Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
131/17.8GCSAT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: PENA PRINCIPAL;
PENA DE SUBSTITUIÇÃO;
CÚMULO JURÌDICO
Data do Acordão: 04/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JCG DE SÁTÃO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 45.º, 49.º, 70.º E 77.º DO CP
Sumário: Perante penas de multa fixadas originariamente, por opção em alternativa à pena de prisão definidas na moldura penal abstracta, nos termos do art. 70.º e 49.º, n.º 1 e 2, do CP, e perante uma pena de multa de substituição da pena de prisão prevista para o crime, por força do art. 45.º, n.º 1 e 2, do CP, esta última não deve entrar no cúmulo jurídico, atenta a natureza diferente das restantes.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório
No processo supra identificado foi julgado o arguido A…, filho de B… e de C…, casado, nascido em (…), BI - …, residente na Rua (…).
Na acusação são imputados ao arguido os seguintes crimes.
- Dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 14.º, 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. c), por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal (CP);
- Dois crimes de injúria agravada, p. e p. pelos arts. 14.º, 181.º, n.º 1, e 184.º, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. l), do CP;
- Um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 14.º, 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. l), do CP.
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O tribunal decidiu condenar o arguido A…:
a) Como autor de dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos art. 14.º, 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. l), do CP, cada um deles na pena de 80 (oitenta) dias de multa;
b) Como autor de dois crimes de injúria agravada, p. e p. pelos art. 14.º, 181.º, n.º 1, e 184.º, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. l), do CP, cada um deles na pena de 60 (sessenta) dias de multa;
c) Como autor de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art. 14.º, 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, por referência ao art. 132.º, n.º 2, alínea l), do CP, na pena de 4 (quatro) meses de prisão, a qual é substituída por pena de 120 (cento e vinte) dias de multa;
d) Em cúmulo jurídico, na pena única de 220 (duzentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de €7,00 (sete euros), perfazendo um total de €1.540,00 (mil, quinhentos e quarenta euros).
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Inconformado recorreu o Ministério Público, o qual pugna pela exclusão do cúmulo jurídico da pena de 120 dias de multa, fixada em substituição da pena principal de 4 meses de prisão, quanto ao crime de ofensa à integridade física qualificada, formulando as seguintes conclusões:
«1- Do artigo 77.°, n.º 3, do Código Penal decorre que apenas deverá proceder-se a cúmulo jurídico, (nos termos constantes do n.º 1, do mesmo artigo) quando em causa estejam penas da mesma natureza e espécie.
2- Pelo contrário, quando se esteja perante penas de espécie diferente (umas, principais; outras, de substituição), a diferente natureza destas (umas de prião; outras de multa) mantém-se, isto é, serão de cumular materialmente e, já não, juridicamente.
3- Isto porque, além do mais, são diferentes as consequências decorrentes do incumprimento de uma ou de outra.
4- Na verdade:
a) perante o incumprimento da pena de multa principal (quer voluntário, quer coercivo) o condenado verá tal pena convertida em prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, nos termos do disposto no artigo 49.°, n.º 1, do Código Penal;
b) perante o incumprimento da pena de multa de substituição (quer voluntário, quer coercivo), o condenado cumprirá a pena de prisão aplicada a título principal, nos termos do disposto no artigo 43.°, n. ° 2, do Código Penal.
5- Assim, com o devido respeito, ao englobar no cúmulo jurídico efetuado a pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, aplicada em substituição da pena principal de 4 (quatro) meses de prisão, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, a douta sentença em crise violou o disposto no artigo 77.°, n.º 3, do Código Penal.
Desta forma,
Na procedência do recurso, deverá a decisão recorrida ser parcialmente revogada e substituída por outra que:
1) Exclua do cúmulo jurídico efetuado a pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, aplicada em substituição da pena principal de 4 (quatro) meses de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada;
2) Reformule o cúmulo jurídico, em conformidade».
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Notificado o arguido, nos termos do art. 413.º, n.º 1, do CPP, não respondeu.
Nesta instância, os autos tiveram vista do Ex.mo Senhor Procurador-geral Adjunto, para os feitos do art. 416.º, n.º 1, do CPP, o qual emitiu douto parecer no sentido da motivação do recurso, concluindo assim pela procedência do recurso.
Notificado arguido, nos termos do art. 417.º, n.º 2, do CPP não respondeu.
Foi cumprido o art. 418.º, do CPP, e uma vez colhidos os vistos legais, indo os autos à conferência, cumpre decidir.
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II- O Direito
As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o âmbito do recurso.
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, as quais deve conhecer e decidir sempre que os autos reúnam os elementos necessários para tal.

Questão a decidir:
Apreciar se deve ser excluída do cúmulo jurídico a pena de 120 dias de multa, fixada em substituição da pena principal de 4 meses de prisão, quanto ao crime de ofensa à integridade física qualificada, a qual foi cumulada com penas de multa aplicadas directamente aos dois crimes de ameaça agravada e dois crimes de injúria agravada.

Apreciando:
O tribunal condenou o arguido:
- pela prática de dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos art. 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. l), do CP, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, cada um deles.
- pela prática de dois crimes de injúria agravada, p. e p. pelos art. 181.º, n.º 1 e 184.º, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. l), do CP, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, por cada um deles.
- por um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art. 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, por referência ao art. 132.º, n.º 2, alínea l), do CP, na pena de 4 (quatro) meses de prisão, substituída por pena de 120 (cento e vinte) dias de multa;
Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 220 (duzentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de €7,00 (sete euros), perfazendo o total de €1.540,00 (mil, quinhentos e quarenta euros).
Os crimes de ameaça agravada são puníveis com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
Os crimes de injúria agravada são puníveis com pena de prisão de 45 dias a 4 meses e 15 dias ou com pena de multa de 15 a 180 dias.
Por sua vez, o crime de ofensa à integridade física qualificada, é punível com pena de prisão até 4 anos.
Nos crimes de ameaça agravada e injúria agravada prevê-se como moldura penal abstracta pena de multa como alternativa à pena de prisão, devendo o julgador optar por uma delas, de acordo com o critério de escolha da pena definido pelo art. 70.º, do CP.
Conforme escreve o Prof. Figueiredo Dias, in As Consequências Jurídicas do Crime, AEQUITAS, 1993, pág. 124: «A forma por excelência de previsão da pena pecuniária – por ser a que verdadeiramente realiza as intenções politico-criminais mais profundas do ordenamento jurídico-penal, é como alternativa à pena de prisão; quando, pois a lei pune um crime com prisão até x meses 8ou anos) ou com multa até y dias.
(…)
A circunstância de, no teor literal da lei, a pena de multa vir mencionada em segundo lugar, despois da pena de prisão, não deve em nada prejudicar o reconhecimento de que a pena de multa é, em todos os casos, legalmente preferida: é terminante, nesse sentido, o disposto no art. 71.º».
Nestes casos estamos perante uma “multa alternativa” com a pena de prisão, definida logo na moldura penal abstracta, por opção legislativa, em consonância com os princípios definidos nos art. 70.º e 71.º, do CP.
Neste caso, quanto à conversão da multa não paga em prisão subsidiária dispõe o art. 49.º, n.º 1, do CP o seguinte:
«Se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão, não se aplicando, para o efeito, o limite mínimo dos dias de prisão constante do n.º 1 do artigo 41.º».
Por sua vez, a multa resultante da pena de prisão inicialmente aplicada, em função da moldura penal abstracta é uma “multa de substituição”.
Esta aplicação de multa resulta de substituição da pena de prisão inicialmente aplicada, com base no art. 71.º, do CP, em função da culpa do agente, gravidade dos factos praticados e necessidade das exigências de prevenção, e depois a substituição deve obedecer a critérios diferentes da “multa alternativa” e que advém e é imposta desde que haja observâncias dos requisitos previstos no art. 45.º, do CP, que dispõe o seguinte:
«1 - A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, exceto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 47.º
2 - Se a multa não for paga, o condenado cumpre a pena de prisão aplicada na sentença. É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 49.º».
Concluímos do que deixamos exposto que a “multa alternativa” e a “multa de substituição”, têm natureza diferente, que na sua aplicação, quer no regime de incumprimento.
A este respeito, depois de se pronunciar sobre a multa autónoma, multa alternativa, multa complementar, quando se refere à multa de substituição, escreve o Prof. Figueiredo Dias, in ob. cit., pág. 125:
«Não é correcto, todavia, colocar esta espécie de pena de multa ao lado das anteriormente mencionadas. E não é correcto porque se trata aqui de uma pena diferente da pena de multa enquanto pena principal, que possui regime próprio e merece, por isso, consideração doutrinal e sistemática autónoma».
Depois, o mesmo autor, in ob cit., a pág. 361, volta ao tema, onde aponta as diferenças da “multa de substituição” e “pena pecuniária principal”, importando realçar o seguinte:
«Mas se as duas penas são diversas do ponto de vista politico-criminal, são-no também (e em consequência) do ponto de vista dogmático: a pena pecuniária é uma pena principal, a multa agora em exame é uma pena de substituição no mais lídimo sentido. Diferença esta donde resultam (ou onde radicam), como de resto se esperaria, consequências prático-jurídicas do maior relevo, máxime, em tema de medida e de incumprimento da pena de substituição. A falta de reconhecimento deste aspecto das coisas em muitas doutrinas é fruto de, nelas, a teorização geral das penas de substituição se encontrar ainda atrasada, quando não falte completamente».
Chegados aqui, podemos concluir que estamos perante penas de natureza e espécie diferente.
E a este respeito informa o art. 77.º, n.º 3, do CP, quanto às regras da punição do concurso:
«Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores».
Ora, estando perante penas de multa fixadas originariamente, por opção em alternativa à pena de prisão definidas na moldura penal abstracta, nos termos do art. 70.º e 49.º, n.º 1 e 2, e perante uma pena de multa de substituição da pena de prisão prevista para o crime, por força do art. 45.º, n.º 1 e 2, do CP, esta última não deve entra no cúmulo jurídico, atenta a natureza diferente das restantes.
Neste sentido também o Ac. do TRP de 12/3/2014 e Ac. do TRC de 29/3/2017, in http://www.pgdlisboa.pt.
Nesta conformidade o cúmulo jurídico deve incluir apenas as penas de multa aplicadas pelos dois crimes de ameaça agravada, de 80 (oitenta) dias de multa, por cada um deles e pelos dois crimes de injúria agravada, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, por cada um deles, dele se excluindo a pena aplicada pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, de 4 (quatro) meses de prisão, substituída por pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, que deve cumulada materialmente.
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III- Decisão:
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e, em consequência deve ser reformulado o cúmulo jurídico, do qual se exclua a pena aplicada pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, de 4 (quatro) meses de prisão, substituída por pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, a qual deve ser cumulada materialmente,
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Sem custas.
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NB: O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do CPP.
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Coimbra, 12 de Abril de 2018

(Inácio Monteiro - Relator)

(Alice Santos - Adjunta)