio urbano é propriedade dos assistentes/filhos A C e F, embora aí não possuam a sua residência.
5. O arguido sabia bem que os assistentes não permitiam a sua entrada naquela casa, que só estes ali podiam entrar ou alguém com o seu consentimento, e actuou à revelia da sua vontade e consentimento, com o propósito de invadir aquele espaço, o que efectivamente conseguiu.
6. Agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente;
7. De cada vez que ali entrou, ao longo do período de tempo referenciado e nas descritas circunstâncias, reiterando os mesmos propósitos, servindo-se dos mesmos métodos;
8. Sabia que toda a sua conduta lhe estava legalmente vedada por ser ilícita e criminalmente punível.
9. Aufere cerca de € 160 líquidos mensais ( trabalhos esporádicos ); vive só, em casa de familiares; tem a 4.ª Classe;
10. Foi condenado, a 3.04.2008, pela prática, a 12.06.2007, de um crime de dano simples e de um crime de ameaça, na pena única de 165 dias de multa.
11. Em consequência da actuação do arguido os AA. sentiram-se angustiados e sofredores.
12. A A. aufere cerca de € 550 líquidos mensais; é solteira, vive em casa própria; tem o Curso de Gestão de Administração Empresarial.
13. O A. aufere cerca de € 800 líquidos mensais; vive com a companheira, auxiliar de secretaria, e um filho (de 6 meses de idade), em casa própria – pagando de amortização de empréstimo contraído para sua aquisição a quantia de € 700 mensais; tem a Licenciatura em Comunicação Social.
14. Não obstante a celebração da escritura da doação sem reserva de usufruto do prédio, referido em 1., do arguido e então esposa a favor dos assistentes, a 27.11.1996, o arguido continuou a morar no mesmo com o consentimento dos assistentes;
15. Em período anterior aos factos, referidos em 1., o arguido, que já se achava separado da mãe dos assistentes, foi viver com terceira pessoa, deixando na casa, referida em 1., alguns dos seus haveres.
16. A assistente, face à deterioração da casa, referida em 1., e após recusa do pai em lhe facultar a chave da casa para a respectiva manutenção – uma vez que fora cortada a água e luz, devido à falta de pagamento respectivo –, enviou-lhe diversas cartas registadas comunicando-lhe que iam proceder a obras, cartas essas que foram devolvidas ao remetente;
17. A assistente chegou a comunicar pessoalmente ao arguido que queria a casa, pelo que tinha de sair da mesma, tendo este respondido que não saía.
18. Face à posição assumida pelo arguido, e porque este não se encontrava a residir na casa, os assistentes procederam a obras e mudaram a porta da entrada, que se encontrava degradada;
19. No dia 12….2008, perante este cenário, o arguido exigia a nova chave da casa, tendo a sua ex-mulher, e mãe dos assistentes, ripostado que só lhe facultava a chave para retirar os seus pertences, o que não obteve a concordância do arguido.”.
Factos não provados:
“ 20. O arguido mora no prédio urbano, referido em 1., há cerca de 30 anos.
21. Tendo-se ausentado da casa para ir trabalhar, quando os assistentes procederam às obras de alteração da porta.
Quaisquer outros factos emergentes da discussão da causa, para além dos que ficaram descritos como provados.”.
Motivação:
“ Convicção do tribunal:
Foram determinantes para a fundamentar:
Factos provados:
1.º a 8.º: As declarações do arguido – que, embora contrariado, reconheceu essa factualidade ao afirmar que praticou os factos de que é acusado porque os assistentes/filhos lhe mudaram as fechaduras da casa e as chaves respectivas; fez a doação da casa aos assistentes/filhos, nessa altura ainda falavam, e eles deixaram-no lá viver; começou por pretender justificar a sua conduta dizendo que os assistentes não lhe disseram nada antes de mudarem a fechadura, mas acabou por reconhecer que antes de 12….2008 a assistente/filha lhe disse que queria a casa, que tinha de sair dela, ao que ripostou que não saía, que não ia viver na rua; precisou ainda que pretendia ter a reserva de usufruto da casa –, complementadas pelas declarações dos assistentes/filhos daquele, AC – que confirmou terem ( os assistentes ) feito obras e colocado uma porta nova na casa; ter deparado no dia constante da acusação com os estragos na casa especificados, encontrando-se a GNR no local; precisou que a separação dos pais remonta a 1999 e depois da doação da casa feita pelos pais, deixaram que o pai/arguido continuasse a viver nessa casa; porém o arguido não deixava entrar lá os filhos/assistentes e deixou a casa ao abandono, a tal ponto que os respectivos serviços cortaram a água e a luz por falta de pagamento, não recebiam a respectiva correspondência das Finanças, e a casa chegou a estar para venda em hasta pública; por força de tudo isso, disse ao pai que queria uma chave para fazer a manutenção da casa, e o pai pô-la fora de casa e disse que não – e F – que confirmou terem permitido que o pai continuasse a viver na casa depois da doação e a seguir à separação dos pais, em 1999; as obras ( porta nova ), por força da sua deterioração ( porta escavacada ), o corte da água e da luz por falta de pagamento, e precisou que o pai desviava a correspondência ( v. g. das Finanças ); referiu ter deparado, na data constante da acusação, com a porta e parede arrombadas e um cadeado na porta, achando-se a GNR no local –, e das testemunhas M, ex-mulher do arguido e mãe dos assistentes – que referiu ter presenciado o arguido a praticar os factos que lhe são imputados, uma vez que mora em casa próxima e ouviu barulhos provenientes do local onde o arguido partia a porta e os vidros, pelo que chamou a GNR, que se deslocou ao local; os agentes da GNR disseram ao arguido para estar quieto, o arguido respondia que aquilo era dele e fazia o que quisesse; a anterior porta era de madeira e já estava toda partida –, R e J, agentes da GNR intervenientes – que referiram terem sido chamados ao local nesse dia, pela hora de almoço; depararam-se com o arguido e a ex-mulher, aquele a dizer que lhe tinham alterado a fechadura, que queria entrar em casa, esta a disponibilizar-se a ceder a chave da casa mas apenas para o arguido ir buscar as suas coisas, uma vez que a casa era dos filhos; o arguido não aceitava e dizia que a casa era dele e que ia arrombar a porta; aconselharam o arguido a consultar um advogado e advertiram-no das possíveis consequências penais; cerca de hora e meia depois foram novamente chamados ao local e já depararam com o arrombamento de uma janela da casa – e ainda pelo teor dos docs. fls. 18 a 24 ( cópia da escritura da doação do imóvel em causa, realizada a 27.11.1996, em que figuram como doadores o arguido e a esposa e donatários os assistentes, da qual consta expressamente ser uma doação sem reserva de usufruto ) e 172/3 e 57 a 78 ( CRC do arguido e sentença respectiva, de onde resulta condenação, a 3.04.2008, pela prática, a 12.06.2007, de um crime de dano simples provocado nesse mesmo imóvel, factos em tudo semelhantes aos dados por assentes nos presentes autos, que mais não são que uma repetição da façanha );
9.º: As declarações do arguido – informando o tribunal sobre os seus elementos pessoais – que, na ausência de outros elementos mais consistentes, se consideraram atendíveis;
10.º: O teor do doc. de fls. 172/3 ( CRC do arguido, de onde resultam os elementos especificados );
11.º: As declarações dos AA. cíveis – que confirmaram essa factualidade –, sendo essa a consequência normal no comum do ser humano;
12.º e 13.º: As declarações dos AA. cíveis – informando o tribunal sobre os seus elementos pessoais – que, na ausência de outros elementos mais consistentes, se consideraram atendíveis;
14.º: As declarações do arguido – confirmando essa factualidade –, corroboradas pelas declarações dos assistentes e complementadas pelo teor do doc. de fls. 18 a 24 ( cópia da escritura da doação do imóvel em causa, já supra referenciada );
15.º a 18.º: As declarações dos assistentes – confirmando essa factualidade –, corroboradas pelos depoimentos das testemunhas M, ex-mulher do arguido e mãe dos assistentes – que referiu que o arguido não vivia lá, vivia com uma companheira em casa dela; a anterior porta era de madeira e já estava toda partida; tentaram avisá-lo por C/R que iam mudar a porta e ele não quis saber, ele procurava ao carteiro para que eram as cartas e depois não queria saber; na casa não havia água nem luz, foram cortadas por ele as deixar de pagar –, R e J agentes da GNR intervenientes – na parte em que referiram terem sido chamados ao local nesse dia, pela hora de almoço; depararam-se com o arguido e a ex-mulher, aquele a dizer que lhe tinham alterado a fechadura, que queria entrar em casa, esta a disponibilizar-se a ceder a chave da casa mas apenas para o arguido ir buscar as suas coisas – e JA agente da GNR que se deslocou ao local após os anteriores colegas – que, contrariamente às declarações do arguido em audiência ( quando referiu que vivia ali e tinha ido trabalhar nesse dia, tendo deparado com a alteração da porta ao voltar do trabalho ), referiu que o arguido lhe comunicou que tinha passado uns dias fora de casa e quando lá chegou lhe tinham mudado a fechadura/porta, pelo que teve de fazer aquilo para entrar; mais referiu que chegou a entrar em casa e o aspecto da mesma era de uma casa não habitada – e pelo teor dos docs. de 172/3 e 57 a 78 ( CRC do arguido e sentença respectiva, de onde resulta condenação, a 3.04.2008, pela prática, a 12.06.2007, de um crime de dano simples provocado nesse mesmo imóvel, factos em tudo semelhantes aos dados por assentes nos presentes autos, que são a prova cabal de que a não habitabilidade da casa pelo arguido já nessa altura se verificava );
19.º: Os depoimentos das testemunhas R e J, agentes da GNR intervenientes – que confirmaram essa factualidade, por a terem presenciado;
Factos não provados:
20.º e 21.º: Provado em sentido contrário.
Vd. convicção relativa ao facto 15.
Depois, a sua ex-mulher referiu que o arguido se encontrava emigrante na Alemanha na altura em que foi feita a doação, a 27.11.96, o que obtém apoio no facto de a doação ter sido efectuada presencialmente pela então mulher do arguido com mandato conferido por procuração para o efeito pelo arguido ( cfr. doc. de fls. 18 a 24, referenciado );
Finalmente, essa não habitabilidade da casa pelo arguido resulta também do teor do doc. 57 a 78 ( sentença de condenação do arguido, a 3.04.2008, pela prática, a 12.06.2007, de um crime de dano simples provocado nesse mesmo imóvel, factos em tudo semelhantes aos dados por assentes nos presentes autos, o que revela à saciedade que já nessa altura o arguido não habitava a casa ).”.
*
Como é sabido o âmbito dos recursos é determinado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.
Assim, tendo por base as referidas conclusões, as questões suscitadas no recurso são as seguintes:
- Existência de questão prejudicial;
- Nulidade;
- Vício de contradição insanável entre a fundamentação

- Impugnação da matéria de facto;
- Enquadramento jurídico dos factos.
- Existência de causa de exclusão da ilicitude
Passemos então à sua apreciação:
a) Da questão prejudicial
Começa o recorrente por invocar a existência de questão prejudicial quanto à titularidade do direito de residir na habitação em causa, que diz pertencer-lhe, pelo que entende que o processo penal deveria ter sido suspenso com vista a que esta questão fosse conhecida previamente.
Vejamos
Estabelece o n.º 1 do artº 7º CPP que:
“O processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa.”
É o princípio da suficiência da acção penal, o qual tem “ um fundamento manifesto, que é o de arredar obstáculos ao exercício do jus puniendi do Estado, que, directa ou indirectamente, possam entravar ou paralisar a acção penal” Maia Gonçalves, CPP Anotado, 16ª ed., pág. 70.
Porém, prevê-se no nº 2 do referido artigo uma excepção ao estabelecer-se que:
“Quando, para se conhecer da existência de um crime, for necessário julgar questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente”.
Quer dizer o legislador consagrou um sistema em que a regra é a questão prejudicial ser resolvida no processo penal e a excepção é a de ser resolvida no tribunal competente quando não possa ser convenientemente resolvida no processo penal
Como escreve Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal I, pág. 114. são “ Questões prejudiciais aquelas questões jurídico-concretas que, sendo embora autónomas no seu objecto relativamente à questão principal do processo em que surgem e por isso susceptíveis de constituírem objecto próprio de um outro processo, se vêm a revelar como questões cujo conhecimento é condicionante do conhecimento e decisão sobre a questão principal.”.
Assim uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão da primeira é decisiva para a decisão da segunda, devido à sua complexidade e especialidade, as quais aconselham a que a sua resolução seja feita pelo tribunal normalmente competente.
Ora no caso vertente não se vislumbra, nem o recorrente a aponta, onde é que está a complexidade da questão que impeça o tribunal criminal de tomar conhecimento da mesma.
É que o que aqui está em causa é tão só apurar se o arguido continuou ou não a morar na fracção com o consentimento dos assistentes, não obstante a celebração da escritura de doação feita sem reserva de usufruto junta aos autos ( fls. 18 e ss) ou se, pelo contrário a entrada nessa habitação foi feita contra a vontade dos respectivos donos.
Daí que se entenda que o processo penal é suficiente para decidir essa questão.
b) Da nulidade
Quanto a este ponto alega o recorrente que não foram considerados os depoimentos prestados pelas testemunhas indicadas pelo arguido, sendo a sentença omissa quanto aos motivos que estiveram subjacentes à falta de credibilidade das mesmas, o que segundo o seu ponto de vista viola o artº 379º nº 1 c) CPP.
Mas não tem claramente razão.
Na verdade conforme se alcança da leitura da motivação de facto, os depoimentos prestados por todas as testemunhas que foram arroladas pelo recorrente, foram objecto de apreciação por parte do tribunal recorrido, fundamentando até a matéria de facto consignada nos pontos 1 a 8 e 15 a 19.
Daí que, sem outras considerações, o recurso neste segmento se julgue manifestamente improcedente.
c) Do vício de contradição insanável entre a fundamentação.
Detecta o arguido a existência do referido vício, porquanto no ponto 5 foi dado como provado que a assistente queria a casa e na fundamentação refere-se que a mesma queria uma chave para fazer a manutenção da casa e o pai pô-la fora de casa e disse que não.
Vejamos.
Como é sabido a contradição insanável de fundamentação consubstancia um vício previsto no artº 410º nº 2 b) CPP o qual se verifica, segundo Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, pág. 739., “ Por contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade ou na qualidade.
Para os fins do preceito ( al. b) do nº 2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência”
E acrescentam os referidos autores que “ As contradições insanáveis que a lei considera para efeitos de ser decretada a renovação da prova são somente as contradições internas, rectius intrínsecas da própria decisão considerada como peça autónoma.”.
Daí que, nos termos do artº 410º nº 2 CPP, tenham de resultar, na sua globalidade, “ do próprio texto da decisão recorrida” ( não sendo assim portanto permitida a consulta a outros elementos constantes do processo ), por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Será então que assiste razão ao recorrente quanto a este ponto ?
Parece-nos que sim.
Com efeito no ponto 5 foi dado como provado que:
“O arguido sabia bem que os assistentes não permitiam a sua entrada naquela casa, que só estes ali podiam entrar ou alguém com o seu consentimento, e actuou à revelia da sua vontade e consentimento, com o propósito de invadir aquele espaço, o que efectivamente conseguiu.”.
Porém já na respectiva fundamentação se refere que a A.: “…disse ao pai que queria uma chave para fazer a manutenção da casa, e o pai pô-la fora de casa e disse que não” e ainda que “precisou que a separação dos pais remonta a 1999 e depois da doação da casa feita pelos pais, deixaram que o pai/arguido continuasse a viver nessa casa”
Ora uma tal manifestação por parte da assistente é aparentemente incompatível com aquela matéria de facto dada como provada.
E isto adquire particular relevância porque a Srª juiz também deixou consignado na motivação de facto que o arguido, nas suas declarações reconheceu “ que antes de 12.04.2008 a assistente/filha lhe disse que queria a casa, que tinha de sair dela “.
Afinal em que ficamos ?
Será que a Srª juiz não considerou relevantes as declarações da assistente neste segmento ?
Mas se assim é, deveria ter dito porquê, isto é deveria ter feito um verdadeiro exame crítico da prova.
É que não basta transcrever os depoimentos e as declarações para se fundamentar a matéria de facto.
Há pois aqui uma clara contradição entre a matéria de facto que foi dada como provada e a respectiva fundamentação.
Mas há mais.
A Srª juiz dá como provado no ponto 14 que:
“Não obstante a celebração da escritura da doação sem reserva de usufruto do prédio, referido em 1., do arguido e então esposa a favor dos assistentes, a 27.11.1996, o arguido continuou a morar no mesmo com o consentimento dos assistentes.
Por sua vez no ponto 17, reconhece-se que o arguido aí continua a residir, nos seguintes termos:
“ A assistente chegou a comunicar pessoalmente ao arguido que queria a casa, pelo que tinha de sair da mesma, tendo este respondido que não saía.”
Porém, contraditoriamente, no ponto 18, já se diz que o arguido não residia na casa:
“Face à posição assumida pelo arguido, e porque este não se encontrava a residir na casa, os assistentes procederam a obras e mudaram a porta da entrada, que se encontrava degradada”. ”. ( o sublinhado é nosso);
Ora com tal matéria de facto, ficamos sem saber se o recorrente residia ou não na casa em questão.
Parece-nos claro que entre os apontados factos existe manifesta contradição.
É que não se pode dar como provado que o arguido residia na casa e o seu contrário.
Isto tem que ser devidamente esclarecido, devendo para além disso a motivação de facto que vier a ser elaborada conter um verdadeiro exame crítico das provas, pois não basta transcrever as declarações do arguido e assistentes e os depoimentos das testemunhas.
É que os juízes não se limitam a aceitar ou a recusar os depoimentos na globalidade.
Têm uma tarefa muito mais difícil, que é precisamente a de conseguir descobrir a parte que lhes merece crédito.
É por isso que concordamos com Enrico Altavilla quando escreve Psicologia Judiciária, Vol. II, 3ª ed., pág. 12. “ o interrogatório como qualquer testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras”.
Ora essa tarefa crítica do juiz terá de ser expressa na fundamentação e em relação a todos os depoimentos e declarações!
É fundamental esse suporte.
Não basta a referência dos factos às provas, é necessário um correlacionamento dos mesmos com as provas que os sustentam de forma a poder concluir-se quais as provas e, em que termos, garantem que os factos aconteceram ou não da forma apurada.
Assim perante a supra referida contradição entre a matéria de facto, está preenchido o vício previsto no artº 410º nº 2 b) CPP.
O apontado vício, considerando o preceituado nos artºs 410º nº 2, 426º e 426º-A CPP, determina o reenvio do processo para novo julgamento, com vista à averiguação da referida questão
Mostra-se, consequentemente, prejudicado o conhecimento das demais questões colocadas pelos recorrentes.

DECISÃO

Nestes termos, acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso, determinando-se o reenvio do processo para novo julgamento, limitado à questão referida (artºs 426º nº 1 e 426º-A, ambos do CPP).
Sem tributação
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (Artº 94º nº 2 CPP)
Coimbra, 25 de Março de 2010.