Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1957/07.6TBMGR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
VENDA JUDICIAL
POSSE
Data do Acordão: 05/31/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MARINHA GARNDE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.824, 879, 1260, 1263, 1264, 1265, 1290 CC
Sumário: Com a venda judicial, o direito de propriedade e a posse transferem-se para o comprador, passando o vendedor/executado, se continuar na posse da coisa, a ser um possuidor precário, em nome alheio, não podendo invocar a posse para a usucapião, sem provar a posterior inversão do título da posse.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra os juízes abaixo assinados:

              A (…) requereu execução contra J (…). Fundamenta a pretensão executiva em letra de câmbio, emitida em 03/05/2007, com vencimento em 03/08/2007, na importância de 30.000€, aceite pelo executado; nomeou à penhora o prédio inscrito na matriz sob os artigos (...) (urbano) e (...) (rústico) e descrito na conservatória do registo predial de (...) sob o nº (...)/20080603; a penhora foi efectivada e registada.

              M A (…) e mulher, M E (…) vieram então deduzir os presentes embargos, dizendo que pese embora a propriedade do prédio penhorado esteja inscrita a favor do executado, a verdade é que são eles, embargantes, os seus donos e legítimos possuidores, tendo-o adquirido por compra nos anos de 1975 e 1976. Antes da outorga das escrituras públicas de compra e venda foram investidos na sua posse pelos vendedores e neles construíram a sua casa de habitação e anexos. Em 29/07/1986, no âmbito da execução intentada contra os ora embargantes, o executado, que era amigo íntimo deles, arrematou o prédio em causa a pedido destes, para evitar que o mesmo fosse arrematado por qualquer interessado, já que era a casa onde viviam com a respectiva família. Foram os ora embargantes (ali executados) que entregaram ao arrematante (aqui executado) as quantias por ele alegadamente suportadas com a arrematação. Acordando, então, arrematante e ora embargantes, que aquele nunca usaria o título (auto de arrematação) para inscrever o direito a seu favor. Os embargantes, por diversos motivos, continuaram durante alguns anos em situação de ameaça de insolvência, razão pela qual mantiveram o sobredito prédio na detenção jurídica aparente do ora executado e, assim, a salvo dos seus credores; não oferecendo o executado, aparentemente, qualquer perigo de ver penhorado o seu património. Porém, sem que disso se tenham apercebido, o executado viu rapidamente esgotado o seu património, e sem que nada o fizesse prever, ele, ou alguém a seu mando, em 23/03/2005, quase 20 anos depois da referida arrematação, procedeu à inscrição da propriedade do prédio a seu favor. Sucede que os embargantes nunca, por um instante, desde a sua aquisição, deixaram de habitar a sobredita casa, de cultivar o seu quintal, de usar os jardins a seu bel prazer, de fazer obras de conservação, mesmo depois de 29/07/1986, data da arrematação feita à sua exclusiva custa, dando-lhe a configuração física que hoje tem, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, convictos de serem seus donos; o que conduz à sua aquisição originária, por usucapião. Dizem mais: ainda que, por força do art. 1264 do CC, se considere transferida, pela venda judicial, a posse sobre o imóvel, ficando os embargantes meros detentores do imóvel, em nenhum momento o executado obstaculizou ou contestou os actos de posse dos embargantes sobre o prédio em questão, nem mesmo após ter promovido o registo do mesmo a seu favor. Assim, a entender-se que os embargantes foram convertidos em meros detentores (art. 1264 do CC), eles, logo após a venda, inverteram tal animus. Concluem pedindo que seja reconhecido e declarado que são os embargantes os únicos e exclu-sivos donos e possuidores do prédio misto penhorado nos autos de execu-ção; e, consequentemente, que seja ordenado o levantamento da penhora so-bre ele incidente (ap. nº 22 de 2008/06/03) e o cancelamento da respectiva inscrição; que seja ordenado o cancelamento da inscrição da propriedade de tal prédio a favor do executado (ap. nº 22 de 2005/03/23).

              Procedeu-se à inquirição de testemunhas, nos termos e para os efeitos previstos no art. 354º do CPC e os embargos foram admitidos e determinada a suspensão da execução quanto ao imóvel penhorado.

              O exequente contestou, impugnando, dizendo, em suma, que o prédio penhorado é pertença do executado, tendo-lhe sido adjudicado em processo de execução, pagando o seu preço, com dinheiro seu; porém, na ocasião foi seduzido por um amigo comum dos embargantes e executado, para consentir que aqueles ficassem algum tempo a viver na casa vendida; o executado vivia então em Macau, onde permaneceu até 1982, e era proprie-tário de um boa fortuna; regressado a Portugal, esses valores foram-se degradando, restando-lhe agora um património imobiliário ainda valioso, mas vivendo com grandes dificuldades financeiras; os embargantes têm ocupado o prédio em causa por mero favor, gentileza e tolerância do executado, que desde há muitos anos lhes vem solicitando que encontrem soluções para as suas vidas e lhe entreguem o bem que é seu; nunca os embargantes se assumiram como donos do prédio, e sempre, ao longo destes anos, foram dizendo que um dia haveriam de negociar a sua compra ao executado; durante estes anos, os embargantes limitaram-se a zelar e manter o prédio em causa, sendo essa uma das exigências que o executado lhes impôs para a cedência, e se algumas obras nele realizaram, elas não são visíveis. Conclui pela improcedência dos embargos.

              Notificado, o executado não contestou.

              (utilizou-se, até aqui, no essencial, quase todo o relatório da sentença recorrida, apenas se acrescentando mais algumas linhas, em itálico, na síntese da petição de embargos)

              Depois do julgamento foi proferida sentença, julgando os embar-gos procedentes e, em consequência, ordenando o levantamento da penho-ra realizada em 03/06/2008, incidente sobre o bem imóvel penhorado; declarando-se que os embargantes adquiriram, por usucapião, o prédio em causa e ordenando-se o cancelamento das inscrições correspondentes à ap. 22 de 2008/06/03 e ap. 22 de 2005/03/23.

              O exequente interpôs recurso da sentença – para que seja substituí-da por outra que decida pela improcedência dos embargos - terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
         1. A decisão de decretou a procedência dos embargos de ter-ceiros considerou justificada a posse desses terceiros embargantes sobre o prédio dado à penhora nos autos de execução de que estes embargos são apenso.
         2. É verdade que os embargantes adquiriram o prédio por compra em 1974 e que mantiveram posse sobre ele até ao dia em que o mesmo foi vendido em hasta pública no âmbito do processo executivo nº 104-A/81 do tribunal judicial de Figueira da Foz que o adjudicou ao agora executado nos autos de execução apensos aos presentes embargos.
         3. O executado registou aquela aquisição em 23/03/2005.
         4. A sentença ora em apreço deu por justificada a posse dos embargantes considerando que eles exercem actos materiais de posse desde 1974, fazendo porém tábua rasa das alterações jurídi-co-possessórias resultantes da referida venda judicial que ocorreu em 29/07/86.
         5. […] não podia o tribunal adicionar a posse dos embargan-tes antes e depois daquela venda por terem características substan-cialmente diferentes.
         6. Naquela execução processada no TJ da Fig. da Foz os embargantes foram desapossados do prédio quando o mesmo ficou à ordem do tribunal de execução e entregue ao fiel depositário.
         7. Não houve aí qualquer reacção da parte dos ora embar-gantes até porque o prédio acabou por ser vendido ao ora execu-tado. Logo, inequivocamente os executados nesses autos da FFoz perderam o título possessório.
         8. É verdade também que os executados ora embargantes se mantiveram no uso e fruição do prédio, mas após aquela venda judicial, desprovidos de título, haverão de ser tidos como possui-dores precários e de má fé.
         9. Contabilizar a posse dos embargantes como o fez a Sr.ª juíza a quo desde a data da aquisição cujo titulo foi destruído com a venda judicial do TJ da FFoz, constitui […] um erro irreparável, por violação das regras que regem o instituto possessório, incluin-do o disposto no artigo 1264º CC.
         10. A acção dos embargantes só podia obter vencimento caso tivessem eles demonstrado nos autos a inversão do titulo da posse e desde que sobre esse facto tivesse decorrido o prazo legal condu-cente à aquisição por usucapião, o que de todo não fizeram.
         11. Nem são suficientes os actos possessórios praticados pelos embargantes após aquela venda judicial, aliás, deslocalizados no tempo, para se poder decidir a partir de que momento teriam eles passado a actuar como verdadeiros possuidores.
         12. A matéria de facto apurada não legitima a decisão que deu procedência aos embargos pela impossibilidade legal de adicionar posse efectiva com posse precária.
         13. Com a venda judicial processada no TJ da FFoz, a posse dos embargantes só podia iniciar-se sempre em data posterior a 29/07/86, não sendo possível distinguir quando a mera detenção deu lugar a posse efectiva.
         14. Com o registo da aquisição que o executado inscreveu em 23/03/2005, menos de 20 [anos] após a data da compra não pode operar a usucapião a favor de terceiro, até pela presunção que resulta dessa inscrição.
         15. A sentença também não podia ordenar o cancelamento da inscrição correspondente à aquisição da propriedade pelo aqui exe-cutado, nem […] da penhora efectuada por terceiro porque nenhum deles exerceu o contraditório nestes autos a que são estranhos.
         16. A sentença violou os comandos dos arts 1264º, 1290º e 1259º e seguintes do CC

              Nem os embargantes nem o executado contra-alegaram.

                                                                 *

              Questões que importa solucionar: os efeitos da venda judicial de 1986 na posse dos embargantes, na base da qual está a usucapião invocada e que levou à procedência dos embargos.

                                                                 *

              Factos provados:
         1. Nos autos de execução comum com o nº 1957/07.6TB MGR, para pagamento de quantia certa, que A (…) intentou contra J (…), foi penhorado, em 03/06/2008, o prédio misto, denominado (...), sito em (...), freguesia de (...), concelho de (...), composto por casa de habitação de rés do chão, 1º andar, sótão, logradouro, currais e terra de cultura, com a área total de 34.160 m2, área coberta de 260 m2, área descoberta de 33.900 m2, inscrito na matriz sob os artigos (...) (urbano) e (...) (rústico), com o valor tributável de 12.271,02€, descrito na conservatória do registo predial de (...) sob o nº (...) da freguesia de (...), aí anteriormente descrito sob o nº 13741, do livro nº 36 (doc. fls. 35-37 da acção executiva);
         2. A acção executiva funda-se em “letra de câmbio”, na importância de 30.000€, emitida em 03/05/2007, com vencimento em 03/08/2007, aceite pelo executado (doc. fls. 9);
         3. A penhora referida em 1 mostra-se registada na respectiva descrição predial mediante a ap. nº 22 de 2008/06/03 (doc. fls. 31-34);
         4. Na referida descrição predial, através da ap. nº 37 de 1999/05/17, foi registada penhora, efectivada em 14/04/1999, para pagamento de 1.188.486$ [e não € como por lapso se escreveu – correcção e parênteses introduzidos por este ac. do TRC, com base no registo em causa, ao abrigo do disposto no art. 712/1ª) e 713/2, ambos do CPC], a favor da (M...), SA, sendo sujeitos passivos os ora embargantes (mesmo doc.);
         5. A aquisição, por arrematação em hasta pública, do mencio-nado prédio, mostra-se registada a favor do executado J (…)através da ap. nº 22 de 2005/03/23 (mesmo doc.);
         6. Por escritura pública de compra e venda, celebrada no dia 09/08/1975, no Cartório Notarial de Soure, J (…), e mulher J (…), declararam vender a M (…), casado com M (…), que declarou aceitar, pelo preço já recebido de 230.000$, uma quarta parte indivisa de uma terra de cultura no lugar de (...), freguesia de (...), que no seu todo confronta do norte com caminho, do nascente com herdeiros de MB (...), do sul com estrada nacional, e do poente com MF (...) e MM (...), inscrito na matriz rústica sob o artigo 20153 (doc. fls. 26-30);
         7. Declararam ainda os vendedores, na escritura mencionada em 6, que “nesta parte se encontra edificada uma casa de habitação de rés do chão, eira, casa de eira, adega e anexos, a qual se encontra inscrita na matriz urbana da freguesia de (...), sob o artigo 173, e que também vendem.   Que o direito vendido é uma faixa de terreno destinada a cultura hortícola, com a área de cerca de 6825 m2, localiza-se no extremo nascente de todo o prédio e atravessa-o inteiramente de norte-sul, tem a forma de um quadrilátero e fica constituído por aquela área de terreno de cerca de 6825 m2, com a casa de habitação, com eirado, adega, anexos, casa com motor e dois poços, um dos quais usufruído em comum com o prédio confinante a nascente e pertencente a herdeiros de MB (...). Que o prédio primitivo se encontra descrito na conservatória do registo predial de (...) sob o nº 13741, a fls. 13, do Livro B-36” (mesmo doc.);
         8. Na escritura pública de compra e venda, celebrada no dia 03/03/1976, no cartório notarial de Soure, entre A (…), e M (…) casado com M (…), como segundo outorgante, declararam os primeiros, que: “por escritura de 30/08/1974, lavrada neste cartório a fls. 43 e ss. do livro nº 19-D, ele varão, comprou a (…) e outros, especificamente, uma parcela de terreno, correspondente a três quartas partes do prédio composto de terra de cultura com 72 oliveiras, 35 tranchas, 4200 videiras, 10 árvores de fruto, casa de habitação, e eirado, denominado “ (...)”, no lugar de (...), freguesia do (...), concelho de (...), que confronta, no seu todo, do norte com caminho, do nascente com herdeiros de MB (...), do sul com estrada nacional, e do poente com MF (...) e MM (...), inscrito na matriz sob os artigos rústico 20153 e urbano 73, e descrito na Conservatória do Registo Predial da comarca de (...) sob o nº 13741, a fls. 13, do Livro B-36. Que a parte restante do mesmo prédio pertence já ao segundo outorgante, por também, especificamente, a ter comprado a (…) por escritura também lavrada neste Cartório aos 19/08/1975 (…) (doc. fls. 31-36);
         9. Declararam ainda, os primeiros outorgantes, na menciona-da escritura, que: “pela presente e pelo preço de 49.000$, que dele já receberam, vendem ao segundo outorgante aquela sua parcela de terreno de cultura com oliveiras, tranchas, vinha e árvores de fruto, com a área, aproximada, de 25135 m2, a confrontar do norte com o referido caminho, do nascente com a outra parcela já pertença dele segundo outorgante, do sul com a mencionada estrada nacional e do poente com os referidos (…), inscrita na matriz sob três quartos daquele artigo 25153 (…) e que na conservatória do registo predial de (...) é parte da mencio-nada descrição nº 13741. Que, assim, fica o segundo outorgante sendo o único dono de todo o antigo prédio” (mesmo doc.).
         10. Os prédios mencionados nas escrituras referidas de 6 a 9 correspondem ao prédio descrito em 1.
         11. Antes da outorga das mencionadas escrituras, no ano de 1974, os embargantes ocuparam tais prédios, e aí iniciaram a construção da casa de habitação e anexos neles existentes;
         12. A referida casa de habitação foi participada às finanças no dia 19/05/1975, dando origem ao artigo matricial urbano nº 3405, da freguesia de (...), concelho de (...), e, após alteração e ampliação da mesma, efectuada pelos embargantes, ao artigo matricial nº (...), da dita freguesia e concelho.
         13. No dia 29/07/1986, no tribunal judicial de Pombal, no âmbito da venda realizada nos autos de carta precatória nº 73/86, extraída dos autos de execução de sentença nº 107-A/81 [e não 104 como por lapso se escreveu – correcção e parênteses introduzidos por este ac. do TRC, com base no registo em causa, ao abrigo do disposto no art. 712/1ª) e 713/2, ambos do CPC] da 4ª secção do 2º juízo do tribunal judicial da Figueira da Foz, em que é exequente (…) Lda. e executados (…), o executado J (…) arrematou para si, e foram-lhe adjudicados, os prédios correspondentes aos artigos urbano e rústico mencionados em 1.
         14. A casa de habitação mencionada em 11 e 12 era, à data referida em 13, a casa na qual os embargantes viviam com os respectivos filhos, nela organizando a sua vida, e aí gerindo um negócio de gado.
         15. Na data referida em 13, o executado João Mascarenhas era um homem abastado.
         16. O executado J (…) não tem, actualmente, a situação financeira estável que tinha à data referida em 13, vivendo com algumas dificuldades.
         17. Desde a data referida em 11, os embargantes habitam a casa aí referida, cultivam o quintal, roçam e limpam as ervas à volta das construções existentes nos prédios aí referidos (corres-pondente hoje ao descrito em 1), lavram o seu terreno e semeiam várias culturas, colhendo, em seu proveito, os respectivos frutos, usam, embelezam e limpam o jardim que nele construíram, cortam a relva, reparam os muros que nele construíram, reparam e substi-tuem telhas, janelas e portas.
         18. Após a data referida em 13, construíram no dito prédio uma cozinha, um telheiro de ligação à cozinha, um quarto por cima da garagem, um jardim à frente da casa de habitação, muros e dois furos artesianos.
         19. De forma ininterrupta, à vista de toda a gente, sem opo-sição de ninguém (nem mesmo do executado João Mascarenhas), convictos que são donos de tal prédio, e assim reconhecidos pelas pessoas daquela localidade.
         20. No ano de 2005, o embargante marido pagou as contribuições prediais referentes a tal prédio.
         21. O executado J (…) viveu, até ao ano de 1983, em Macau, altura em que regressou a Portugal com a família.
         22. Em Macau angariou fortuna, e quando regressou a Portugal realizou investimentos.

                                                                 *

              A sentença começa por falar na defesa da posse, nos embargos de terceiro, nas alterações sofridas por este tipo de processo, na caracterização de terceiro e de direito incompatível com a penhora e na legitimidade para a dedução dos embargos, depois sintetiza a fundamentação deduzida pelos embargantes, repete os factos que foram dados como provados, diz que os embargantes alicerçam a sua pretensão nos descritos actos de posse, e, assim, na aquisição do prédio por via da usucapião, fala na figura jurídica da usucapião e na posse e nas várias qualificações desta, nos conflitos de presunções da titularidade do direito, decorrentes do registo e da posse e diz que é a presunção decorrente desta que prevalece, fala ainda nos períodos necessários da posse para a usucapião, diz que para a usucapião apenas serve a posse e não a mera detenção e, por fim, conclui (em síntese):
         No caso dos autos, verifica-se que os embargantes, desde 1974, têm vindo a exercer sobre o prédio em causa actos materiais de posse, e que têm assim procedido com a convicção de serem titulares desses direitos. Verifica-se, pois, o corpus e o animus [da posse] e trata-se de uma posse titulada (já que dispõem de um título formal – escrituras) que deverá presumir-se de boa fé (cfr. art. 1260º/2, do CC). Assim, considerando que tais actos materiais de posse se protelam no tempo há mais de 20 anos (desde 1974), e ainda que se considere que se trata de posse não titulada, está já ultrapassado o prazo máximo necessário à usucapião de imóveis, aplicável às situações de posse não titulada e (presuntivamente) de má fé. A inscrição do prédio a favor do executado, por arrematação pública, ocorreu em 23/03/2005, portanto muito tempo depois de iniciada a posse por parte dos embargantes. Donde se conclui que a posse dos embargantes terá que prevalecer, por iniciada antes desses registos e que os embargantes adquiriram originariamente, por via da usucapião, o direito de propriedade sobre o prédio em causa.

              A posição do embargante é contra isto, como resulta das conclusões do seu recurso, transcritas acima.

                                                                 *

               Sistematizada a matéria de facto, a situação é esta:
         Em 1974, A e B ocuparam um prédio e aí iniciaram a cons-trução da casa de habitação e anexos, e em 1975/1976 compram o prédio.
         Em 1986, numa execução requerida contra A e B, o prédio é penhorado e vendido a C que regista (embora 19 anos depois) a compra.
         A e B nunca deixaram de viver no prédio e continuaram e continuam a agir e a considerar-se como proprietários do prédio e são como tal considerados pela população local.
         Em 2007, D executa C, penhora o prédio e regista a penhora.
         A e B vêm então dizer que o prédio é deles e não de C.

               A posição do embargante, sintetizada, é a seguinte: A e B eram donos, mas em 1986 o prédio foi vendido a C. Deixaram de ser donos. Para o passarem a ser de novo, tinham de o ter readquirido. O único modo de aquisição que está em causa é a usucapião e esta não se pode ter verificado porque não consta dos factos provados que A e B tenham voltado a estar na posse em nome próprio do prédio.

               A sentença segue o caminho oposto: A e B nunca deixaram de ser possuidores; como iniciaram a posse em 1974, passaram a ser donos do prédio por usucapião.

                                                                 *

              A construção apresentada pelo exequente/recorrente é que é a correcta:

              Com a venda feita pelo tribunal (venda forçada em nome de A e B, que eram então executados), A e B perdem, como perderiam se a venda tivesse sido feita directamente por eles, o direito de propriedade e a posse sobre o prédio.

              É certo que, caso estivesse – mas não está, porque o que é alegado é uma venda simulada e não uma dupla alienação - em causa algum conflito entre um primeiro adqui-rente não registado e o adquirente em venda judicial registado, se poria a questão do con-ceito de terceiros para efeitos de registo, nos quais alguns inserem os compradores em venda executiva – assim, por exemplo, Antunes Varela, na anotação ao ac. do STJ de 03/06/1992, publicada na RLJ nº. 3838 (ano 127), pág. 19, nota 2 (“o vendedor é o próprio executado, embora se trate de uma venda realizada coercivamente, no interesse dos seus credores, por via judicial” [daí que, explica, nos casos de vendas em processos executivos, nem sequer seja necessário ampliar o conceito de terceiros para efeitos de registo predial]. No mesmo sentido, vejam-se todos os autores citados por Maria Clara Sottomayor, Invalidade e Registo, A Protecção do Terceiro Adquirente de Boa Fé, Almedina, Junho de 2010, por exemplo, na nota 1499, págs. 379/380. Note-se que o AUJ 3/99 não põe em causa esta conclusão, pois que, como esta autora refere, “embora a fórmula adoptada seja a do conceito restrito, na fundamentação o STJ inclui o adquirente em venda judicial no conceito de terceiro” (por exemplo, pág. 359). Existem, entretanto, acórdãos do STJ em sentido contrário, e neste último sentido vai a autora acabada de citar, que expressamente, na conclusão 15 do seu trabalho, esclarece: “defendemos que o art. 5º/4 do CRP, no momento actual, por razões de segurança jurídica, deve ser interpretado, de acordo com a vontade do legislador, englobando, apenas, o conceito restrito de terceiro, que exclui o credor penhorante e o adquirente na venda executiva.” (pág. 921).

              Com essa venda, o direito de propriedade e a posse transferem-se para C [arts. 879/a), 824/1 e 1264/1, todos do CC]. A e B, mesmo que se continuem a considerar como proprietários (e a ser como tal considerados por terceiros), deixaram de o ser e, quanto à posse, passaram a ser legal-mente possuidores em nome alheio. Para voltarem a ser possuidores em no-me próprio (e para desse modo se poderem aproveitar, mais tarde, da usuca-pião: art. 1290 do CC), teriam que inverter o título da posse [art. 1263/d) do CC] e isso exige um acto de oposição contra o comprador [art. 1265 do CC] para quem tinha passado a posse e por isso em nome do qual a tinham passado a possuir (precariamente).

              Como não há sequer fumos desse acto de inversão do título da posse, não se pode dizer que A e B tenham estado na posse (em nome pró-prio) do prédio a partir da venda de 1986. E a posse em que tenham estado até 1986 é irrelevante porque cortada pela venda. Logo, não podiam ter adquirido por usucapião (que pressupõe a posse) depois de 1986. E antes de 1986 a questão não tem qualquer relevo, pois que com a venda se trans-feriram os direitos que tivessem.

               A sentença recorrida está nitidamente influenciada por uma cons-trução factual alegada por A e B, construção que foi dada como não pro-vada no despacho que fixou a matéria de facto. Essa versão era a de que o C era um testa de ferro deles, isto é, que só formalmente é que foi C que com-prou o prédio em 1986 já que o dinheiro que C utilizou era de A e B. Foram eles, A e B, que de facto fizeram a compra em 1986, por interposta pessoa (o C).

              Só esta construção é que pode justificar a desconsideração, pela sentença, dos efeitos da venda judicial ocorrida em 1986 sobre a posse dos embargantes. Estes, devido ao acordo com o arrematante, nunca teriam perdido a posse. Mas, não havendo sinais de tal acordo na matéria de facto dada como provada, esta solução não tem suporte. Eles, com a venda, perderam a posse que tinham.

              Para poderem dizer que não tinha perdido a posse, eles tinham que ter provado o tal conluio com o arrematante. Mas não o conseguiram provar. A perda da posse em nome próprio é, pois, uma consequência inelutável dos factos provados, apesar do animus com que os embargantes tenham continuado a actuar.

                                                                 *

              Aliás, diga-se agora, os embargantes nem sequer podiam ter alegado o conluio com o arrematante: sendo eles os vendedores e sendo o arrematante o comprador tal conluio traduz-se numa interposição fictícia de pessoas, ou seja, uma simulação relativa objectiva, que teria sido concertada entre A e B e C com a intenção de prejudicar os credores de A e B (arts. 240 e 241/1 do CC). Ora, as simulações são inoponíveis, pelos simuladores, a terceiros de boa fé, como é o caso de D (exequente)… (art. 243 do CC). Como lembra Carvalho Fernandes (Teoria Geral do Direito Civil, vol.II, 2ª ed., Lex, 1996, pág. 251), os simuladores não podem invocar contra terceiros de boa fé a sua própria torpeza; ninguém deve ser admitido a prevalecer-se da sua própria má fé. Assim, a questão nem sequer tinha relevo.

                                                                 *

              Mais ainda: a sentença ora invoca uma posse não titulada, ora invoca uma posse titulada. Esta dupla fundamentação, contraditória, tam-bém demonstra o equívoco da sentença:

              - a posse não titulada só pode ter a ver com o tal acordo, alegado mas não provado, que levou à compra simulada de 1986 (na versão dos embargantes). Mas então não se trata da posse que vem desde 1974 (com a ocupação), ou desde 1975/76 (com as compras dessas datas), mas de uma posse que a sentença não diz – porque não podia dizer, por não haver dados para o efeito - quando se iniciou;

              - a posse titulada, baseada nas escrituras, é a posse dos embargantes que vem das compras de 1975/1976. Mas como é que se pode basear a usucapião numa posse relativa a um direito adquirido em 1975/76 e vendido em 1986, se não se prova a simulação desta última venda?

                                                                 *

              Por fim, note-se que:

              1. No caso não existem dois negócios ou dois factos jurídicos dos quais decorresse um conflito entre um primeiro adquirente não registado e um segundo adquirente registado, pelo que não há que invocar quaisquer normas registais que contradigam o princípio da consensualidade, isto é, de que o contrato de compra e venda transfere o direito de propriedade no momento da conclusão do contrato (apenas por último, e porque já se pronuncia sobre a questão depois da nova obrigatoriedade de registar os factos sujeitos a registo, veja-se o estudo de José Alberto Vieira quanto ao impacto desta alteração sobre a aquisição de direitos reais sobre coisas imóveis e a segurança no comércio jurídico imobiliário, nos Estudos em Homenagem a Sérvulo Correia, ed. da FDUL, Coimbra Editora, 2010, vol. III, págs. 93 a 112, especialmente págs. 95 a 104; no mesmo sentido, vai Maria Clara Sottomayor, na nota de actualização do seu trabalho, págs. 931 a 934).

              2. E que, porque a aquisição do prédio pelo executado foi registada, também não se coloca a questão da distinção entre os efeitos de uma trans-ferência da propriedade inter partes e erga omnes (Antunes Varela, na anota-ção referida acima – mas agora na pág. 382 do nº. 3837 - defende que a consti-tuição ou a transferência de direitos reais, perante terceiros, apenas se verifica a partir da data do registo – a questão é desenvolvida na tese de doutoramento de Maria Clara Sottomayor já referida acima, por exemplo, nas págs. 183 a 195, na nota 771 onde cita outra anotação de Antunes Varela no mesmo sentido, e nas págs. 221 a 230, onde a autora assume posição contrária, no sentido do entendimento maioritário). 

                                                                 *

              Pelo que, como se vê, procedem os argumentos do recorrente.

                                                                 *

              Os embargantes poderiam agora vir dizer: nós alegámos também a inversão do título da posse depois da venda (diz isto respeito à matéria acrescentada no relatório relativamente à petição de embargos, como foi assinalado acima); tal não foi tomado em consideração na decisão que fixou a matéria de facto, nem na sentença recorrida; mas devia ter sido tomada em conside-ração.

              Quanto a isto diga-se: os embargantes poderiam ter dito isto (reque-rendo a ampliação do recurso – art. 684-A do CPC), mas não o disseram, e logo por aqui a questão não teria interesse.

              Por outro lado, eles de facto não alegavam a inversão do titulo da posse. Eles concluíam, em termos de direito, por essa inversão. Não havia pois factos que tivessem a ver com a inversão do título da posse.

              Não havia nem podia haver pois que, por último, tal seria absoluta-mente contraditório com o que eles antes tinham alegado: se tinha havido um conluio entre eles e o arrematante do imóvel na venda judicial, no sentido de eles continuarem na posse, como proprietários, do imóvel em causa, não faria qualquer sentido a alegação, em termos concretos, de um acto de oposição dos embargantes contra o seu cúmplice no sentido de, a partir de certa altura, passarem a ter a posse em nome próprio, pois que nunca tinham deixado de a ter...

              Portanto, nada disto poderia ou deveria ser considerado na decisão que fixou a matéria de facto e por isso nada pode censurado a esta a esse propósito.

                                                                 *

              Sumário:

              Com a venda judicial, o direito de propriedade e a posse transferem-se para o comprador, passando o vendedor/executado, se continuar na posse da coisa, a ser um possuidor precário, em nome alheio, não podendo invocar a posse para a usucapião, sem provar a posterior inversão do título da posse.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se procedente o recurso e em consequência re-voga-se a sentença recorrida e em sua substituição consideram-se improce-dentes os embargos de terceiro, mantendo-se a penhora e os registos sobre o imóvel em causa.

              Custas, quer dos embargos quer do recurso, pelos embargantes.

             

              Pedro Martins ( Relator )

              Virgílio Mateus

              António Carvalho Martins