Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1625/09.4TBCTB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: PENHORA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
AQUISIÇÃO
TERCEIRO
FALTA DE REGISTO
Data do Acordão: 12/19/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTELO BRANCO – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 5º, Nº 4 DO C.R.PREDIAL.
Sumário: I – Dado o carácter consensual (não formal) da venda de um veículo automóvel, a aquisição não registada deste, quando efectivamente apurada em sede de embargos de terceiro, não deixa de produzir efeitos substanciais quanto à propriedade desse veículo.

II – Assim, uma posterior penhora desse veículo, ainda formalmente registado em nome do Executado que o vendeu ao Embargante, consubstancia-se na penhora de um bem não pertencente ao Executado.

III – Através da penhora o Exequente apenas adquire um direito real de garantia que se materializa através do valor obtido com a venda do bem penhorado, paralelamente a uma indisponibilidade relativa referida a actos dispositivos subsequentes à penhora que venham a incidir sobre esse bem.

IV – Neste sentido, através do registo da penhora do veículo não se desencadeia qualquer aquisição tabular do bem, nos termos do artigo 5º, nº 1 do CRPred, não sendo sequer qualificável o Exequente como “terceiro”, nos termos do nº 4 do artigo 5º do CRPred.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa

            1. Em 22/10/2009 foi instaurada pela instituição de crédito Banco C…, S.A. (Exequente aqui Embargado e Apelante) execução para pagamento de quantia certa[1], contra os Executados I…, J… e B…- Sociedade Portuguesa de Veículos Lda.

            1.1. Penhorado que foi em 12/10/2010, no desenvolvimento desta execução, o veículo automóvel matrícula … (marca Mercedes, modelo C 220-CDI, do ano de 2005), registado em nome da Executada B… desde 02/10/2006, veio – e assim descrevemos o trecho processual na fase executiva que originou o presente recurso no apenso de embargos – A… (Embargante e aqui Apelado), deduzir oposição a tal penhora, mediante embargos de terceiro [artigo 351º a 359º do Código de Processo Civil (CPC)], invocando ser ele e não a B… o proprietário do veículo penhorado, por o haver adquirido a esta em 10/10/2006[2].

            1.2. Contestou a Exequente os embargos, sendo que, em julgamento, foram os mesmos julgados procedentes através da Sentença de fls. 69/73 vºesta constitui a decisão objecto da presente apelação –, determinando-se o levantamento da penhora sobre a viatura.

            1.3. Inconformada apelou a Exequente, concluindo o seguinte na motivação do recurso:
[…]


II – Fundamentação

            2. Relatado o essencial do iter processual que conduziu à presente instância de recurso, cumpre apreciar os fundamentos da apelação, tendo em conta que as conclusões formuladas pelo Apelante – acabámos de as transcrever no item anterior – operaram a delimitação temática do objecto do recurso, isto nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 CPC[3]. Com efeito, fora das conclusões só valem, em qualquer recurso, questões que se configurem como de conhecimento oficioso (di-lo o trecho final do artigo 660º, nº 2 do CPC). Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas. E, enfim, esgotando nestas indicações preambulares o modelo de construção do objecto de um recurso, devem distinguir-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos esgrimidos pelo recorrente ao longo da motivação, sendo certo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àqueles (às questões fundamentos, em si mesmas consideradas) e não aos diversos argumentos jurídicos convocados pelo recorrente nas alegações.

            Assim, caracterizando este recurso, constatamos que – aceitando o Apelante os factos fixados na primeira instância[4] – assenta a impugnação na valorização do não registo da venda anterior à penhora como elemento bloqueador da consideração daquela. Prevaleceria, por conseguinte – mesmo contra a materialidade substantiva de uma venda anterior –, o registo posterior dessa penhora. Este constitui o tema (único) do recurso.  

            Os factos a considerar são, pois, importados do elenco da decisão recorrida, os quais aqui transcrevemos:
[…]

            2.1. Na consideração da crítica do Apelante à Sentença importa ter presente, como dado relevante primordial, a circunstância de ter ocorrido em Outubro de 2006 uma efectiva venda da viatura ,,, ao Embargante e que essa alienação não foi sujeita a registo: não foi (então e até ao presente) registada essa nova dominialidade (note-se a circunstância destas asserções expressarem a realidade resulta, obviamente, dos factos provados e estes, como se disse na nota 6 supra, ninguém os contesta neste recurso).

Como segundo dado a reter na economia decisória do recurso, convocamos aqui a posterior realização da penhora (rectius, o registo desta) sobre a viatura … no âmbito da presente execução, em Outubro de 2010, quando os factos registados incidentes sobre essa mesma viatura a “davam”[5] como (ainda) pertencente à Executada, não obstante ter ocorrido essa venda anterior ao Embargante. Existia, tão-só, no que a factos levados ao registo automóvel diz respeito, e para além da indicação (registral) dessa propriedade em nome da Executada, uma reserva de propriedade em nome da Exequente (item 6 dos factos).

São estes, numa casca de noz, os dados fundamentais da acção (dos embargos) e deste recurso.

2.1.1. Note-se que esta última incidência (a reserva de propriedade a favor da ora Apelante) resultou, como se apurou no julgamento, de uma operação geral de financiamento do Executado por parte da instituição de crédito Exequente e não da circunstância da viatura … aqui penhorada ser, concomitantemente a esse financiamento, pertencente ao (propriedade do) Banco Exequente e que este a teria transferido nesse acto para o Executado. É isto o que inequivocamente resulta do item 10 dos factos acima transcritos, expressando este trecho factual a intencionalidade do referido mútuo.

            Destacamos aqui este elemento, que no argumentário do Apelante desestabilizaria a posição de proprietário do Apelado, conforme essa posição foi definida na Sentença – repetimos: a questão do registo da reserva de propriedade em favor daquele Apelante num quadro de financiamento geral do Executado –, destacamos este aspecto, dizíamos, porque, através da ultrapassagem dele, vamos centrar-nos no que representa o elemento fulcral da crítica à Sentença por via do recurso: o suposto descaso pelo Tribunal a quo do facto registado – a penhora –, relativamente ao facto não registado – a anterior alienação da viatura ao Embargante.

Ora, entendendo a reserva de propriedade com o exacto sentido que o artigo 409º, nº 1 do Código Civil lhe confere (o de só actuar nos contratos de alienação[6]), encontramo-nos fora da cobertura teleológica da situação quando a reserva aparece (rectius, aparece registada) num contexto que, como aqui sucede, extravasa da alienação, referindo-se a um mútuo, mesmo quando este visa assegurar meios para a aquisição do bem reservado, seja esta aquisição ulterior ou concomitante do contrato de mútuo.

É com este sentido que a Sentença apelada afastou – e decidiu acertadamente – a relevância da reserva de propriedade, seguindo, aliás, precedentes jurisprudenciais persuasivos existentes a propósito de questões semelhantes à que aqui se configura[7].

2.1.2. Ultrapassado o (suposto) problema da reserva de propriedade, centremo-nos agora na questão que na Sentença assumiu o papel de verdadeira ratio decidendi quanto à procedência dos embargos: a não prevalência da realidade registal referida à viatura sobre a prova efectiva de uma anterior alienação conflituante com essa realidade registal.

A argumentação do Apelante assenta na extrapolação do valor que atribui ao registo face à realidade substancial não registada.

Repete-se que aqui se apurou como realidade substancial – e o Apelante não a contesta – a não propriedade da viatura pela Executada desde 2006, não obstante o registo o não “dizer”, em 2010, ao tempo da realização da penhora. É, pois, a prevalência desta afectação executiva (da penhora) o que aqui se pretende ver reconhecido, não obstante a comprovação dessa venda anterior do bem penhorado a um terceiro (terceiro relativamente à relação objecto da tutela executiva), precisamente o terceiro que aqui deduziu os embargos.

Temos, pois, como realidades opostas convocadas à resolução do problema a penhora e o registo (em rigor o argumento expressa-se na afirmação do não registo) da alienação da viatura, esta enquanto móvel sujeito a registo[8].

2.1.2.1. Começando pela penhora, sublinharemos constituir esta, descritivamente, um acto do Tribunal (nos tempos que correm um acto praticado por um agente de execução[9]), situado no desenvolvimento de uma instância executiva – a penhora é, neste sentido, um acto processual –, cuja função consiste, na dinâmica do processo, na concentração em certos bens do devedor (aqueles que forem objecto desse acto) da subsequente actividade judicial tendente a realizar o respectivo valor para satisfação do pedido executivo[10].

É através da penhora que a tutela executiva específica evolui de um plano de alcance geral do património do executado para um alcance já referido (já limitado) a determinados bens. Ou seja – e referenciamos o acto processual da penhora ao que este já envolve como efeito substantivo para os bens alcançados por ela –, “[…] produz [a penhora] a concentração do direito do credor sobre o património do devedor nos bens efectivamente apreendidos pelo tribunal, criando sobre estes bens, a favor do exequente e dos credores cujos créditos venham a ser verificados no processo, um direito real de garantia”. Este direito, “[…] que não dá poder de disfruto da res, mas que incide apenas sobre o valor pecuniário dela e com a finalidade específica de satisfação de um crédito pecuniário”, altera, a referenciação subjectiva do poder de disposição desses bens, passando este a integrar a jurisdição executiva do Tribunal[11]. E, com efeito, não perdendo o Executado com a penhora, propriamente, o poder de dispor do bem alcançado, gera-se uma indisponibilidade relativa dos actos dispositivos subsequentes que incidam sobre esse bem[12]. Porém, ficam ressalvados – rectius, são válidos – os actos dispositivos anteriores à penhora, desde que intrinsecamente válidos, como sucede com uma compra e venda de um veículo celebrada consensualmente[13].

Está aqui em causa, pois, um acto dispositivo válido muito anterior à penhora, tratando-se de projectar o registo desta última (da penhora), como acto prevalecente, face ao não registo de uma anterior aquisição válida pelo Embargante, não se concebendo, contrariamente ao que pretende o Apelante, que um acto de disposição anterior relativo ao bem posteriormente penhorado – a venda da viatura cuja ocorrência foi aqui efectivamente apurada – seja afectado na sua subsistência, enquanto efectiva transferência da dominialidade desse bem entre o vendedor e o comprador, por uma incidência posterior – a penhora – que foi registada, mas relativamente à qual esse registo apresenta um efeito fundamentalmente enunciativo, que neste caso, como tantas vezes sucede, se frustrou (este elemento particular é directamente enunciado no artigo 1º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, que está transcrito na nota 10 supra, e coloca-se aqui, remissivamente, como se colocaria relativamente ao registo predial[14]).

Ora, porque a realização da penhora não corresponde nos seus efeitos substantivos, como antes indicámos, a qualquer tipo de alienação do bem penhorado – esta só decorrerá, e muito peculiarmente, da posterior venda do bem penhorado e não envolverá como sujeito o ora Apelante – este não adquire, portanto, de um autor comum, direitos incompatíveis[15]. Desta forma, não tem qualquer sentido convocar a estes embargos o conceito de terceiro para efeitos de registo, nos termos em que esse conceito foi definido no nº 4 do artigo 5º do Código de Registo Predial (CRPred), não sendo dedutível dessa circunstância qualquer fundamento para fazer subsistir a penhora contra uma alienação válida anterior a esta. Com efeito, constitui escopo do nº 1 do artigo 5º do CRPred, enquanto norma indutora de uma situação de aquisição tabular, a protecção ao terceiro que, confiando na aparência gerada por uma determinada situação registral desconforme à realidade substantiva, celebra um negócio jurídico inválido com o titular inscrito e regista (ele, o que celebrou o negócio inválido) a respectiva aquisição[16].

Nada disto se passou com o ora Embargado, não sendo essa (a de um terceiro de boa fé no sentido do nº 4 do artigo 5º do CRPred), obviamente, a situação dele (Apelante/Exequente), no confronto com o Embargante e aqui Apelado.

2.2. Vale tudo isto, enfim, pela confirmação da decisão recorrida, que aqui sumariamos:
I – Dado o carácter consensual (não formal) da venda de um veículo automóvel, a aquisição não registada deste, quando efectivamente apurada em sede de embargos de terceiro, não deixa de produzir efeitos substanciais quanto à propriedade desse veículo;
II – Assim, uma posterior penhora desse veículo, ainda formalmente registado em nome do Executado que o vendeu ao Embargante, consubstancia-se na penhora de um bem não pertencente ao Executado;
III – Através da penhora o Exequente apenas adquire um direito real de garantia que se materializa através do valor obtido com a venda do bem penhorado, paralelamente a uma indisponibilidade relativa referida a actos dispositivos subsequentes à penhora que venham a incidir sobre esse bem;
IV – Neste sentido, através do registo da penhora do veículo, não se desencadeia qualquer aquisição tabular do bem, nos termos do artigo 5º, nº 1 do CRPred, não sendo sequer qualificável o Exequente como “terceiro”, nos termos do nº 4 do artigo 5º do CRPred.


III – Decisão

            3. Pelo exposto, na total improcedência da apelação, decide-se confirmar a Sentença recorrida, ou seja, o levantamento da penhora que, no processo executivo matriz, incidiu sobre o veículo ...

            O Apelante, que decaiu no recurso, suportará as custas desta instância, somadas às da instância precedente.




J. A. Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca


[1] Marca esta data – a da instauração da execução – a aplicação do regime dos recursos introduzido pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Assim, sempre que seja necessário convocar na subsequente exposição alguma norma do CPC cujo texto tenha sido alterado pelo referido Decreto-Lei nº 303/2007, estará em causa a redacção dessa norma introduzida por este último Diploma.
[2] Indicou o Embargante na respectiva petição de embargos:
“[…]

5.º

O Autor, mediante contrato verbal de compra e venda, comprou à executada, a 10/10/2006, o veículo ligeiro de passageiros marca Mercedes, modelo C220CDI Avantg., matrícula …, pelo preço de €48.000,00 (quarenta e oito mil euros), cfr. doc. n.º 2, e 3 que aqui se dão por inteiramente reproduzidos.

6.º

O Autor pagou a totalidade do preço à executada B… na data acima referida.

7.º

Através do cheque número … do Banco …, no montante de €31.000,00, cfr. doc. n.º 4.

8.º

E com a entrega à executada, a título de retoma, da viatura Mercedes Benz, matrícula …, avaliada em €17.000,00, cfr. doc. n.º 5.

9.º

A compra e venda do veículo identificado em 1.º foi celebrada na convicção do embargante que era livre de quaisquer ónus ou encargos.

10.º

O preço pago pelo embargante à executada pela viatura, era o preço de mercado, à data, para uma viatura livre de ónus e encargos idêntica à adquirida pelo embargante.

11.º

O autor desde a referida data 10/10/2006 adquiriu a propriedade da referida viatura, circulando com ela e pagando os respectivos prémios de seguro e impostos, cfr. docs n.º 6 e 7.

12.º

À vista de todas as pessoas.

13.º

Actuando em conformidade e julgando-se seu legítimo e único proprietário.

14.º

A Executada tomou o encargo e assumiu perante o autor proceder ao registo do referido veículo, na competente Conservatória do Registo Automóvel, em nome do autor.

15.º

Para o efeito, e como procedeu à venda do veículo referido em 1.º ao embargante, a executada entregou ao autor um documento para que este circulasse com a viatura que havia comprado à executada, até se encontrar efectuado o registo de propriedade a favor do embargante cfr. doc. n.º 2.

16.º

À presente data a executada nunca chegou a efectuar o registo da viatura referida em 1.º em nome do embargante, que se obrigou a efectuar, cfr. doc. 1 .

17.º

Da certidão de Registo Automóvel do veículo identificado em 1.º, está inscrita um registo de reserva de propriedade a favor da embargada, com data de 02/10/2006, cfr. doc. n.º 1.

18.º

À data da compra e venda referida em 5.º o embargante desconhecia o registo da cláusula de reserva de propriedade a favor embargada.
[…]” [transcrição de fls. 4/5].
[3] V. o Acórdão do STJ de 03/06/2011 (Pereira da Silva), proferido no processo nº 527/05.8TBVNO.C1.S1, cujo sumário está disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f9dd7bb05e5140b1802578bf00470473:
Sumário:
“[…]
[O] que baliza o âmbito do recurso, tal sendo, afora as de conhecimento oficioso, as questões levadas às conclusões da alegação do recorrente, extraídas da respectiva motivação (artigos 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do CPC), defeso é o conhecimento de questão não aflorada naquelas, ainda que versada no corpo alegatório.
[…]”.
[4] Note-se que o Apelante não indica qualquer prova que repute de incorrectamente valorada, no sentido de que conduziria à fixação de factos diferentes (v. artigos 685º-B, nº 1, alíneas a) e b) e 712º, nºs 1 e 2 do CPC). E aceitar os factos significa aqui manter os factos fixados, designadamente a asserção de que a viatura foi vendida ao embargante muito antes da penhora, embora essa venda não tivesse sido registada.
[5] O uso das aspas é quase intuitivo (só o registo dava a Executada como dona; ela, todavia, na realidade, não o era). Dá-se aqui a peculiaridade desta palavra, com a contextualização negatória envolvida nas aspas, encerrar a questão fulcral que determina a solução do problema colocado ao Tribunal pelos embargos.
[6] Diz o artigo que “[n]os contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento”.
[7] Indicamos aqui, entre outros possíveis (e como exemplo argumentativamente mais expressivo) o Acórdão da Relação do Porto de 15/01/2007 (Cura Mariano), proferido no processo nº 0651966, disponível no sítio do ITIJ, directamente, no endereço seguinte:
http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/25c4ef7187e1a42d8025726c0053399a.
Sumário:
I - A cláusula de reserva da propriedade, prevista e regulada no art. 409º do Código Civil para os contratos de alienação, traduz-se na sujeição do efeito translativo desses negócios a uma condição suspensiva ou termo inicial, sendo a propriedade sobre o bem alienado, utilizada como garantia do cumprimento das prestações do adquirente.
II - Suspendendo ela, apenas os efeitos translativos inerentes a um contrato de alienação, só poderá ser estipulada nesse contrato.
III - Tal cláusula apenas pode reservar o direito propriedade sobre um bem, suspendendo a sua transmissão, para quem outorga o contrato de alienação, na posição de vendedor, pois só ele é o titular do direito reservado.
IV - No contrato de mútuo, tendo por finalidade o financiamento de aquisição de um determinado bem, apesar da conexão que possa existir entre os dois contratos, o mutuante não pode reservar para si o direito de propriedade sobre esse bem, pela simples razão que não é seu titular, sendo juridicamente impossível que alguém reserve um direito de propriedade que não tem.
V - Sendo nula a cláusula de reserva de propriedade, incluída no contrato de financiamento, o embargante/mutuante não tem qualquer direito sobre o bem penhorado que seja incompatível com a penhora realizada, pelo que devem ser julgados improcedentes os embargos de terceiro que deduziu à penhora do bem – um veículo automóvel.

[8] Interessam-nos aqui, com intensidade distinta, as seguintes disposições do chamado Código de Registo Automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro (com a última versão introduzida pela Lei nº 39/2008, de 11 de Agosto):


Artigo 1º

1 - O registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico.

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Artigo 5.º

1 - Estão sujeitos a registo:

a) O direito de propriedade e de usufruto;

b) A reserva de propriedade estipulada em contratos de alienação de veículos automóveis;

c) A hipoteca, a modificação e cessão dela, bem como a cessão do grau de prioridade do respectivo registo;

d) A locação financeira e a transmissão dos direitos dela emergentes;

e) O aluguer por prazo superior a um ano, quando do respectivo contrato resulte a existência de uma expectativa de transmissão da propriedade;

f) A afectação do veículo ao regime de aluguer sem condutor;

g) A transmissão de direitos ou créditos registados e o penhor, o arresto e a penhora desses créditos;

h) A penhora, o arresto, o arrolamento, a apreensão ou quaisquer outras providências judiciais ou administrativas que afectem a livre disposição de veículos;

i) Os ónus de inalienabilidade ou indisponibilidade previstos na legislação fiscal;

j) A extinção ou a modificação de direitos ou encargos anteriormente registados, a alteração da composição do nome ou denominação e a mudança de residência habitual ou sede dos proprietários, usufrutuários e locatários dos veículos;

l) Quaisquer outros factos jurídicos sujeitos por lei a registo.

2 - É obrigatório o registo dos factos previstos nas alíneas a), b), d), e), f) e i) e o registo da mudança de nome ou denominação e da residência habitual ou sede dos proprietários, usufrutuários e locatários dos veículos.

3 - É dispensado o registo de propriedade, em caso de sucessão hereditária, quando o veículo se destine a ser alienado pelo herdeiro ou herdeiros.

------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------.


Artigo 29.º

São aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial, mas apenas na medida indispensável ao suprimento das lacunas da regulamentação própria e compatível com a natureza de veículos automóveis e das disposições contidas neste diploma e no respectivo regulamento.

---------------------------------------------------------------------------------------------------------.
[9] Um profissional liberal auxiliar da justiça investido de poderes de autoridade no processo executivo (v. o artigo 808º do CPC) onde actua como agente do Estado – órgão de soberania Tribunal – por entrega de poderes originariamente públicos numa situação aparentada a uma forma de descentralização horizontal funcional (v. José Lebre de Freitas, A Acção Executiva. Depois da reforma da reforma, 5ª ed., Coimbra, 2009, pp. 27/28; v. quanto à competência do agente de execução, Eduardo Paiva, Helena Cabrita, O Processo Executivo e o Agente de Execução, Coimbra, 2009, pp. 29/30).
[10] Estamos a parafrasear a caracterização da natureza da penhora por Fernando Pessoa Jorge, Lições de Direito Processual Civil, Lisboa, 1972-73, p. 216.
[11] Fernando Pessoa Jorge, Lições…, cit., p. 218/219: “[o] executado não perde a titularidade do direito penhorado; só a perderá quando este for alienado” (p. 219, nota 1).
[12] José Lebre de Freitas, A Acção Executiva…, cit., pp. 266/268.
[13] V. o Acórdão desta Relação de 03/06/2008 (Jorge Arcanjo), proferido no processo nº 245-B/2002.C1, disponível no sítio do ITIJ, directamente, no endereço:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/bc3774b42c238fee80257467004e55ea.
Sumário (nos trechos aqui relevantes):
“[…]
IV - O contrato de compra e venda de veículo automóvel é meramente consensual, sendo a obrigatoriedade do registo declarativa ou funcional.
V - A presunção do art.7º do CRPred, aplicável ao registo automóvel, sendo juris tantum, importa a inversão do ónus da prova, fazendo recair sobre a outra parte a prova do contrário ( artigos. 347º e 350º do CC ) do facto que serve de base à presunção ou do próprio facto presumido.
[…]”.
Cfr. o Acórdão da Relação do Porto de 21/06/2006 (Fernando Baptista), proferido no processo nº 0634313, disponível na base do ITIJ, directamente, em:
http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/ccdeeb61322a888e802571f7004699d9.
Sumário:
“[…]
I - O contrato de compra e venda de veículo automóvel não está sujeito a qualquer formalidade especial, produzindo-se a transferência da propriedade por mero efeito do contrato. Assim, tal contrato é válido mesmo quando celebrado verbalmente.
II - Havendo colisão entre a presunção fundada no registo de um direito (artigo  7º do CRP) e a presunção decorrente da posse (artigo 1268º CC) com início à data do registo ou anterior a ele, prevalece esta última.
III - Mesmo que a posse e o registo tenham a mesma antiguidade (v.g., prova-se que à data do registo havia posse, mas não se prova a posse anterior), ainda assim em obediência à prevalência, na nossa ordem jurídica, da situação real, uma vez provada, sobre a situação inscrita prevalece a presunção possessória.

[…]”.
[14] V. quanto à caracterização deste efeito em sede de registo predial, Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 4ª ed., 3ª reimpressão, Lisboa, 2006, pp. 127/129.
[15] Este (o Apelante/Exequente), repete-se, apenas tem direito, por via da penhora, ao preço obtido com a venda e nesta, na venda realizada posteriormente, o ora Apelante, participante directo da acção executiva, nunca seria um terceiro de boa fé: não adquiriu de um autor comum direitos incompatíveis.
Interessa a este respeito ter presente a essência da venda executiva. Esta, como refere Pedro Romano Martinez, opera substancialmente nos seguintes termos:
“[…]

Com a penhora, a titularidade do direito sobre o bem não se transfere, nem para o tribunal, nem para o exequente. A titularidade do direito continua na esfera jurídica do executado. O direito de propriedade (ou outro direito real de gozo) sobre a coisa executada só se transfere com a venda em execução.

A transferência da titularidade do direito sobre a coisa faz-se, aquando da venda em execução, do executado para o adquirente (artigo 824º, nº 1 do CC). Por isso, o vendedor não é, nem o tribunal, nem o exequente, mas sim o executado, apesar da venda poder ser realizada contra a sua vontade. De outro modo não se entenderia que o remanescente do preço, depois de pagos os créditos, revertesse para o executado.

O vendedor, como sujeito material do negócio, é o executado e o tribunal será o sujeito formal, que actua, não como representante do executado ou do exequente, mas no uso do seu poder de jurisdição executiva.

Está-se, assim, perante uma verdadeira compra e venda, à qual, na falta de normas processuais, se aplicam as regras do Código Civil (artigos 874º e ss. do CC).

[…]” (“Venda Executiva”, in Aspectos do Novo Processo Civil, Lisboa, 1997, pp. 335/336).
[16] Indicámos a asserção decisória presente no sumário do Acórdão desta Relação de 08/11/2011 (Henrique Antunes), proferido no processo nº 207/09.5TBTMR.C1, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/4f8dd7763f8c46008025795000408ce.
Deste transcrevemos a seguinte passagem:
“[…]
Já se notou que o artigo 5º, nº 1 do Código de Registo Predial não tem por escopo fazer depender a oponibilidade do direito real da prévia inscrição registral da aquisição a favor do seu titular, tendo antes por objectivo proteger o terceiro que, fiado na aparência de uma situação registral desconforme à realidade substantiva, celebra um negócio jurídico inválido com o titular inscrito e regista a sua aquisição.
Portanto, aquela norma tem por único campo de aplicação os casos um facto sujeito a registo não foi registado, provocando uma desconformidade do registo predial com a ordem ou realidade substantiva subjacente, e a sua finalidade é proteger o terceiro que pratica um negócio jurídico de aquisição de um direito real com aquele que figura no registo como seu titular, embora realmente não o seja. Este negócio jurídico encontra-se ferido de nulidade, provocada pela ilegitimidade do disponente; no entanto, por força da fé pública que o registo predial inculca, verificados certos pressupostos, protege-se o terceiro que registou a sua aquisição.
Todavia, essa protecção só é disponibilizada aos terceiros. Esses terceiros, porém, – de harmonia com a concepção restrita de terceiros para efeitos do registo ultimamente imposta ao intérprete e ao aplicador do direito pelo próprio legislador – são apenas aqueles que tenham adquirido do autor comum direito incompatíveis entre si (artigo 5º, nº 4 do Código de Registo Predial, aditado pelo DL nº 533/99, de 11 de Dezembro). Quer dizer: a protecção disponibilizada por aquela norma está, pois, limitada aos terceiros que tenham adquirido o seu – pretenso – direito da mesma pessoa que o transmitiu ao titular do direito incompatível, restringindo-se, assim, aos casos de dupla disposição.
Portanto, um terceiro cuja posição jurídica não tenha resultado de um acto de disposição praticado pela mesma pessoa não é protegido pela norma apontada.
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