Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
552/09.0TAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
CONFISSÃO
ESCOLHA DA PENA
Data do Acordão: 04/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS .292º,40º,70º,71º E 69º, DO CP; 344º, 474º E 379º DO CPP
Sumário: 1. Se em audiência de julgamento o arguido confessa integral e sem reservas os factos que lhe são imputados, se em seguida é proferido despacho decidindo que face a tal confissão (integral e sem reservas), é dispensada a produção de prova indicada na acusação, procedendo-se de imediato à produção de alegações orais, é manifesto que os factos imputados ao arguido foram considerados provados por força daquela confissão.
2.Os factos que devem constar da sentença são os alegados pela acusação e pela defesa e bem assim os que resultarem da discussão da causa, relevantes para saber, designadamente, se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime, se o arguido praticou o crime ou nele participou ou se o arguido agiu com culpa.
3. Se o recorrente especifica determinado facto, não descrito na acusação nem na contestação, e que segundo ele deveria ter sido dado com provado por resultar da discussão da causa, para além do mais, devia especificar as provas que impunham que tal facto devesse ter sido dado como provado.
4.A pena de multa tem de representar uma censura suficiente do facto e, simultaneamente, uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada.
5.Quer a pena principal quer a acessória assentam num juízo de censura global pelo crime praticado e daí que para a determinação da medida concreta de uma e outra se imponha o recurso aos critérios estabelecidos no art.71.º do Código Penal.
6.Não é exagerada a pena de 9 meses de proibição de conduzir veículos com motor aplicada a arguido que conduz na via pública um veículo automóvel com uma TAS de 2,31 g/l e que 4 anos antes já havia sido condenado por infracção de semelhante natureza.
Decisão Texto Integral: Relatório

Pelo 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento em processo comum perante tribunal singular, o arguido

RR advogado, , nascido em 07…1962,  residente na Rua …

imputando-se-lhe a prática de factos pelos quais teria cometido, em autoria material e na forma consumada, um crime de condução de veículo em estado de  embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 14 de… de 2009, decidiu julgar a acusação do Ministério Público procedente, por provada e, em consequência, condenar o arguido RR pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, na pena principal de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de € 9,00 (nove euros), num total de € 1.080,00 (mil e oitenta euros) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 9 (nove) meses.

            Inconformado com a sentença dela interpôs recurso o arguido RR, concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1.º O arguido confessou que conduziu a viatura sabendo que tinha ingerido bebidas alcoólicas.

2.º Não confessou que tivesse a consciência que tinha uma TAS superior a 1,20 g/litro.

3.º Pelo que deveria ter sido condenado a título de negligência e não de dolo.

4.º Aliás da acusação consta: sabendo que tinha ingerido bebidas alcoólicas que lhe poderiam determinar uma TAS superior a 1,20” – Poderiam é condicional.

5.º O Tribunal também não valorou – omissão de pronúncia – o facto de o arguido ter 47 anos e ter respondido apenas uma vez – 2005 e ainda ter dois filhos no Porto a viver com a mãe de quem é divorciado.

6.º Também não atentou no facto de o arguido ter uma necessidade absoluta e continua de conduzir veículos automóveis.

7.º Não justificou – nem poderia – como aplicou a pena máxima de multa – 120 dias.

8.º E muito menos a de 9 meses de inibição.

9.º As penas a aplicar “ in casu”, por razões de prevenção geral e especial deveriam – deverão ser de :

      a) 60 dias de multa.

      b) 4 meses de inibição.

10.º Violou ou mal interpretou o Tribunal “a quo” o “instituto da confissão”, omitiu pronúncia e aplicou incorrectamente os artigos 292.º- n.º1, 69.º-n.º1, 71.º - n.ºs 1 e 2, e 40.º- n.ºs 1 e 2 do C. Penal.

Revogando-se a sentença, condenando-se o arguido por negligência e não por dolo e numa pena de 60 dias de multa e 4 meses de inibição.

            O Ministério Público na Comarca da Guarda respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela manutenção integral da douta sentença recorrida.

            O Ex.mo Procurador-geral-adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

            Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

      Fundamentação

            A matéria de facto apurada e respectiva motivação constante da sentença recorrida é a seguinte:

Factualidade provada

A) No dia 28 de… de 2009, pelas 1:55, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-CH-.., na Praça Francisco Salgado Zenha, nesta cidade da Guarda, quando foi interceptado por agentes da PSP que no local procediam a operação de fiscalização.

B) Nessas circunstâncias, o arguido foi submetido ao teste de despistagem de álcool no sangue através do ar expirado no aparelho marca Drager, modelo 7110 MKIII P, com o n.º de

série ARRL-0095, tendo acusado uma TAS de pelo menos 2,13g/l, e declarou não desejar ser

submetido a contraprova.

C) O aparelho onde o arguido foi submetido ao teste de despistagem de álcool no sangue através do ar expirado foi verificado (verificação periódica) em 31 de Dezembro de 2008, tendo o resultado sido “aprovado”.

D) O arguido, agindo de forma livre, consciente e deliberada, conduziu veículo automóvel ligeiro de passageiros na via pública, bem sabendo que tinha ingerido bebidas alcoólicas em quantidade que lhe podia determinar, como determinou, uma TAS superior a 1,2g/l e que por isso não lhe era lícito conduzir, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

E) O arguido exerce a profissão de advogado, tendo declarado fiscalmente o rendimento de cerca de €9.000,00 relativo ao ano passado. É divorciado e tem dois filhos de 19 e 15 anos de idade respectivamente, que vivem com a mãe. Suporta a quantia mensal de €400,00 a título de pensão de alimentos para os seus filhos e paga ainda os estudos universitários da filha mais velha. Vive também com a ajuda da mãe, sendo a casa em que reside pertença desta última.

F) O arguido confessou integralmente e sem reservas os factos pelos quais foi acusado.

G) O arguido foi já condenado no âmbito do processo n.º …./05.9GCGRD, do 2º Juízo do Tribunal Judicial …., pela prática em 23 de …. de 2005 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena principal de 60 dias de multa à taxa diária de € 6,00, o que perfaz o total de € 360,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses. Tal decisão transitou em julgado a 20 de Dezembro de 2005.

Factualidade não provada

Da audiência de discussão e julgamento não resultaram como não provados quaisquer

factos com relevância para a boa decisão da causa.

Motivação

O tribunal baseou a sua convicção essencialmente nas declarações prestadas em audiência pelo arguido, o qual confessou integralmente e sem reservas os factos pelos quais foi acusado e presente a julgamento, e que assim se deram consequentemente como provados.

Em sentido coadjuvante, foi considerado ainda o talão de fls. 6 relativo aos teste de pesquisa de álcool no sangue através de ar expirado que foi efectuado pelo arguido.

Finalmente, o arguido depôs ainda sobre a sua condição familiar e económica em termos acerca dos quais não existiram razões para duvidar. Quanto aos seus apontados antecedentes criminais, foi relevante o respectivo CRC que consta dos autos.

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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos , face às conclusões da motivação do arguido RR as  questões a decidir são as seguintes :

- se o arguido confessou que conduzia a viatura sabendo que tinha ingerido bebidas alcoólicas, mas não confessou que tivesse a consciência que tinha uma TAS superior a 1,20 g/litro, pelo que deveria ter sido condenado a título de negligência e não de dolo;

- se existe omissão de pronúncia por parte do Tribunal a quo uma vez que não valorou o facto de o arguido ter 47 anos, ter respondido apenas uma vez em 2005, ter dois filhos no Porto a viver com a mãe de quem é divorciado e ter  necessidade absoluta e continua de conduzir veículos automóveis, nem justificou a aplicação da pena de 120 dias de multa e 9 meses de inibição; e

- se o Tribunal a quo violou, interpretou mal e aplicou incorrectamente os artigos 292.º, n.º1, 69.º, n.º1, 71.º, n.ºs 1 e 2 e 40.º, n.ºs 1 e 2 do C. Penal, pois as penas a aplicar “ in casu”, por razões de prevenção geral e especial deveriam ser de 60 dias de multa e 4 meses de inibição de conduzir.

            Passemos ao conhecimento da primeira questão.

O arguido  defende que o Tribunal a quo violou ou interpretou mal o instituto da confissão, ao fazer uma “ interpretação extensiva da confissão” , pois “não confessou o dolo”, a consciência do estado de embriaguez, mas sim a ingestão de bebidas alcoólicas. Ou seja, confessou que estava consciente que tinha bebido, mas não que se encontrava em estado de embriaguez.

Da acusação consta a expressão “sabendo que tinha ingerido bebidas alcoólicas que lhe poderiam determinar uma TAS superior a 1,20” e “poderiam é condicional”.

Assim, a sua actuação foi apenas negligente e não dolosa.

Vejamos.

Resulta do art.344.º do Código de Processo Penal que a confissão do arguido, isto é, o reconhecimento de factos que o desfavorecem, pode revestir duas modalidades: a confissão integral e sem reservas ou a confissão parcial e com reservas.

A confissão é rodeada de um formalismo processual preciso, tendo em vista a liberdade na sua prestação.

Assim, nos termos do n.º1, daquele preceito processual, perante a declaração feita pelo arguido, no início da audiência de julgamento, de que pretende confessar os factos que lhe são imputados, o presidente do Tribunal, pergunta-lhe se o faz de livre vontade e fora de qualquer coacção, bem como se se propõe fazer uma confissão integral e sem reservas.

Deve considerar-se confissão integral aquela que abrange todos os factos imputados, e confissão sem reservas aquela que não acrescenta novos factos susceptíveis de dar aos imputados um tratamento diferente do pretendido – cfr. Cons. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal anotado”, Almedina, edição 2009, pág. 789.

Quer na hipótese de confissão integral e sem reservas nos casos previstos no n.º 3 deste art.344.º, quer no caso de confissão parcial ou com reservas, o Tribunal mantém a liberdade de admitir ou não a confissão e em que medida deve ter lugar, quanto aos factos confessados, a produção da prova ( n.º4).

De acordo com o n.º2 do art.344.º do C.P.P., a confissão integral e sem reservas implica: a) renúncia à produção da prova relativa aos factos imputados e consequente consideração destes como provados; b) passagem de imediato às alegações orais e, se o arguido não dever ser absolvido por outros motivos, à determinação da sanção aplicável; e c) redução da taxa de justiça em metade.

A confissão, bem como a decisão sobre o valor da confissão conferido pelo Tribunal, deverá ficar documentada em acta de audiência de julgamento, segundo as regras gerais.

Fala-se de interpretação extensiva quando se chega à conclusão de que a letra da lei é mais restrita que o seu espírito; o legislador minus dixit quam voluit. Esta interpretação só é possível quando o interprete conclui pela certeza de que o legislador se exprimiu restritivamente. 

O crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292.º, n.º 1 do Código Penal, é punível quer a título de dolo, quer de negligência.
A doutrina dominante define o dolo, na sua formulação mais geral, como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito.
O dolo enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo é elemento constitutivo do tipo-de-ilícito e, como expressão de uma atitude pessoal contrária ou indiferente perante o dever- ser jurídico-penal, é ainda elemento constitutivo  do tipo-de-culpa dolosa.
O Código Penal não define o dolo do tipo, mas apenas, no seu art.14.º, cada uma das formas em que ele se analisa (directo, necessário ou eventual) . O dolo directo é aquele em que o agente prevê e tem como fim a realização do facto criminoso ( n.º1). O dolo necessário existe quando o agente sabe que em consequência de uma sua conduta realizará um facto que preenche um tipo legal de crime e, ainda assim, não se abstém de a praticar ( n.º2). Por fim, no dolo eventual, o agente previu o resultado como consequência possível da sua conduta, mas não se abstém de a empreender, conformando-se com a produção do resultado (n.º3).
A negligência, de acordo com o art.15.º do Código Penal, tem lugar quando o agente viola o dever objectivo de cuidado devido, concretizado com apelo às capacidades da sua observância pelo “homem médio”, conduzindo a uma representação imperfeita da realização do tipo ( negligência consciente) ou a uma não representação da realização do tipo ( negligência inconsciente). 
Como bem se menciona na douta sentença recorrida, reproduzindo o ensinamento do Prof. Germano Marques da Silva, « O crime é doloso sempre que o agente, tendo consciência do seu estado, pratica a condução de veículo rodoviário. Se o agente não tinha consciência do seu estado, por erro indesculpável, o crime é-lhe imputado a título de negligência.» - in “Crimes Rodoviários – Pena Acessória e Medidas de Segurança”, Unv. Católica, Lisboa, 1996, pág. 16.  

No caso em apreciação o Ministério Público acusou o arguido de conduzir um veículo automóvel, na via pública e, de tendo sido submetido ao teste de despistagem de álcool no sangue através do ar expirado, haver acusado uma TAS de pelo menos 2,13g/l.

A nível de tipo subjectivo escreveu-se na acusação que « O arguido, agindo de forma livre, consciente e deliberada, conduziu veículo automóvel ligeiro de passageiros na via pública, bem sabendo que tinha ingerido bebidas alcoólicas em quantidade que lhe poderia determinar, como determinou, uma TAS superior a 1,2g/l e que por isso não lhe era lícito conduzir, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei Penal.».

Da acta de audiência de julgamento de 14 de .. de 2009, consta que o arguido , logo após a sua identificação na audiência, requereu a palavra e sendo-lhe concedida disse confessar os factos de que vem acusado. Tendo em seguida o Ex.mo Juiz  perguntado ao arguido se tal confissão era feita de livre vontade, fora de qualquer coacção, integral e sem reservas, nos termos do art.344.º do C.P.P., respondeu o arguido afirmativamente.    

Em despacho então proferido o Ex.mo Juiz decidiu que, face à confissão integral e sem reservas do arguido, se dispensava a produção de prova indicada na acusação, procedendo-se de imediato à produção de alegações orais.

Do exposto resulta que o Tribunal admitiu como válida a confissão integral e sem reservas realizada pelo arguido

A admissão da confissão dos factos pelo Tribunal a quo implica a consideração dos mesmos factos como provados, nos termos da al.a), n.º2, art.344.º do C.P.P., formando-se nessa parte caso julgado.

Constando da acusação do Ministério Público, designadamente, que o arguido agiu de forma consciente, sabendo que tinha ingerido bebidas alcoólicas em quantidade que lhe poderia determinar, como determinou, uma TAS superior a 1,2g/l e que por isso não lhe era lícito conduzir, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei Penal, atento o disposto na al.a), n.º2, art.344.º do C.P.P., o Tribunal a quo tem de dar como provada a mesma factualidade imputada ao arguido na acusação.

Resultando dos factos dados como provados na sentença que o Tribunal a quo deu como provada essa factualidade – embora com a alteração num parágrafo do tempo verbal “ poderia” ( condicional ou futuro do pretérito) por “podia” ( pretérito imperfeito), sem interferência no sentido da frase –, foi dado cumprimento ao disposto no art.344.º do Código de Processo Penal.

Sem qualquer apoio na letra ou espírito do art.344.º do Código de Processo Penal, é assim a pretensão do arguido de que ao declarar em audiência de julgamento que confessava integralmente e sem reservas os factos de que vinha acusado, afinal apenas confessou que estava consciente que tinha bebido, mas não que se encontrava em estado de embriaguez.

A confissão dos factos que lhe eram imputados , nos termos mencionados no recurso, seria uma confissão parcial e com reservas, que obrigaria à produção da prova – e tendo em conta que considera-se sob influência do álcool o condutor que apresente uma TAS igual ou superior a 0,5 g/l ( art.81.º, n.º2 do Código da Estrada) e que o arguido conduzia com uma TAS de 2,13 g/l , não seria certamente difícil concluir que este representou como possível que conduzia com  uma TAS superior a 1,2g/l – e não uma confissão integral e sem reservas.

Face à factualidade dada como provada na sentença recorrida e ao que se deixou exposto relativamente às noções de dolo e negligência, não merece ainda censura a decisão do Tribunal a quo na parte em que concluiu que dos factos provados resulta que o arguido agiu com dolo eventual ao conduzir um veículo automóvel na via pública, com uma TAS de 2,13 g/l.

Improcede deste modo a primeira questão.

            Passemos à segunda questão.

O recorrente alega nas conclusões - sem desenvolvimento na motivação do recurso - que  existe omissão de pronúncia por parte do Tribunal a quo enquanto não atentou ao facto de o arguido ter 47 anos, ter respondido apenas uma vez em 2005, ter dois filhos no Porto a viver com a mãe de quem é divorciado e ter  necessidade absoluta e continua de conduzir veículos automóveis, nem justificou a aplicação da pena de 120 dias de multa e 9 meses de inibição.

Vejamos.

Do art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal resulta que a fundamentação da sentença, «… consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito , que fundamentam a decisão , com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal .». 

Os factos que devem constar da sentença são os alegados pela acusação e pela defesa e bem assim os que resultarem da discussão da causa, relevantes para saber, designadamente, se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime, se o arguido praticou o crime ou nele participou ou se o arguido agiu com culpa (art.368.º, n.º 2 do C.P.P.). Resultando da deliberação do Tribunal Colectivo ou da decisão do Juiz que deve ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança, o presidente lê toda a documentação existente nos autos relativa aos antecedentes criminais do arguido, à perícia sobre a sua personalidade e ao relatório social ( art.369.º, n.º 2 do C.P.P.).

A sentença que não contiver as menções referidas no art.374.º, n.º 2 do C.P.P. ou quando deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, é nula, nos termos do art.379.º, n.º 1, alíneas a) e c) do mesmo Código.

No presente caso, o Tribunal a quo deu como provado na sentença, designadamente, que o arguido respondeu criminalmente em 2005 ( al.G), e tem dois filhos no Porto a viver com a mãe ( al.E).

Tais factos só podem ter resultado da discussão da causa, pois não constam dos factos da acusação e a defesa não apresentou contestação.

Se o Tribunal a quo os deu como provados foi porque os teve como relevantes para a decisão da causa, e como tal os valorou.

A idade do arguido e o seu estado civil, constam do relatório da sentença, da identificação do arguido.

Quanto à necessidade absoluta e contínua do arguido conduzir veículos automóveis, o Tribunal a quo não incluiu este facto entre a matéria provada em resultado da discussão em julgamento.

O arguido não menciona, porém, com base em que prova deveria o facto ter sido dado como provado e valorado, e sem indicar essa prova não pode o Tribunal da Relação modificar a matéria de facto da decisão recorrida.

Na fundamentação de direito da sentença recorrida, num capitulo intitulado “ Da  análise dos factos e da aplicação do Direito” , o Tribunal a quo procede à subsunção dos factos ao direito, justificando com razoável desenvolvimento, a opção pela aplicação da pena de multa em detrimento da pena de prisão, previstas como penas principais no tipo legal, e bem ainda os motivos pelos quais, nos termos dos artigos 71.º, n.ºs 1 e 2 , 40.º, n.ºs 1 e 2 , 47.º, n.º2 e 69.º, n.º1 , al. a), do Código Penal, em face dos factos provados, tem como justas e adequadas as penas de 120 dias de multa e 9 meses de proibição de conduzir veículos com motor.

Deste modo, não se reconhece a omissão de pronúncia sobre qualquer questão na sentença recorrida.

            Por fim importa decidir se o Tribunal a quo violou, interpretou mal e aplicou incorrectamente os artigos 292.º, n.º1, 69.º, n.º1, 71.º, n.ºs 1 e 2 e 40.º, n.ºs 1 e 2 do C. Penal, pois as penas a aplicar “ in casu”, por razões de prevenção geral e especial deveriam ser de 60 dias de multa e 4 meses de inibição de conduzir.

Em face da factualidade dada como provada temos como pacifico que, com a sua conduta, o arguido praticou, em autoria material, um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto pelo art.292.º, n.º l do Código Penal, na redacção da Lei n.º77/2001, de 13 de Julho, e punível com pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

O Tribunal recorrido, atento o disposto no art.70.º do Código Penal, optou pela aplicação ao arguido da pena de multa.

Na determinação concreta da pena de multa deve o juiz começar por fixar o número de dias de multa e estes, por expressa remissão do art.47.º, n.º1 do Código Penal, devem ser determinados de acordo com os critérios estabelecidos no art.71.º do Código Penal   .

Assim, na graduação do número de dias da pena de multa deve o Tribunal atender à culpa do agente e ás exigências de prevenção ( n.º1 ), bem como a todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra este ( n.º2).

A culpabilidade é um juízo de reprovação que se faz sobre uma pessoa, censurando-a em face do ordenamento jurídico-penal.

O facto punível não se esgota na desconformidade com o ordenamento jurídico-penal, com a acção ilícito-típica, necessário se tornando sempre que a conduta seja culposa, “ isto é , que o facto possa ser pessoalmente censurado ao agente , por aquele se revelar expressão de uma atitude interna pessoal juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever - ser sócio - comunitário.”- cfr. Prof. Fig. Dias , in “Temas básicos da doutrina penal”, Coimbra Ed., pág. 230.

A protecção dos bens jurídicos implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo quer para dissuadir a prática de crimes , através da intimidação das outras pessoas face ao sofrimento que com a pena se inflige ao delinquente ( prevenção geral negativa ou de intimidação ) , quer  para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na  tutela de bens jurídicos e , assim , no ordenamento jurídico-penal ( prevenção geral positiva ou de integração).

A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é , à ideia de que a pena é um instrumento de actuação preventiva sobre a pessoa do agente , com o fim de evitar que no futuro , ele cometa novos crimes , que reincida.

Por respeito à eminente dignidade da pessoa a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa ( art.40.º, n.º 2 do C.P.) , designadamente por razões de prevenção.

O crime de  condução de veículo em estado de embriaguez  , que aqui está em causa , visa a preservação da  segurança rodoviária e de bens inerentes a esta.

Os veículos são, reconhecidamente, geradores de risco para a vida, integridade física e para os bens de todos aqueles utilizam as vias públicas ou fazem utilização das suas margens ou proximidades.

A condução com níveis de alcoolemia acima de certo grau é punível como crime por o legislador presumir que a situação é perigosa sob o ponto de vista de bens jurídicos penalmente tutelados.
O Tribunal da Relação entende que o grau de ilicitude do facto imputado ao arguido  é elevado, considerando a TAS de 2,31 g/l que apresentava na condução, e elevada a culpa, uma vez que agiu com dolo eventual.

A conduta anterior aos factos não lhe é favorável uma vez que tem já antecedentes criminais.
Como advogado, servidor da justiça e do direito, no exercício da profissão e fora dela, recaia sobre o arguido o particular dever de respeitar os bens jurídicos da sociedade ( art.76.º do EOA) e não praticar ilícitos-típicos  criminais.

A condição social do arguido é boa, sendo que se encontra bem inserido na sociedade, participando economicamente no sustento das suas filhas, apesar da modesta situação económica.    

A confissão integral não tem praticamente relevância em face da detenção em flagrante delito do arguido. A idade do arguido, longe da juventude e da velhice, bem como o estado civil de divorciado, não são causas que diminuam a sua responsabilidade criminal, com efeitos na determinação da medida da pena.

As exigências de prevenção geral, no caso em análise, são prementes, tendo em conta, nomeadamente, o elevado índice de sinistralidade rodoviária resultante de condução sob influência de álcool no sangue , com graves consequências para a vida, o corpo e o património quer dos agentes do crime, quer de outras pessoas alheias à conduta destes.

As razões de prevenção especial ou individual não são de desprezar considerando que o arguido conduzia na via pública um veículo automóvel com uma TAS de 2,31 g/l e que em 20 de Dezembro de 2005 transitou em julgado a sentença que o condenou, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, em 60 dias de multa e em 3 meses de inibição de conduzir.

O arguido ao conduzir com uma TAS de 2,13 g/l demonstrou ser insensível ao descrito quadro de perigo e danos na estrada resultante da condução sob o efeito do álcool, apesar das constantes campanhas desenvolvidas pela sociedade contra a condução nesse estado.

Considerando o exposto e que a pena de multa tem de representar uma censura suficiente do facto e, simultaneamente, uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada, o Tribunal da Relação conclui que a multa de 120 dias fixada pelo Tribunal recorrido respeita em concreto a medida da culpa do arguido e as exigências de prevenção.
Deste modo, é de manter o número de dias de multa fixado na sentença recorrida.

O art.69.º, n.º1, alínea a) do Código Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho, estatui que é condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos, quem for punido por crime previsto no art.292.º do mesmo Código.

Esta sanção inibitória tem natureza de pena acessória, como resulta claramente do texto do art.69.º , da sua inserção sistemática e do elemento histórico ( Actas da Comissão de Revisão do Código Penal  , n.ºs 5, 8, 10 e 41 ), traduzindo-se numa censura adicional pelo crime praticado .

O Prof. Figueiredo Dias defendia já em 1993 [4], ainda no plano de lege ferenda , o estabelecimento no direito penal geral de uma verdadeira pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados. «Uma tal pena deveria ter como pressuposto formal a condenação do agente numa pena principal por crime cometido no exercício da condução, ou com utilização de veículo, ou cuja execução tivesse sido por este facilitada de forma relevante; e por pressuposto formal material a circunstância de, consideradas as circunstâncias do facto e da personalidade do agente, o exercício da condução se revelar especialmente censurável.» (...) «Por isso, à proibição de conduzir deve também assinalar-se ( e pedir-se ) um efeito de prevenção geral de intimidação , que não terá em si nada de ilegítimo porque só pode funcionar dentro do limite da culpa. Por fim, mas não por último, deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano.» .

Quer a pena principal , quer a acessória ,  assentam num juízo de censura global pelo crime praticado e daí que para a determinação da medida concreta de uma e outra se imponha o recurso aos critérios estabelecidos no art.71.º do Código Penal .

A pena acessória não tem que seguir o destino e a sorte da pena principal , uma vez que não visa integralmente a mesma finalidade.

O Tribunal recorrido condenou o arguido RR em 9 meses de inibição de conduzir veículos com motor.

Sobre a culpa do arguido e as exigências de prevenção ( geral e especial ) e as circunstâncias que depõem a favor e contra o arguido, na determinação da medida da pena acessória, nada temos a acrescentar ao acabado de expor.  

É natural que o arguido, como a generalidade dos condutores, necessite da carta de condução para o exercício da sua vida profissional e pessoal.

Caso fosse demonstrado que o recorrente inelutavelmente necessitava de conduzir veículos automóveis para o exercício da sua profissão, a objectiva restrição do direito ao trabalho, que resulta da aplicação da medida sancionatória, não é razão para a não aplicação da pena acessória ou para a diminuição da sua medida, pois que com ela se visa não só reinserir o arguido como proteger a sociedade e, simultaneamente, compensá-la do risco a que os seus membros foram sujeitos com a prática de uma condução sob o efeito do álcool. – cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 440/02  [5].

Conjugando todo o circunstancialismo descrito entendemos que a pena acessória de inibição da faculdade de conduzir pelo período de 9 meses aplicada ao arguido – já com antecedentes criminais e quando a mesma vai de 3 meses a 3 anos - , não é seguramente exagerada face aos fins das penas , nem desproporcional à sua culpa .

A fixação da pena acessória nos 4 meses, como defende o recorrente, representaria uma censura insuficiente do facto, e poria em causa a garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada.

Assim, mantém-se também o período de proibição de conduzir fixado na sentença recorrida.

           

Decisão

            Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido RR e, consequentemente, manter a douta sentença recorrida.

Custas pelo recorrido, fixando a taxa de justiça em 5 UCs.

                                                                         *

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). 

                                                                                             

   *

                                                                                        Coimbra,

 


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.

[4] Direito Penal Português , As consequências jurídicas do crime , Notícias Editorial , § 205.
 
[5]   in www.tribunalconstitucional.pt