Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
967/08.0TBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
DANOS
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 02/26/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COVILHÃ 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 562.º; 563.º; 566.º; 570.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Em princípio, todo o dano patrimonial que é consequência adequada do acidente tem de ser reparado – artigos 562.º e 563.º do Código Civil. Não sendo possível a restauração in natura do património do lesado, deverá essa reparação operar-se através da sua reintegração por equivalente – artigo 566.º, nº 1, do mesmo Código.

2. A seguradora responsável só não terá a obrigação de reparar aqueles danos que foram ocasionados pelo próprio lesado, ou a medida do agravamento dos danos derivados do acidente que seja exclusivamente resultante de conduta imputável ao lesado.

3. A seguradora responde pelos danos efectivamente resultantes desde a comunicação do acidente até à entrega da viatura ao lesado, devidamente reparada.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A.....intentou no 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Covilhã uma acção declarativa sob a forma ordinária contra B....., pedindo a respectiva condenação a pagar-lhe a quantia global de € 38.800,00, sendo € 25.800,00 relativos ao dano patrimonial da privação do uso, € 12.000,00 atinentes a lucros cessantes e € 1.000,00 a título de danos não patrimoniais, quantias acrescidas de juros à taxa legal desde a citação sobre tais montantes ou sobre aqueles que vierem a ser fixados.

Para tanto alega que tendo ocorrido determinado acidente de viação em que interveio um veículo seguro na Ré, esta assumiu a responsabilidade pelos danos decorrentes para um veículo da A. que igualmente aí interveio; todavia, tendo a mesma aceite pagar o valor da reparação do veículo da A., recusa-se a satisfazer os demais danos, como o da privação do uso do mesmo desde o acidente até à conclusão da reparação e os prejuízos com a não entrega nesse período de encomendas do comércio da A. em que o mesmo era empregue. Além disso, a A. sofreu angústia e desespero com a situação, dano esse que deve ser igualmente ressarcido.

Contestou a Ré B... , defendendo-se por impugnação e aduzindo que só em 10.08.2005 teve conhecimento do acidente, autorizando a reparação pelo período então estimado pela oficina, que foi de 15 dias, não tendo qualquer responsabilidade pelo prolongamento da reparação para além desse período. Termina, por conseguinte, com a improcedência da acção.

A final foi a acção julgada procedente por provada, condenando-se a Ré a pagar à A. a quantia de € 25,800,00, a título de danos emergentes – paralisação da viatura - e a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença referente aos lucros cessantes e danos não patrimoniais; quantias estas acrescidas de juros de mora à taxa legal desde a citação.

Inconformada, deste veredicto recorreu a Ré B... , recurso admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

São os seguintes os factos dados como provados em 1ª instância sem qualquer impugnação:

I. Com base nos factos assentes:

A) O veículo de mercadorias marca Isuzu, de matrícula ...PL, tem a sua propriedade registada a favor da Autora.

B) No dia 16 de Julho de 2005, pelas 8 h 20 minutos, na E.N. 339, na zona da Rosa Negra, ocorreu um acidente, no qual foram intervenientes o veículo ...PL, conduzido pela A., e o veículo ...HR, ligeiro de passageiros, propriedade da (….)., conduzido por (….).

C) A Ré, por contrato de seguro, titulado pela apólice n.º 70/8190128, assumiu a responsabilidade civil por acidentes de viação derivados da circulação do mencionado ...HR.

D) Após o acidente, a A. solicitou à Ré uma viatura de substituição com caixa de frio de 18.º negativos, enquanto decorresse a reparação ou o valor diário de € 150,00, o que a ré não fez.

E) O veículo da A. foi reparado na firma (….) por ordem da Ré que, por carta datada de 22/08/2005 dirigida à oficina, autorizou a reparação, dizendo “que passa a definitiva, pelo que devem proceder de nossa conta à reparação”.

F) A viatura da A. é uma viatura de trabalho, equipada com uma caixa frigorífica com frio de 18.º negativos, pois que se torna imprescindível atento o seu objecto social – Comércio e Distribuição de Produtos Alimentares Congelados.

G) Em 10.08.2005, a A. comunicou à Ré, por telefax, a ocorrência do acidente.

B. Resultantes da base instrutória:

1. O veículo da A só ficou reparado e foi-lhe entregue no dia 16.02.2006.

2. Desde o dia do acidente até ao dia 16.02.2006 a paralisação da viatura da Autora deixou por fazer o seu percurso normal.

3. Ficou por satisfazer clientes cujas encomendas importaram, num valor semanal, não concretamente apurado.

4. A Autora, atento o comércio que desenvolve, tem que cumprir com pontualidade e prontidão determinados horários de entregas e encomendas, pré-convencionadas com os clientes.

5. Em consequência da paralisação do veículo acidentado a Autora teve que se socorrer da boa vontade de alguns clientes que ao invés de verem debitada a deslocação do técnico, suportaram-na, indo buscá-lo.

6. Outros serviços houveram que a Autora não pôde dar resposta em virtude da indisponibilidade das outras viaturas que estavam escaladas para outras viagens, tendo perdido serviços de encomenda em montante não apurado.

7. O que causou à Autora transtornos.

8. O valor do aluguer de uma viatura semelhante à acidentada é de € 150,00 (incluído o IVA).

9. A oficina que fez a reparação do veículo estimou a mesma em 15 dias por relatório datado de 21.08.2005.

                                                                                  *

                                                                                 

A apelação.

A recorrente encerra a respectiva alegação com um enunciado conclusivo em que são levantadas as questões de saber:

1º - Se a seguradora Ré, ora apelante, não pode se responsabilizada pelo dano da privação do uso e pelos lucros cessantes sofridos pela A. no período decorrido entre a data do acidente (16.07.2005) e o momento em que este lhe foi comunicado pela A. (10.08.05);

2º - Nem por esse dano e lucros cessantes no lapso de tempo que mediou entre o fim do período estimado pela oficina para a reparação (15.09.2005) e o termo efectivo desta, com a entrega da viatura à A. (16.02.2006);

3º - Se os danos não patrimoniais da A. não têm gravidade para merecerem ser indemnizados.

A A. contra-alegou, batendo-se pela confirmação da sentença.

Quanto à questão do momento do início da responsabilidade da Ré pela paralisação do PL. 

No vertente recurso não se discute a culpa nem a responsabilidade da Ré ora apelante relativamente às consequências do acidente sofrido pelo veículo da A. ...PL por força do contrato de seguro que a vinculava ao outro veículo interveniente (o ...HR).

As divergências da apelante cingem-se à extensão dos danos patrimoniais e ao dano não patrimonial que foi condenada a reparar.

É tão só isto que importa decidir.

 

Neste particular, a sentença ora censurada achou por bem fazer recair sobre os ombros a Ré seguradora, desde logo, o dever de reparar os danos patrimoniais da A. desde a data do acidente, ou seja, desde 16.07.2005.

Discorda a seguradora apelante argumentando que não pôde prover à substituição da viatura da A. em momento anterior ao do seu conhecimento do acidente, conhecimento que só sobreveio com a comunicação da A. de 10.08.2005.

Tem a apelante razão neste ponto, se bem que nem sempre o tardio conhecimento da seguradora de um determinado dano a exclua da obrigação de o indemnizar.

Se não, vejamos.

Por via do contrato de seguro, a seguradora substitui-se ao lesante seu segurado na obrigação de este reparar todos os danos do lesado adequadamente causados pelo acidente.

Em princípio, todo o dano patrimonial que é consequência adequada do acidente tem de ser reparado – art.ºs 562 e 563 do CC. Não sendo possível a restauração in natura do património do lesado, deverá essa reparação operar-se através da sua reintegração por equivalente – art.º 566, nº 1, do mesmo Código.

Porém, a seguradora apelante só tem de ressarcir os danos que foram consequência do acidente e não quaisquer outros. Dito na formulação negativa da lei, apenas aqueles que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.

Podemos dizer que a privação da A. da viatura PL é sempre um dano que é consequência do acidente-lesão.

Mas do que aqui se trata é de um dano que é agravado por uma conduta negligente ou culposa da A., que não agiu segundo o padrão do bom pai de família, comunicando imediatamente o acidente.

O problema agora levantado reconduz-se, pois, a uma questão de culpa e não de nexo de causalidade.

O efeito da culpa do lesado no agravamento dos danos a indemnizar pelo lesante está expressamente previsto no art.º 570, nº 1, do CC.

Assim sendo, a seguradora responsável só não terá a obrigação de reparar aqueles danos que foram ocasionados pelo próprio lesado, ou a medida do agravamento dos danos derivados do acidente que seja exclusivamente resultante de conduta imputável ao lesado.

Ora afigura-se-nos insofismável que tanto o suposto dano emergente da privação do uso da viatura, como os lucros cessantes ou perdidos pela falta da disponibilidade da mesma, que para a A. se verificaram com o acidente e cessaram na data em que esta recebeu a dita viatura já reparada, foram ampliados ou agravados pela circunstância desta comunicação apenas ter ocorrido em 10.08.2005. Com efeito, só a partir desta data a Ré pôde mandar vistoriar aquela viatura e dar inicio ao procedimento destinado à sua reparação. A medida do agravamento dos danos da A. que corresponde ao período que intermediou entre o acidente e o conhecimento da Ré, ora apelante, resultou claramente da inércia da própria A. e não do acidente em si mesmo.

Daí que neste aspecto a questão suscitada tenha de proceder.

Há, no entanto, uma outra vertente da questão que acaba por aflorar e que aqui tem de ser necessariamente abordada.

Ao peticionar uma indemnização pelo dano da privação do uso da viatura sinistrada alegou a A., ora apelada, que solicitou à Ré um veículo de substituição ou o custo de um veículo de aluguer idêntico, e que esta nunca lhe facultou nem um nem outro (cfr. os art.ºs 8º e 9º da p.i.); sendo que, por isso, tem a haver da Ré este custo, de € 150,00/dia, multiplicado pelos dias de privação que computa em 215 (cfr. art.ºs 22 e 23 da mesma peça).

Simultaneamente, alegou também nos art.ºs 16 e 17 da p.i. que deixou de retirar semanalmente o proveito de € 1.000,00 que iria fazer com o percurso habitual dessa viatura, por si usada na entrega de encomendas de artigos do seu objecto (art.º 12 da m. peça).

Esta matéria transitou basicamente para a alínea F da matéria assente e para os nºs 2, 3, 6 e 8 da base instrutória, pontos estes que resultaram provados, salvo no tocante ao valor das encomendas perdidas pela A..

Neste quadro, confessando a A. que não utilizou qualquer viatura de substituição – só assim se compreendendo o pedido de indemnização de lucros cessantes pela privação do PL – não se percebe que sendo ela uma sociedade comercial venha invocar qualquer dano de privação de uso para além daquele que se contém dentro do lucro que deixou de auferir com a impossibilidade de afectação da viatura em causa ao seu objecto social. Note-se que, conforme o facto provado em F, “a viatura da A. é uma viatura de trabalho, equipada com caixa frigorífica com frio de 18, que se torna imprescindível atento o seu objecto social – Comércio e Distribuição de Produtos Alimentares Congelados”. Donde que, no período pelo qual a ora apelante deva ser responsabilizada pela paralisação do PL, não se possa autonomizar um dano de privação de uso ao lado do lucro cessante que haja decorrido dessa mesma paralisação.

 

Sobre o dever da Ré suportar o prejuízo com a paralisação do PL até à data em que efectivamente o mesmo foi reparado e entregue à A.

Embora tenha quedado provado no facto inscrito em 9 no acervo consignado na sentença que “a oficina que fez a reparação do veículo [o PL] estimou a mesma 15 dias por relatório datado de 21.08.2005”, a sentença recorrida desprezou tal facto e, no cômputo dos danos da A. com a paralisação do PL, tomou em consideração a data efectiva da conclusão da reparação, condenando a apelante ao pagamento do valor dos danos verificados até essa data (16.02.2006).

Entende a recorrente que só responde pelos danos ocorridos durante o período estimado da reparação.

Que dizer?

Reconduzindo-se a reparação de um veículo sinistrado a um contrato de empreitada, nos termos do art.º 1207 do CC, esta questão prende-se com a responsabilidade da oficina pelo não cumprimento do prazo acordado com a seguradora para a empreitada de reparação de um veículo.

Ora uma vez provado nos autos “que o veículo da A. foi reparado na firma V...., Lda, por ordem da Ré que, por carta de 22/08/2005, autorizou a reparação (…)” não vemos como a seguradora se possa esquivar a responder perante o lesado também pelo atraso da reparação, cabendo-lhe como só a ela cabe o poder de vigiar e fazer cumprir o prazo estimado e acordado com a entidade que se obrigou a essa mesma reparação[1].

Em suma, a apelante deverá responder pelos danos efectivamente resultantes para a apelada e A. desde a comunicação do acidente até à entrega da viatura em questão.

De sorte que a questão suscitada pela recorrente improcede.

Uma nota, contudo, se impõe aqui.

Sem clarificar o conteúdo respectivo, a sentença condena genericamente a Ré e ora apelante “A pagar à A. a quantia a liquidar em execução de sentença referente aos lucros cessantes”.

Há que precisar agora o que esses lucros cessantes compreendem, diante da fundamentação de facto e de direito que ficou explicitada. De forma que a condenação da Ré deve incidir sobre o valor que a A. perdeu de auferir com a entrega das encomendas a clientes que seriam realizadas pela viatura ...PL no período decorrido entre 10.08.2005 e 16.02.2006, deduzido das despesas que com ela teria nesse lapso temporal.

Última questão: a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais.

Sem avançar qualquer enquadramento para esse fim, a sentença impugnada condena ainda a Ré a pagar à A. quantia a liquidar “em execução de sentença referente aos (…) danos não patrimoniais”.

Insurge-se a apelante também contra esta condenação genérica, sustentando que à luz do art.º 496 do CC os meros transtornos sofridos pela A. de harmonia com os factos provados não são tutelados pelo direito ao ponto de justificarem a indemnização de quem por eles passa.

Tem razão.

Não se vislumbra dano não patrimonial mais leve que o mero transtorno.

Se assim é, estamos diante de danos de pouca importância, próprios das contingências normais da vida, meras contrariedades sem gravidade bastante para justificar uma sanção da ordem jurídica – como tem sido jurisprudência pacífica – não podendo a Ré ser condenada a esse título. Nesta questão o recurso também procede.   

    

Pelo exposto, na parcial procedência da apelação, julgam a acção parcialmente procedente por parcialmente provada, e, em função disso, condenam a Ré a pagar à A. a quantia que se vier a liquidar correspondente ao valor que a A. perdeu de auferir com a entrega das encomendas a clientes que seriam realizadas pela viatura ...PL no período decorrido entre 10.08.2005 e 16.02.2006, deduzido das despesas que a A. com ela teria nesse lapso temporal. Do mais peticionado vai a Ré absolvida.

Custas em ambas as instâncias na proporção de 2/3 para a Ré e 1/3 para a A.

                                  

Freitas Neto (Relator)

Carlos Barreira

Barateiro Martins


[1] Pode ver-se aqui um reflexo de culpa in eligendum do devedor no cumprimento da obrigação, porquanto é como devedora que a seguradora utiliza a oficina de reparação no cumprimento da respectiva obrigação (art.º 800, nº 1 do CC). Em função disso, é apodítico que a seguradora não pode deixar de poder demandar esta última pelo incumprimento do prazo acordado.
Aparentemente com uma visão discrepante, o A. desta Rel. de 7.07.98, in CJ XXIII, IV, 6 - aliás, também citado pela recorrente - perfilhou o entendimento de que, pelo dano decorrente do excesso do prazo, o lesado podia e devia exclusivamente demandar quem procedeu à reparação.