Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
830/12.0TBCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: CONTRATO DE UTILIZAÇÃO DE LOJA
CONTRATO ATÍPICO
MEIOS POSSESSÓRIOS
Data do Acordão: 11/13/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE IDANHA-A-NOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1037º Nº2, 1314º, 1315º E 1277 DO CC E 393º DO CPC
Sumário: I – Ainda que não esteja em causa um verdadeiro e típico contrato de arrendamento e sim um contrato atípico e inominado, o lojista ou utilizador de loja em centro comercial que lhe foi cedida por “contrato de utilização de loja” – à semelhança do que acontece com o locatário em contrato de arrendamento – pode, durante a vigência do contrato, recorrer aos meios possessórios, mesmo contra o cedente, para defender o seu direito à ocupação e utilização da loja cujo gozo lhe foi cedido.
II – Todavia, uma vez cessado o contrato – com a consequente extinção do direito à ocupação e utilização da loja – e deixando de ser titular daquela posição contratual, o utilizador da loja, que continua a ocupá-la por ter incumprido o dever de a restituir, deixa de ter qualquer “posse” ou direito que possa defender através dos meios possessórios e, designadamente, através de um procedimento cautelar de restituição de posse.

III – Ainda que seja ilícita a conduta do cedente que, por acção directa e sem verificação dos pressupostos de que dependia a sua licitude, reocupa a loja – que lhe deveria ter sido entregue na data da cessação do contrato – e muda as respectivas fechaduras, não haverá lugar à sua restituição ao utilizador que, por ter cessado o contrato do qual decorria o seu direito, já não tinha qualquer título legítimo para a sua ocupação/utilização.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A..., residente na Rua ...Proença-a-Velha veio instaurar procedimento cautelar não especificado contra B... Supermercados, Ldª, com sede na ...Idanha-a-Nova, alegando, em suma, que:

É empresária em nome individual e dedica-se ao comércio a retalho de artigos de papelaria, revistas e jornais revistas, tabacos e produtos similares e conexos, exercendo ainda a actividade mediação dos jogos sociais do estado, através do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, sendo o agente n.º x...; exerce essa actividade numa loja situada no “Centro Comercial” “ C...” sito na ...em Idanha-a-Nova, sendo que a instalação do seu estabelecimento comercial nessa loja e a utilização desse espaço comercial foi-lhe facultada por contrato de utilizadora de loja, celebrado em 01/06/2009, entre a Requerente e a Requerida; no dia 27/03/2012, a Requerente recebeu uma comunicação da Requerida a denunciar o referido contrato e, não obstante a estranheza que lhe causou essa decisão, iniciou diligências com vista a transferir o seu estabelecimento para outro local; no decurso dessas diligências, veio a tomar conhecimento que a intenção da Requerida é a de passar a explorar em nome próprio, ou permitir a outrem a exploração, um estabelecimento comercial do mesmo ramo na loja que ainda é ocupada pela Requerente, de tal forma que o Departamento de Jogos da Santa Casa não aceitou a alteração do local que a Requerente havia solicitado (o que apenas se compreende por já ter havido contactos no sentido de alguém continuar a exercer a mediação dos Jogos Sociais do Estado no mesmo local onde a Requerente o vinha fazendo); assim, a denúncia efectuada pela Requerida não teve por objectivo a recuperação da loja cedida à Requerente, mas sim a usurpação do estabelecimento a esta pertencente, ou, pelo menos, dos seus elementos mais valiosos, já que a actividade de mediação daqueles jogos representa cerca de 50% do seu volume de negócios e constitui mais de 60% do seu lucro liquido; a denúncia efectuada pela Requerida constitui, pois, um acto violador da leal concorrência e da boa fé, que, consubstanciando abuso de direito, é um acto nulo; assim, é justo e fundado o receio de perda ou destruição de parte significativa do seu estabelecimento comercial, já que, ainda que o desloque para outro local, ficará amputado de um dos seus elementos mais valiosos (a mediação dos Jogos Sociais do Estado), o que, somado à circunstância de a Requerida passar a exercer ali a mesma actividade, implica a perda quase total da clientela e aviamento do seu estabelecimento e a perda quase total dos rendimentos da Requerente.

Com estes fundamentos, pedia que, sem citação prévia da Requerida, fosse esta notificada e advertida para se abster da prática de todos e quaisquer actos que possam prejudicar ou dificultar o normal funcionamento do estabelecimento comercial da Requerente instalado na Loja n.º 5” no “Centro Comercial” “ C...” sito na ...em Idanha-a-Nova, autorizando-se a Requerente, ou pessoa da sua confiança, a praticar todos os actos relativos a uma gestão e funcionamentos normais daquele estabelecimento comercial.

Posteriormente, a Requerente veio requerer a convolação do procedimento cautelar comum em procedimento cautelar de restituição provisória de posse, reafirmando o que já havia alegado e alegando ainda que, no dia 01/06/2012, o legal representante da Requerida trocou a fechadura da porta de acesso ao estabelecimento, impedindo a Requerente de aí entrar.

Assim, alegando que a providência inicialmente requerida perdeu a sua razão de ser, pois, tendo sido esbulhada do seu estabelecimento, já não é possível manter a Requerente na sua posse, pede que seja ordenada a restituição provisória da posse do estabelecimento comercial, ordenando-se ao legal representante da Requerida que entregue à Requerente as chaves da porta de acesso ao estabelecimento e que se abstenha da prática de qualquer acto turbativo do seu normal e regular funcionamento.

Depois de ter sido dada oportunidade à Requerente de se pronunciar sobre a questão (inexistência dos requisitos legais de posse e esbulho), foi proferido despacho que indeferiu liminarmente o procedimento cautelar.

Inconformada com essa decisão, a Requerente veio interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

1ª - A douta sentença recorrida padece, por um lado de erro de raciocínio, que determinou uma errada subsunção dos factos ao direito, bem como, por outro, viola, directamente, pelo menos, o disposto no artigo 1.º do CPC e no 336.º, 1 do C. Civil.

Pois,

2ª - Na douta sentença recorrida, ter-se-ão confundido os conceitos de "loja" e "estabelecimento comercial", tratando estas duas realidades, distintas entre si, uma vezes, como se estivéssemos perante um único conceito ou realidade, referindo-se indiferenciadamente a uma ou a outra e outras vezes tratando-as como realidades distintas, como efectivamente são.

3ª - Só assim se compreende que se possa ter afirmado na douta sentença: "É inquestionável que a requerente, por via do contrato celebrado com a requerida - apodado de contrato de utilizadora de loja - entrou na posse do estabelecimento que manteve."

Para logo de seguida afirmar:

"Todavia, a titulação de tal posse vislumbra-se finda a partir de 1 de Junho de 2012, data em que cessou o contrato celebrado entre as partes ... "

E mais à frente se considerar que:

"De tal decorre, pois, a obrigação da requerente em permitir, a partir de 1 de Junho, que a posse da loja onde se encontra ínsito o estabelecimento regresse à esfera da requerida."

E ainda mais à frente:

Na verdade, normativamente, vale dizer que a requerida retomou a posse da loja, devidamente titulada pelo próprio contrato celebrado com a requerente e daí, passou não só a verificar-se melhor posse, ao abrigo do disposto no artigo 1278.º, do Código Civil, como também não se vislumbra qualquer esbulho nos termos alegado pela requerente"

4ª Quando é inegável que com a celebração do contrato em causa nos presentes autos – "Contrato de Utilizadora de Loja" – a recorrente não entrou na posse de qualquer estabelecimento comercial, mas unicamente, passou a ser detentora de um "espaço para loja" .. , (cláusula 2.8 do contrato).

5ª - A posse do estabelecimento comercial advém a requerente com instalação de todos os restantes elementos necessários ao seu funcionamento e posterior abertura ao público, não se confundindo assim, o espaço onde se instala o estabelecimento com o próprio estabelecimento, o que não foi considerado na douta sentença recorrida.

6ª - Sendo que com a presente providência a Requerente não pretende apenas a restituição do referido espaço, mas principalmente e sobretudo a restituição do estabelecimento que aí instalou e do respectivo recheio.

7ª - Estabelecimento que, conforme foi expressamente alegado, a recorrente, veio explorando ininterruptamente, sem oposição de quem quer que seja, à vista de todas as pessoas, incluindo o legal representante da Requerida, na convicção de estar a usar de direito próprio, o que manifestamente que constitui alegação do requisito da posse, enquanto poder de facto (corpus) que a requerente exerce (ou exerceu até ao esbulho) sobre o seu estabelecimento e na convicção de exercer tal poder como titular um direito real (de propriedade) sobre esse estabelecimento (animus).

8ª - Sendo que a requerida não pode invocar, com base na denúncia do contrato em causa nos presentes autos, que passou a ter a posse do estabelecimento pertencente à recorrente, pelo que ao contrário do afirmado na douta sentença, a requerida não só não tem melhor posse, como não tem mesmo qualquer posse sobre o estabelecimento comercial da recorrente que é o objecto da presente providência, pelo que é descabido a chamada à colação do disposto no artigo 1278.° do C. Civil, tal como se fez na douta sentença

9ª - Assim, até à luz da jurisprudência e doutrina citadas na própria sentença, é manifesto que está verificado o requisito da posse, exigido para o decretamento da requerida providência de restituição da posse

10ª - A douta sentença recorrida ao considerar de maneira diversa fez uma errada subsunção dos factos ao direito.

11ª - Por outro lado, a douta sentença recorrida, ao considerar que: na alegada actuação da requerida, com troca de fechadura de porta não se vislumbra esbulho, mas antes legitimidade devidamente titulada.” violou senão outras disposições legais, pelo menos o artigo 1.º do CPC., e o artigo 336.º, n.º 1 do C. Civil

12ª - Pois, manifestamente, a douta sentença recorrida ao considerar, que o acto de troca de fechaduras levado a cabo pela requerida, sem qualquer tipo de validação judicial, é um acto "de legitimidade devidamente titulada", está, claramente, a validar um acto de justiça privada, que como tal, e nos termos das disposições acabadas de referir constitui um ato ilícito.

13ª - Pelo que, ao invés do decidido, se impõe que os actos praticados pela requerida, a serem dados como provados, sejam qualificados como de esbulho, enquanto acto caracterizado pela privação, total ou parcial, do poder do possuidor no exercício dos actos correspondentes ao direito real que se traduzem na retenção, fruição do objecto da coisa ou da possibilidade de o continuar a exercer,

14ª - Sendo ainda certo que (apesar de tal requisito não ter sido colocado em crise na douta sentença recorrida) tal esbulho foi praticado com violência na medida em que a violência relevante, para a questão da restituição provisória da posse, é a que exercida sobre as pessoas, como ainda a que embora exercida sobre as coisas, repercute-se nas pessoas em termos de intimidá-las ou coagi-las.

15ª - A Requerente foi, caso resultem provados os factos por si alegados, como seguramente serão, privada da posse do seu estabelecimento à força, foi esbulhada com violência - mostrando-se, pois, verificados todos os requisitos da providência cautelar de restituição provisória da posse.

Com estes fundamentos, conclui pedindo que seja revogada a decisão recorrida e substituída por acórdão que tenha por suficientemente indiciados verificados os requisitos da posse, esbulho e violência de que depende o decretamento da providência cautelar de restituição provisória da posse e ordene o prosseguimento dos termos subsequentes previstos na lei, de forma a que, provada que seja a matéria alegada, se venha a julgar procedente o presente procedimento e, em consequência a ordenar a restituição provisória à requerente da posse do estabelecimento comercial devidamente identificado no requerimento inicial e respectivos bens, nomeadamente, ordenando-se ao legal representante da Requerida a recolocação de todos os artigos, equipamentos, mobiliário e demais bens do estabelecimento da Requerente no local e estado em que se encontravam e a entrega à Requerente das chaves da fechadura que foi por ele colocada, em substituição da existente, na porta de acesso ao estabelecimento comercial, mais se condenando, acessoriamente e para o caso de incumprimento da restituição, que como se espera virá a ser ordenada, a requerida no pagamento de sanção pecuniária compulsória de montante não inferior a 300,00 € (trezentos euros) por cada dia de atraso na restituição do estabelecimento à Requerente


/////

II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se estão ou não verificados os pressupostos legais da providência cautelar de restituição provisória da posse que é requerida pela Apelante.


/////

III.

Apreciemos, pois, o objecto do recurso.

Como se refere na decisão recorrida e como decorre do disposto no art. 393º do Código de Processo Civil o procedimento cautelar de restituição provisória de posse pressupõe a existência de posse, bem como o esbulho dessa posse efectuado com violência, importando notar que, ainda que não exista esbulho violento, sempre o possuidor que seja esbulhado ou perturbado no exercício do seu direito poderá recorrer ao procedimento cautelar comum para obter uma providência que assegure, efectivamente, a sua posse (cfr. art. 395º).

A decisão recorrida considerou que tais requisitos não se verificam, na medida em que, ao trocar a fechadura da porta, a Requerida não terá praticado um qualquer acto de esbulho, limitando-se a retomar a posse da loja com a legitimidade que lhe advinha do próprio contrato e na medida em que, por força da respectiva denúncia, a Requerente já não beneficiava de título que lhe permitisse ocupar esse espaço.

Considera, no entanto, a Apelante que a decisão recorrida confundiu os conceitos de "loja" e "estabelecimento comercial”, sendo que, com a presente providência, a Requerente não pretende apenas a restituição do referido espaço, mas principalmente e sobretudo a restituição do estabelecimento que aí instalou e do respectivo recheio e relativamente ao estabelecimento comercial (que pertence à Apelante) a Requerida nunca poderia invocar, com base na denúncia do contrato em causa nos presentes autos, que passou a ter a sua posse, pelo que ao contrário do afirmado na sentença, a requerida não só não tem melhor posse, como não tem mesmo qualquer posse sobre o estabelecimento comercial da recorrente que é o objecto da presente providência, pelo que é descabido a chamada à colação do disposto no artigo 1278.° do C. Civil, tal como se fez na douta sentença.

É evidente que o estabelecimento comercial é coisa diversa da loja ou espaço onde está instalado e onde funciona, sendo que este espaço ou o direito à respectiva ocupação é apenas um dos vários elementos que compõem o estabelecimento comercial.

Mas, apesar de a Requerente/Apelante pedir a restituição da posse do estabelecimento, parece-nos claro que o que está em causa nos autos não é o estabelecimento como um todo, mas apenas as instalações onde funcionava.

Com efeito, não emerge da factualidade alegada que exista qualquer litígio relativamente aos demais componentes do aludido estabelecimento comercial e, perante os factos alegados, nada indicia ou faz supor que a Requerida tenha pretendido apossar-se do estabelecimento comercial em si, sendo que a retirada dos equipamentos, mobiliários e demais bens daquele local – a que alude a Apelante em requerimento posterior de 28/06/2012 – não terá correspondido a qualquer acto de esbulho, mas à mera aplicação da cláusula 17ª, nº 2, do contrato, sendo que, ao que tudo indica – e nada foi alegado que permita supor o contrário – tais bens serão entregues à Apelante se a mesma se apresentar a reclamá-los.

Importa notar que a Requerente/Apelante pede claramente que, na providência a decretar, seja ordenada a notificação da Requerida para lhe entregar as chaves daquele espaço ou loja e, portanto, parece claro que o que a Apelante pretende é, sobretudo, a restituição daquele espaço e não apenas a restituição do estabelecimento (do qual até já nem fará parte o direito à ocupação daquelas instalações, por ter cessado o contrato que a legitimava).

Resta saber se assiste ou não à Apelante o direito de ser restituída à posse ou detenção que exercia sobre esse espaço.

O direito da Apelante à ocupação daquele espaço/loja (direito que passou a integrar o estabelecimento comercial que aí instalou e passou a explorar) emerge de um contrato que celebrou com a Requerida, denominado por “Contrato de Utilizadora de Loja”.

Como decorre dos seus termos, estará em causa um contrato, por via do qual o titular de um centro comercial cede a outrem (no caso, à Apelante) o direito à ocupação e utilização de um determinado espaço desse centro comercial, com vista à instalação e exploração de um estabelecimento comercial.

A natureza, os objectivos e os serviços ou comodidades que estão associados a esse tipo de contrato determinaram que alguma doutrina e jurisprudência[1] – que nos parece maioritária e à qual aderimos – não considerassem esse contrato como um mero e típico contrato de arrendamento comercial, mas sim como um contrato atípico ou inominado, que, como tal, se regula pelas cláusulas que os outorgantes entenderem fixar – ao abrigo da liberdade contratual que lhe é conferida pelo art. 405º do C.C. – e, quando necessário, pelas regras próprias da figura contratual que lhe esteja mais próxima.  

É indiscutível que o direito da Apelante à ocupação das referidas instalações é um direito de carácter obrigacional – que lhe advinha do contrato acima mencionado – e, portanto, a detenção e poder de facto que sobre elas exercia não corresponde a uma situação de posse em nome próprio, mas sim a uma posse ou detenção em nome de quem lhe cedeu o respectivo gozo.

A verdade é que, ainda que não esteja em causa um verdadeiro possuidor, o legislador reconheceu e concedeu ao locatário a possibilidade de recorrer aos meios possessórios, mesmo contra o locador, para defender o seu direito e para ser mantido ou restituído ao gozo da coisa a que tem direito por via do contrato (art. 1037º, nº 2, do C.C.). E, apesar de o contrato em causa nos autos não dever ser considerado – como acima referimos – um verdadeiro e típico contrato de arrendamento (mas sim um contrato atípico e inominado), o certo é que o direito (e a respectiva obrigação) respeitante ao gozo da coisa que é objecto do contrato são idênticos em ambos os contratos (pois que, em qualquer deles, uma das partes assume a obrigação de ceder à outra o gozo da coisa durante o período de vigência do contrato) e, portanto, não encontramos razões para não conceder à utilizadora da loja – à semelhança do que acontece com o locatário – o direito de recorrer às acções possessórias para defender o seu direito à ocupação e utilização da loja cujo gozo lhe foi cedido.

Mas, não sendo o locador ou o utilizador da loja um verdadeiro possuidor em nome próprio, o recurso às acções possessórias apenas lhe é facultado em função da posição que ocupa no contrato e da qual decorre o direito ao gozo e utilização da coisa.

E a verdade é que a Apelante já não detém tal posição contratual, na medida em que, como emerge dos factos que ela própria alegou, esse contrato já cessou e, portanto, já se extinguiu o direito que dele advinha para a Requerente.

De facto, e como decorre do requerimento inicial e documentos juntos, a Requerida denunciou o contrato – por carta registada com aviso de recepção recebida pela Requerente em 27/03/2012 – para o termo do prazo que estava em curso, ou seja, a partir de 01/06/2012, tendo efectuado essa denúncia em conformidade com a cláusula 16ª do contrato. Por outro lado, as razões aduzidas pela Requerente para invocar a nulidade dessa denúncia – com fundamento em abuso de direito – não têm a menor consistência. Com efeito, e como resulta claramente do contrato, qualquer das partes se poderia opor à renovação do contrato – procedendo à sua denúncia – desde que respeitado o formalismo aí estabelecido e sem dependência de quaisquer outras circunstâncias e, portanto, a Requerida tinha total liberdade para proceder a essa denúncia, ainda que fosse para instalar no local um outro estabelecimento do mesmo ramo. A circunstância – a que alude a Requerente/Apelante – de a Requerida pretende instalar aí um estabelecimento do mesmo ramo e a circunstância de esse facto causar prejuízos à Requerente e ao seu estabelecimento (designadamente por afectar ou privar a Requerente da actividade de mediação dos Jogos Sociais do Estado que vinha exercendo) é circunstância que, ainda que, eventualmente, seja ilícita (e não iremos aqui pronunciar-nos sobre essa questão), apenas implicaria que a Requerida fosse impedida de exercer essa actividade ou que ficasse obrigada a indemnizar a Requerente pelos prejuízos daí emergentes, mas nunca seria susceptível de obstar à denúncia do contrato por parte da Requerida e nunca permitiria considerar que essa denúncia configurava um acto nulo por corresponder a um abuso de direito.

É certo, pois, que, via da denúncia efectuada pela Requerida, o contrato cessou no dia 01/06/2012, cessando também o direito da Requerente à ocupação daquelas instalações.

Assim, e porque – não obstante as alusões feitas a esse facto – não se detecta na alegação factual contida no requerimento inicial qualquer situação que pudesse configurar um acto de usurpação ou apropriação do estabelecimento comercial da Apelante, a manutenção da Requerente na posse ou detenção daquelas instalações a partir daquela data (como havia sido pedido inicialmente) não poderia proceder.

Sucede que, entretanto – mais concretamente em 01/06/2012, segundo alega a Apelante – a Requerida, por intermédio do seu legal representante, trocou a fechadura da porta de acesso àquelas instalações, impedindo a Requerente de aí entrar, razão pela qual o procedimento cautelar veio a ser convolado, pedindo-se agora a restituição provisória da posse.

É evidente que, perante a cessação do contrato, a Requerente/Apelante estava obrigada a entregar, nessa mesma data, o espaço que vinha ocupando, como decorre claramente da cláusula 17ª do contrato e, perante o não cumprimento imediato dessa obrigação, a Requerida realizou e assegurou, ela própria, o seu direito, retomando – por via da mudança da fechadura – o gozo do espaço que aquela estava obrigada a entregar-lhe.

Sucede que, como decorre do art. 1º do C.P.C., “a ninguém é lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o seu próprio direito, salvo nos casos e dentro dos limites declarados na lei” e, em conformidade com o preceituado nesta norma, dispõe o art. 336º do C.C. que “é lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, quando a acção directa for indispensável, pela impossibilidade de recorrer de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo”.

A acção directa, cuja licitude se determina pelos limites que estão definidos no citado art. 336º, está especialmente consagrada em diversas disposições legais e, designadamente, para a defesa da posse (art. 1277º do C.C.) e para a defesa da propriedade e outros direitos reais (arts. 1314º e 1315º do mesmo diploma). Mas, em qualquer destes casos, a licitude dessa actuação depende da verificação, em concreto, das circunstâncias que estão enunciadas no citado art. 336º.

Em princípio e de acordo com os factos disponíveis, tais circunstâncias não se verificam no caso sub judice (embora importe esclarecer que a Requerida ainda não foi ouvida e, portanto, teremos que admitir a possibilidade de esta poder vir a alegar factos que conduzam a outra conclusão), já que não existiria qualquer impossibilidade de recorrer aos meios coercivos normais para, em tempo útil, assegurar e evitar a inutilização prática do direito e, portanto, a actuação da Requerida teria sido ilícita, face ao disposto na norma citada.

É certo, porém, que, embora isso não seja referido de forma clara e expressa, a possibilidade de recorrer à acção directa encontra algum apoio no contrato e, mais concretamente, na cláusula 17ª, nº 2.

A verdade é que, ainda que se considere que essa cláusula contratual é nula (como se considerou no Acórdão do STJ de 30/06/2009, processo nº 1398/03.4TVLSB.S1[2]) e que, como tal, a acção directa era ilícita por não se verificarem os pressupostos legalmente exigidos, daí não decorre – como pretende a Apelante – que deva ser reposta a situação anterior, com a restituição das referidas instalações à Requerente.

De facto, apesar de a acção directa configurar, sempre que não se verifiquem aquelas circunstâncias, um acto ilícito – que dará origem à obrigação de indemnizar os danos que, eventualmente, decorram desse facto – não fará sentido eliminar os efeitos desse acto através da reposição da situação anterior, nos casos em que esta situação também era ilícita. E era isso que acontecia no caso em análise já que, tendo cessado o contrato com base no qual a Apelante ocupava aquelas instalações, esta já havia incumprido a obrigação que sobre ela impendia de proceder à restituição/devolução dessas instalações e, por conseguinte, a sua detenção já não tinha título legítimo e, como tal, também era ilícita.

Não exercendo sobre as referidas instalações uma posse em nome próprio e não sendo já titular da posição contratual que lhe permitiria recorrer aos meios possessórios para defender o seu direito – na medida em que o contrato já havia cessado –, a Apelante não tinha já qualquer “posse” que pudesse defender através daqueles meios e, mais concretamente, através de um procedimento cautelar de restituição provisória de posse.

Concluimos, pois, em face do exposto, que não estão verificados os pressupostos de que depende a restituição à Apelante da posse ou detenção das referidas instalações.

Mas, não sendo possível – como se referiu – restituir à Apelante a posse ou detenção daquelas instalações, haverá fundamento para a eventual restituição da posse do estabelecimento comercial, ainda que sem aquelas instalações?

Parece-nos que não.

E parece-nos que não porque, na realidade, não decorre da matéria de facto alegada que exista qualquer esbulho relativamente a esse estabelecimento comercial (do qual – reafirma-se – já não fazia parte o direito à ocupação daquelas instalações), sendo para nós evidente que a Requerida não pretendeu apossar-se desse estabelecimento ou perturbar a posse que a Requerente sobre ele vinha exercendo, limitando-se a reocupar as instalações onde ainda se encontravam – porque a Apelante ainda não os havia retirado, como devia – os bens e equipamentos que fazem parte daquele estabelecimento. Mas, ao que tudo indica – e como resulta, aliás, do contrato – a Requerida ter-se-á limitado a guardar esses bens e nada foi alegado que permita supor que os mesmos não sejam entregues à Apelante, logo que a mesma se apresente a levantá-los.

Por outro lado, a suposta apropriação por parte da Requerida de um dos elementos do estabelecimento comercial (os Jogos da Santa Casa) não poderá assim ser considerada. Com efeito, ainda que a Requerida pretenda exercer a actividade de mediação desses jogos e ainda que esse facto impeça a Apelante de exercer essa mesma actividade, parece-nos claro que esses factos – ainda que, eventualmente, sejam ilícitos e ainda que, com base neles, a Apelante possa impedir que a Requerida exerça essa actividade ou possa exigir indemnização pelos prejuízos daí emergentes – não correspondem a um acto de esbulho ou perturbação da posse da Requerente relativamente ao seu estabelecimento que possa ser eliminado através de um procedimento cautelar de restituição de posse (até porque, como decorre da matéria de facto alegada, o facto de a Apelante ficar privada dessa actividade não decorre directamente de qualquer acto da Requerida, mas sim da decisão da Santa Casa da Misericórdia que entendeu não autorizar a alteração do local que havia sido solicitada pela Apelante).

Importa, pois, concluir, em face do exposto, que não estão reunidos os pressupostos de que dependia a providência cautelar que foi solicitada, o que conduz, naturalmente, à confirmação da decisão recorrida.   

  


******

SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 713º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – Ainda que não esteja em causa um verdadeiro e típico contrato de arrendamento e sim um contrato atípico e inominado, o lojista ou utilizador de loja em centro comercial que lhe foi cedida por “contrato de utilização de loja” – à semelhança do que acontece com o locatário em contrato de arrendamento – pode, durante a vigência do contrato, recorrer aos meios possessórios, mesmo contra o cedente, para defender o seu direito à ocupação e utilização da loja cujo gozo lhe foi cedido.

II – Todavia, uma vez cessado o contrato – com a consequente extinção do direito à ocupação e utilização da loja – e deixando de ser titular daquela posição contratual, o utilizador da loja, que continua a ocupá-la por ter incumprido o dever de a restituir, deixa de ter qualquer “posse” ou direito que possa defender através dos meios possessórios e, designadamente, através de um procedimento cautelar de restituição de posse.

III – Ainda que seja ilícita a conduta do cedente que, por acção directa e sem verificação dos pressupostos de que dependia a sua licitude, reocupa a loja – que lhe deveria ter sido entregue na data da cessação do contrato – e muda as respectivas fechaduras, não haverá lugar à sua restituição ao utilizador que, por ter cessado o contrato do qual decorria o seu direito, já não tinha qualquer título legítimo para a sua ocupação/utilização.


/////

IV.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.



Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Adjuntos: Dr.ª Maria Domingas Simões

                   Dr. Nunes Ribeiro


[1] Veja-se, designadamente, Antunes Varela, in RLJ, Anos 127º, 128º e 129º, págs. 163 e segs., 315 e segs. e 213 e segs., respectivamente, bem como os Acórdãos do STJ de 01/07/2010 e de 30/06/2009, processos nºs 4477/05.0TVLSB.L1.S1 e 1398/03.4TVLSB.S1, respectivamente, disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[2] Disponível em http://www.dgsi.pt.