Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
31/06.7GBSAT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: JULGAMENTO NA AUSÊNCIA DO ARGUIDO
NOTIFICADO
NULIDADE INSANÁVEL
Data do Acordão: 01/18/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO SÁTÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 333º, N.º 1, 119º, AL. C) E 410º, N.º 3, DO C. PROC. PENAL
Sumário: Ao ter-se realizado a audiência sem a presença do arguido - cujo paradeiro era conhecido nos autos -, sem que hajam sido adoptadas as medidas necessárias e legalmente impostas para garantir a sua comparência, ocorre a nulidade insanável contemplada na al. c), do artigo 119º, do C. Proc. Penal [que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento até ao trânsito em julgado da decisão final, independentemente de ter, ou não, sido invocada - artigos 119º e 410º, n.º 3, do C. Proc. Penal] com as consequências previstas no artigo 122º, n.º 1, do mesmo Diploma Legal, ou seja, a invalidade do acto praticado, bem como dos do mesmo dependentes.
Decisão Texto Integral: I. Relatório

            1. No âmbito do processo comum colectivo n.º 31/06.7GBSAT do Tribunal Judicial de Sátão, mediante acusação pública foi o arguido A..., melhor identificado nos autos, submetido a julgamento, sendo-lhe, então, imputada a prática, em autoria material e em concurso efectivo, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, e de um crime de detenção de arma ilegal, consumado, p. e p., respectivamente, pelos artigos 22º, 23º, 73º, nº 1, alínea a) e b), 131º e 132º, nº 1 e 2 , al. j), todos do Código Penal e 86º, n.º 1, al. c) e d) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, e, ainda, da contra-ordenação de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo artigo 97º da citada Lei n.º 5/2006.

            2. Realizado o julgamento, por acórdão do Tribunal do Circulo Judicial de Viseu, de 20.12.2010, veio a ser proferida decisão do seguinte teor:

            “…, julga-se parcialmente procedente a acusação pública, e, em consequência, operando-se a alteração da qualificação jurídica da sua conduta:

            1. condena-se o arguido A..., como autor material de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelas normas conjugadas dos arts. 131º e 132º, nº 1 e 2, al. g), 22º, nº 2, al. b), e 23º, todos do Código Penal (então vigente), na pena de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão;

            2. absolve-se o identificado arguido da prática de um crime de detenção de arma ilegal, e de uma contra-ordenação de detenção ilegal de arma, previstos e punidos pelos arts. 86º, nº 1, als. c) e d), e 97º da Lei nº 5/2006, de 23.02, de que vinha acusado.

            Contudo, tendo em atenção o acima referido e o disposto nos arts. 50º, nºs 1, 2, e 5, 53º, e 54º, todos do Código Penal, e 494º, n.º 3, do Código de Processo Penal, decide-se suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido, por um período de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses, acompanhada de submissão a regime de prova, mediante plano individual de readaptação social a elaborar pelo I.R.S., no prazo de 30 dias, após prévia audiência do condenado, e que deverá ser submetido a posterior homologação judicial.

            ….

            Declaro perdidas a favor do Estado as armas e munições apreendidas – art. 109º, nº 1, do Código Penal …”.

            3. Inconformado com o decidido recorreu o Ministério Público, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

            A) – Dos factos:

            1) Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

            - Provado que:

            Quando se encontrava a cerca de 4 metros deste (ofendido), apontou-lhe a arma e desferiu dois tiros;

            Apanhando-o desprevenido, diminuindo-lhe, dada a surpresa da agressão, a capacidade de defesa.

            - E não passando tais “factos” de asserções conclusivas, que deviam ter sido traduzidas nos precisos “passos” em que o concreto iter criminis se revelou, através das provas, ao Colectivo;

            Embora a míngua e o carácter lacunoso da descrição do facto – crime que constitui objecto dos autos não ponha em crise a consistência da valoração realizada quanto à culpabilidade do arguido;

            - Cremos que é inegável que o menosprezo por tais elementos, nomeadamente:

            - De onde o arguido sacou a pistola?

            - De que forma apanhou desprevenido o ofendido?

            - De onde resulta a surpresa da agressão?

            - Qual a intencionalidade e postura corporal que o ofendido revelava no momento em que foi atingido pelos disparos do arguido?

            - Qual a evolução espácio-temporal e de posicionamento e atitude (ofendido/arguido) entre o momento em que ambos se encontraram e aquele em que ocorrem o primeiro e o segundo disparo?

            - Não permitiu uma justa e criteriosa ponderação jurídico – normativa do objecto do processo à luz das pertinentes normas em matéria de qualificação do “homicídio”, sob a forma tentada, de determinação da pena concreta e de suspensão da execução da pena de prisão.

            - Padece o douto acórdão “sub judice” do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, que resulta do texto da própria decisão recorrida.

            2) Contradição insanável da fundamentação

            - Ora, não obstante os “factos provados” que acima, em “1)” -, foram destacados, especialmente no tocante ao estado desprevenido do ofendido e à surpresa da agressão, limitando-se-lhe a capacidade de defesa;

            - Logo diz o Tribunal “a quo” que não se provou que:

            O arguido tenha efectuado os disparos sem antes ter proferido qualquer expressão ou ter existido qualquer discussão entre eles.

            O que está em patente contradição com a circunstância assente de que ao disparar sobre o ofendido, o arguido o apanhou desprevenido e de surpresa.

            Ou seja:

            É ilógico, contraditório, porque atinente, a um tempo, ao ser e ao não ser afirmar, a um tempo:

            - Provou-se que o arguido apanhou o ofendido desprevenido, diminuindo-lhe, dada a surpresa da agressão, a capacidade de defesa;

            - Não se provou que o arguido tenha efectuado os disparos sem antes ter proferido qualquer expressão ou ter existido qualquer discussão entre eles.

            Padece também a decisão recorrida do vício de contradição insanável da fundamentação, que resulta do respectivo texto.

            3) Consequências processuais dos vícios apontados:

            Perante o que fica exposto em 1) e 2), impõe-se, após declaração da ocorrência de tais vícios na decisão recorrida, ordenar o reenvio do processo para novo julgamento, restrito aos seguintes objectivos:

            a) Reavaliar a prova produzida, objecto de gravação, para o efeito de julgar provados ou não os factos concretos atinentes às circunstâncias destacadas em I, 2.1.3 desta motivação;

            b) Refazer, com conformidade, a decisão recorrida no que contende com a contradição assinalada em I, 2.2.2 desta motivação;

            Tendo em vista uma decisão justa e criteriosa – porque sopesando a contextualidade referida e expurgada da incoerência salientada – sobre a qualificação do “homicídio”, sob a forma tentada, a determinação da pena concreta e a suspensão da execução da pena de prisão.

            c) Ordenar a produção de outras provas julgadas pertinentes (ou, no caso, a reinquirição das testemunhas) para a averiguação sobre tais factos, seja no que respeita à insuficiência, seja no que toca à contradição assinaladas;

            d) Proferir outro acórdão, agora assente no sopesar conjunto dos “factos provados” e daqueloutros que venham a resultar assentes com base na reavaliação a realizar ou das outras provas que hajam de ser produzidas.

            4) Se o Tribunal “ad quem” assim o entender:

            - Perante o registo da prova produzida em audiência, a sanação dos vícios do acórdão (e do julgamento) suscitados poderá consistir, precisamente, na reapreciação da matéria – de – facto provada e não provada pelo Tribunal “ad quem”, agora através da reavaliação crítica das provas declaratórias registadas e da integração na decisão recorrida dos elementos de facto omitidos.

            - Se essa for a via eleita, cremos que as provas produzidas na audiência - pautando-se o processo de formação da livre convicção do julgador pelo respeito pelas regras da experiência comum e pelos ditames da lógica, numa apreciação unitária, crítica e dialéctica, avisada e criteriosa – são claras e concludentes no sentido de que, objectiva e razoavelmente:

            - Deveriam ainda constar dos factos provados (págs. 02 e ss. do douto acórdão) os que são enumerados em I, 4.1.1 desta motivação (págs. 10-11);

            - E dos factos não provados (pág. 07 do douto acórdão) deveria ser eliminado o teor do n.º “6”, enumerado em I, 4.1.2 desta motivação (pág. 12).

            - O que resulta dos concretos excertos relevantes da prova testemunhal gravada que ficou transcrita em I, 4.2.1 e 4.2.2. desta motivação (págs. 12-15 e 15-17, respectivamente).

            B) Do Direito

            B1) Tipicidade:

            1) Não comete o crime de “homicídio qualificado”, na forma tentada, p. e p. nas disposições conjugadas dos arts. 22º/2 – b), 23º, 73º/1 – a) e b), 131º/1 e 2 – g), todos do Código Penal de 1995 (na versão da L – 65/98, de 02/09), com referência ao disposto no art. 275º/2 do mesmo diploma legal, aquele que, em 21.08.2006, abstraindo dos restantes elementos objectivos e subjectivos, dispara contra outrem dois tiros com uma pistola de calibre 6.35mm, não registada nem manifestada, resultante da adaptação ou transformação de uma arma de alarme.

            2) A cometer tal crime, sempre o faria em concurso efectivo (e não meramente aparente, por consunção) com o crime de “detenção de arma proibida”, p. e p. na disposição do art. 275º/2 do Código Penal, por respeitarem a tipos – de - ilícito atinentes a bens jurídico – penais diferentes e com uma densificação de dano/perigo de abrangência não coincidente;

            Pois que a contemporânea e antecipada posse da pistola em questão pelo arguido representava já a violação do sentimento de segurança e tranquilidade dos membros indistintos da comunidade, independentemente da comissão do “resultado” danoso em causa, que foi apenas um precipitado lógico – empírico daquele perigo, e o qual não esgotou.

           

            3) Comete, isso – sim, sem atender a outras concretas circunstâncias agravantes modificativas, em autoria material e concurso efectivo, os crimes de “homicídio”, sob a forma tentada, e de “detenção ilegal de arma”, p. e p. na disposição do art. 6º/1 da L – 22/97, de 27.06, na versão da L – 98/2001, de 25.08.

            4) Comete, já, porém, o crime de “homicídio qualificado”, sob a forma tentada, p. e p. nas disposições dos arts. 22º/1 e 2- b), 23º/1 e 2, 73º/1 – a) e b), 131º e 132º/1 e 2- i), todos do Código Penal de 1995, na versão da L – 65/98, de 02/09, em concurso efectivo com o referido crime de “detenção ilegal de arma”, quem, na época em questão e munido da arma em causa, no essencial:

            a) À atitude de um individuo que sabia muito embriagado, que:

            - O insultou, dizendo-lhe, nomeadamente, que fosse para “a puta que o pariu” (ele fora à sua casa do ofendido procurar a sua companheira, com quem já namorara);

            - E, sem nunca chegar, contudo, à iminência da agressão, brandiu um sacho no ar, em atitude ofensiva;

            - Após o que, sem se aproximar mais do visado, acabou por se por em posição de descanso, apoiando o cotovelo no cabo do sacho.

            b) Responde:

            - De forma repentina e sem palavra ou advertência, apoiando o braço respectivo tejadilho do seu carro, a cerca de 04 metros de distância, com disparo da pistola, que já tinha à mão, dirigido ao tronco do ofendido, que logo o neutralizou, sendo projectado de encontro a um muro, que o amparou, e que, para evitar cair ao solo, teve de apoiar-se no cabo do sacho;

            - E, logo de seguida, não obstante ter a noção de que o projéctil atingira e neutralizara o alvo, com outro disparo, na mesma posição, que o atingiu na perna esquerda, prostrando-o ao solo;

            - Após o que, de imediato, o arguido entra no carro e se afasta do local.

            B2) Da medida da pena

            B2.1) Penas singulares:

            Devidamente sopesadas tais circunstâncias;

            Com expressão ao nível da “ … elevada ilicitude da sua conduta, do seu modo de actuação, das suas consequências, da natureza do instrumento utilizado, da acentuada carga dolosa, caracterizada pelo dolo directo, do manifesto desvalor de personalidade que evidenciou, que denota uma formação deficiente, das fortes exigências de prevenção geral sentidas, nomeadamente a necessidade de reafirmar a validade da norma violada, que tutela valores jurídicos pessoais estruturantes da nossa sociedade”;

            E não obstante o arguido “ … não ter qualquer antecedente criminal, se integrar num meio familiar estável, que o apoia mesmo neste momento e ser de modesta condição económico-social”;

            - Cremos, pois, que se mostram justas e criteriosas, porque dando expressão acertada às exigências da prevenção especial e geral (integrada esta pela ideia de culpa), as penas de:

            - 05 anos e 04 meses de prisão, para o crime de “homicídio qualificado”, sob a forma tentada;

            - 06 meses de prisão, para o crime de “detenção ilegal de arma”.

            B2.2 Pena única:

            Em cúmulo jurídico, dando expressão à exigência de se considerar, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, cremos justa e criteriosa a pena única de 05 anos e 06 meses de prisão.

            C. Suspensão da execução da pena de prisão:

            - Na hipótese de serem desatendidos pelo Tribunal “ad quem” os argumentos já aduzidos pelo Ministério Público sobre o objecto do presente recurso, decidindo manter, de facto e de direito, os termos da decisão recorrida até à fixação da pena concreta aplicada ao arguido, cumpre-nos, nesse caso arguir que a decisão de suspender, pelo mesmo período, a execução da pena de 04 anos e 10 meses de prisão aplicada ao arguido não é normativamente justa e criteriosa e ético – socialmente eficaz.

            Não satisfazendo, pois:

            - As exigências de prevenção geral, “integrada pela ideia da culpa”, pela reposição do sentimento de confiança da comunidade no ordenamento jurídico;

            - As exigências de prevenção especial, mormente através da ressocialização, pois não é razoável formular sobre o arguido um juízo de prognose favorável.

            - A douta decisão recorrida violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos arts. 30º/1, 132º/2 – g) e i) e 275º/2, todos do Código Penal de 1995, na versão da L – 65/98, de 02/09, e 6º/1 da L – 22/97, de 27/06, na versão da L – 98/2001, de 25.08.

            D) Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado provido e procedente e em consequência:

            1- Serem declarados os vícios da matéria de facto acima invocados, com o reenvio do processo nos termos e para os efeitos ali referidos.

            2 – Se o Tribunal “ad quem” assim o entender, ser alterada a matéria de facto, com a inclusão dos factos que ficam referenciados, pelo recurso aos também referenciados excertos das provas declaratórias gravadas e a cuja transcrição se procedeu na motivação.

            - Nesta hipótese:

            2.1) Ser alterada a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que condene o arguido:

            - Pela prática, em autoria material e em concurso efectivo, de um crime de “homicídio qualificado”; sob a forma tentada, p. e p. nas disposições dos arts. 22º/1 e 2 – b, 23º/1 e 2, 73º/1 – a) e b), 131º e 132º/1 e 2 – i), todos do Código Penal de 1995, na versão da L – 65/98, de 02/09, e de um crime de “detenção ilegal de arma”, p. e p. na disposição do art. 6º/1 da L – 22/97, de 27/06, na versão da L – 98/2001, de 25/08;

            - Nas penas parcelares de 05 anos e 04 meses de prisão e 06 meses de prisão, respectivamente, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 05 anos e 06 meses de prisão.

            3) Na hipótese de improcederem os pedidos acabados de formular, deve ser:

            - Alterada a decisão proferida, sendo substituída por outra que não determine a suspensão da execução da aplicada pena de 04 anos e 10 meses de prisão, que deverá ser executada em conformidade.

           

            4. Ao recurso respondeu o arguido, concluindo:

            1. O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não pode ser assacado no acórdão posto em crise.

            2. Sob a alçada do princípio da investigação ou da verdade material, o tribunal tem o poder - dever de proceder oficiosamente (ou a requerimento) à produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigures necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (cfr. artigos 340º, nº 1 e 323º alínea a) e b) do C.P.P.), com o limite do objecto do processo.

            3. Ora, no caso em apreço, o tribunal a quo lançou mão de meios de prova documental e testemunhal, tendo baseado a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento como se lhe impunha. No entanto ponderada a mesma, chegou a conclusão diversa da pretendida pelo recorrente.

            4. Ocorre a “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão “designadamente quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária aquela que foi tomada.

            5. Pelo que o douto acórdão não padece do vício que lhe é apontado.

            6. O quantum da medida da pena é o adequado e integra-se no seu ponto óptimo de equilíbrio.

            7. No entanto e como muito bem decidiu o tribunal a quo, relativamente ao crime de detenção de arma ilegal pelo qual vinha o arguido acusado e de uma contra – ordenação de detenção ilegal de arma, previstos e punidos pelos artigos 86º nº 1, alíneas c) e d) e 97º da Lei nº 5/2006 de 23.02, não pode o arguido ser agora punido por tais factos, dado que o referido diploma legal não estava em vigor na data da prática dos mesmos.

            8. Bem como em legislação anteriormente aplicável não se encontrava prevista como infracção a simples detenção da arma de alarme e respectivas munições.

            9. Quanto à suspensão da execução da pena de prisão, aplicada ao arguido também não nos merece qualquer reparo. Isto porque, o arguido não tem antecedentes criminais, está integrado na sociedade, já se encontra com uma idade avançada, aliado ao facto de se encontrar num ambiente familiar estável que se encontra a apoiá-lo neste momento.

            10. O arguido pese embora se encontre desempregado, faz constantemente biscates que lhe permitem obter rendimentos para cumprir as suas obrigações inerentes ao seu agregado familiar, entre as quais o pagamento da renda de casa.

            11. Ora, através do regime de prova, mediante plano individual de readaptação social a elaborar pelo I.R.S., conseguir-se-á alcançar o objectivo do nosso sistema punitivo, mormente no seu sentido pedagógico e ressocializador, uma vez que, permitirá ao arguido ser acompanhado pelos serviços de reinserção social, que possibilitam e auxiliam o arguido a uma efectiva e total reabilitação social, nomeadamente, através da adopção de hábitos de sã convivência comunitária e social.

            12. A decisão recorrida não mercê qualquer reparo e deve ser mantida na integra.

            13. Face ao supra exposto, deve o Tribunal da Relação negar provimento ao presente recurso e confirmar a douta decisão da 1ª instância que se reputa como justa, isenta e criteriosa,

            Como é de JUSTIÇA

           

            5. Admitido o recurso, fixada o respectivo regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a este Tribunal – [cf. fls. 390].

            6. Na Relação, a Ilustre Procuradora – Geral Adjunta, no douto parecer de fls. 396 a 406, pronunciou-se no sentido de o recurso merecer parcial provimento.

            7. Cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2 do CPP, não foi apresentada resposta.

            8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, apreciar.

         II. Fundamentação

            1. Delimitação do objecto do recurso

            De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

            No caso em apreço suscita o recorrente:

            - A questão dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e da contradição insanável da fundamentação;

            - O erro do julgamento, defendendo impor a prova produzida que tivessem sido julgados como provados e, bem assim, como não provados outros factos;

            - A errada qualificação jurídica dos factos, devendo o arguido ser condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, e, ainda, de um crime de detenção ilegal de arma;

            - A problemática da medida da pena [parcelares e única];

            - A suspensão da execução da medida pena, a qual, entende, não dever ter lugar.

            2. A decisão recorrida

            Ficou a constar do acórdão recorrido:

            A - Discutida a causa, provaram-se os seguintes factos:

1. No dia 21 de Agosto de 2006, cerca das 14 horas, o arguido A... deslocou-se à Quinta …, concelho do Sátão, para se encontrar com B..., companheira de C..., com quem havia mantido uma relação amorosa;

2. Aí chegado, e como a B... se recusou a encontrar-se com ele, o arguido, acompanhado de D..., irmão da B..., dirigiu-se a uma zona de ribeira existente a cerca de 400 metros da casa do C...;

3. O C..., que tinha tido conhecimento da presença do arguido, que sabia já ter sido namorado da sua companheira, nas proximidades de sua casa, e estranhando a demora do irmão desta, foi na companhia de B... ver onde o mesmo se encontrava;

4. Chegados ao local onde se encontravam o arguido e o D..., o arguido empunhou uma arma/pistola de marca “Star”, prateada, de calibre 6,35 mm., que trazia consigo previamente municiada, aproximou-se do C... e, quando se encontrava a cerca de 4 metros deste, apontou-lhe a arma e desferiu dois tiros, que o atingiram no abdómen e na perna esquerda, em resultado dos quais o C... caiu ao chão;

5. Após o descrito no ponto anterior, o arguido abandonou o local;

6. O arguido fazia-se previamente acompanhar da arma referida no ponto 4., que costumava guardar na sua residência, sita no Lugar de … , e que trazia consigo previamente municiada, e colocada em local de fácil acesso para permitir, como permitiu, a sua utilização;

7. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, o C... necessitou de receber assistência médica, tendo sido submetido com urgência a uma laparotomia mediana supra e infra-umbilical, ficando com duas cicatrizes resultantes das feridas perfurantes, uma ao nível da espinha ilíaca antero-superior esquerda e outra na face externa da coxa esquerda;

8. As lesões referidas no ponto anterior determinaram ao C... um período de 45 dias de doença, sendo 30 dias com afectação para o trabalho geral, e 15 dias com afectação para o trabalho profissional, tendo existido perigo para a sua vida;

9. O arguido não é detentor de licença de uso e porte da arma referida no ponto 4., bem como da arma de alarme de marca “FT”, modelo “GT28”, de calibre 8 mm., seus carregadores, 24 munições de calibre 6,35mm., da marca “Patronem”, e cinco munições de alarme, que foram encontradas em seu poder;

10. O arguido tinha igualmente em seu poder uma catana com cabo em madeira e lâmina com cerca de 40 cm. de comprimento, sem que a mesma fosse utilizada para qualquer fim justificativo da sua posse;

11. O arguido visou com a sua conduta atingir o C... em zonas do corpo onde se alojam órgãos vitais, circunstância que conhecia, não se coibindo de prosseguir a sua actuação;

12. O arguido efectuou os disparos quando o C... se encontrava a cerca de 4 metros de distância, apanhando-o desprevenido, diminuindo-lhe, dada a surpresa da agressão, a capacidade de defesa;

13. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era ilícita e penalmente censurável, querendo tirar a vida ao C…, para o que procurou atingi-lo em órgãos vitais, não tendo conseguido o seu intuito apenas em virtude da assistência médica que foi prestada ao ofendido;

14. O arguido agiu ainda livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta era ilícita e penalmente censurável, ao ter em seu poder as armas, munições e catana mencionadas nos pontos anteriores, sabendo que para as deter é necessário possuir a respectiva licença (armas de fogo);

15. O arguido é casado;

16. O arguido nasceu numa família constituída por um grupo de sete irmãos, com uma dinâmica familiar marcada por algumas dificuldades decorrentes do temperamento difícil do pai, que se agravava quando este se encontrava sob o efeito do álcool;

17. Nas ocasiões referidas no ponto anterior, a mãe do arguido constituía-se como a principal figura de vinculação afectiva, já que o pai exercia um modelo educativo punitivo e caracterizado pelo distanciamento afectivo;

18. Ao nível educativo, o arguido sempre revelou dificuldade de conformar-se com as regras impostas, e, por isso, sistematicamente ausentava-se de casa, quando contrariado, tendo revelado também na escola dificuldade de adaptação;

19. O arguido apresentava dificuldades no relacionamento interpessoal, entrando em conflito com grande facilidade com os colegas;

20. Ao nível do aproveitamento escolar, o arguido apresentava grandes dificuldades, abandonando a escola aos 14 anos, com dificuldades em ler e escrever;

21. Desde os sete anos de idade, o arguido foi acompanhando o pai em pequenos trabalhos de pedreiro, pelo que, quando abandonou a escola, já percebia da arte, inserindo-se na mesma;

22. O arguido passou por várias empresas, denotando, também ao nível laboral, dificuldades de socialização;

23. A mãe do arguido encaminhou-o para tratamento, que iniciou no Hospital Conde Ferreira, mas foi por este abandonado antes de se efectuar um qualquer diagnóstico;

24. O arguido tem um irmão esquizofrénico, revelando os outros dois dificuldades de adaptação social, que se vêm agravando com a idade;

25. O arguido casou-se aos 22 anos de idade, e, apesar do seu temperamento impulsivo, a cônjuge, pessoa avaliada como muito paciente, constituiu-se como o seu único elemento estabilizador, pelo que foi revelando maior adaptação;

26. Os filhos do arguido, com 27 e 13 anos de idade, aprenderam a lidar com o pai, evitando contraria-lo;

27. Na data referida nos pontos anteriores, o arguido vivia com a cônjuge e os dois filhos do casal, em casa arrendada, inscrita em zona rural, dispondo de adequadas condições de habitabilidade;

28. O arguido exerce a actividade profissional de pedreiro, estando na altura deslocado em Viseu, auferindo uma média de € 750 mensais;

29. A esposa do arguido pratica uma agricultura de subsistência;

30. Actualmente, o arguido vive com a esposa e a filha mais nova, estando desempregado desde há sete meses, e com dificuldades de reinserção profissional, já que no meio as pessoas o conhecem como conflituoso;

31. A família do arguido vivencia uma situação económica precária, contando praticamente com os artigos provenientes da agricultura de subsistência c pequenos trabalhos ocasionais executados pelo arguido;

32. O arguido suporta a quantia mensal de € 125, a título de renda de casa;

33. O arguido não compareceu na audiência de julgamento, tendo sido julgado na sua ausência;

34. O arguido não apresenta qualquer condenação criminal.


***


B - Não se provaram quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa, designadamente que:

1. No dia 21 de Agosto de 2006, o arguido se tenha deslocado da sua residência, sita em Lugar de … , Penafiel;

2. A B... fosse esposa do C...;

3. O arguido tivesse mantido com a B... uma relação extra-conjugal;

4. Quando o ofendido se encontrava prostrado no chão, o arguido se tenha aproximado do mesmo e lhe tenha desferido um murro na cara, atingindo-o no olho esquerdo;

5. O arguido, quando saiu de casa, tivesse como intuito atentar contra a vida do ofendido;
6. O arguido tenha efectuado os disparos sem antes ter proferido qualquer expressão ou ter existido qualquer discussão entre eles.


***

C - Convicção do Tribunal quanto à matéria de facto - Funda-se esta no conjunto da prova produzida em audiência, salientando-se os seguintes aspectos:

1. O arguido não prestou declarações, tendo sido julgado na sua ausência.

2. Descrevendo o sucedido no dia e ocasião em causa, do modo constante na factualidade provada, foram ponderados os depoimentos sérios, isentos e credíveis das testemunhas B... e D..., tendo a primeira sido companheira do ofendido C…, e sendo o segundo seu irmão. Estas testemunhas tiveram intervenção directa na situação em apreço, estando presentes no momento em que o arguido desferiu os disparos que atingiram o ofendido, tendo observado o sucedido, descrevendo-o em audiência de forma coerente e esclarecida.

A testemunha B... confirmou ainda a relação que manteve com o ofendido (que cessou logo após os factos acima descritos) e o arguido, tendo a testemunha D... descrito a sua actuação no dia em questão.

Por fim, as testemunhas confirmaram que o arguido tinha em seu poder a arma de fogo que utilizou contra o ofendido, e ainda a catana que lhe foi apreendida.

3. Sustentando a factualidade provada, foi ponderado o conteúdo dos relatórios periciais juntos aos autos, a fls. 7 e 8, 130 e 131, 151 a 153, 159 a 162, 191 a 193, 235 a 238, e 241 a 249, que não mereceram qualquer impugnação e se revelam correctamente elaborados e fundamentados, e dos documentos juntos aos autos a fls. 3, 38 a 49, 111, 116 a 118, 133, 136 a 140, e 291 (certificado de registo criminal), e ainda o relatório social entretanto elaborado, que mereceram credibilidade.

4. Para finalizar, saliente-se que nenhum outro meio probatório - que permitisse alterar a factualidade provada ou sustentar a factualidade não provada - foi produzido, requerido ou sequer referenciado em audiência de julgamento.


***

D - Enquadramento jurídico-penal dos factos:

            1. Ao arguido é imputada a prática, em autoria material e concurso efectivo, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, um crime de detenção de arma ilegal, e uma contra-ordenação de detenção ilegal de arma, previstos e punidos pelos arts. 22º, 23º, 131º e 132º, nº 1 e 2, al. j), do Código Penal, 86º, nº 1, als. c) e d), e 97º da Lei nº 5/2006, de 23-02.

2. O crime de homicídio encontra-se previsto no art. 131º do Código Penal, no qual se postula que será punido “quem matar outra pessoa”. Como se depreende de sua inserção sistemática, o crime de homicídio pretende proteger o valor absoluto vida humana, arvorado, no nosso ordenamento jurídico, à categoria de primeiro direito fundamental (art. 24º da Constituição da República Portuguesa), decorrente da ideia de dignidade da pessoa humana (art. 1º da C.R.P.). O bem jurídico protegido por tal tipo legal é, pois, a vida, caracterizando-se por admitir uma só agressão, e desaparecendo em sua consequência.

            Sendo certo que tal agressão terá de se produzir em concreto para que o tipo esteja preenchido, e que a mesma poderá ser realizada de qualquer modo, estamos perante um crime material ou de resultado (dano-violação), e de realização livre. Deste modo, e de forma a sintetizarmos a essencialidade da faceta objectiva deste tipo legal, podemos recorrer às palavras de Leal Henriques e Simas Santos[1], quando referem que “matar é suprimir a vida humana”, e essa supressão poderá ocorrer de qualquer maneira, desde que entre a actuação (ou omissão) do agente e o resultado se estabeleça o necessário nexo de causalidade.

            Para além disso, a incriminação em análise é igualmente comum, pois qualquer pessoa pode ser seu agente (“quem”), podendo ainda qualquer pessoa ser vítima de tal infracção (“outra pessoa”).

A nível subjectivo, este tipo-de-ilícito exige o dolo, em qualquer das suas formas – directo, necessário ou eventual – art. 14º do Código Penal.

Preenchendo a conduta do agente o tipo fundamental, dever-se-á então investigar a existência ou não de alguma das circunstâncias qualificadoras do homicídio que justifiquem a exasperação da punição. Importa, pois, atender ao disposto no art. 132º do Código Penal, no qual se consagrou a técnica legislativa dos chamados exemplos-padrão (“Regelbeispieltechnick”). Tal técnica assenta na combinação de um critério generalizador (um tipo de culpa constituído por uma cláusula geral), com um catálogo meramente exemplificativo, não taxativo, de circunstâncias cuja verificação nem sempre implica a qualificação. Assim sendo, o preenchimento de um dos exemplos-padrão apenas indicia uma especial perversidade ou censurabilidade do agente, pelo que, como refere Teresa Serra[2], “o efeito dos exemplos-padrão fundamenta como que uma presunção elidível de que o facto deverá ser subsumido sobre o grupo valorativo superior dos casos agravados de homicídio”. Tais circunstâncias não operam, portanto, de modo automático, evidenciando antes um maior grau de culpa. Mas não só. Com efeito, algumas das circunstâncias indiciam um maior desvalor da conduta, que se traduz num mais elevado grau de ilicitude.

3. Tendo em conta a estrutura típica acima delineada, e analisando a matéria de facto provada, logo se constata que a conduta do arguido integra os elementos - objectivos e subjectivos - do tipo legal de crime de homicídio de que vem acusado, sendo certo que, utilizando uma arma de fogo, e de forma intencional-dolosa (dolo directo), visou tirar a vida do ofendido, atingindo-o com dois disparos (balas) em zonas do corpo em que se alojam orgãos vitais. Contudo, tal resultado morte não ocorreu, por razões estranhas à vontade do arguido.

            4. Daí que seja necessário chamar à colação o instituto da tentativa.

            Procedendo a uma breve análise da temática da tentativa em Direito Penal, poder-se-á começar pela explicitação das razões que subjazem à sua punição.

Assim, de acordo com as teorias subjectivas, essa punição radicaria na vontade do agente comprovadamente hostil ao Direito, pelo que deveria corresponder à punição da consumação. Já na perspectiva das teorias objectivas, essa punição seria legitimada pelo facto de, através da forma tentada, se colocar em perigo o objecto tipicamente protegido. Uma vez que não se produziria qualquer lesão efectiva, admitiam tais teorias a atenuação da pena. Posição intermédia é a defendida por Jescheck e Roxin[3], entre outros: a “teoria da impressão”. Segundo esta, é o pôr em perigo da paz jurídica, através da produção na generalidade das pessoas de uma impressão juridicamente “abaladora”, que justifica a antecipação da punição do tipo-de-ilícito. Na perspectiva de Faria Costa[4], a razão material subjacente à punição da tentativa encontra-se na “relevância axiológica do próprio bem jurídico nas suas múltiplas refracções ao nível das várias instâncias da ordem jurídica, bem como da necessidade (ou não) da sua protecção jurídico-penal (fragmentaridade e necessidade de 1º grau)”, ao que acrescerá “o ter de sopesar se aquela relevância e necessidade determinam se o bem jurídico penal merece a protecção dos ataques ou ofensas em forma de tentativa” (fragmentaridade e necessidade de 2º grau). É nesta fragmentaridade de 2º grau que se deve buscar a razão de ser da punibilidade da tentativa.

            O nosso Código Penal faz depender a punição da tentativa da verificação cumulativa de vários requisitos. Constituem assim elementos do conceito legal de tentativa a vontade ou decisão de realização de uma infracção, acompanhada da prática de actos executivos dessa mesma infracção.

Seguindo mais uma vez o pensamento de Faria Costa[5], o art. 22º do Código Penal consagrou um critério objectivo mitigado, considerando que “a tentativa tem sempre de integrar uma referência objectiva a certa negação de valores jurídico-criminais protegidos mas a que há que adicionar o próprio plano do agente integrado da sua intencionalidade volitivamente assumida”.    Esta afirmação afasta a punição da tentativa negligente.

Desta forma, tendo a arguida praticado actos idóneos a produzir o resultado tipicamente previsto (morte do ofendido), ou seja, actos de execução do crime de homicídio (cfr. art. 22º, nº 2, al. b), do Código Penal), agindo com dolo directo, naturalmente se conclui que a comissão de tal infracção, na forma tentada, lhe é imputável.

            E deve salientar-se que não se verificou qualquer desistência da tentativa, dado que o arguido não interrompeu o processo causal do resultado morte (do ofendido) que pretendia desencadear, tendo este sido evitado por auxílio de terceiros, isto é, por razões alheias à vontade e actuação do arguido.

5. Encontra-se, pois, preenchida a factualidade típica do art. 131º do Código Penal, embora na sua forma tentada.

            Verificado que está o tipo fundamental, na referida forma, importa indagar acerca da existência ou não de alguma das circunstâncias qualificadoras do homicídio que justifiquem a exasperação da punição. Como defende Teresa Serra[6], “só após a averiguação da existência de uma tentativa de homicídio simples, se poderá colocar a questão de saber se estamos ou não perante um homicídio especialmente censurável ou perverso tentado”.

Necessário se torna, pois, atender ao disposto no tipo especial previsto no art. 132º do Código Penal, por forma a saber se existem ou não no facto circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade do arguido.

Do catálogo do n.º 2 do art. 132º, vem o arguido acusado pela alínea j). Nesta se dispunha, na redacção em vigor na data da prática dos factos (ou seja, anterior à Lei nº 59/2007, de 04-09), que “é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade, entre outras, a circunstância de o agente (…) praticar o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Ministro da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das Regiões Autónomas ou do território de Macau, Provedor de Justiça, governador civil, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente ou examinador, ou ministro de culto religioso, no exercício das suas funções ou por causa delas”.

Ora, analisando a factualidade provada, é evidente que a previsão desta alínea não se verifica in casu, pois a vítima não se integra em qualquer das citadas categorias pessoais/funcionais.

Julgamos, assim, que a acusação se encontra referida à actual redacção da alínea j) do nº 2 do art. 132º, que corresponde, sem qualquer modificação, à alínea i) da redacção do Código Penal vigente à data da prática dos factos.

Na referida alínea i) do nº 2 do art. 132º do Código Penal previa-se a chamada premeditação, isto é, a circunstância de o agente actuar “com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas”. Ora, a frieza de ânimo, ligada à atitude do agente, significa uma calma ou imperturbada reflexão no assumir da resolução de matar, como se refere no Ac. do S.T.J. de 18-06-86[7], ou a acção com sangue frio, de forma insensível e com indiferença pela vida humana, segundo os Acs. do S.T.J. de 22-03-95[8] e de 02-03-2000[9].

De facto, este conceito reconduz-se a “uma vontade criminosa particularmente intensa, daquele que meditou o seu crime, antes de o executar, e não agiu sob a emoção ou o impulso do momento”, como afirma Fernanda Palma[10]. O Ac. da Rel. de Coimbra de 06-07-83[11] refere que a frieza de ânimo “consiste em a vontade se formar de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução e persistente na resolução”.

Este conceito de frieza de ânimo foi recolhido pelo nosso legislador penal na doutrina italiana, a qual prescindia, para existir premeditação, da tenacidade da resolução sobre os meios e os fins, baseando a maior intensidade da culpa do agente num aspecto da sua personalidade expresso no facto. Desta forma, relevante é, não o processo volitivo, mas sim o desvalor da personalidade do agente manifestada no facto. Como refere Nelson Hungria[12], trata-se de “um atributo da personalidade psicofísica ou psicofisiológica do agente (...), um modo de ser do temperamento”.

Ora, basta analisar a conduta do arguido para se concluir que não pode ser reconduzida à previsão desta alínea, pois é nosso entendimento que actuou do modo descrito no “calor dos acontecimentos”, confrontado com a presença ameaçadora do companheiro da mulher que pretendia contactar, e a iminência de um confronto físico.

Poderia ainda a conduta do arguido reconduzir-se à previsão da alínea h) do nº 2 do art. 132º do Código Penal (na versão vigente à data da prática dos factos), designadamente convocando o conceito normativo de meio insidioso. Nas palavras de Maia Gonçalves[13], trata-se de um conceito amplo e elástico “que abarca os meios aleivosos, traiçoeiros e os desleais”. Já Fernanda Palma[14] refere que tais meios “têm a ver directamente com a maior danosidade social exterior do facto: o agente utiliza meios que tornam extremamente difícil a defesa da vítima ou arrastam consigo o perigo de lesão de uma série indeterminada de bens jurídicos, acrescentando ao facto uma dimensão social mais intensa”. Neste sentido veja-se o Ac. do S.T.J. de 11-06-87[15].

Como se refere no Ac. do S.T.J. de 17-04-2000[16], no meio insidioso o poder mortífero da arma mostra-se oculto, não sendo apreendido pela vítima, elegendo o agente as condições para encontrar a vítima desprevenida – cfr. ainda o Ac. do S.T.J. de 20-02-2004[17]. Já no recente Ac. do S.T.J. de 02-04-2009[18] se decidiu que o meio insidioso se traduz, por um lado, num comportamento caracterizado pela traição, por uma acção dissimulada, e, por outro lado, derivado disso, na colocação da vítima numa situação de pouca ou nenhuma possibilidade de defesa. Também Figueiredo Dias[19] refere que “insidioso será todo o meio cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas à do veneno – do ponto de vista pois do seu carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto”.

Assim, entendendo que a arma utilizada pelo arguido não se reveste deste carácter dissimulado ou enganador, afigura-se-nos não se preencher este exemplo-padrão.

6. Por fim, importa questionar da possibilidade de se verificar in casu a previsão da alínea g) do nº 2 do art. 132º do Código Penal (na sua versão então vigente), designadamente se o arguido utilizou um “meio particularmente perigoso” ou traduzido “na prática de crime de perigo comum”.

Como a lei exige que o meio em causa seja particularmente perigoso, ou seja, de “perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar”, segundo Figueiredo Dias[20], este autor exclui liminarmente deste conceito os “revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes”. Logo, também a arma utilizada pelo arguido não pode convocar este exemplo-padrão.

Por fim, crimes de perigo comum são os previstos nos arts. 272º a 286º do Código Penal, em que se incluía o crime de substâncias proibidas ou análogas e armas – art. 275º. Esta norma legal foi entretanto revogada pela Lei nº 5/2006, de 23-02, mas estava em vigor na data da prática dos factos aqui em apreço, uma vez que a dita Lei apenas entrou em vigor no dia 22-08-2006 (cfr. art. 120º), ou seja, no dia a seguir àquele em que os factos ocorreram.

Ora, tendo o arguido atingido o ofendido com disparos efectuados por uma arma proibida de fogo que tinha em seu poder, conclui-se que este exemplo-padrão se verifica in casu – neste sentido, cfr. os Acs. do S.T.J. de 02-12-92[21] e de 27-10-93[22].

            Por outro lado, realizando-se a ponderação global do facto e do autor, conclui-se que não existem circunstâncias especiais idóneas a revogar tal efeito de indício. De facto, não se vislumbra qualquer circunstância que permita uma “acentuada diminuição da ilicitude, designadamente em consequência de uma diminuição do desvalor da conduta”, ou “uma diminuição do desvalor do resultado”, ou ainda “uma diminuição do desvalor da atitude” do agente[23].

Conclui-se, assim, pela aplicação da moldura penal agravada do homicídio qualificado no caso sub iudice.

E nada obsta à existência de um homicídio qualificado na forma tentada, como admitem Teresa Serra[24], Figueiredo Dias[25] e Fernanda Palma[26], e se decidiu nos  recentes Ac. do S.T.J. de 02-04-2009[27], e Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-03-2010[28].

7. Procedente se revela, pois, nesta parte a acusação pública, devendo apenas operar-se a necessária alteração da qualificação jurídica.

E saliente-se que as alterações operadas pela Lei nº 59/2007, de 04-09, ao Código Penal não assumem qualquer relevo no caso em apreço, uma vez que a redacção da alínea g) do nº 2 do art. 132º do Código Penal então vigente corresponde exactamente à actual redacção da alínea h) da mesma norma, sendo a pena aplicável idêntica. Daí que o art. 2º, nº 2 e 4, do Código Penal seja aqui inaplicável.

8. Estando o arguido acusado ainda da prática de um crime de detenção de arma ilegal, e de uma contra-ordenação de detenção ilegal de arma, previstos e punidos pelos arts. 86º, nº 1, als. c) e d), e 97º da Lei nº 5/2006, de 23-02, importa começar por referir que este diploma legal não estava em vigor na data da prática dos factos que constituem o objecto deste processo, como acima se expôs.

E é certo que na legislação anteriormente aplicável não se encontrava prevista como infracção a simples detenção da arma de alarme, respectivas munições, e da catana apreendidas ao arguido. Daí que o arguido não possa ser agora punido por tais factos.

Por outro lado, importa questionar se o eventual concurso entre tais normas seria real ou efectivo, ou meramente aparente.

            A nossa lei penal, no seu art. 30º, adoptou a unidade ou pluralidade de tipos violados como método básico de distinção entre a unidade ou pluralidade de infracções. Todavia, e como refere Eduardo Correia[29], “a violação de várias disposições, o preenchimento de vários tipos e, portanto, a correspondente existência de uma pluralidade de infracções, pode em última análise ser apenas aparente”.

Torna-se, assim, necessário integrar tal critério geral, recorrendo fundamentalmente ao bem jurídico protegido. Como refere Figueiredo Dias[30], “toda a construção do crime parte da ideia de que a função do direito penal se traduz na protecção de bens jurídico-penais”, pelo que se a conduta do agente violar vários bens jurídicos, em princípio verificar-se-á pluralidade de infracções. Nas palavras Eduardo Correia[31], “pluralidade de crimes significa, assim, pluralidade de valores jurídicos negados”.

            Só assim não será se a tutela de um bem jurídico for compreendida pela tutela de outro mais abrangente. Por outro lado, pluralidade de crimes implica também pluralidade de juízos de censura ou de culpa, o que acontecerá quando se verifique “pluralidade de processos resolutivos”[32].

Considerando os referidos critérios, importa então analisar a relação em que se encontram as diversas disposições penais abstractamente aplicáveis, por forma a saber se a aplicação de qualquer delas exclui a aplicação de outra ou outras. Se tal exclusão se justificar, estaremos perante um concurso legal ou aparente de crimes, sendo o agente punido por apenas uma das normas em concurso. Se, pelo contrário, for de afastar tal exclusão, será o arguido punido pelos vários tipos preenchidos, verificando-se um concurso real ou efectivo de infracções.

            Ora, julgamos que entre o crime de homicídio qualificado cometido pelo arguido (agravado pelo uso da arma proibida) e o crime de detenção ilegal de arma ou de arma proibida intercede uma relação de consunção, uma vez que a tutela agravada e abrangente do crime de homicídio qualificado compreende já o âmbito de protecção pressuposto no crime de arma (sendo a utilização desta o meio de qualificação do homicídio) – neste sentido, cfr. o Ac. do S.T.J. de 27-02-91[33].

            Por conseguinte, verifica-se uma relação de concurso aparente entre tais infracções, devendo o arguido ser punido apenas pela comissão de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos arts. 22º, 23º, 131º e 132º, nº 1 e 2, al. g), do Código Penal (então vigente).


***

E - Escolha e determinação da medida da pena:

1. O crime cometido pelo arguido é punível com a pena de 12 a 25 anos de prisão, do crime de homicídio qualificado, especialmente atenuada, ou seja, com uma pena cujo mínimo corresponde a 2 anos, 4 meses e 24 dias de prisão e cujo máximo ascende a 16 anos e 8 meses de prisão – arts. 73º, nº 1, als. a) e b), e 132º, nº 1, do Código Penal.

Na determinação, dentro da moldura penal abstracta, da medida concreta da pena, seguir-se-á o critério geral dos arts. 71º, n.º 1 e 40º, nos 1 e 2 do Código Penal revisto: em função da culpa do agente, e atendendo ainda às exigências de prevenção de futuros crimes - doutrina essa que se passará seguidamente a descrever, embora de forma naturalmente sintética.

            Os princípios regulativos da actividade de determinação da medida concreta da pena são a culpa e a prevenção, encontrando-se assim tal actividade intimamente ligada à teoria dos fins das penas.

            A culpa estabelece o máximo de pena concreta que não pode, em caso algum, ser ultrapassado. Constitui-se, assim, como um limite inultrapassável pelas considerações de prevenção, o que permite o respeito pelos mandamentos do princípio da culpa.

            Ora, até ao máximo consentido pela culpa, é a medida exigida pela tutela dos bens jurídicos (estabilização das expectativas comunitárias na manutenção ou reforço da vigência da norma violada), ou seja, a prevenção geral positiva ou de integração, que vai determinar a medida da pena. Já a prevenção geral negativa de intimidação constitui-se apenas como um efeito lateral dessa necessidade de tutela dos bens jurídicos, não sendo, pois, por si só, finalidade da pena.

            A medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos oferece-se como uma “moldura de prevenção”, cujo máximo é o ponto mais alto consentido pela culpa e o mínimo resulta do quantum de pena imprescindível à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias (defesa da ordem jurídica). Dentro desta “moldura de prevenção” actuarão irrestritamente as finalidades de prevenção especial, cujo critério decisivo é a medida das necessidades de socialização do agente, as quais irão, em última análise, determinar a medida da pena. Podem ainda funcionar as funções subordinadas de prevenção especial : as de advertência individual ou de segurança ou inocuização.

            Cada um desses princípios regulativos tem subjacente um substracto, ou seja, um conjunto de circunstâncias relativas ao facto e ao agente (não taxativamente previstas no art. 71º, n.º 2 do Código Penal revisto), que auxiliam o julgador nesta tarefa árdua de determinação do quantum concreto de pena. Tais circunstâncias, sendo umas relevantes por via da culpa, outras por via da prevenção, e grande parte delas ambivalentes, devem ser investigadas e sopesadas pelo julgador, à luz dos referidos princípios regulativos, e ainda do princípio da proibição da dupla valoração, de forma a concluir pela aplicação de uma pena concreta ao agente.

            Desta forma, ponderar-se-á em favor do arguido: a sua idade já avançada, sem que tenha qualquer antecedente criminal; o facto de se integrar num meio familiar estável, que o apoia mesmo neste momento; e a sua modesta condição económico-social.

Contra o arguido ter-se-á em consideração a elevada ilicitude da sua conduta, atendendo ao seu modo de actuação, à natureza do instrumento utilizado, às suas consequências, e aos valores ameaçados; a acentuada carga dolosa que subjaz a tal conduta, caracterizada pelo dolo directo; o manifesto desvalor de personalidade que evidenciou, que denota uma formação deficiente; e as fortes exigências de prevenção geral sentidas, nomeadamente a necessidade de reafirmar a validade da norma violada, que tutela valores jurídicos pessoais estruturantes da nossa sociedade.

Após ponderação global das referidas circunstâncias, à luz dos critérios expostos, entende o tribunal colectivo que será adequado aplicar ao arguido a pena de 4 anos e 10 meses de prisão.

2. Todavia, importa não esquecer que a aplicação de uma pena visa, além da protecção de bens jurídicos, a “reintegração do agente na sociedade” – art. 40º, n.º 1, do Código Penal.
            Assim, como se pode observar pela matéria de facto apurada, o arguido revela uma personalidade impulsiva, denotando carência afectiva e dificuldade de relacionamento interpessoal. Ao nível familiar, faltou ao arguido, desde a infância, o apoio e a referência paterna.
A personalidade do arguido é, pois, fortemente marcada por essa falta de apoio e de referência, manifestada necessariamente nas suas atitudes e conduta.
            Ora, perante tais premissas, atendendo ao modo de vida, idade e personalidade do arguido, e sobretudo ao facto de se tratar da primeira condenação criminal, julgamos que o cumprimento de pena de prisão efectiva constituirá uma solução claramente insatisfatória para atingir o apontado fim das penas - a recuperação do arguido para a sociedade. De facto, a fragilidade psicológica que o arguido patenteia dificilmente será ultrapassada pela sua inclusão em meio prisional, podendo agravar-se significativamente.
            Importa, portanto, e uma vez que se trata da primeira condenação, tentar recuperar a pessoa do arguido, corrigindo o seu comportamento desviante, por outra via, diversa da simples privação da liberdade, sendo in casu de efectuar um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa daquele e no seu comportamento futuro. Juízo este que não pode corresponder, como é óbvio, a uma certeza, “antes a uma esperança fundada de que a socialização em liberdade se consiga realizar”, como se afirma no já citado Ac. do S.T.J. de 02-04-2009.
            Tal via é a da simples censura do facto e ameaça de privação da liberdade, por intermédio da suspensão da execução da pena de prisão aplicada, por um período de 4 anos e 10 meses. Suspensão essa acompanhada de regime de prova, mediante plano individual de readaptação social a elaborar pelo I.R.S., após prévia audiência do arguido, e no prazo de 30 dias - cfr. arts. 50º, nos 1, 2, e 5, 53º e 54º, todos do Código Penal, e 494º, n.º 3, do C.P.P.

Esta opção, na nossa perspectiva, não é obstaculizada por razões de prevenção geral, dado que os bens jurídicos ficarão melhor tutelados com a recuperação do arguido do que com a sua simples inocuização (sempre temporária, pois as penas de prisão têm uma duração certa).

            3. Apreciando

            Não obstante as questões que vem colocadas pelo Ilustre recorrente, afigura-se-nos ocorrer, no presente caso, uma nulidade insanável que compromete o conhecimento do demais.

            Vejamos.

            O arguido, acusado, entres outros, da prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, crime pelo qual veio a sofrer condenação em pena de prisão suspensa na sua execução, devidamente notificado para a 1.ª data de julgamento, faltou – sem que haja justificado a falta -, tendo-se iniciado a audiência, sem a sua presença, por todos os sujeitos/ intervenientes processuais, a não terem considerado indispensável desde o seu inicio – [cf. a acta de fls. 302/306].

            Nessa mesma data, produzida a prova testemunhal, seguiram-se as respectivas alegações, sem que resulte, quer por parte do Colectivo, quer por parte do Ministério Público, quer, finalmente, por parte da Ilustre Defensora oficiosa, haja sido tomada qualquer posição ou iniciativa tendente a garantir a presença do arguido em julgamento.

            Porque o Colectivo entendeu necessária a elaboração de Relatório Social, solicitou-o à entidade competente - que o veio a remeter ao tribunal - pelo que na data designada para a leitura do acórdão, após todos os intervenientes terem sido notificados do respectivo teor e, produzida, ainda, uma alteração da qualificação jurídica dos factos, foi o mesmo publicado.

            Neste encadeado é bom de ver que tudo decorreu sem a presença do arguido, e, verdadeiramente relevante, sem que qualquer das entidades acima referidas, maxime o Tribunal - a quem compete a direcção dos trabalhos – tenha encetado as necessárias e adequadas diligências com vista a garantir a sua comparência.

            Pois bem, o Código de Processo Penal, na versão inicial, ressalvados os casos previstos no artigo 344º, n.ºs 1 e 2, obrigava à presença do arguido em julgamento.

            A partir da alteração introduzida ao Código de Processo Penal pelo D.L. n.º 59/98, de 25.08, o que foi viabilizado pela revisão constitucional de 1997 [cf. artigo 32º, n.º 6 da CRP], assistiu-se ao alargamento dos casos em que passou a ser possível o julgamento do arguido sem a sua presença [cf. artigos 332º, nº 1, 333º, nº 2 e 334º, nºs 1, 2 e 3]. Digamos que ficou clara a intenção legislativa de atenuar o rigor imposto na versão inicial do C.P.P. quanto à obrigatoriedade da presença do arguido em julgamento.

            Com a entrada em vigor do D.L. n.º 320 – C/2000, de 15.12 a obrigatoriedade da presença do arguido em audiência sofreu novo abrandamento. A propósito lê-se na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 41/VIII Atendendo ao facto de uma das principais causas da morosidade processual residir nos sucessivos adiamentos das audiências de julgamento por falta de comparência do arguido, limitam-se os casos de adiamento da audiência em virtude dessa falta, nomeadamente quando aquele foi regularmente notificado.

            Com efeito, a posição do arguido no processo penal é protegida pelo principio da presunção de inocência, prevista no n.º 2 do artº 32º da Constituição da República Portuguesa, que surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo, o qual implica a absolvição do arguido no caso do juiz não ter a certeza sobre a prática dos factos que subjazem à acusação.

            Se o arguido já beneficia deste regime processual especial, não pode permitir-se a sua total desresponsabilização em relação ao andamento do processo, razão que se possibilita, por um lado, a introdução da modalidade de notificação por via postal simples … e, por outro lado permite que o tribunal pondere a necessidade da presença do arguido em audiência, só a podendo adiar nos casos em que aquele tenha sido regularmente notificado da mesma e a presença desde o início da audiência se afigure indispensável para a descoberta da verdade material.

            Se o tribunal considerar que a presença do arguido desde o início da audiência não é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material … a audiência não é adiada …”

            O artigo 32º, nº 1 da CRP estabelece que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa incluindo o recurso, especificando o n.º 5 que o mesmo tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório. Contudo, o seu n.º 6 dispõe que a lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento.

            Foi, assim, na sequência da revisão constitucional de 1997, como atrás referido, que o legislador ordinário introduziu o quadro, ainda vigente, e que representou um abrandamento das exigências quanto à obrigatoriedade da presença do arguido em julgamento.

            O artigo 332º do C.P.P., no seu n.º 1, continua a proclamar tal obrigatoriedade, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 333º e nos nºs 1 e 2 do artigo 334º.

            Deixando de lado os casos especiais do artigo 334º, sem relevância na situação em apreço, detenhamo-nos, então, no regime consagrado no artigo 333º, sob a epígrafe “Falta e julgamento na ausência do arguido notificado para a audiência”.

            Reza assim:

            1. Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência, e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência.

            2. Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido, ou se a falta do arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos n.ºs 2 a 4 do artigo 117º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes …, aplicando-se sempre que necessário o disposto no nº 6 do artigo 117º.

            3. No caso referido no número anterior, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência e, se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do nº 2 do artigo 312º.

            ….

            6. É correspondentemente aplicável o disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 116º, no artigo 254º …”[destaques nossos].

            Sendo este o quadro, o que urge questionar é se poderia o Tribunal ter realizado a audiência de julgamento, até ao respectivo encerramento, na ausência do arguido, sem que alguma vez houvesse adoptado as providências adequadas a garantir a sua comparência?

            Com o devido respeito, entende-se que não!

            É que a não imprescindibilidade do arguido para a descoberta da verdade material desde o início do julgamento constitui realidade distinta da prescindibilidade da sua presença no julgamento.

            Recorde-se que a regra é exactamente a da obrigatoriedade da presença do arguido em audiência e que o encerramento da discussão da causa apenas ocorre depois das últimas declarações deste – [cf. artigos 332º, n.º 1 e 361º, n.ºs 1 e 2 do C.P.P.].

            O que é que sucede se o Tribunal, tendo iniciado o julgamento sem a presença do arguido, por não a ter considerado imprescindível, desde o início, para a descoberta da verdade material, o encerra, após produzida a prova sem que nunca tenha tomado as medidas tendentes a garantir a sua comparência?

            A tal respeito, lê-se no acórdão do STJ de 24.10.2007, proferido no processo n.º 07P3486, disponível, à data, em http://www.dgsi.pt/jstj: Assim, dando o tribunal inicio à audiência deveria ter tomado as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência, uma vez que como bem assinala a recorrente, “a realização da audiência nos sobreditos termos contende com o exercício pleno do direito de defesa da arguida e principio da procura da verdade material que se impõe ao julgador”.

            Por outro lado, há que considerar a relevância dos princípios da oralidade e da imediação na audiência do julgamento.

            Desde o momento em que – sobretudo por efeito do influxo das ideias de prevenção especial – se reconheceu a primacial importância da consideração da personalidade do arguido no processo penal, não mais se podia duvidar da absoluta prevalência a conferir aos princípios da oralidade e da imediação.

            Só estes princípios com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais concretamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.” – [cf. em idêntico sentido o acórdão do STJ de 02.05.2007 [proc. n.º 07P1018].

            Donde, concluímos que ao ter-se realizado a audiência sem a presença do arguido – cujo paradeiro era conhecido nos autos -, sem que hajam sido adoptadas as medidas necessárias e legalmente impostas para garantir a sua comparência ocorre a nulidade insanável contemplada na al. c) do artigo 119º do CPP [que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento até ao trânsito em julgado da decisão final, independentemente de ter, ou não, sido invocada – artigo 119º e 410º, n.º 3 do CPP] com as consequências previstas no artigo 122º, nº 1 do mesmo diploma legal, ou seja a invalidade do acto praticado, bem como dos do mesmo dependentes.

           

            Não podemos terminar sem deixar expresso que se o princípio vale para todos os casos, na situação em apreço impunha-se, de uma forma reforçada, que o Tribunal tudo tivesse feito – independentemente da posição dos sujeitos/intervenientes processuais – com vista a garantir a presença do arguido em julgamento.

            Com efeito, sem olvidar a gravidade dos factos em causa – estamos a falar, além do mais, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada -, contém os autos - como o Colectivo, certamente, não ignorará, mas, para nós incompreensivelmente, resulta haver desvalorizado - elementos que permitem, de modo sério, questionar do grau de imputabilidade do arguido.

 Basta atentar em pontos concretos do Relatório Social, realizado a solicitação do Tribunal [cf. fls. 311 a 315] e, bem assim, nos “escritos” incorporados a fls. 317 a 319 do processo para, de forma responsável, equacionar tal eventualidade, cuja resposta estando, embora, em princípio, subtraída à livre apreciação dos julgadores pode e hipoteticamente deve ser pelos mesmos viabilizada, despoletando, para tanto, o adequado procedimento.

Mais uma razão a justificar o empenho do Tribunal no sentido de tudo fazer com vista a garantir a comparência do arguido no julgamento!

Mostra-se, pois, prejudicado o conhecimento de todas as questões suscitadas pelo Ilustre recorrente.

III. Decisão

Nos termos expostos, acordam os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar verificada a nulidade prevista no artigo 119º, al. c) do CPP e, em consequência, declarar nula a audiência de julgamento, com a invalidade de todos os actos subsequentes, onde se inclui o acórdão recorrido, determinando o prosseguimento do processo com a realização de novo julgamento.

Sem tributação

Maria José Nogueira (Relatora)

Isabel Valongo


[1] “Código Penal”, 1996, v. II, p. 15.
[2] “Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena”, p. 67.
[3] “Problemas Fundamentais de Direito Penal”, p. 296.
[4] “Tentativa e Dolo Eventual”, p. 21.
[5] “Jornadas de Direito Criminal”, p. 161.
[6] Obra citada, p. 84.
[7] B.M.J. nº 358, p. 260.
[8] B.M.J. nº 445, p. 123.
[9] B.M.J. nº 495, p. 100.
[10] Obra citada, p. 67.
[11] C.J., 1983, IV, p. 68.
[12] “Comentários ao Código Penal Brasileiro”, V, p. 33.
[13] “Código Penal Português Anotado”, 6ª ed., p. 355.
[14] “Direito Penal, Parte Especial - Os Crimes Contra as Pessoas”, p. 65.
[15] B.M.J. nº 368, p. 312.
[16] C.J.S.T.J., XIV, t. 2º, p. 244.
[17] Proferido no processo nº 1127/04 - 5ª.
[18] Proferido no processo nº 08P3277, disponível nas bases de dados do I.T.I.J. na internet.
[19] “Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial”, T. I, pp. 38 e 39.
[20] “Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial”, T. I, p. 37.
[21] Citado por Simas Santos e Leal-Henriques, in “Jurisprudência Penal”, Rei dos Livros, 1995, p. 508.
[22] Citado por Simas Santos e Leal-Henriques, in “Jurisprudência Penal”, Rei dos Livros, 1995, p. 355.
[23] Teresa Serra, ob. cit., p. 69.
[24] Obra citada, p. 84
[25] Em parecer de 1988, citado por Teresa Serra, na obra citada, p. 85.
[26] Obra citada, pp. 75 e ss.
[27] Proferido no processo nº 08P3277, acima citado.
[28] Proferido no processo nº 283/05.0GAOHP.C2, disponível nas bases de dados do I.T.I.J. na internet.
[29] “Unidade e Pluralidade de Infracções”, p. 123.
[30] “Sumários”, 1976, p. 118.
[31] “Direito Criminal”, II, p. 200.
[32] Eduardo Correia, “Direito Criminal”, II, p. 202.
[33] A.J. nº 15/16, proc. nº 41315, também citado por Simas Santos e Leal-Henriques, in “Jurisprudência Penal”, Rei dos Livros, 1995, p. 506.