Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1131/13.2TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
IMPUTAÇÃO OBJECTIVA DO RESULTADO
CRIME COMISSIVO POR OMISSÃO
NEXO CAUSAL ENTRE A CONDUTA E O RESULTADO
IN DUBIO PRO REO
VIOLAÇÃO DAS LEGES ARTIS
Data do Acordão: 06/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 10.º E 137.º DO CP
Sumário: I – Para haver imputação do resultado à conduta do agente é necessário que exista entre a conduta (acção ou omissão) e o resultado um nexo causal concreto, ou seja, é indispensável que tenha sido a conduta a causa efectiva do resultado.

II – Sendo esta efectiva relação causal um elemento do tipo nos crimes de resultado, ele tem de ser objecto de prova. Donde que, havendo dúvida razoável sobre se efectivamente a conduta foi causa do resultado, ter-se-á, por força do princípio in dubio pro reo, de considerar como não provada a imputação.

III – Consequentemente, é de excluir a verificação do nexo de imputação objectiva do resultado (no caso, morte de determinada pessoa) à conduta omissiva do arguido, quando, perante os indícios revelados, e mesmo configurando eles a violação das lexis artis – não foi equacionada, podendo tê-lo sido, a doença determinante do decesso da vítima e foi omitida a realização de um exame de diagnóstico fundamental para a detecção do distúrbio funcional orgânico –, existia comprovadamente a alta probabilidade de ocorrência do fim da vida da paciente.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo n.º 1131/13.2TACBR do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Coimbra – Juízo Inst. Criminal – Juiz 3, encerrado o inquérito o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos A., B., C., D., E., F. e G., imputando, a cada um, a prática, em autoria material, de um crime de homicídio negligente, por omissão, p. e p. pelos artigos 10.º e 137.º, n.º 1, ambos do Código Penal.

2. Inconformados com a acusação os arguidos E., A., G., B. e F. requereram a abertura da fase de instrução, finda a qual, em 03.09.2019, foi proferido despacho de não pronúncia relativamente a todos eles.

3. Do despacho de não pronúncia recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:

1. No encerramento do inquérito, foi proferido despacho de acusação contra os médicos que prestaram assistência a (…) nos HUC, no período compreendido entre as 21.56 horas do dia 7 de julho de 2013 e as 11.15 do dia seguinte, imputando-lhes a prática de um crime p. e p. pelos artigos 10º e 137º, n.º 1 do Código Penal.

2. Foi depois proferido despacho de não pronúncia, por considerar o Senhor Juiz que se não indicia suficientemente que a morte tenha resultado da conduta omissiva dos arguidos e que essa omissão tenha conduzido à morte da paciente; e que o princípio in dubio pro reo beneficiaria os arguidos quanto ao nexo de causalidade, inexistindo uma probabilidade de futura condenação dos mesmos em julgamento.

3. Afigura-se-nos, porém, que não lhe assiste razão, pois que os elementos reunidos nos autos fazem crer que existe uma possibilidade razoável de futura condenação dos arguidos em julgamento, que se afigura como mais provável do que a absolvição, pelo que deveria ter sido proferido despacho de pronúncia.

4. Nesta matéria é indispensável o juízo pericial, mas afigura-se-nos que a decisão instrutória não considerou corretamente quer o parecer do CML, quer os esclarecimentos prestados pelos Peritos, dos quais resulta, para além da violação das leges artis por parte dos arguidos, que a mesma contribuiu para a morte, a qual não era seguro ou altamente provável que ocorresse caso eles tivessem cumprido o dever de cuidado, como podiam e a que estavam obrigados.

5. Salientamos que no parecer se refere que essa “violação contribuiu para a não realização de diagnóstico de fasceíte necrotizante mais precocemente e consequentemente no atraso da decisão de desbridamento cirúrgico do local da infeção”, que “esta patologia cursa com altas taxas de mortalidade, mesmo quando o diagnóstico e o tratamento é instituído (antibioterapia, desbridamento cirúrgico, terapêutica de suporte de vida) no início do quadro clínico” e que “”O curso clínico desta patologia é geralmente muito rápido nos doentes sem diabetes, mas nos doentes diabéticos pode ser extremamente rápido, sendo necessário em alto grau de suspeição diagnóstica nas fases iniciais”.

6. Sendo que, como o Prof. (…) esclareceu em inquérito, no quadro que a doente apresentava era necessária cirurgia o quanto antes, e que “não podendo o Conselho afirmar com a necessária certeza que se o foco infecioso da doente fosse detetado em momento precoce e realizada a cirurgia esta não teria igualmente falecido, considerando que mesmo nesse caso a taxa de sucesso não teria ultrapassado os 30%, por aquela patologia cursar com altas taxas de mortalidade, especialmente em doentes diabéticos”.

7. E em instrução referiu ainda que com o correto e atempado diagnóstico e a realização do tratamento cirúrgico, a morte não ocorreria necessariamente e que a atuação num momento precoce daria à doente uma possibilidade de sobreviver; e se, como disse, num diabético a doença evolui mais rapidamente, o acompanhamento mais de perto, permitiria um diagnóstico mais precoce e que o tratamento se realizasse mais cedo.

8. Também o Perito nomeado pelo Tribunal referiu tender a concordar com as conclusões da consulta, aventando uma probabilidade de morte de 40% caso a fasceíte tivesse sido diagnosticada mais cedo e uma maior probabilidade de a doente sobreviver; salientamos ainda a referência ao Professor (…), cirurgião que no dia 8, no HG, determinou a realização de angio-tac e a cirurgia de desbridamento.

9. Perante esta prova, entendemos seguro concluir que a taxa de sucesso de uma intervenção atempada em doentes diabéticos é inferior à que ocorreria com doentes saudáveis e não ultrapassará os 30 ou 40%, e que não se pode concluir que no caso a morte ocorreria necessariamente.

10. Tal gravidade e tais reservas não afastam a imputação do resultado à conduta omissiva dos arguidos, que estavam em condições de poder agir doutra maneira e adotar a conduta esperada e que se entendeu terem violado as leges artis, como bem se fundamentou na decisão recorrida.

11. Perante os elementos supra referidos, entendemos que não se verificava uma forte probabilidade de a doente morrer ainda que os arguidos tivessem atuado como podiam e deviam; e só não haverá responsabilidade se a morte seguramente ocorresse ou se fosse altamente provável que viesse a ocorrer, o que não se indicia.

12. Antes se indicia que se os arguidos tivessem adotado a conduta que podiam e a que estavam obrigados teriam diminuído consideravelmente o risco de morte e que ao não terem assim procedido, protelando o diagnóstico e não realizando o tratamento correto, potenciaram o perigo e risco de vida da doente, contribuindo para a sua morte.

13. Não se indiciando que “a f.i.n é em princípio cirurgicamente irreversível, pelo que não é possível … formular uma possibilidade de sobrevivência naqueles termos”, o que não foi referido no parecer nem pelos Senhores Peritos; sendo que os valores referidos quanto à taxa de sucesso da intervenção atempada distanciam-se de uma situação de irreversibilidade; é mesmo referido que a cirurgia que iria ser realizada no HG teria uma possibilidade mínima de sucesso.

14. Perante toda a prova reunida nos autos, e de que salientamos a consulta técnico-científica e os esclarecimentos prestados pelo seu relator, é também nosso entendimento que a conduta dos arguidos contribuiu para a morte de (…);

15. Por os mesmos, como podiam e deviam, não terem procurado identificar e localizar o agente e o foco da infeção, não procedendo à realização de angio-tac, o que contribuiu para a não realização atempada do diagnóstico e consequentemente para o atraso na decisão da cirurgia, conduzindo a um quadro infecioso irreversível que resultou na sua morte.

16. Entendendo-se que os elementos reunidos nos autos não excluem nem suscitam dúvidas quanto à verificação do nexo de causalidade, antes permitem concluir pela existência de indícios suficientes da prática pelos arguidos dos factos e crime pelo qual foram acusados, afigurando-se-nos que em julgamento, com base nesses elementos, é altamente provável a sua condenação ou, pelo menos, é mais provável a sua condenação do que a absolvição.

17. Pelo que, existindo indícios suficientes de todos os factos constantes da acusação, deve o despacho de não pronúncia, que violou o disposto nos artigos 308.º, n.º 1, 283.º, n.º 2 e n.º 3 do Código de Processo Penal e 10º e 137º, n.º 1 do Código Penal, ser substituído por outro que pronuncie os arguidos em conformidade.

No entanto, Vossas Excelências melhor decidirão, fazendo JUSTIÇA.

4. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

5. Ao recurso responderem os arguidos (transcrição das conclusões):

B.

1. Por tudo quanto antecede, afirmamos que não assiste razão à posição sustentada pela Dmª Magistrada do Ministério Público.

2. O arguido, tendo que cuidar da infeliz paciente (…), num episódio de Serviço de Urgência ocorrido a partir do início do dia 8 de Julho de 2013, agiu nos atos médicos praticados, de forma correta, sem violação de qualquer preceito legal.

3. O arguido, não contribuiu de forma nenhuma para que a paciente (…), por ele observada nos Serviços de Urgência do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, viesse a falecer.

4. O arguido agiu sempre, no contacto que teve então com a paciente, no cumprimento escrupuloso das suas “legis artis”.

5. Doutro modo, também não violou nenhum dever de cuidado, que estivesse obrigado a cumprir, de forma mais específica ou incisiva, que tenha que ser aferido pelos protocolos de diagnóstico e terapêutica, ou de execução ou procedimentos médicos.

6. Inexistem nos autos, quaisquer elementos que possam permitir o estabelecimento de qualquer causalidade adequada, entre o comportamento do arguido enquanto médico, e o falecimento da infeliz (…).

7. Não há factualidade nos autos, que permitam demonstrar o nexo causal efetivo e a conexão típica, entre um ato eventualmente negligente do arguido e o decesso da paciente (…).

8. De igual modo, também não fluem dos autos elementos sérios e idóneos que permitam indiciariamente que seja, realizar a imputabilidade penal ao arguido.

9. O arguido, cuidou da paciente e praticou atos médicos de acordo com as regras científicas e técnicas e princípios profissionais, que como médico tem a obrigação de conhecer. Agiu de acordo com o complexo de regras adotadas genericamente pela ciência médica.

10. De acordo com o que se alegou, nas presentes contra-alegações de recurso, e de tudo quanto consta dos autos, o arguido inicialmente diagnosticou à doente uma mialgia, face a roptura muscular, porque todos os sinais clínicos que a mesma apresentava, eram com tal diagnóstico compatíveis.

11. Inicialmente o exame médico que lhe vem a conhecimento, um ecodopler, pedido pela colega que o antecedeu, levava nesse sentido.

Todos os sinais eram coerentes com tal diagnóstico.

12. Observou a paciente no Serviço de Urgência sempre com a paciente monotorizada e hemodinamicamente estável.

13. Quando perscrutou alteração do edema da perna da paciente, para além de anteriormente ter pedido RX, e de lhe ter ministrado ao longo da noite, medicamentação atinente ao seu estado, resolveu pedir exames microbiológicos para hemocultura e exames microbiológicos, através de análises.

14. Ministrou à paciente de forma empírica antibioterapia.

15. Sai de turno de serviço por cerca das 08H00 da manhã, conquanto ainda se mantenha no Serviço depois de passar o mesmo ao colega que o substituiu.

16. Mais tarde pelas 16H00 desse dia 8 de Julho de 2013, - no Hospital dos Covões -, a paciente vem a falecer, vítima de fasceite necrotizante infeciosa.

17. As regras impõem que o médico deve agir segundo as exigências das “leges artis” e os conhecimentos científicos existentes na arte, à altura dos factos.

18. Que devem atuar, como o fez o arguido, de acordo com um dever objetivo de cuidado.

19. O arguido assim fez e utilizou as técnicas adequadas.

20. Durante o tempo de internamento da doente a mesma não apresentou sinais claros de infeção, não estando errado o diagnóstico de mialgia por roptura muscular, face aos sinais apresentados sendo com os mesmos compatível.

21. Os sinais que a paciente apresentava, não eram compatíveis com a fasceite infeciosa necrotizante, que veio a vitimizar a paciente (…).

22. O arguido não violou as “leges artis” nem o especial dever de cuidado. A sua atuação não foi ilícita.

23. Nos autos, não se apuraram factos com relevância, que indiciariamente se possam considerar idóneos e suficientes para que submetido o arguido a julgamento, aí fosse provável a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança.

24. Nesse sentido a decisão instrutória também se orientou, consagrando a NÃO PRONÚNCIA do arguido.

25. Não existem nos autos e a decisão instrutória assim consagrou, os indícios a que alude o artigo 308.º do Código de Processo Penal, pelo que o mesmo não foi violado pela douta sentença em recurso, como adianta no seu recurso a Magistrada recorrente.

26. De igual modo não resultam violados, como invoca a Dmª Magistrada do Ministério Público, os artigos 283.º, n.º 2 e 3 do Código de Processo Penal e os artigos 10.º e 137º n.º 1 do Código Penal.

27. Deve, por conseguinte, ser negado provimento ao recurso, ora interposto pela Sr.ª Magistrada do Ministério Público, e mantida na íntegra a douta decisão recorrida.

Assim se fará JUSTIÇA, Venerandos Juízes – Desembargadores.

F:

1. Andou bem o Meritíssimo Juiz de Instrução ao não pronunciar os arguidos nos presentes autos.

2. A fasceíte necrotizante é uma patologia que cursa com altas taxas de mortalidade, mesmo quando o diagnóstico e o tratamento é instituído no início do quadro clinico e que, o curso clinico desta patologia é geralmente muito rápido nos doentes sem diabetes, mas nos doentes diabéticos pode ser extremamente rápido.

3. A fasceíte necrotizante é uma patologia extremamente rara.

4. Situações de fasceíte necrotizante têm que ter outros sintomas associados para que se possa colocar esse diagnóstico como uma possibilidade, nomeadamente, sinais cutâneos visíveis, o que não aconteceu no presente caso.

5. A fasceíte necrotizante não pode ser diagnosticada sem exames complementares específicos, cujos resultados demoram vários dias.

6. A vítima faleceu poucas horas depois de ter sido observada pelos arguidos.

7. Os resultados dos exames que permitiriam confirmar a existência da fasceíte necrotizante não seriam disponibilizados em tempo para que se pudesse aplicar qualquer tratamento à vítima.

8. Não havia quaisquer sintomas que pudessem indiciar que se estaria perante uma situação de fasceíte necrotizante.

9. Não obstante, foram feitas colheitas e foram mandados fazer exames microbiológicos.

10. As probabilidades de o resultado morte se verificar eram muito elevadas, independentemente da ação ou da omissão dos arguidos.

11. A intervenção do arguido Dr. (…) na observação da doente (…), aconteceu quando foi chamado à sala de emergência para realizar uma avaliação do ponto de vista da ortopedia de forma a possibilitar eventual diagnóstico/terapêutica.

12. Do ponto de vista ortopédico, exclui-se, naquele momento, o diagnóstico do síndrome compartimental.

13. A observação clinica efetuada pelo arguido Dr. F. na sala de emergência, aconteceu por indicação da equipa ortopédica de urgência e em resposta ao pedido de observação da doente pela especialidade de ortopedia.

14. O procedimento adotado foi o procedimento médico normal naquele tipo de situações, sempre respeitando as leges artis profissionais.

15. Não cabia, à parte de ortopedia, naquela situação, a adoção de qualquer outro procedimento além dos que foram adotados pelo arguido F..

16. O parecer técnico-científico constante dos autos refere expressamente, relativamente ao arguido Dr. F., que, perante os dados do processo, a conduta daquele foi consentânea com as boas práticas médicas.

17. Não houve, portanto, por parte do Dr. F., uma prática compatível com a incompetência ou negligência, nem violação das legis artis.

18. O crime aqui em causa – homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, n.º 1 do Código Penal -, pressupõe que:

- o agente assuma um comportamento comissivo ou omissivo;

- esse comportamento viole o dever (objetivo e subjetivo) de cuidado;

- a verificação do resultado morte de uma pessoa;

- a imputação desse resultado à conduta do agente.

19. Ou seja, recaindo sobre o agente «um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado» (art.º 10.º do CP), para que se possa imputar a alguém uma conduta negligente, o artigo 15.º exige que ele tenha violado quer o dever objetivo, quer o subjetivo de cuidado.

20. Para que o resultado em que se materializa o ilícito típico possa fundamentar a responsabilidade não basta a sua existência fáctica, sendo indispensável que possa imputar-se objetivamente à conduta e subjetivamente ao agente.

21. Determinada ação ou omissão será causa de certo evento se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa ação ou omissão se mostrava à face da experiência comum como adequada à produção do referido evento, havendo fortes probabilidades de o originar – cf. Galvão Teles, in Manual do Direito das Obrigações.

22. Como sublinha Helena Moniz (in Risco e negligência na prática clinica, Revista do Ministério Público, 130, Abril/Junho 2012, págs. 89/90), “Também no âmbito da atividade médica/clínica a eventual responsabilidade penal por negligência deve fundamentar-se na realização de uma conduta com violação de um dever objetivo de cuidado, na realização de uma conduta diferente da conduta devida e esperada. Tem de ser provado que, se o dever de cuidado tivesse sido cumprido, o resultado não se teria produzido, ou teria sido possível evitar a sua produção.

23. Entre nós, o simples cumprimento da legis artis afasta automaticamente qualquer análise do comportamento (nomeadamente, afasta qualquer averiguação quanto ao cumprimento, ou não, do dever de cuidado) por se entender, por força do art.º 150º, n.º 1, do CP, que se trata de um comportamento irrelevante para o direito penal. A conduta realizada com as finalidades previstas no art.º 150.º, n.º 1, ainda que geradora de um resultado infeliz, não será escrutinada quanto a uma possível violação de um dever de cuidado, sempre que se conclua que aquela conduta foi realizada de acordo com todas as regras da atividade médica”.

24. A conduta do Dr. F. não feriu nem violou as legis artis, quer na elaboração do diagnóstico, quer na tomada de decisão clínica.

25. Por conseguinte, não se vislumbrando má prática médica, tendo o arguido aplicado as regras generalizadamente reconhecidas da prática e da ciência médica, teremos de concluir que usou de cuidado e, inexistindo a violação do dever de cuidado que caracteriza o tipo de ilícito negligente, a sua conduta não pode ser considerada um crime (designadamente o de homicídio por negligência).

Sem prescindir,

26. É igualmente de salientar o facto de o registo clinico que consta no processo, efetuado pelo arguido Dr. F., traduz, não a orientação exclusiva deste, mas sim a orientação unanimemente decidida por toda a equipa de urgência de ortopedia, após avaliação e discussão do caso em equipa, relativamente à história e condição clínica da doente no momento da observação clínica.

27. O arguido Dr. F., à data dos factos, era Interno do 2.º ano da especialidade de Ortopedia.

28. E, como refere o Regime Jurídico da Formação Médica (decreto-lei n.º 203/2004, de 18 de agosto, com as alterações introduzidas pelo decreto-lei n.º 45/2009, de 13 de fevereiro, nomeadamente no n.º 2 do art.º 2º, bem como o Regulamento do Internato Médico (Portaria n.º 251/2011 de 24 de Junho), no seu n.º 4 do art.º 2.º, “o exercício autónomo da medicina é reconhecido a partir da conclusão, com aproveitamento, do segundo ano de formação do internato médico” (sublinhado nosso).

29. Durante o internato os internos atuam segundo as instruções do orientador de formação/responsável do estágio.

30. O médico formador tem um dever de garante face à atuação do médico interno que pode ser uma concreta fonte de perigo, podendo por essa vida ser responsabilizado, por omissão do dever de agir.

31. Sempre que o médico interno atuar de acordo com as instruções do seu orientador de formação e dessa atuação derivar um dano para o doente, por princípio só o orientador deve ser responsabilizado.

32. A decisão clínica registada pelo Dr. F., aqui arguido, no processo da vítima foi orientação unanimemente decidida por toda a equipa de urgência de ortopedia, após avaliação e discussão do caso em equipa, relativamente à história e condição clínica da doente no momento da observação clínica.

33. O Dr. F., aqui arguido, à altura dos factos médico interno do 2º ano, atuou de acordo também com as indicações dos médicos especialistas.

34. Não poderia nunca o Dr. F. se responsabilizado pela sua atuação, ainda que essa atuação não estivesse de acordo com as boas práticas médicas, que estava.

35. Não obstante, já se viu, e consta inclusivamente da Consulta Técnico-Científica junto aos autos, que a atuação do Dr. F. esteve de acordo com as boas práticas médicas.

36. De todos os elementos constantes nos autos, quer recolhidos em fase de inquérito, quer já em fase de instrução, não existem quaisquer indícios de que o arguido F. tenha tido qualquer conduta que, por ação ou omissão, tivesse como consequência direta o falecimento da vítima.

37. Não estão recolhidos no processo indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido Dr. F. de uma pena ou de uma medida de segurança.

38. Pelo que deverá assim, ser confirmado o despacho de não pronúncia do Meritíssimo Juiz de Instrução.

Termos em que deve o recurso interposto, a que aqui se responde, improceder, fazendo desta forma, V. Exas., a acostumada JUSTIÇA!

E.

No sentido de não ser a decisão de não pronúncia merecedora de censura porquanto não foram violados quaisquer normas, designadamente as indicadas pelo recorrente, resultando da mesma a opinião dos peritos “de que, ainda que realizada a TAC – a cuja omissão se “resume” a atuação de todos os arguidos – a prognose do resultado morte era de verificação muitíssimo mais elevada do que a de resultado “não morte”, o que deverá conduzir à improcedência do recurso.

G.

A prova recolhida não consente da suficiente indiciação de violação da leges artis por banda do arguido. O parecer técnico científico, em bom rigor e em termos que estão longe de poderem ser considerados conclusivos, seguros e conducentes à inequívoca afirmação de que foi pela violação das leges artis pelos arguidos que o resultado verificado ocorreu e/ou foi potenciado”, razão pela qual não deve ser dado provimento ao recurso.

6. Na Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso merecer provimento.

7. Cumprido o n.º 2, do artigo 417.º do CPP apenas o recorrido E. reagiu, pugnando pela improcedência do recurso.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de eventuais questões de natureza oficiosa, no caso em apreço importa decidir se contém os autos indícios suficientes da prática pelos arguidos do crime de homicídio negligente, p. e p. pelos artigos 10º e 137º, n.º 1, do Código Penal, concretamente no que concerne ao nexo de imputação objetiva.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar do despacho de não pronúncia [transcrição parcial]:

O Ministério Público deduziu acusação, requerendo o julgamento perante Tribunal Singular dos arguidos:

- A., solteira, médica, nascida a 08/01/1986, filha de (…) e de (…), natural de (…), concelho de (…), residente na (…), (…);

- B., casado, médico, nascido a 29/01/1974, filho de (…) e de (…), natural de (…), concelho de (…), residente na Rua (…), n.º (…), (…);

- C., casado, médico, nascido a 06/02/1986, filho de (…) e de (…), natural da freguesia e concelho de (…), com morada profissional no CHUC – Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, Serviço de Medicina, (…), (…);

- D., casado, médico, nascido a 21/08/1946, filho de (…) e de (…), natural da freguesia e concelho da (…), residente na Rua (…), n.º (…), (…);

- E., solteiro, médico, nascido a 13/12/1980, filho de (…) e de (…), natural da freguesia e concelho de (…), residente na (…), Lote (…), (…);

- F., casado, médico, nascido a 18/01/1986, filho de (…) e de (…), natural da freguesia de (…), concelho de (…), residente na Rua (…), n.º (…), (…); e,

- G., casado, médico, nascido a 20/01/1971, filho de (…) e de (.), natural da freguesia de (…), concelho de (…), residente na Rua (…), n.º (…), (…).

Imputando-lhes a prática, a cada um dos arguidos, em autoria material de um crime de homicídio negligente, por omissão, p. e p. pelos art.ºs 10º e 137º, n.º 1, do Código Penal;

Inconformados com tal despacho vieram os seguintes arguidos requerer a abertura da instrução:

1º - O arguido A., a fls. 607 ss, alegando em síntese:

- que não praticou o crime que lhe é imputado, pois o requerente era interno da especialidade de cirurgia do aparelho digestivo, patologia da mama, parede abdominal, cirurgia laparoscópica e cirurgia abdominal do trauma e observou a paciente pelas 9h 30 m da manhã quando esta se encontrava, há cerca de 10 horas na urgência e quando havia já sido observada por vários médicos e feita colheita de culturas microbiológicas e quando havia sido já efetuada uma ecografia dos tecidos moles ao nível da região polipteia e gemelar; a paciente estava à responsabilidade do serviço de medicina interna e tendo o requerente sido chamado por dor e edema na perna direita, para avaliar da hipótese de poder ser necessário cuidados cirúrgicos por parte de Cirurgia Geral e com base nas análises e exames já efetuados; face ao quadro clinico e em face da observação da paciente entendeu o requerente que a mesma deveria ser observada pela especialidade de Ortopedia uma vez que a dor e o edema se verificavam num dos membros do corpo e consequentemente seria a especialidade de Ortopedia a competente para melhor a avaliar;

- face aos sintomas apresentados no momento da sua observação e aos exames e história clinica do paciente que em nada apontava para o diagnóstico de fasceíte necrosante entendeu o requerente que a paciente, naquele momento não necessitava de cuidados a prestar pelo serviço de Cirurgia Geral;

- não era exigível ao requerente – que ainda por cima era apenas interno que ordenasse a colheita de culturas (tanto mais que tal já havia sido feito) ou que ordenasse a realização de uma TAC porquanto possuía um exame imagiológico realizado há menos de 12 horas que nada de anormal - pelo menos no que a especialidade de cirurgia geral dizia respeito, pelo que nenhum motivo médico atendível tinha o ora requerente para ordenar tal exame;

- o seu colega que observou a paciente imediatamente após o ora requerente, designadamente do serviço de ortopedia também entendeu não ser de solicitar tal exame nem haver necessidade de qualquer intervenção por parte da ortopedia pelo que o requerente não foi negligente, antes pelo contrário, pelo que não violou qualquer leges artis, sendo que o requerente ainda não era médico especialista encontrando-se ainda em fase de informação e aprendizagem e sujeito a tutela dos médico especialistas em cirurgia geral que se encontravam de serviço motivo pelo qual a doente foi vista pelo requerente juntamente com o especialista O. e o caso discutido com o mesmo;

- por outro lado não existe nenhuma garantia que caso o ora requerente tivesse solicitado a realização de uma TAC que os resultados da mesma permitiriam fazer o diagnóstico antes de atingir sintomas visíveis o que no momento em que observou a doente esta não apresentava, o que é salientado no ponto 8 da consulta Técnico Cientifica realizada e onde é claramente dito que mesmo que tivesse sido realizada a TAC estas poderia não ajudar a esclarecer de forma precisa o diagnóstico, sendo que mesmo que o requerente tivesse solicitado a realização quer dos exames microbiológicos quer da TAC ainda assim nenhuma garantia existia que o resultado morte não tivesse sido produzido.

- acresce que o resultado dos exames microbiológicos – mesmo que não tivessem sido pedidos e foram – demoram sempre entre dois a sete dias a estar concluídos o que não permitiria, como não permitiu ajudar no concreto diagnóstico; também não é possível concluir que as imagens recolhidas com a TAC poderiam ajudar a esclarecer de forma precisa o diagnóstico, pelo que não é possível afirmar que tais ações eram adequadas a evitar o resultado e muito menos com a certeza exigida para sustentar uma acusação de homicídio;

- Com tais fundamentos conclui que não é possível concluir que as ações omitidas eram adequadas a evitar a morte, sendo que o requerente não incumpriu nenhuma das leges artis, antes a morte da vítima ficou a dever-se a uma longa doença extremamente agressiva tanto mais que aliada aos antecedentes pessoais de diabetes tipo 1 e muito difícil de diagnosticar atempadamente e não a qualquer omissão médica pelo que deve ser proferido despacho de não pronúncia.


*

2º - A arguida A., veio requerer a abertura da instrução, alegando em síntese:

- que não praticou o crime que lhe está a ser imputado, pois a sua intervenção no caso foi correta e não podia ter sido outra nem lhe era exigível outro tipo de abordagem à paciente no momento em que a observou e acompanhou;

- a arguida acompanhou a doente durante um período de 15 minutos, entre as 23.45 e as 00h, período durante o qual só teve tempo para realizar uma primeira abordagem médica tomando a iniciativa que lhe competia para uma análise mais aprofundada do problema – a solicitação de “avaliação analítica com D dímeros e uma ecografia dos tecidos moles ao nível da região poplítea e gemelar”.

- Para além dos exames solicitados a arguida prescreveu à paciente medicação destinada a acalmar a dor, à correção da hiperglicemia e hipovolemia e após esta primeira observação médica, a arguida procedeu de acordo com o que lhe era exigido como interna do primeiro ano de Medicina Interna e sinalizou a doente ao seu superior hierárquico o coarguido B. relatando a história clinica de procedimentos terapêuticos que havia adotado em relação à paciente e os exames complementares de diagnósticos solicitados; a arguida valorizou o facto de a doente apenas referir dor ao nível do membro inferior direito com 4 dias de evolução e de vómitos com cerca de um dia de evolução que a impossibilitam de hidratar, não existirem alterações cutâneas compatíveis com celulite, erisipela ou outra possível porta de entrada para um agente infecioso e apesar de se encontrar hipotensa, não apresentava sinais de hipoperfusão cerebral, renal ou periférica;

- Sem o resultado dos exames solicitados não era possível à Arguida tomar qualquer outra iniciativa de abordagem clinica tanto mais que o relatório da ecografia só ficou disponível às 00,04h quando já não se encontrava ao serviço,

Com tais fundamentos concluem requerendo a sua não pronúncia e arquivamento dos autos;


*

3º- O arguido G., veio requerer a abertura da instrução, alegando em síntese:

- o arguido não praticou o crime de que se encontra acusado sendo que a acusação se limita a atribuir em abstrato negligência no tratamento e diagnóstico da vítima à globalidade dos médicos que a atenderam sem precisar no caso concreto quais os atos que o requerente praticou e que se consideram desadequados em face da aparente situação clinica da vítima e quais aqueles que deveriam ter sido praticados em face da aparente situação clinica da vítima;

- a conduta que o arguido adotou em relação à vítima não merece qualquer crítica quer por colega de profissão quer por parte da lei; sendo de referir que o arguido contactou pela primeira vez com a paciente doze horas e meia depois desta ter dado entrada no serviço de urgência, factualidade importante pois a vítima padecia de doença grave e de desenvolvimento rápido há pelo menos quatro dias e na altura que o requerente a observou encontrava-se já em estado crítico, pelo que no contexto dos atos médicos praticados pelo arguido assumiu relevância a estabilização e manutenção dos sinais vitais da vítima bem como a regularização da diabetes sem os quais qualquer terapêutica é afastada;

- no que concerne à pesquisa da identificação concreta do foco infecioso constatou o arguido que as análises pertinentes para o efeito tinham já sido requisitadas por colegas médicos que anteriormente tinham observado a vítima; conforme relatório do episodio de urgência de fls. 85 ss e ao contrário do que consta da acusação os médicos B. e C. solicitaram as análises possíveis à luz do quadro clinico apresentado pela paciente, ou seja hemoculturas e microbiologia da urina; se tais análises tinham sido solicitadas por médicos que estiveram com a vítima antes do arguido G. a este só restava esperar o resultado de tais análises; resultado que demora em média 48 horas para microbiologia de urina e sete dias para a hemocultura;

- o resultado dessas colheitas somente após a ocorrência do falecimento da paciente foi conhecido sendo que à paciente já estava a ser administrada antibioterapia no momento em que é acompanhada pelo arguido G., e antiobioterapia que se justificava plenamente à luz da existência de um foco infecioso e cuja alteração ou ajuste não se colocava na medida em que o resultado das análises efetuadas e que poderiam apontar essa necessidade não era ainda conhecido. Contudo é de referir que a antibioterapia que estava a ser administrada à paciente é compatível com a sua patologia e consequentemente o antibiótico aplicado tem espectro de atuação contra a bactéria Streptococcus pyagenes (Grupo A) causadora do surto infecioso da vítima circunstância que não poderia ser alheia ao inquérito realizado;

- Já em relação a exames de imagiologia é discutível a real eficácia da anglo-TAC para efeitos de deteção e localização do foco infecioso, como se depreende do quesito 8 e da Consulta Técnico Cientifica de fls. 342 ss;

- Acresce que num contexto protocolar em sede de serviço de urgência tal exame somente pelas especialidades de ortopedia ou cirurgia poderia ser requisitado para a paciente;

- Acresce ainda que a circunstância de a Fasceite Infeciosa Necrotizante da doente não se ter manifestado através de flictenas, sintoma evidente de tal doença senão aquando se encontrava já no CHUC-HG e entretanto com o agravamento do estado clinico da doente foi claro ao requerente a necessidade de internamento da paciente em medicina intensiva e perante a ausência de vaga nesse serviço hospitalar junto dos HUC pelo que decidiu o arguido G. a transferência da paciente para aqueles serviço instalado no CHUC-HG pelo que nenhuma censura pode ser feita ao requerente como aliás se depreende da respos aos quesitos n.ºs 37º e 38º da Consulta Técnico-científica.

Daí que nenhuma omissão pode ser imputada ao arguido G. que tenha de alguma forma concorrido para a produção do resultado típico e em bom rigor tal imputação não é levada a cabo em qualquer lugar, ou por qualquer meio de prova não obstante essa imputação e correspondente nexo causal se tornar necessário à luz da Lei Penal;

- Antes pelo contrário a prova recolhida nos autos aponta em sentido inverso sendo que o nexo de causalidade da morte da doente em relação à conduta do arguido aponta no sentido que mesmo que tivessem sido efetuados aqueles exames impostos e omitidos e tivesse sido submetida a cirurgia conclui a consulta que a possibilidade de evitar a morte seria muito pouco provável, pelo que não se pode imputar ao requerente aquele resultado morte em conformidade com o critério normativo plasmado no art.º 10º, n.º 1 e 2 do Código Penal da teoria da causalidade adequada.

Com tais fundamentos conclui requerendo a sua não pronúncia.


*

4º- O arguido B., veio requerer a abertura da instrução, alegando em síntese o arguido não praticou o crime de que se encontra acusado, nem violou quaisquer leges artis na sua atuação;

- o requerente recebeu a doente pelas 00h e a mesma vinha medicada com perfusão de insulina e soro fisiológico e tendo tido conhecimento que a colega que o antecedeu tinha de igual modo requisitado uma ecografia cujos resultados se aguardavam; o arguido estava perante uma doente diabética de Tipo 1, com queixas a nível da região gemelar do membro inferior direito; o exame objetivo apresentava faces pálida e o membro inferior direito apresentava aumento de volume a nível gemelar, discreto aumento de temperatura local, dor á palpitação do cavado do poplíteo e região gemelar com empastamento, não apresentando sinais de picada ou rubor e o sinal de Homans era positivo, para além da ecografia a colega tinha pedido avaliação analítica com dímeros.

É neste quadro que o arguido B. assume a doente quando a observa, por cerca da 1 00 h, se encontrava monitorizada, com sinais vitais estáveis mantendo glicémias altas.

Entendeu então o arguido realizar uma gasometria que veio a mostrar que a doente tinha uma acidose metabólica moderada a grave, com pH de 721, hipocaliémia ligeira de 3,1 mmol/l e lactatos de 2, 06mmol/l; confrontado com o diagnostico de cetoacidose diabética, no contexto da diabetes de Tipo 1 descompensada, entendeu o arguido ministrar à paciente um soro fisiológico de 1000ml com 3 ampolas de cloretos de potássio, a perfundir a 500cc/hora durante duas horas e posteriormente a 250cc/hora mantendo a perfusão de insulina que já estava ministrada; programou ainda glicémia horárias para ajuste da perfusão de insulina e monotorização da resposta à terapêutica; entretanto chegada à urgência o arguido vai ter em conta para análise do estado do paciente, a ecografia que entretanto havia sido solicitada pela colega que antecedeu ao serviço; presente tal exame, uma ecografia aos tecidos moles realizada ao membro inferior direito da paciente e atento o seu teor o arguido o arguido encontrava-se confrontado com um diagnóstico de cetoacidose diabética e o exame ecográfico não lhe aponta nenhum sinal de espessamento subcutâneo ou ar sendo que em face de tais sinais não podia representar a existência de fasceite infeciosa necrotizante que são usados no seu diagnostico precoce sendo que a doente não apresentava um quadro clinico nesse sentido;

- o quadro clinico da paciente a evoluir há quadro dias conjugado com a observação da ortopedia realizada aproximadamente 24 horas antes, apontando para um quadro compatível com mialgia e por outro face à ausência de sinais inflamatórios francos, a nível gemelar, não indicavam tratar-se de foco infecioso, sendo que na altura se estava bem longe de se poder encarar a hipótese supra referida; a paciente para além dum ligeiro aumento de volume da região gemelar e discreto aumento da temperatura local não apresentava eritema ou calor, nem alteração da coloração da pele, com aparecimento de lesões eritemato-purpúreas e posteriormente azul acinzentadas, ou sequer bolhas com grangrena evidente; a doente apresentava-se apirética, dado que a temperatura auricular de 37, 4 c, em uso no Serviço de Urgência corresponde a apirexia; não apresentava hipotensão e os lactatos estgavam >4m mol/l pelo que com todos estes sinais de análise objetiva a doente não apresentava critérios de confirmação médica de caso suspeito de sépsis; tal se constatava existir por cerca das 02 h e ainda pelas 03 00 do dia 7 de julho de 2013;

Ao longo da noite a doente foi monitorizada através do monitor e vigilância e por inúmeras vezes o arguido se abeirou da paciente com vigilâncias de tensões arteriais e electrocardiográficas de forma contínua, com vigilâncias horária de glicémias apesar das solicitações de trabalho dum Serviço de urgências, não foi descurada a sua presença junto da paciente; cerca das 3h15 falou com a doente e realizou observação clinica da perna, tendo constatado os mesmos sinais e manutenção da impressão clinica com a mesma estabilidade hemodinâmica; nas sucessivas avaliações apesar da doente manter dor não se notou o aparecimento de quaisquer outros sinais na região gemelar que levasse o arguido a agir de forma diversa acrescido do facto de que a avaliação seriada e horária das glicémias, mostrasse controlo do quadro de descompensação diabética, pelo que mantinha a mesma impressão clinica da estabilidade;

Cerca das 05 h o arguido alertado pela enfermeira (…) de que a doente mantinha queixas na região gemelar, foi então a paciente reavaliada pelo arguido e medicada convenientemente, apesar de uma certa agudização da dor, os sinais do exame objetivo anteriormente realizado à perna permaneciam estáveis sem qualquer alteração:

- Na avaliação realizada pelas 8h, o arguido constatou que a paciente se encontrava sudorética e que lhe deu a noção de algum aumento do edema da perna direita, tendo em conta a primeira observação realizada pelo arguido, pelo que o arguido decidiu cerca das 8h 15 m pedir: controlo analítico, culturas de sangue e urina e iniciar empiricamente antibioterapia com levoploxacina, então constatou-se que a doente mostrava pioras no sei estado clinico, ficando hipotensa; em consequência a paciente foi transportada para a sala de emergência onde lhe foi colhida as culturas e iniciou antibiótico, que não foi a levoploxacina que havia sido prescrita pelo arguido, mas um outro antibiótico de mais alargado espectro, prescrito por outro colega em face do agravamento da situação; só a partir das 8h 15m do dia 8 de Julho de 2013 começou a pairar a hipótese de choque séptico, com o foco infecioso ao nível da região gemelar; para o arguido era então claro que a existir um foco infecioso na região gemelar, a antibioterapia era insuficiente para salvar a vida da paciente; o arguido e outros médicos que consigo reuniram consideraram que não era claro que o foco de sépsis fosse a região gemelar, contudo entenderam o arguido e os outros médicos que a examinaram a paciente que não se encontrava identificado o foco de sépsis sendo urgente convocar o caso à Medicina Intensiva e à Cirurgia, pois caso tal foco fosse em tal região teria a Cirurgia de intervir, pelo que o arguido pelas 9h apresentou o caso ao médico (…) e por ter terminado o seu turno de serviço transferiu a questão ao arguido G. que o substituía;

O arguido considera que não violou as boas práticas médicas, ao contrario do sustentado pelo MP na acusação, pois as leges artis determinam que se avance para os exames médicos microbiológicos e exames para localização do foco infecioso através da imagem como tomografia computorizada, torácico, abdominal pélvico e de membros inferiores com especial atenção ao membro edemaciado mas tais exames são complementares de diagnostico, quando ocorram circunstâncias, através do exame objetivo do paciente, pelo que entende o arguido que seria um exagero, tomar tal atitude quando o quadro clinico não o aconselhava, pois como referido o arguido constatou que a paciente poderia padecer duma cetoacidose diabética, e não apresentava como sinal nenhum espessamento subcutâneo ou ar, como a observação em ortopedia, apontava um quadro compatível com mialgia, pois não tinha sinais inflamatórios francos a nível gemelar, não apresentava eritema ou calor, não tinha alteração da coloração da pele; não tinha lesões eritemato- purpúreas e posteriormente azul-acinzentadas, nem tão pouco bolhas com gangrena evidente; a doente estava apirética e nem tão pouco apresentava hipotensão, tendo os lactatos < 4 m mol/l perante tal quadro que não é suscetível de implicar uma sépsis pelo que não se justificava a realização dos referidos exames pelos exame objetivo e sinais apresentados até às 8h, e não fazia qualquer sentido um diagnóstico de fasceite infeciosa necrotizante;

Só a partir das 8h em face da agudização do estado da paciente com a agudização do estado da paciente que apresentando-se sudorectica e havendo noção de algum aumento do edema na perna direita, levou o arguido a mudar a sua posição relativamente ao “ modus faciendi” clínico e assim decide então, fazer culturas de sangue e de urina e iniciar a antibioterapia porque se lhe representou então a hipótese de choque séptico com foco infecioso na região gemelar e agiu em conformidade ciente de que a partir daquela altura que iniciou a toma do antibiótico para esta hipótese não implicava a cura da paciente, sendo necessário para o efeito convocar a cirurgia e por isso contactou a medicina intensiva e a cirurgia, pelo que entende o arguido que não violou as leges artis nos termos supra referidos;

- o arguido não omitiu qualquer dever de cuidado em relação à paciente muito menos que qualquer sua omissão tenha causado o resultado morte da mesma, pois sempre foi cuidadoso e agiu segundo as “leges artis” e discorda da imputação que lhe é feita pois a doente ficou disponível para ser intervencionada pela cirurgia, desde cerca das 11horas da manhã do dia 8-7-2013 e que só ficou pronta para uma intervenção cirúrgica pelas 16 horas do mesmo dia;

Com tais fundamentos conclui requerendo a sua não pronúncia e subsequente arquivamento dos autos.


*

O arguido F., inconformado com a acusação contra si deduzida veio requerer a abertura da instrução, alegando em síntese:

- O arguido não praticou o crime de que se encontra acusado, pois a sua conduta foi consentânea com as boas praticas médicas, quer quando ao diagnostico, quer quanto à decisão clinica aliás como se alcança da prova reunida em sede de inquérito, sendo que na consulta técnico cientifica na resposta ao quesito 35º em relação ao procedimento adotado pelo arguido requerente conclui-se da sua correção, bem como na resposta ao quesito 36º onde se conclui que a decisão de F. foi consentânea com as boas praticas médicas em relação ao diagnostico e à sua decisão inexistindo deste modo qualquer negligência nem violação das legis artis;

- em relação ao registo clinico que consta no processo e efetuado pelo arguido requerente, traduz não a orientação exclusiva deste mas sim a orientação unanimemente decidida por toda a equipa de urgência de ortopedia, após avaliação e discussão do caso em equipa relativamente à história e condição clinica da doente no momento da observação clinica conforme documentos n.º 1 e 2 e que aqui se reproduzem, o que não podia ser diverso uma vez que o requerente era interno do 2º ano de especialidade de Ortopedia e como refere o regime jurídico de formação médica o exercício autónomo da medicina é reconhecido a partir da conclusão com aproveitamento, do segundo ano de formação do internato médico DL n.º 203/2004, de 18 de Agosto, sendo que o Internato Médico é um processo único de formação médica especializada, teórica e prática, tendo o objetivo habilitar o médico ao exercício tecnicamente diferenciado na respetiva área profissional de especialização, pelo que durante o internato os internos atuam segundo as instruções do orientador de formação responsável pelo estágio, sendo que o exercício autónomo da medicina é reconhecido a partir da conclusão com aproveitamento do segundo ano de formação do internato médico em conformidade com a Portaria n.º 251/2011, de 24 de Junho sendo que o médico formador tem um dever de garante face à atuação do médico interno que pode ser uma concreta fonte de perigo e podendo ser responsabilizado por omissão do dever de agir; a responsabilização do médico interno ocorre sempre que violar um seu dever objetivo de cuidado e por isso cometer um crime por negligência, mas com vista a avaliação da conduta do médico interno é necessário apurar os conhecimentos e a experiência que adquiriu durante o período de formação, sendo que uma das situações em que o médico interno pode ser responsabilizado é quando pratica atos sozinhos e para os quais ainda não está preparado ou quando claramente exorbita das suas funções; sempre que o médico interno atuar de acordo com as suas instruções do seu orientador de formação e dessa atuação derivar um dano para o doente por principio só o orientador deve ser responsabilizado e no caso concreto a decisão registada pelo requerente F. no processo da doente foi orientação unanimemente decidida por toda a equipa de urgência de ortopedia após avaliação e discussão do caso em equipa, relativamente à historia e condução clínica da doente no momento da observação clinica, equipa onde se integravam dois médicos especialistas em Ortopedia, sendo que o requerente à data dos factos era médico interno do 2º ano, atuou de acordo também com as indicações dos médicos especialistas pelo que nunca o requerente pode ser responsabilizado pela sua atuação, ainda que essa atuação não estivesse de acordo com as boas práticas médicas.

Com tais fundamentos conclui requerendo a sua não pronúncia e subsequente arquivamento dos autos.


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Foi declarada a abertura da instrução tendo sido juntos, designadamente os documentos de fls.623 a 624, de fls. 686 e de fls. 687; foram tomados esclarecimentos ao perito Prof. (…); procedeu-se à nomeação de perito (…); foi interrogado o arguido F.; B.; procedeu-se à inquirição da testemunha (…); (…); (…), (…), (…), (…).

*

Procedeu-se à realização de debate instrutório, com a observância do pertinente formalismo legal e no decurso do qual foram requeridas diligências suplementares de prova, com nova tomada de declarações ao perito (…); foi ainda interrogado o arguido E..

[…]

3.1. Dos Indícios suficientes:

Compulsada a prova indiciária em sede de inquérito e de instrução indicia-se com suficiência a seguinte factualidade:

- A vítima (…), nascida a 11 de novembro de 1976, recorreu à Urgência dos CHUC – HUC no dia 6 de julho de 2013, pelas 21:13 horas, tendo, na triagem que foi realizada, referido sentir diminuição da força muscular do membro inferior direito, com dor em todo o membro desde há 3 dias, e ser doente Diabetes Mellitus Insulino-Dependente (DMID).

- Após ter sido observada pelos médicos de serviço das especialidades de cirurgia e ortopedia, mais concretamente (…), (…) e (…), (…) foi medicada com analgésicos, nomeadamente diclofenac 75 mg, metamizol magnésico 2000mg e tiocolquicosido 4 mg.

- Cerca de uma hora depois da administração destes fármacos, pelas 01:48 horas do dia 07 de julho de 2013, (…) apresentava uma melhoria significativa do membro inferior direito, considerando que na posição sentada já mobilizava, com amplitudes articulares totais, o joelho e a perna.

- Face a esta evolução, pelas 01:50 horas do dia 07 de julho de 2013, (…), médico ortopedista de serviço, deu alta para o domicílio a (…) recomendando analgesia, repouso, vigilância clinica e reavaliação se houvesse um agravamento ou persistência da sintomatologia, devendo neste caso aquela voltar à urgência daquele hospital.

- Sucede que, já no domicílio, o estado de saúde de (…) agravou-se durante esse mesmo dia, com um aumento de dor e agravamento do estado geral, não conseguindo sequer andar e ingerir alimentos.

- Assim, pelas 21:56 horas do dia 7 de julho de 2013, (…) voltou a ser admitida na Urgência dos CHUC – HUC, onde, pelas 22:08 horas, foi observada pela enfermeira de serviço na triagem que, face a um quadro de uma doente diabética com história de anorexia, fraqueza muscular e com hiperglicemia (500mg/dL), lhe atribuiu prioridade amarela urgente.

- Nesse momento, (…) não se conseguia locomover tendo necessidade de maca.

- Pelas 23:45 horas, a arguida A., médica interna da especialidade de medicina interna, observou (…), queixando-se a vítima de agravamento da dor ao nível da região gemelar do membro inferior direito, perda de força e de mobilidade desse membro, e também que desde esse dia não parava de vomitar a comida ingerida (vómitos pós prandiais).

- No exame médico inicial realizado a arguida A. constatou que (…) apresentava um fáceis pálido e doloroso, com temperatura de 37,4ºC, frequência cardíaca de 134bpm, tensão arterial de 78/54mmhg e glicemia superior a 500mg/dL.

- Mais constatou a arguida A. que o membro inferior esquerdo da vítima não apresentava alterações, mas o membro inferior direito tinha um aumento de volume ao nível da região gemelar, com discreto aumento da temperatura local, dor à palpação no escavado poplitei e região gemelar, com empastamento, no entanto sem apresentar sinais de picada ou rubor.

- Perante este quadro a arguida A. pediu uma avaliação analítica com D dímeros e uma ecografia dos tecidos moles ao nível da região popliteia e gemelar.

- Determinou ainda que a vítima fosse medicada com metoclopramida, tramadol, insulina e cloreto de sódio.

- A arguida A. realizou, por último, pelas 23:50 horas, o teste Sinal de Homans, que deu resultado positivo.

- O ecodopler periférico venoso requisitado pela arguida A., pelas 23:48 horas, do dia 7 de julho de 2013, foi realizado às 00:04 horas do dia 8 de julho, e naquela requisição, em sede de notas para o técnico, a arguida fez constar que havia suspeita de Trombose Venosa Profunda (TVP) do membro inferior direito da vítima, solicitando a observação da região popliteia e gemelar.

- Do resultado de interpretação do exame ecodopler consta: “Ecografia dos tecidos moles do membro inferior direito da perna discência das aponevrose gémeo interno solear a sugerir derrame pós rotura. Permeabilidade da poplíteo da safena externa da safena interna ao longo da perna. Urgência”.

- Pelas 02:08 horas, (…) foi vista pelo B., médico da especialidade de medicina interna, a quem a arguida A. tinha passado o caso quando saiu do serviço pelas 00:00 horas do dia 8 de julho de 2013.

- Este arguido verificou a glicemia da vítima e fez gasometria, que deu resultado de acidose 7.21K + 3.1.

- O arguido B. verificou o resultado do ecodopler, e considerou estar perante um diagnóstico de rutura muscular.

- Este arguido prescreveu ainda à vítima a toma de soro fisiológico 1000ml com 3 ampolas de potássio a perfundir a 500cc/hora – 2 horas depois a 250cc/hora.

- Pelas 03:19 horas, a vítima (…) continuava com dores e o arguido B. prescreveu a toma de paracetamol.

- Pelas 08:16 horas, o arguido B. requisitou um RX ao tórax que foi realizado à vítima pelas 08:53 horas.

- O mesmo arguido, pelas 08:41 horas, observou novamente (…), que se mantinha com queixa de dores na perna direita, apesar da analgesia, e notou a existência de aumento do edema desde a sua primeira observação.

- Para além disso, a vítima apresentava-se sudorética, com temperatura auricular de 36.6º e glicemia capilar de 205 mg/dl.

- Perante este quadro o arguido B. determinou que a perfusão de insulina passasse a 3cc/hora, que fossem feitas análises, colheita de culturas e combur, bem como que (…) iniciasse a toma de levofloxacina.

- Pelas 08:55 horas, o arguido C., médico interno da especialidade de medicina interna, observou também (…) e os exames e análises efetuados anteriormente, constatando que houve um agravamento do seu estado clínico.

Nessa altura (…) apresentava-se pálida, sudorética, polipneica, hipotensa, taquicardica, com aumento de dor e tumefação a nível da perna.

- O arguido C. mandou fazer novas análises e prescreveu a toma de imipenem 500gr e, face ao agravamento do quadro clínico da vítima – que se encontrava com uma sepsis (de origem infeciosa), e com a concordância do arguido B. -, transferiu (…) para a sala de emergência, contactando com os médicos das especialidades de cirurgia e medicina intensiva para discutirem o caso, nomeadamente se era necessária ventilação da vítima e/ou avançar para a cirurgia.

- Próximo das 09:00 horas, o arguido C. avaliou novamente a vítima, que se mantinha com o mesmo quadro, não tendo conseguido avaliar a tensão arterial, continuando aquela em situação de hipotensão e bradicardia, com 150 batimentos por minuto, tendo pouco depois, por ter terminado o seu turno, passado o caso ao arguido G., médico especialista de medicina interna.

- Pelas 09:20 horas do dia 8 de julho, o arguido D, médico especialista de medicina intensiva, foi o primeiro daquela especialidade a observar (…) na sala de emergência e verificou que esta se apresentava consciente, taquipneica, com grave acidose metabólica e agravamento da lactacidémia, os valores de CK e PCR eram elevadíssimos, e os valores de leucócitos eram baixos.

- O arguido observou ainda o Rx do tórax que a vítima tinha feito e concluiu que a infeção não era respiratória, não tendo patologia aparente que justificasse o quadro em que se apresentava.

- (…) apresentava falência nas funções cardio-vascular e renal que apontavam para o quadro de choque séptico, mas o foco de infeção não era definido, tratando-se de um processo de infeção zonal.

- O arguido D. sugeriu como terapêutica de suporte:

- a correção da acidémia (para o que seria necessário grande volume de HCO3);

- perfusão de aminas vasopressoras para estabilidade tensional;

- investigação da causa, para além de eventual diabetes.

- Quando o arguido D. fez a observação de (…) não tinha vaga para que ela fosse transferida para o Serviço de Medicina Intensiva, pelo que ela permaneceu na sala de emergência.

- O arguido diligenciou junto de (…), médica especialista de medicina intensiva, para que se procedesse à transferência da vítima para o CHUC – HG (Unidade de Cuidados Intensivos).

- Também o arguido E., médico interno da especialidade de cirurgia, observou (…) na sala de emergência pelas 09:20 horas do dia 8 de julho.

- Dessa observação, o arguido E. concluiu que se tratava de um edema da perna direita sem rubor ou calor, que havia uma dor ligeira à compressão gemelar e que os pulsos pediosos e poplíteo eram palpáveis.

- Este arguido analisou ainda a ecografia dos tecidos moles do membro inferior direito que a vítima tinha feito pelas 00:04 horas desse dia, cujo resultado dava conta de deiscência das aponevroses do gémeo interno solear a sugerir derrame de pós ruptura, e de permeabilidade da poplíteo da safena externa da safena interna ao longo da perna.

- Pela observação da vítima o arguido E. concluiu ainda que a situação não carecia de cuidados por parte da cirurgia geral, devendo ser feita uma observação por especialista de ortopedia.

- O arguido F., médico interno da especialidade de ortopedia, observou a vítima (…) na sala de emergência pelas 10:18 horas do dia 8 de julho.

- Nessa observação, o arguido F. concluiu que se tratava de uma vítima em choque séptico, com provável foco gemelar à direita.

- Segundo este arguido a vítima apresentava Homans +, edema assimétrico dos membros inferiores (++ região gemelar da perna direita), sem tensão dos tecidos moles e sem outros sinais inflamatórios locais, tendo ainda o arguido verificado o resultado da ecografia que a vítima tinha feito.

- Da conjugação desses elementos o arguido F. considerou que a situação não carecia de cuidados pela ortopedia, conferindo-lhe alta, ainda que devesse ser contactado este serviço em caso de edema em tensão ou de suspeita de síndrome compartimental do membro.

- Apenas pelas 10:22 horas é que (…) foi avaliada pelo arguido G., médico especialista de medicina interna, e que concluiu que a vítima estava em choque séptico com provável ponto de partida na região gemelar direita, complicado de cetoacidose diabética em correção com insulinam potássio e bicarbonato.

- A tensão arterial da vítima situava-se nos 82/51 mmHg e a frequência cardíaca era de 150/minuto.

- Foi ainda repetida a gasometria que deu valores de: PH 7.37, pO2 86 mmHg, pCO2 21 mmHg, lactato 7.1 mmol/1, sódio 133 mmol/1, potássio 4.4 mmol/1, glicose 339 mg/dl, HCO3 12.1 mmol/1, sat 96%.

- Perante o estado da vítima, o arguido G. prescreveu a toma de noradrenalina a 2.2 ml/hora em associação com dopamina a 3ml/hora e 100 cc de HCO3.

- O mesmo arguido conferiu alta a (…) pelas 11:49 horas do dia 8 de julho de 2013, tendo ela sido transferida para o CHUC – HG (Unidade de Cuidados Intensos), numa ambulância medicalizada do INEM, sendo acompanhada e assistida pela médica especialista de medicina interna Dr.ª (…) e pelo enfermeiro (…).

- O transporte iniciou-se pelas 11:25 horas, estando (…) hemodinamicamente instável, com sinais marcados de má perfusão periférica evoluindo para agravamento dos sinais de dificuldades respiratórias durante o transporte, tendo-lhe sido colocada máscara de alto débito e, à chegada ao CHUC-HG (Unidade de Cuidados Intensivos), foi entubada.

- De acordo com o diagnóstico feito por M. , (…) estava em choque séptico com ponto de partida na região gemelar direita e tinha ainda uma cetoacidose diabética.

- Pelas 12.15 horas do dia 8 de julho, o J. , médico especialista de medicina intensiva, e (…), médica da especialidade de medicina interna, receberam (…) no CHUC-HG.

- Quando (…) deu entrada naquele hospital estava em choque, sem tensão arterial mensurável, apesar de ter aminas em perfusão (dopamina e noradrelina), taquicardica, com livedo reticularis no tronco e membros, obnubilada, em respiração superficial e polipneica, necessitando de ventilação mecânica emergente, tinha pupilas isocóricas e aparentemente reactivas e apresentava ainda flictenas (bolhas de água), na região gemelar.

- Face ao quadro em que se encontrava (…), foi realizada a intubação OT sob sedação e iniciado aporte intenso de volume de cirstalóides.

- Houve uma precária evolução hemodinâmica com TA sistólicas de cerca de 80 mmHg, taquicardia sinusal com frequência cardíaca 150-160ppm. AC – taquicardia sem sopros aparentes. AP – ventilação bilateral apico-basal com murmúrio vesicular conservado e sem ruídos adventícios. Apresentando a vítima o abdómen mole e depressível sem visceromegalias e com massas na parede compatíveis com lipodistrofia, sem edemas de declive, mas com sinais inflamatórios na perna direita, região gemelar, onde havia uma lesão bolhosa eritematosa, no seu 1/3 médio.

- Neste contexto foram administrados vários bolus de bicarbonato de sódio i.v. e realizado controlo por GSA.

- Foi prosseguida a antibioterapia com meropenem 1000mg 8/8h e iniciadas albumina i.v. e hidrocortisona i.v.

- Foi feita uma colheita de sangue para estudos analíticos complementares.

- Entretanto, verificou-se um rápido agravamento do edema da perna com envolvimento de todo o membro até à raiz da coxa e com viragem, do aspeto das bolhas iniciais na perna para bolhas equimóticas e instalação de novas bolhas na região posterior da coxa.

- Perante este quadro foi pedida a observação por médico da especialidade de cirurgia, tendo (…) sido observada por (…), que face à gravidade da situação, solicitou ao Prof (…) que viesse observar a vítima, tendo este recomendado a realização de angio-TAC.

Realizado o angio-TAC resultava do seu relatório que:

“As artérias dos membros inferiores apresentam calcificação difusa das paredes mas sem imagens compatíveis com obstruções significativas lumiais, nomeadamente nos segmentos visualizados até à extremidade, bilateralmente.

Há aumento da densidade espontânea das fascias aponevróticas da perna direita, com espessamento das mesmas sugerindo processo de fasceiite, mas sem evidencia de focos gasosos.

Há marcado espessamento de todos os grupos musculares da coxa e perna, com áreas de densidade liquida nos compartimentos musculares mais significativas a nível da coxa, compatível com síndrome compartimental com sugestão de miosite.

Estas alterações condicionam a compressão da veia femural comum e superficial direitas, bem como dos segmentos tibioperoniais, verificando-se ectasia compensatória do sistema venoso superficial.

Não há imagens inequívocas de trombos luminais.

Espessamento e edema do tecido adiposo subcutâneo, sem coleções ou soluções de continuidade.

Não há sinais de traumatismo ou hemorragia ativa.

Nas imagens interessadas da cavidade abdominal salienta-se presença de derrame a nível da goteira parietocolica e interansas na escavação pélvuica.”

- Perante o resultado deste exame, (…) foi imediatamente encaminhada para o bloco operatório, para ser operada pelo Prof. (…) e por (…).

- Quando entrou no bloco operatório (…) estava hemodinamicamente instável, entubada e ventilada, em anúria, cianose das extremidades da pele e mucosas.

- Apresentava ainda exuberante edema do membro inferior direito, frio e sem pulso, e o membro inferior esquerdo tinha sinais de má perfusão.

- Pouco depois de instalada na mesa operatória, (…) desencadeou uma paragem cardíaca e manteve suporte avançado de vida, com massagem externa, pela equipa de anestesia.

- Após 20 minutos de manobras SAU sem qualquer resposta foi contactado os cuidados intensivos e cirurgião de urgência, foi decidido em equipa suspender manobras.

- O óbito de (…) foi confirmado pelas 16:40 horas do dia 8 de Julho de 2013.

- Foi determinada a realização de autópsia médico-legal ao corpo de (…), que ocorreu no dia 11 de Julho de 2013.

- Em sede de exame de hábito externo dos membros inferiores verificou-se que havia tumefação acentuada do membro inferior direito: a perna direita no seu terço médio, media 42 cm de diâmetro e a esquerda, no seu terço médio, media 37 cm de diâmetro; a coxa direita no seu terço médio media 52 cm de diâmetro e a esquerda medida 43 m de diâmetro.

- Foi também possível verificar a presença de descolamento da epiderme em todo o membro inferior direito, prolongando-se ao abdómen, para a região lateral direita, região hipogástrica (metade direita) e região púbica (metade direita).

- O membro inferior direito e a parte abdominal descrita apresentavam áreas de coloração arroxeada, com presença de bolhas maiores e menores.

- Em sede de exame de hábito interno e no concerne aos membros inferiores, verificou-se à secção que os músculos da coxa direita, bem como as respetivas aponevroses, se apresentavam de coloração vermelho arroxeada, amolecidos, e o tecido celular subcutâneo tinha sinais de edema exuberante.

- O relatório de autópsia conclui que a morte de (…) foi devida a fasceiíte e miosite agudas, neutrofílicas, necro-hemorrágicas do membro inferior, complicadas de 1) embolização séptica cardíaca com miocardite aguda necrofílica, de 2) cilindros granulares e pigmentados tubulares renais e de 3) descolamento da epiderme pela membrana basal (junção dermo-epidérmica) e escasso infiltrado inflamatório mononucleado da derme – com padrão tipo de dermatite esfoliativa.


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Não se indicia com suficiência com relevância para a decisão:

 Que a morte de (…) por “fasceiíte infeciosa necrotizante” tenha advindo, como causa direta, do facto dos médicos arguidos, face ao quadro clínico que a mesma apresentava, entre as 21:56 horas do dia 07/07/2013 e as 11:49 horas do dia 08/07/2013, não terem prontamente, quando deviam e podiam nas suas observações, procurado identificar o foco e o agente infecioso responsável pela sépsis, através de outros exames, nomeadamente, exames microbiológicos (hemoculturas e microbiologia de urina) e exames para localização de foco infecioso através de imagem (tomografia computorizada torácico, abdominal, pélvico e de membros inferiores com especial atenção ao membro edemaciado).

Que a omissão por parte dos médicos arguidos tenha contribuído para a não realização de diagnóstico de “fasceiíte infeciosa necrotizante” mais precocemente e, consequentemente, no atraso da decisão de desbridamento cirúrgico do local da infeção (remoção do tecido necrosado e áreas infetadas), o que acabou por conduzir a um quadro infecioso irreversível, com choque séptico, e resultou na morte de (…).

3.2. Da motivação:

No que concerne aos factos fortemente indiciados e supra referidos, cumpre referir que a sua prova resulta dos elementos documentais clínicos e médicos juntos aos autos e relativos ao atendimento hospitalar de (…), designadamente de:

- fls. 33 a 38 (repetido a fls. 117 a 122) a documentação que diz respeito ao episódio de urgência 3718356 em relação ao atendimento prestado à paciente nos CHUC-HUC no dia 6 de Julho de 2013, do qual teve alta no dia 7 de Julho de 2013;

- fls. 39 a 59 (repetido a fls. 123 a 143) a documentação relativa ao episódio de urgência 3718799, que diz respeito ao episódio de urgência 3718799 que se reporta ao atendimento da paciente que lhe foi prestado nos CHUC-HUC no dia 7 de Julho de 2013, do qual aquela teve alta para transporte a outra instituição, o CHUC-HG, a 8 de Julho de 2013;

- fls. 61 a 101, documentação clinica relativa ao episódio 13011362 que se reporta ao atendimento da paciente no CHUC-HG, no dia 8 de Julho de 2013 e onde veio a falecer.

- fls. 170 a 174 o relatório de ecografia cutânea e estruturas superficiais que foi realizado à paciente, no dia 6 de Julho de 2013, o ecodopler periférico venoso realizado a 7 de Julho de 2013, bem como dois raios x ao tórax realizados no dia 8 de Julho de 2013;

Teve-se ainda em consideração o teor do relatório de autópsia médico-legal e histopatológico de fls. 157 a 162, bem como registos efetuados pelo INEM relativo ao transporte de (…) do CHUC-HUC para o CHUC-HG.


*

Já em relação aos factos não suficientemente indiciados os mesmos resultam da insuficiência de prova recolhida nos autos e sendo que sempre o principio in “dubio pro reo “terá necessariamente que beneficiar os arguidos quanto ao nexo de causalidade decorrente da omissão da conduta devida e o resultado morte.

Assim e por nesta matéria ser indispensável o juízo pericial que consta da consulta técnico cientifica de fls. 342, e de acordo com os esclarecimentos prestados pelo sr. Perito, Professor (…), considera-se qui reproduzida para todos os efeitos legais o teor de fls. 342 a 359 dos autos;

Do teor da consulta supra referida em conjugação com os esclarecimentos prestados em sede de inquérito de fls. 496 e 497, e em sede de instrução, por duas vezes pelo sr. Perito Prof. (…) resulta – em conjugação com o relatório da autopsia da paciente – que a morte se ficou a dever a fasceite necrotizante que se traduz num processo inflamatório e infecioso dos músculos e dos seus revestimentos e de outros tecidos envolventes dos músculos e é necrotizante por levar à morte celular dessas estruturas (chegam a apodrecer) tratando-se de infeção nas partes mais profundas de tais estruturas pelo que retarda a chegar à parte cutânea os sinais evidentes de tal patologia.

Ora a violação das leges artis – nos termos contantes da consulta ponto 8º alínea e) e 47º - com a não solicitação logo aquando do segundo episódio de urgência em que intervieram os sete arguidos médicos em conformidade com os factos indiciados supra descritos, de exame complementar, designadamente angio-TAC, bem como o não ter em consideração a possibilidade da verificação de tal infeção em face dos elementos existentes – esclareceu o sr. Perito que deviam ser tidos em conta os seguintes sinais: a paciente tinha um agravamento da dor na região do corpo do 1º episódio de urgência; estava pálida, estava febril, tinha tensões arteriais baixas; tinha descontrolo metabólico importante sendo diabética fazia insulina; tinha aumento de volume visível de um membro na zona da dor - o que, levou ao retardar da identificação do foco infecioso de fasceíte necrotizante, e consequentemente no atraso de decisão de desbridamento cirúrgico do local da infeção.

No entanto, esta patologia cursa com altas taxas de mortalidade mesmo quando o diagnóstico e o tratamento é instituído (antibiótico /terapia; desbridamento cirúrgico, terapêutica de suporte de vida) no início do quadro clinico.

 O curso clinico desta patologia é muito rápido nos doentes sem diabetes, mas nos doentes diabéticos pode ser extremamente rápida.

Caso tivesse sido diagnosticada pelos arguidos, sucessivamente em face da sua intervenção nos termos dos factos supra descritos, mesmo assim a possibilidade de evitar a morte seria muito pouco provável - resposta do sr. Professor ao Jic em sede de instrução e já referida a fls. 497, quando refere da probabilidade mínima de sucesso da intervenção cirúrgica no caso concreto;

Concluindo em todo o caso pela existência de uma possibilidade de sobrevivência ainda que mínima, pois tendo-lhe sido perguntado se os arguidos tivessem atuado segundo as leges artis – designadamente com exame de TAC, e detetando a patologia mais cedo se a morte necessariamente viria a ocorrer o sr. Prof. referiu não dispor de meios que lhe permitisse responder, mas reforçando-se a muita probabilidade da morte. E referiu que o tratamento de uma infeção desta natureza tem vários componentes. E se um dos componentes é manter o doente vivo com suporte, soros, antibiótico, com suporte avançado de vida se for necessário, e os arguidos procederam de modo adequado nesta matéria – um dos fatores de tratamento que leva a maior eficácia é de abrir os tecidos – desbridamento cirúrgico – uma espécie de drenagem; ora se a infeção em causa. por si, é galopante a situação mais se complica perante um diabético, como era a situação da paciente, pois este tipo de doente tem um sistema de defesa deficiente o que acarreta ter mais infeções e menor capacidade de reação; a f.i.n. (fasceite infeciosa necrotizante), embora seja situação patológica pouco frequente em doentes – é necessário contar com a mesma e considera que existia sinais de observação da paciente que deviam ser tidos em conta para fazer “ suspeitar “ de tal patologia mais cedo, sendo que a rapidez da evolução da doença depende de dois fatores: a agressividade do micróbio e quanto mais agressivo for este mais depressa a infeção se espalha, e depende ainda da capacidade de resposta de se defender;

Mais conclui o sr. Perito que a taxa de sucesso da terapêutica em pessoas saudáveis ou diagnosticadas precocemente é de 30/40 % - pelo que 70º /60º irão morrer independentemente de serem bem tratados atempadamente, sendo que um doente com diabetes – como no caso vertente - a taxa de mortalidade é muito superior -, pelo que conclui o sr. Perito, como já referido, que mesmo que tivesse sido logo detetado a infeção, a possibilidade de ocorrer a morte era elevada (portanto muito provável), o que não retira que a paciente não tivesse uma possibilidade de sobreviver, ainda que muito reduzida.

 Refere ainda que o problema está, mais do que que nos exames devidos – de que se destaca o TAC por ser um exame mais sensível e mais preciso para detetar alterações estruturais do músculo afetado - na experiência dos médicos que pelas circunstâncias do caso tinham condições para desconfiar mais cedo e o desbridamento ser mais precoce, apesar do desfecho ser muito possivelmente o da morte.

Considera o sr. Perito médico que os sinais da doente supra referidos que no segundo episódio de urgência foi vista pelos sete arguidos deviam ter sido valorizados por todo no sentido de desconfiar de tal infeção e isto independentemente das especialidades.

 Concluiu o sr. Perito que todo o quadro da doente na evolução dos sinais, que se foram evidenciando no tempo, com a sucessão da intervenção dos sete arguidos, pelo que a f.i.n. era um diagnóstico a ser tido em conta, embora seja uma patologia muito pouco frequente e ainda não existissem sinais clínicos evidentes.

Mais concluiu que quando a paciente chegou ao CHUC-HG- Hospital dos Covões – já se evidenciava a “fotografia“ de todos os sinais clínicos da f.i.n

Em relação aos esclarecimentos prestados pelo sr. Perito Professor (…), o qual interveio mais na qualidade de testemunha com conhecimentos específicos, cumpre salientar que como o mesmo referiu, de modo perentório, que não teve qualquer contacto com o caso, apenas foi notificado do resultado da perícia, e da acusação, e salientou concordar com o teor da perícia elaborada e que o perito Prof. (…) da consulta médico-legal era pessoa muito habilitada para o caso por ser clinico num hospital do Porto, onde faz intervenções cirúrgicas enquanto, o depoente não exerce clinica sendo apenas a sua intervenção no âmbito de perícias médico legais correntes, sendo que clinicamente nunca teve contacto com qualquer situação de f.i.n., apenas só em sede de exames médico legais de autopsias e de relevante salientou que a situação de f.i.n. é uma patologia muito rara, mas em todo o caso que não pode ser descurada e concluindo que dos elementos que lhe foram comunicados, os arguidos tinham condições para suspeitar dela mais cedo antes dos sinais evidentes.

Já em relação à demais prova testemunhal inquirida em sede de instrução cumpre referir que (…), professor de medicina e médico especialista há trinta anos, à data dos factos exercia funções no CHUC e na Faculdade de medicina, mas como era Bastonário da Ordem dos Médicos encontrava-se um pouco afastada da prática médica, e referiu que não teve qualquer contacto com a situação da paciente em todo o caso confrontado com os procedimentos dos arguidos, descritos nos autos, referiu de um modo geral serem os corretos quando às leges artis e confrontado com os sinais que a paciente na altura evidenciava, não considerou que fossem sinais clínicos de uma fasceíte necrotizante, patologia que também considerou muito rara de acontecer;

 A testemunha (…), médico no CHUC, desde 2006, cirurgião geral, referiu que não estava de serviço no dia em que os factos ocorreram; costuma fazer banco de urgência todas as semanas de 12/18 horas; foi responsável como “ formador” do médico E. que era médico interno de cirurgia durante o período de seis anos; teve conhecimento a posterior da situação da paciente e referiu que da leitura da história clinica, a f.i.c. é uma doença rara, em vinte anos de carreira profissional teve apenas duas situações e que resultaram na morte dos pacientes; porém referiu que em relação às doenças raras os médicos devem ter especial cuidado, pois elas podem existir, não sendo um diagnóstico frequente é sempre uma alternativa a equacionar; a f.i.c. não é uma situação fácil por ser patologia rara mas que só apresenta sinais clínicos que permitem um diagnostico com alguma consistência já é tarde para evitar a morte, considerando ser uma doença de instalação súbita sendo que referiu ter pouca experiência com tal tipo de infeção, mas considera que exige uma intervenção cirúrgica e deste ponto de vista o que se pode fazer é drenar os tecidos, como se fosse um abcesso grande onde os antibióticos não consegue alcançar; em relação à intervenção dos arguidos, de um modo geral considerou que as mesmas foram corretas do ponto de vista da leges artis, referiu que o exame de TAC pode também não revelar nada de conclusivo e daí que a ecografia às partes moles se afigura correta

A testemunha (…), médico ortopedista no CHUC, há mais de trinta anos, referiu ter chegado a trabalhar com arguido F. quando o mesmo era internista na especialidade de ortopedia. Não teve qualquer intervenção direta na situação da paciente (…), sendo que recorda-se de o arguido F. ter colocado a situação da mesma e na altura discutiram a equipa de médicos de ortopedia, e acordaram num plano de intervenção que foi discutido em conjunto e que na altura em face dos elementos então existentes se lhe afigurou ser correta; a situação do edema da perna foi discutido em trabalho de equipa de quatro ortopedistas que costumam estar presentes no CHUC das urgências e que na altura foi uma decisão unanime que esteve na base da intervenção do médico F.; na altura os médicos mais novos, como sucedia com o arguido F. estavam sujeito a fiscalização por ainda se encontrarem em formação no curso de internato de ortopedia que tem a duração de seis anos – cf. no mesmo sentido a declaração de fls. 658 subscrito pelo ilustre clinico;

A testemunha (…), médico ortopedista do CHUC desde cerca de trinta anos salientou que o arguido F. era seu interno de especialidade de ortopedia, sendo que nas situações mais complexas, embora existisse alguma autonomia, eram discutidas pelo que aquele arguido terá informado da situação da paciente (…) que foi discutida como era em regra, por ser situação mais complexa, mas tendo em conta o tempo, já decorrido não recorda a situação, admitindo porém que o arguido F. era um médico especialmente cuidadoso e admite que a situação em causa poderá lhe ter sido apresentada e discutida, pois na altura o mesmo encontrava sujeito ao exercício de medicina tutelada, pois tinha de respeitar a orientação do “formador”, embora possa não ser sempre a mesma pessoa, já que este pode não estar presente na altura e é ajudado por outro médico de experiência que esteja presente; confrontado com a situação dos autos considera que foi uma correta intervenção na linha do que consta a fls. 657, de que a decisão do arguido F. foi discutida no seio da equipa de médicos de ortopedia e foi posição unânime.

Já em relação à testemunha (…), enfermeira de concreto apenas confirmou que existiu um acompanhamento da paciente por parte do médico, arguido B., em conformidade com a documentação clinica constante dos autos mesmo durante o período noturno.

A testemunha (…), médica analista, confirmou ter realizado os exames microbiológicos e que foram ordenados pelo arguido B. cujo teor explicou ao tribunal, concluindo que em face de tais resultados só poderem ser obtidos após vários dias, não seriam de ser elementos a ter em conta na situação da paciente a curto prazo, aliás como salientou o sr. Perito médico.

Os arguidos prestaram declarações nos autos designadamente a – fls. 371 ss; 381ss; 402ss; 412ss; 421 ss; 426ss; 441 ss; 448 ss; e em suma, negaram que tenham omitido qualquer dever objetivo de cuidado, considerando que a sua atuação foi feita segundo as leges artis. Os arguidos F. e B. e E. prestaram declarações em sede de instrução e mantiveram a versão dos factos já transmitida aos autos.

Em primeira linha, cumpre, pois equacionar se existem indícios suficientes de os arguidos terem violado as leges artis com as condutas adotadas e omitidas.

 Nem sempre que se verifica um prejuízo na saúde do doente haverá responsabilidade penal; nem quando o médico comete um erro este se traduz sempre num dano para o paciente e, nem todos os erros médicos que geram danos se traduzem necessariamente num comportamento jurídico com cobertura penal.

Fácil também não é concretizar o dever de cuidado no exercício da atividade médica. Para que se preencha um tipo de ilícito negligente não basta a não observância geral do cuidado que a pessoa deve ter, é preciso averiguar se foi violado o dever objetivo de cuidado no caso em concreto (art.º 15 C.P.), segundo as circunstâncias. Pois “para além deste critério da lei, há que considerar outros que concretizam o dever objetivo de cuidado: as normas jurídicas de comportamento, as normas corporativas e do tráfego (não jurídicas) correntes em determinados domínios de atividade, os costumes profissionais e, em último termo, a “figura-padrão”).

É que, no exercício da atividade médica Leges Artis e cuidado objetivo devido não são conceitos coincidentes, sendo a violação das leges artis apenas um indício da violação do dever objetivo de cuidado.

Pode acontecer que o médico que não atuou de acordo com as leges artis não tenha violado o dever objetivo de cuidado na situação concreta, ou acontecer uma violação objetiva de cuidado do médico, ainda que tenha cumprido as leges artis.

Assim, o que estará em causa será aferir se o médico, segundo os seus conhecimentos e as suas capacidades pessoais, e, tendo ainda em conta a sua liberdade na escolha dos meios de diagnóstico e tratamento (art.º 142 do C.Deont.) se encontrava em condições de cumprir o dever de cuidado que integra o tipo negligente. Só respondendo afirmativamente a esta questão poderá afirmar-se que o médico documentou no facto qualidades pessoais de descuido ou leviandade perante o direito e as suas normas, pelas quais tem de responder, ou seja, só assim se poderá concluir que o médico atuou com culpa negligente. E, para determinar se o médico se encontrava ou não em condições de cumprir o dever de cuidado que integra o tipo negligente, há-de ter-se em conta não o poder (de fazer) do médico concretamente em causa, mas sim os conhecimentos e as capacidades pessoais dos outros médicos como o agente, ou seja, se, de acordo com a experiência, os outros, agindo em condições e sob pressupostos fundamentalmente iguais àqueles que presidiram à conduta do agente, teriam previsto a possibilidade de realização do tipo de ilícito e a teriam evitado (“o profissional-padrão”).

Quanto às chamadas leges artis, elas emergem de um conjunto de regras fixadas pelos profissionais da medicina, expressas no Código Deontológico da Ordem dos Médicos, em declarações de princípios emanadas de Organizações Internacionais e Nacionais de Médicos, das chamadas guidelines resultantes de protocolos de atuação e de reuniões de consenso e dos pareceres das Comissões de Ética.

E, não haverá que esquecer que como leges artis, se trata de um conceito dinâmico sempre em atualização com o progresso científico e, muitas vezes, de regras não reduzidas a escrito.

Em resumo, não é uma questão fácil e simples a averiguação da violação do dever objetivo de cuidado (sobretudo quando o temos de aferir por uma figura padrão) e, por essa razão deve ser cuidadosamente fundado e objetivado.

É que a figura padrão não é a figura geral, do cidadão comum, medianamente sensato e experiente, mas do cidadão profissional da medicina, medianamente competente, prudente, sensato e dotado da experiência e conhecimentos exigíveis a qualquer profissional de idêntico grau académico e funcional.

 Cabe também aqui uma outra nota sobre as diversas especificidades dos deveres dos cuidados médicos, isto é, dos diferentes cuidados exigidos no ato médico de diagnóstico, de tratamento, de prognóstico.

Na fase do diagnóstico, (como é o caso em apreço) há que ponderar as dificuldades derivadas de deficiência de conhecimentos do médico, da ausência de meios complementares de diagnóstico, de particularidades do próprio caso clínico- elementos que podem impedir a clareza do diagnóstico.

É que, a falta de saber, falta de experiência ou de sensibilidade não podem fundamentar a culpa negligente; essa inabilidade pessoal inibe o cumprimento ou a perceção do dever objetivo de cuidado. É por isso que se deve apurar também das condições pessoais e profissionais em que o médico exercia a sua atividade.

Cf. Acórdão da Relação do Porto de Lisboa de 31-10-2013 acessível in www.dgsi.pt; Paula Ribeiro de Faria- Comentário Conimbricense, p.900;

Responsabilidade penal por negligência no exercício da medicina em equipa- Centro de Direito Biomédico de Coimbra- Sónia Fidalgo- p.94.

Em segunda linha, cumpre apreciar, da imputação objetiva do resultado morte, por omissão, no caso concreto em face do crime de homicídio negligente imputado ser um crime de resultado.

 E desde já se avança com a nossa posição, de que mesmo que se entenda que os sete arguidos violaram as leges artis com as condutas que omitiram – posição que se sustenta no juízo pericial da consulta do Conselho Médico Legal, e esclarecimentos do Perito médico e do “Perito”, testemunha “ qualificada “ (…), em face do crime de resultado do crime de homicídio negligente de que se encontram acusados, a prova reunida nos autos aponta no sentido de que não é possível formular um juízo minimamente seguro – existindo duvidas sérias e razoáveis do nexo - entre as condutas devidas e omitidas e o resultado morte, seja por a probabilidade de ocorrer a morte ser tão próxima da certeza que não permite num juízo normativo que se quer rigoroso em face do juízo de suficiente indiciação, ou mesmo que assim não se entenda, considerando da existência de uma probabilidade ainda que mínima de “causar” a morte sempre se afirmará que existindo dúvidas sérias e razoáveis sobre tal juízo de conexão, atento o principio “in dubio pro reo“, tal circunstância terá de favorecer os arguidos.

Vejamos a razão de ser de tal entendimento.

Assim e em primeira linha, cumpre salientar que dispõe o art.º 163.°, n.º 1 e 2 do Código de Processo Penal que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador e, sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.

Apesar disso, de tal resultado pericial não ser livremente apreciado, concorda-se com tal juízo pois o sr. Perito explicou de modo lógico e fundado o seu raciocínio e concordando-se com os fundamentos do resultado da consulta técnico-científica e dos esclarecimentos prestados, na parte em que considera que a intervenção dos sete arguidos como médicos revelaram condutas violadoras das legis artis nos termos já supra referidos, sobretudo no ponto 47 alínea a) com referência na não deteção da f.i.n, quando a mesma devia ter sido equacionada e com a omissão da realização de exames complementares, de Tac – já não exames microbiológicos, pois estes vieram a ser realizados por ordem do arguido B., -, sendo que em relação aos demais procedimentos adotados pelos arguidos em relação à paciente (…) conforme constam dos factos supra referidos, foram considerados como corretos e adequados.

Mais conclui o juízo pericial – em conjugação com as declarações do Sr. Perito, que mesmo que os arguidos tivessem cumprido o dever que se lhe impunha, a probabilidade de morte era muito elevada.

Das considerações que antecedem verifica-se que não é possível concluir que a conduta omitida pelos arguidos tenha causado a morte da doente nos seguintes termos:

- mesmo que tal patologia tivesse sido sinalizada por qualquer dos arguidos aquando da sua intervenção, a probabilidade de a morte da vítima ter ocorrido era elevada.

- a ocorrência de f.i.n. em doente diabético é uma patologia infeciosa muito agressiva e em principio irreversível e que impõe uma intervenção cirúrgica rápida, e em face da elevada taxa de mortalidade, e ainda que exista uma possibilidade mínima de sobrevivência não é possível concluir depois do evento e de todos os elementos probatórios que tal possibilidade se verificaria, com um mínimo de segurança, antes pelo contrario, a forte probabilidade de verificação da morte afasta-a, pelo que não é possível estabelecer um nexo de causalidade adequada, com segurança como postulado por lei penal.

Note-se que das declarações do sr. Perito médico resulta que quando interrogado se os arguidos tivessem cumprido a obrigação devida e feita intervenção cirúrgica, se necessariamente – 100 % de certeza - a paciente vinha a morrer referiu que não podia responder mas o juízo por si efetuado, em abstrato dava uma possibilidade elevada de morte, sendo que em concreto da prova reunida nos autos não é possível concluir com um mínimo de segurança que a tal possibilidade ainda que muito limitada de sobrevivência vingaria, em face da especificidade do caso e nos termos já referidos, sempre o principio in dubio pro reo terá de favorecer os arguidos.

Saliente-se ainda que também o Professor (…) a fls. 247 conclui que para um diabético a intervenção cirúrgica em situação de f.i.n. mesmo que sinalizada a tempo “muitas vezes” contribui para a ineficácia de tal procedimento.

Além do mais a situação no caso concreto tem uma especificidade muito própria pois a paciente na primeira ida ao CHUC no dia 6-07-2013 pelas 21h 30 tinha limitação da mobilidade, dor em todo o membro desde há três dias, e que os sinais foram compatíveis com uma mialgia – sem qualquer intervenção dos sete arguidos - sendo que os sinais clínicos evidentes só se vieram a verificar muito posteriormente – como referiu o sr. Perito médico a infeção começa nos músculos mais profundos e evidenciando inicialmente apenas dor, pois os sinais cutâneos só mais tarde se evidenciam – sendo que nas várias ecografias realizadas à paciente aos tecidos moles não foi detetada tal infeção e inexistindo qualquer omissão na sua observação segundo o juízo pericial, sendo que a verificação de flictenas (bolhas de água) sinal e sintoma inequívoco surgiu apenas quando a doente no dia 8 de Julho, pelas 12h 15 m deu entrada do Hospital dos Covões, por transporte do CHUC onde tinha sido internada.

Saliente-se ainda que mais complexa se torna a situação quando resulta da própria consulta que mesmo com o exame angiotac não implica que necessariamente a f.i.n. fosse previamente detetada, pois como responde a perícia no ponto 8, alínea e), não é possível responder de forma assertiva a tal questão, a doença em causa tem um quadro clinico e imagiológico com uma evolução muito rápida e as imagens iniciais podem não ajudar a esclarecer de forma precisa o diagnostico.

Saliente-se que em relação aos restantes exames microbiológicos, hemoculturas e microbiologia da urina – que vieram a ser realizados por decisão do arguido B. devido à sua resposta não imediata não iriam interferir na avaliação imediata da evolução clínica da paciente como referiu o Sr. Perito médico.

Neste sentido, conclui-se que ainda que se considere que os arguidos violaram as leges artis nos termos supra referidos – tendo por base o resultado da perícia e esclarecimentos do sr. Perito ao não terem colocado a hipótese de a paciente estar a sofrer de f.i.n. e por omissão de exames complementares, designadamente de angiotac – em todo o caso patologia em principio muito rara de ocorrer conforme referiram os dois Professores (…) e (…) - e tal omissão em face da situação concreta dos autos nos termos referidos pela intervenção é indiferente para o risco morte em face da elevada probabilidade da ocorrência desta não se podendo concluir que a ação omitida pelos arguidos aumentou o perigo e risco da vida da paciente nos termos já referidos.


*

Os arguidos encontram-se acusados, cada um, da prática de um crime de homicídio p. e p. pelo art.º 137º, n.º 1 do Código Penal.

Ora dispõe tal preceito que: 1. “Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.” 2. “Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos.”

Há homicídio involuntário, negligente ou culposo quando o agente causa a morte de alguém, por ter omitido a cautela, a atenção ou diligência ordinária, ou especial, a que estava obrigado, em face das circunstâncias, sendo-lhe exigível na situação concreta em que se encontrava um comportamento atento e cauteloso, e de que a mesma era capaz.

 Quanto à modalidade de imputação subjetiva, tratando-se de um tipo negligente, tem de ser trazido à colação o disposto no art.º 15º do Código Penal onde se estatui que: “Age com negligência consciente quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas atuar sem se conformar com essa realização; ou b) não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto”.

Tanto na modalidade da negligência consciente - alínea a), quer na modalidade de negligência inconsciente - alínea b), se exige a capacidade do agente para proceder de acordo com os cuidados que, segundo as circunstâncias, estariam indicados, o que no caso se evidência pela possibilidade de ter capacidade e poder realizar uma conduta mais atenta no caso concreto.

Sucede que a conduta imputada a cada um dos arguidos se analisa não numa ação mas numa omissão da ação esperada com vista a evitar o resultado típico.

Um dos pressupostos dos delitos de comissão por omissão é a existência de uma situação típica e o incumprimento da ação esperada.

 Surge assim o carácter «esperado» da ação irrealizada. Note-se que a omissão jurídico-penalmente relevante não é simplesmente o agente não fazer nada mas não fazer algo sendo este algo a ação esperada e exigida ao garante.

Na verdade, trata-se de uma ação que é esperada pelo titular do bem jurídico lesado ou ameaçado de lesão bem como pela comunidade na sua globalidade. Logo o fundamento da omissão só pode ser descoberto «desde fora pelo que não é o omitente, mas o julgador, ligando o non facere ao dever incumprido que dá realmente vida à omissão» - cf. Mezger, Tratado de Derecho Penal, I Tradução espanhola da 2ª edição alemã, p. 236. Citando o Prof. André Lamas Leiria, «As posições de garantia» na Omissão Impura”, p. 84, a determinação da ação esperada pelo agente no caso concreto «(…) só pode operar-se tendo em conta a factualidade descrita pelo tatbestand de ação que, pela cláusula de equivalência, é transformada em delito omissivo impróprio. O que podemos dizer como traço geral é que o omitente deverá empreender todos os esforços necessários à salvaguarda da integridade do bem jurídico que por via de um plano do dever de garante, lhe é acometido, cabendo-lhe a escolha do instrumentum mais adequado a tal desiderato».

Na doutrina defendendo esta posição: Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, pp. 672 a 673; Jescheck, Tratado de Derecho Penal, 5ª edição pp.662-663; Wessels, Direito Penal, p. 161, Munoz Conde, Teoria General pp. 48 e 49.

No caso concreto dos autos a ação esperada, segundo a acusação, por parte dos sete arguidos médicos que atenderam a paciente seria a seguinte:

A morte de (…) por “fasceiíte infeciosa necrotizante” adveio, como causa direta, do facto dos médicos arguidos, face ao quadro clínico que a mesma apresentava, entre as 21:56 horas do dia 07/07/2013 e as 11:49 horas do dia 08/07/2013, não terem prontamente, quando deviam e podiam nas suas observações, procurado identificar o foco e o agente infecioso responsável pela sépsis, através de outros exames, nomeadamente, exames microbiológicos (hemoculturas e microbiologia de urina) e exames para localização de foco infecioso através de imagem (tomografia computorizada torácico, abdominal, pélvico e de membros inferiores com especial atenção ao membro edemaciado).

Mais refere a acusação que tal omissão por parte dos médicos arguidos contribuiu assim para a não realização de diagnóstico de “fasceiíte infeciosa necrotizante” mais precocemente e, consequentemente, no atraso da decisão de desbridamento cirúrgico do local da infeção (remoção do tecido necrosado e áreas infetadas), o que acabou por conduzir a um quadro infecioso irreversível, com choque séptico, e resultou na morte de (…).

Ora da observação e exames realizados pelos arguidos foi omitida a realização de TAC e não foi sinalizada tal infeção quando já tinham elementos para que fosse equacionada.

Já em relação aos exames microbiológicos - conforme referiu o sr. Perito médico do CML e a testemunha (…), médica que efetuou os exames o resultado não poderia ser obtido no imediato para decidir da situação da paciente, já que ainda que realizados os resultados demoram em principio dias – cf. fls. 623 e 624 e sendo que os mesmos foram ordenados pelo arguido B. pelo que a omissão se reduz no caso à não realização de TAC e que lhes era imposto pelas leges artis por tal exame ser mais consentâneo com a possibilidade de deteção de alterações nos músculos da paciente e ao não ser tida em conta a situação de possibilidade de f.i.n.

Neste sentido a conduta adotada pelos arguidos não coincide com a que lhe era exigida e esperada pelo titular do bem jurídico, e pela comunidade;

 Os arguidos adotaram pois uma conduta em que omitiram a «ação esperada» e que lhe era exigida na qualidade de garante obrigados a agir.

 Um dos outros requisitos para verificação dos pressupostos dos delitos de comissão por omissão é a verificação da possibilidade fáctica de intervenção do omitente, no caso dos arguidos, e mais uma vez o sr. perito médico salientou que a solicitação de realização de exame de TAC, poderia ter sido formulado por quaisquer um dos médicos das especialidades que intervinham no caso concreto e dai que todos os arguidos se encontravam na possibilidade de cumprir o que lhe era imposto, sendo que em princípio, nada resulta dos autos que tal exame não tivesse disponível durante o período noturno como sucede com as ecografias.

Note-se – cf. Prof. André Lamas Leiria ob. cit p. 89, - a capacidade do agente deve ser aferida num momento «ex ante facto», ou seja é imprescindível poder afirmar-se que o omitente tinha, na altura que o ordenamento o chamava a atuar, as capacidades para intervir e que poderia «desencadear voluntariamente» o processo de salvaguarda de bens jurídicos.

Uma outra questão e em conexão com a referida analisa-se – seguindo de perto aquele professor em «(…) saber qual a medida de esforço que o obrigado deve empregar para que tenha atuado com as capacidades médias naquele caso concreto. É obviamente a inexequibilidade de uma resposta em abstrato, no entanto, critérios mínimos devem estabelecer-se de forma a respeitar o próprio princípio da legalidade. Assim Jakobs e como já deixámos perfunctoriamente dito, existe um «standard mínimo» de atuação a preencher tendo em conta os quadros da «teoria da conexão do risco» maxime o conceito de «risco permitido», o qual deve, aqui, ser objeto de adequada interpretação. Esse «patamar» estará observado, em regra, sempre que o agente se tiver esforçado, de forma séria, para evitar a produção do resultado mesmo que o não tenha conseguido porquanto o que se exige do garante - para usarmos a terminologia jurídico-civil – é uma «obrigação de meios».

No caso concreto dos autos desde logo a prova indiciária - juízo do sr. Perito - aponta no sentido de que qualquer um dos médicos podia solicitar a realização de exame de TAC à paciente, bem como podia sinalizar a infeção mais cedo pelos sinais da paciente, independentemente das especialidades médicas de cada um, pelo que qualquer um dos arguidos estava em condições físicas e psíquicas de possibilidade fáctica de intervenção.

 Torna-se, pois patente que os arguidos estavam em condições de poder agir de outra maneira, e adotar a ação esperada.

Coloca-se, agora a questão da imputação objetiva do resultado nos crimes omissivos impróprios como é o crime de homicídio por negligência praticado por omissão.

Como refere o Prof.. Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, p, 571: «(…) no caso dos crimes comissivos por omissão, a conduta em causa é uma omissão de determinada ação. Assim não se pode dizer que a omissão causou, ou não causou o resultado. O que tem de se perguntar é se a ação omitida (apesar de jurídico penalmente imposta) teria impedido o resultado. Portanto, o juízo de adequação, no caso de omissão, não é um juízo de efetividade, mas sim um juízo hipotético».

Deste modo haverá imputação do resultado à conduta omissiva, quando se comprovar que se o agente obrigado a agir tivesse realizado a ação devida, o resultado não teria ocorrido.

 No fundo, e na formulação autorizada do Prof. Figueiredo Dias, há que fazer apelo na questão em causa às «teorias da conexão do risco»: imputa-se objetivamente o resultado a uma conduta omissiva quando for possível formular um juízo de previsibilidade através de um juízo de prognose póstuma, que recorrendo à experiência comum ou geral e aos conhecimentos concretos do agente permita concluir que o resultado não se verificaria se o obrigado a agir tivesse atuando como lhe era exigido.

Nas palavras do próprio Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, p. 694695 «A ação esperada ou devida deve ser uma tal que tenha diminuído o risco de verificação do resultado típico».

Resulta, pois que a imputação só deverá existir na situação em concreto quando se puder concluir por uma forte probabilidade, próxima da certeza, não se exigindo porém uma absoluta certeza como sucede no que é próprio das ciências sociais de que se determinada ação tivesse sido levada a cabo pelo obrigado a agir teria evitado a ocorrência do resultado típico. Defendendo também esta posição cf. Jeschek, Tratado de Derecho Penal, 5ª edi. P. 657, Wessels, Direito Penal p. 162.

Ora e voltando ao caso concreto dos autos cumpre referir que o juízo pericial da Consulta técnico cientifica aponta no sentido de que, mesmo que os arguidos tivessem solicitado a realização de TAC e tivessem detetado mais cedo a infeção de f.i.n. em causa, ou tivessem sinalizado a sua possibilidade, a probabilidade de a morte ter ocorrido seria elevada.

Conforme já referido, a violação das leges artis levou previsivelmente ao retardar da identificação do foco infecioso de fasceíte necrotizante, e consequentemente no atraso de decisão de desbridamento cirúrgico do local da infeção.

 No entanto, esta patologia cursa com altas taxas de mortalidade mesmo quando o diagnóstico e o tratamento é instituído (antibiótico /terapia; desbridamento cirúrgico, terapêutica de suporte de vida) no início do quadro clinico. 

O curso clinico desta patologia é muito rápido nos doentes sem diabetes, mas nos doentes diabéticos pode ser extremamente rápida.

Caso tivesse sido diagnosticada pelos arguidos, sucessivamente em face da sua intervenção nos termos dos factos supra descritos, mesmo assim a possibilidade de evitar a morte seria muito pouco provável - resposta do sr. Professor ao Jic em sede de instrução;

Concluindo em todo o caso pela existência de uma possibilidade hipotética de sobrevivência.

Mas tendo-lhe sido perguntado se os arguidos tivessem atuado segundo as leges artis – designadamente com exame de TAC, e detetando a patologia mais cedo se a morte necessariamente viria a ocorrer o sr. Prof. referiu não conseguir responder e referiu que o tratamento de uma infeção desta natureza por si, é galopante, salientou o referido professor que a situação mais se complica perante um diabético, como era a situação da paciente, pois este tipo de doente tem um sistema de defesa deficiente o que acarreta ter mais infeções e reduzida capacidade de defesa;

Se a arguidos tivessem adotado a conduta que se encontravam obrigados não é possível concluir que teriam evitado com forte probabilidade a morte por f.i.n.

A ação que os arguidos deviam ter levado a cabo não teria diminuído na tese do Prof. Figueiredo Dias consideravelmente o risco de verificação de morte. Ou na tese de Jescheck não existe uma probabilidade próxima da certeza que caso os arguidos tivesse adotado a ação não se verificaria o resultado típico.

 Mesmo para o professor Roxin tal resultado morte não seria imputado normativamente à omissão dos arguidos - Derecho Penal. Parte General. Tomo 1. Editorial Civitas. 1997. p. 362 e ss, pois um resultado só se pode imputar ao tipo objetivo se a conduta do agente criou um perigo para o bem jurídico (não coberto pelo risco permitido) e esse perigo também se realizou no resultado concreto. A imputação ao tipo objetivo pressupõe que, no resultado, se realize precisamente o perigo criado pelo autor. Só é excluída a imputação quando o autor tenha criado um perigo para um bem jurídico protegido mas o resultado se produz, não como efeito desse perigo, mas apenas com simples ligação ocasional, meramente acidental com ele;

 Em face da elevada probabilidade do dano mesmo sem a conduta dos arguidos a intervenção destes é de todo insignificante em termos normativos para que permita tal imputação, sendo certo, como já referido, sempre em caso de dúvida séria e razoável de tal nexo, uma vez que já foi realizada toda a prova recolhida nos autos sempre a mesma beneficiaria os arguidos.

 Quanto ao princípio in dubio pro reo é o correlato processual do princípio da presunção da inocência do arguido, pois gozando o arguido de tal presunção (artigo 32, n.º 2 da Constituição da República), toda e qualquer dúvida razoável com que o tribunal fique reverterá a favor daquele. O princípio in dubio pro reo aplica-se sem qualquer limitação, e portanto não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também as causas de exclusão da ilicitude (v. g. a legitima defesa), de exclusão da culpa. Em todos estes casos, a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de atuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974, pp. 211-9.”

 “Não adquirindo o tribunal a "certeza" (a convicção positiva ou negativa da verdade prática) sobre os factos (...), a decisão tem de ser, por virtude do princípio in dubio pro reo, a da absolvição (p. 55). Neste sentido não é o princípio in dubio pro reo uma regra de ónus-da-prova, mas justamente o correlato processual da exclusão desse ónus. (...) ”Castanheira Neves, Processo Criminal, 1968, pp. 55-60.

A regra “in dubio pro reo”, enquanto manifestação do princípio da presunção da inocência – princípio estruturante do processo penal -, tem como momento mais relevante a apreciação da prova em julgamento, mas também se manifesta no momento do encerramento do inquérito, quando o Ministério Público, valorando as provas recolhidas, tem de tomar posição, arquivando-o ou formulando acusação. E, evidentemente, também se coloca ao juiz de instrução, após o debate instrutório, devendo, portanto, lavrar despacho de não pronúncia, imposto pela regra “in dubio pro reo”, no caso de se encontrar perante uma situação de dúvida inultrapassável quanto às provas produzidas.

 Saliente-se que diferente seria a situação caso o juízo probatório nos autos não permitisse concluir pelo juízo elevado de probabilidade de morte mesmo que os arguidos tivessem cumprido as condutas impostas, aliás como decorre da situação que esteve por base ao douto Acórdão da Relação do Porto de 22-04-2015 acessível in www.dgsi.pt  onde se conclui que:

I - As leges artis médicas (conjunto de regras e procedimentos que naquelas circunstancias deviam ser tidas em conta) impõem o despiste, de uma patologia de que o doente apresenta sintomas, potencialmente causadora da morte, sem tratamento, sendo possível a sua deteção.

II - O nexo causal, na omissão, ocorre quando a conduta omitida podia, com toda a probabilidade causar o evento.

III - Há conexão de risco quando a ação omitida não tenha diminuído o risco de produção do resultado, a menos que se comprove (posteriormente ao evento) que a ação omitida em nada teria servido para evitar o evento.

IV - Se a ação omitida podia ter dado à doente a possibilidade de não morrer é de afirmar a existência do nexo de imputação objetiva.

V - Se a conduta omitida pelos arguidos aumentou o perigo e risco de vida da paciente existe nexo de causalidade, na medida em que existe uma conexão de risco entre a ação omitida e a morte.

Mas mais conclui aquele acórdão – na sua fundamentação – que o nexo causal, na omissão, ocorre quando a conduta omitida podia, com toda a probabilidade, causar o evento. O artigo 10º, n.º 2 do C. Penal refere que “a comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente obrigue a evitar esse resultado”, (…)

A nosso ver, tendo em conta a noção de causalidade adequada entre a ação e o resultado e a sua equiparação (o art.º 10º do C. Penal fala mesmo em ação adequada a evitar o evento), devemos acolher o entendimento segundo o qual a ação omitida deveria evitar o evento, não com uma probabilidade próxima da certeza, mas quando a mesma seja, de todo, alheia ou indiferente a esse resultado, ou seja, haverá conexão de risco quando a ação omitida não tenha diminuído o risco de produção do resultado, a menos que se comprove (posteriormente ao evento) que a ação omitida em nada teria servido para evitar o evento. Admite-se portanto a demonstração de que um comportamento alternativo lícito em nada teria servido para evitar o resultado.

E conclui, com relevância para o caso dos autos em sede de argumentação, “Portanto, não existe qualquer dúvida razoável para darmos como assente que a conduta omitida pelos arguidos, afinal, aumentou o perigo e risco de vida da paciente. E não havendo dúvida razoável quanto a este ponto, então temos que concluir que existe nexo de causalidade, na medida em que existe uma conexão do risco entre a ação omitida e a morte. Só assim não seria se fosse evidente, ou pelo menos muito provável que, mesmo com a conduta adequada, a paciente teria falecido (comportamento alternativo lícito que tornava irrelevante a omissão da conduta adequada).”

Saliente-se que a situação daquele acórdão, é muito diversa das dos autos, já que naquele caso – enfarte do miocárdio - a omissão de exames poderia der detetado a patologia em causa, que cirurgicamente é uma situação reversível, em principio segundo as condições da paciente segundo se refere, enquanto no caso concreto destes autos a situação de f.i.n é em principio cirurgicamente irreversível, pelo que não é possível, no caso destes autos, formular de uma possibilidade de sobrevivência naqueles termos.

Também neste sentido Exmº Juiz Conselheiro, Álvaro Rodrigues, Estudo Sobre a Responsabilidade Criminal Médico – Hospitalar, quando considera que quando a conduta omitida, muito provavelmente não evita a morte o que existe verdadeiramente nos crimes comissivos por omissão, em face de o resultado não ser evitável é uma falta de violação do dever de cuidado já que a conduta deixa de assumir relevância para efeitos penais fls. 179 ss e fls. 189.


*

Prejudicadas ficam as demais questões suscitadas pelos arguidos em sede de RAI uma vez que os presentes autos se encontram em sede de instrução e nesta fase o juiz não conhece verdadeiramente do mérito da acusação mas apenas da comprovação judicial desta com o fim de comprovar se existem indícios suficientes da prática de crime, e sujeição do arguido a julgamento e verificado que tal juízo foi posto em causa, ficam prejudicadas as demais questões suscitadas no caso, já que não contendem com questões processuais de procedibilidade da ação penal – cf., Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal, 2015. Vol. 3 p. 127.

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Assim e ponderados os elementos de prova constantes dos autos, e tendo em conta as considerações feitas, verifica-se que a prova produzida nos autos, se repetida em julgamento aponta no sentido de ser mais provável, ou altamente provável a absolvição dos arguidos, do que a sua condenação quanto ao crime imputado – Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. 1, p. 133 – o que não justifica a sua pronúncia;

E isto tendo ainda em conta que a sujeição de alguém a julgamento é já um vexame, uma ignomínia, mesmo que no final se salde pela sua absolvição, sendo este o resultado final, muito provável, da prova coligida nos autos.

 É equívoco considerar que no decurso de um processo-crime a prova evoluiu em crescendo, sendo menor no inquérito e plena na audiência de julgamento – cf. Ac. RL de 30-4-97, www.dgsi.pt.

Se por um lado a prova produzida em julgamento – em relação à testemunhal - ganha muito com a imediação, com a produção quase simultânea, com a apreciação em conjunto, por outro lado perde quase tudo, com os inevitáveis meses ou anos decorridos desde a data dos factos e pela normal reconstrução psicológica, individual e coletiva, da memória, sendo que o aprofundamento da prova que pode ser feito em julgamento, tanto pode aumentar a convicção da condenação como a da absolvição – cf., Ac. RC de 6-7-2005, no recurso n.º 753/05, na Instrução n.º 2363/03 do 3º juízo criminal de Leiria.

4. Decisão

Pelo exposto, declaro encerrada a instrução e decide-se:

4.1.- Não pronunciar os arguidos:

- A., solteira, médica, nascida a 08/01/1986, filha de (…) e de (…), natural de (…), concelho de (…), residente na (…), (…);

- B., casado, médico, nascido a 29/01/1974, filho de (…) e de (…), natural de (…), concelho de (…), residente na Rua (…), n.º (…), (…);

- C., casado, médico, nascido a 06/02/1986, filho de (…) e de (…), natural da freguesia e concelho de (…), com morada profissional no CHUC – Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, Serviço de Medicina, (…);

- D., casado, médico, nascido a 21/08/1946, filho de (…) e de (…), natural da freguesia e concelho da (…), residente na Rua (…), n.º (…), (…);

- E., solteiro, médico, nascido a 13/12/1980, filho de (…) e de (…), natural da freguesia e concelho de (…), residente na (…), Lote (…), (…);

- F., casado, médico, nascido a 18/01/1986, filho de (…) e de (…), natural da freguesia de (…), concelho de (…), residente na Rua (…), n.º (…), (…); e,

- G., casado, médico, nascido a 20/01/1971, filho de (…) e de (.), natural da freguesia de (…), concelho de (…), residente na Rua (…), n.º (…), (…).

Pelo crime de crime de homicídio negligente, por omissão p. e p. pelos art.ºs 10º e 137º, n.º 1, do Código Penal de que se encontravam acusados e determinar, o oportuno arquivamento dos autos.

[…]

3. Apreciação

 Dissente o Ministério Público, recorrente, da decisão de não pronúncia enquanto afastou, fazendo intervir o princípio in dubio pro reo, a verificação do nexo de causalidade entre a conduta omissiva dos arguidos e o decesso da paciente.

Com efeito, no caso em apreço, a decisão recorrida não coloca em crise a acusação, enquanto imputa aos arguidos a violação das leges artis – como “complexo de regras e princípios profissionais, acatados genericamente pela ciência médica, num determinado momento histórico, para casos semelhantes, ajustáveis, todavia, às concretas situações individuais” - [cf. Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, in Responsabilidade Médica em Direito Penal, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 54], decorrentes de “normas de orientação clínica, do Código Deontológico, de pareceres de omissões de ética, de protocolos, guidelines, livros e revistas especializadas” [cf. acórdão TRL de 16.12.2015 (proc. n.º 1490/09.1TAPTM.L1-3] – e, assim, o “erro médico” relevante, assente numa conduta violadora do dever objetivo de cuidado a que estavam obrigados, logo a culpa negligente, a qual, reproduzindo as palavras de Figueiredo Dias, «…surge quando no facto se exprime uma atitude interna de descuido ou leviandade perante o Direito e suas normas» - [cf. Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2007, pág. 896]. Erro médico esse – já se viu, com origem na violação das leges artis -, traduzido na não sujeição, em momento anterior, da paciente a um angio-TAC [meio de diagnóstico através do qual se procuraria identificar o foco e o agente infecioso responsável pela sépsis], contribuindo, deste modo, para o retardamento do diagnóstico de “fasceíte infeciosa necrotizante”, atrasando, em consequência, a decisão de desbridamento cirúrgico do local da infeção (remoção do tecido necrosado e áreas infetadas), sendo que a morte da vítima se ficou a dever a fasceíte e miosite agudas, neutrofílicas de membro inferior, complicadas de 1) embolização séptica cardíaca com miocardite aguda necrofílica, de 2) cilindros granulares e pigmentados tubulares reanis e 3) descolamento da epiderme pela membrana basal (junção dermo-epidérmica) e escasso infiltrado inflamatório mononucleado da derme – com padrão tipo de dermatite esfoliativa.

Isto dito, vejamos, então, a concreta questão que surge como fundamento do recurso, qual seja a do juízo de causalidade.

Não suscitará, por certo, qualquer reserva o facto de se estar perante um crime comissivo por omissão, por conseguinte, como escreve de Germano Marques da Silva, em que «a causa que há-de interceder entre a omissão e o resultado não tem a mesma natureza da que intercede entre a ação nos crimes comissivos por ação e o respetivo evento. Nestes, a ação produz o evento; naqueles, a omissão não evita o evento». Logo, prossegue o Autor, «O juízo de causalidade da omissão é um juízo hipotético, que se concretiza em considerar que se a ação devida que foi omitida se tivesse verificado o evento não se teria produzido. Trata-se, evidentemente, de um juízo probabilístico. A omissão é causa do evento sempre que, segundo as regras da experiência comum aplicadas às circunstâncias concretas da situação, se o ato devido tivesse sido praticado o evento não se teria produzido». Ou seja, se «um comportamento omissivo da ação provocar um resultado típico, podemos dizer que esse resultado deve ser equiparado, para efeitos de gravidade e de punição criminais à ação (…), desde que tal omissão seja tida como adequada a evitar tal resultado (isto é, se não fosse a omissão o resultado não se teria verificado)» - [cf. “Direito Penal Português, Teoria do Crime”, 2.ª Edição, Universidade Católica Editora, pág. 84 e ss.].

Em sentido idêntico, refere Taipa de Carvalho «Nos crimes de comissão por omissão, como crimes de resultado que o são, pelo resultado só pode o omitente ser responsabilizado, desde que haja (…) uma relação de adequação entre a conduta e o resultado. Só que, no caso dos crimes comissivos por omissão, a conduta em causa é uma omissão de determinada ação. Assim, não se pode dizer que a omissão causou, ou não causou, o resultado. O que tem de se perguntar é se a ação omitida (apesar de jurídico-penalmente imposta) teria impedido o resultado. Portanto, o juízo de adequação, no caso de omissão, não é um juízo de efetividade, mas um juízo hipotético. E afirmar-se-á a imputação objetiva do resultado à conduta omissiva, se a resposta ao juízo hipotético for positiva; ou seja, imputar-se-á, quando se concluir (comprovar) que, se o omitente tivesse praticado a respetiva ação, o resultado não teria ocorrido. Daqui a designação de “causalidade”, rectius, adequação hipotética para a imputação objetiva do resultado à omissão» - [cf. Direito Penal, 2.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 570 e ss.] – negrito nosso.

Debruçando-se sobre a questão diz João Curado Neves «Existe hoje em dia acordo entre a grande maioria dos autores de língua alemã no sentido de atribuir relevância ao comportamento hipotético do autor de um crime negligente (…)», relevância essa, que se traduz «em não imputar um evento ao autor de um facto ilícito caso se verifique que o seu comportamento não faltoso teria as mesmas consequências»; posição que conduziria à seguinte interrogação: «se o agente tivesse respeitado o cuidado a que estava obrigado, o resultado desapareceria, ou ter-se-ia ainda assim verificado? Verificando-se a segunda alternativa, estará demonstrado que a falta de cuidado não se concretizou no resultado. A negligência no comportamento do agente foi neutral em relação à verificação da lesão do bem jurídico (Ulsenheimer, JZ 1969, p. 368)». Já adotando a formulação de Jakobs adianta o Autor, a pergunta seria «não o que aconteceria em caso de comportamento correto do agente, mas antes se a verificação do resultado pode ser explicada abstraindo do aspeto faltoso da conduta (Jakobs, Studienm, p. 102)» - [cf. “Comportamento Lícito Alternativo e Concurso de Riscos”, AAFDL Editora, pág. 195 e ss.].

Também, a respeito da imputação objetiva do resultado a título de comissão por omissão, citando Jescheck, escreve Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues «… verificada a morte (…) do paciente haverá um evento material típico do crime de homicídio (…), cuja causa (“causa hipotética” no sentido de que, com probabilidade raiando a segurança, a ação esperada evitará o resultado) é justamente a omissão do médico “da ação adequada a evitar” tal evento» - [cf. ob. cit., pág. 130 e ss.] – negrito nosso.

Ainda em relação ao “raciocínio hipotético”, refere Teresa Beleza: «Entendendo-se que, mesmo em termos de lei positiva, é a teoria dita da causalidade adequada ou da adequação que funcionará no direito português, isso também acontecerá nas omissões ditas impuras, só que, neste caso, o raciocínio da imputação é feito por forma inversa. Isto é, o que nós vamos averiguar, para imputar um resultado a uma pessoa que omitiu evitá-lo, é saber se a atuação a que a pessoa estava obrigada era ou não adequada a evitar esse resultado. Isto é, não se põe a questão em termos de saber se a ação que a pessoa praticou era (…) adequada a provocar um resultado, mas se (e por um raciocínio hipotético nós imaginamos a atuação que a pessoa não teve), se necessariamente o resultado não desapareceria ou, em termos de adequação, se a atuação que a pessoa podia e devia ter era adequada, isto é, em termos de experiência comum, era previsível que evitasse um certo resultado» - [cf. “Direito Penal”, II Vol., EAAFDL, 1980, pág. 911].

Retomemos agora o caso concreto.

Para o que à decisão do recurso releva, o que importa perguntar é se a ação omitida pelos arguidos seria idónea a evitar o resultado – juízo hipotético de adequação. Na resposta assume particular relevância a prova pericial constante dos autos, a qual se reveste de importância decisiva no domínio da negligência médica, já que ao perito, como auxiliar do julgador, para o que se deve colocar na posição do(s) médico(s), tendo em conta as circunstâncias de atuação - atendendo, v.g. ao contexto da intervenção, aos conhecimentos especiais do autor, aos fatores endógenos e pluralidade de intervenientes - pede-se que emita um juízo de prognose póstuma, que equivalendo ao juízo de violação do dever de cuidado, permita, ainda, ao decisor concluir, no que ao caso interessa, se tivesse sido praticada pelos arguidos - omitentes, sobre os quais recaia o dever jurídico de garante -, em momento anterior – no inicio do quadro clínico -, a angio-TAC [meio de diagnóstico através do qual se procuraria identificar o foco e o agente infecioso responsável pela sépsis], permitindo, desse modo, a antecipação do diagnóstico de “fasceíte infeciosa necrotizante” e da decisão de desbridamento cirúrgico do local da infeção (remoção do tecido necrosado e áreas infetadas), ter-se-ia, ou não, evitado, com razoável probabilidade, a morte da paciente. Sendo a resposta positiva, à luz do artigo 10.º do Código Penal – enquanto se reporta à «omissão da ação adequado a evitá-lo» - é de imputar o resultado (morte) à conduta (omissiva) dos arguidos

Perscrutado o teor da consulta técnico-científica de fls. 342 e ss., destaca-se a resposta do senhor perito ao quesito 47., do seguinte teor: “Em que medida essa violação contribuiu para a morte de (…)?”, qual seja: “A violação contribuiu para a não realização de diagnóstico de fasceíte necrotizante mais precocemente e consequentemente no atraso da decisão de desbridamento cirúrgico do local da infeção. No entanto é de salientar que esta patologia cursa com altas taxas de mortalidade, mesmo quando o diagnóstico e o tratamento é instituído (antibioticoterapia, desbridamento cirúrgico, terapêutica de suporte de vida) no início do quadro clínico. O curso clínico desta patologia é geralmente muito rápido nos doentes sem diabetes, mas nos doentes diabéticos [como era o caso de (…)] pode ser extremamente rápida, sendo necessário um alto grau de suspeição diagnosticada nas fases iniciais”. Já após a dita consulta, mas ainda no âmbito do inquérito, adiantou o senhor perito: “…o Conselho não consegue afirmar com a necessária certeza que se o foco infecioso da doente fosse detetado em momento precoce e realizada a cirurgia esta não teria igualmente falecido, considerando que mesmo nesse caso a taxa de sucesso não teria ultrapassado os 30%, por aquela patologia cursar com altas taxas de mortalidade, especialmente em doentes diabéticos, assim como foi referido no relatório.” Por fim, ouvido no decurso da instrução, acabou por esclarecer que mesmo que o tratamento tivesse sido atempado, tratando-se de uma doença com um curso muito rápido a probabilidade, de a morte ter ocorrido era elevada, reafirmando que se a taxa de sucesso em pessoas saudáveis não vai além dos 30%, num diabético, como era o caso da paciente (…), o processo de evolução inflamatório infecioso, dos músculos e tecidos adjacentes, necrotizante seria ainda mais rápido, levando, por conseguinte a um decréscimo da dita taxa de sucesso, verificável em pessoas saudáveis, isto é sem o sistema de defesa comprometido. A este propósito foi elucidativo quando, perguntado sobre se não tivesse sido omitido o procedimento, traduzido na realização da angio-TAC a paciente teria sobrevivido, respondeu: «Poderia ter alguma possibilidade de sobreviver!».

Nesta medida não nos suscita reparo a apreciação da prova indiciária produzida, levada a efeito na decisão recorrida, tão pouco a consideração no caso do in dubio.

Socorrendo-nos, uma vez mais, do ensinamento de Taipa de Carvalho, «… a exclusão da imputação (do resultado à conduta) afirmar-se-á quer, ex post se tenha a certeza ou quase certeza de que o resultado se teria produzido na mesma, quer haja uma probabilidade ou até apenas a dúvida razoável, uma vez que in dubio pro reo» e mais adiante «… para haver imputação é necessário que exista entre a conduta (ação ou omissão) e o resultado um nexo causal concreto, ou seja, é necessário que tenha sido a conduta a causa efetiva do resultado. Ora, sendo esta efetiva relação causal um elemento do tipo nos crimes de resultado, ele tem de ser objeto de prova. Donde que, havendo dúvida razoável sobre se efetivamente a conduta foi causa do resultado, ter-se-á, por força do princípio in dubio pro reo, de considerar como não provada a imputação e, portanto, de absolver o arguido do crime de resultado» - [cf. ob. cit., pág. 311-313] – negrito nosso.

Impressivas neste domínio são ainda as palavras de Francisco Muñoz Conde quando afirma «Por outra parte, no puede olvidarse la necesidad procesal de probar el nexo causal. Lo que em Derecho penal sólo lo que puede ser susceptible de prueba com los medios pronatorios admisibles legalmente, pude fundamentar una imputación jurídica; por eso, cuando las pruebas arrojam resultados ambíguos deve absolverse por el princípio «in dubio pro reo» (…)» - [cf. “Derecho Penal, Parte General”, 4.ª Edicón, tirant lo blanch libros, pág. 260].

Tratando-se o in dubio pro reo de um princípio que se manifesta logo que o Ministério Público no fim do inquérito tem de tomar posição, arquivando ou acusando, válido igualmente para o despacho de pronúncia – [cf. v.g. Fernanda Palma, “Acusação e Pronúncia num Direito Processual Penal de Conflito entre a Presunção de Inocência e a Realização da Justiça Punitiva”, I Congresso de Processo Penal, Almedina, Janeiro 2005, pág. 126; António Henriques Gaspar, “Os novos desafios do processo penal no século XXI e os direitos fundamentais (um difícil equilíbrio)”, RPCC, ano 15, n.º 2, Abril-Junho, 2005, pág. 264], não merece censura a decisão recorrida enquanto excluiu a verificação do nexo de imputação objetiva do resultado (morte) à conduta omissiva dos arguidos, considerando a alta probabilidade – juízo hipotético de adequação -, ainda que tivesse ocorrido a ação omitida pelos arguidos, da verificação da morte da paciente, fazendo intervir o in dubio pro reo, posição esta que, como vimos, se mostra apoiada por diferentes sectores da doutrina, nacional e estrangeira, como desde logo o ilustra a decisão em crise.

Nestes termos, ao invés do que defende o recorrente, a probabilidade – que há-de ser preponderante – de em julgamento vir a ser aplicada aos arguidos uma pena ou uma medida de segurança resultou comprometida e consequentemente, à luz do artigo 308.º, do CPP, a decisão não poderia deixar de ser senão no sentido da não pronúncia, com a qual não resultou violado nenhum dos preceitos legais invocados.

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em negar provimento ao recurso.

Sem tributação.

Coimbra, 9 de Junho de 2020

[Texto processado e revisto pela relatora]

Maria José Nogueira (relatora)

Frederico Cebola (adjunto)