Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1638/11.6TBACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: CONSUMIDOR.
CONCEITO JURÍDICO
DEFEITOS
RESPONSABILIDADE
VENDEDOR
DIREITOS DO CONSUMIDOR
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – INST. CENTRAL – SEC. CÍVEL – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 3º E 4º DO DL Nº 67/2003, DE 8/04 (NA REDAÇÃO DO DL Nº 84/2008, DE 21/05).
Sumário: I. É ‘consumidor’, mesmo considerando o seu conceito restrito, aquele que destina o bem adquirido predominantemente ao seu “uso pessoal, familiar ou doméstico”, sendo meramente instrumental ou acidental o seu aproveitamento para uso profissional.

II - Apresentando o veículo objecto do contrato de compra e venda falta de conformidade, quer com a descrição que dela foi feita pela vendedora, quer porque não apresentava as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e com os quais o A. razoavelmente contava, tais anomalias presumem-se existentes à data da entrega (cf. art.º 3.º, n.º 2 do DL 67/2003, na redacção do DL 84/2008, de 21 de Maio), sendo a ré vendedora chamada a responder perante o consumidor nos termos do n.º 1 do preceito.

III - O legislador português não estabeleceu, no art.º 4.º do citado diploma, qualquer hierarquia nos direitos que concedeu ao consumidor, tendo colocado a par o direito à reposição da conformidade sem encargos, através da reparação ou substituição, e, bem assim, os direitos à redução do preço ou à resolução do contrato.

IV - Todavia, avisadamente, estabelecendo embora que o consumidor pode exercer qualquer um dos direitos referidos, não deixou de ressalvar os casos em que tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito nos termos gerais (cf. n.ºs 1 e 5), abuso de direito que funciona aqui como critério limitador daquele exercício.

V - Não actua em abuso de direito o consumidor que depois de ter entregado a viatura para reparação pelo menos 7 vezes, vendo-se confrontado com a subsistência das anomalias, instaura ação contra o vendedor, nela pedindo a resolução do contrato de compra e venda.

Decisão Texto Integral:




I. Relatório

Ainda no 3.º juízo do Tribunal Judicial da extinta comarca de Alcobaça, R... e marido, H..., Residentes na Rua ..., instauraram contra

B...-Automóveis SA.” , e

C... – Instituição Financeira de Crédito, SA”, acção declarativa de condenação, então a seguir a forma ordinária do processo comum, pedindo a final:

“a. fosse resolvido o contrato existente entre os Autores, a 1ª Ré e a 2ª Ré, sendo consequentemente condenadas a procederem à devolução das prestações já pagas, no total de 6.388,56€ (seis mil trezentos e oitenta e oito euros e cinquenta e seis cêntimos), despesas administrativas com o contrato de compra e venda e contrato de crédito, assim como sejam condenados no pagamento dos encargos atinentes à resolução do contrato;

b. se assim não fosse entendido, e em alternativa, a condenação da 1.ª ré a proceder à substituição definitiva do bem (veículo automóvel) por outro de igual categoria com as características descritas em 2. e igual preço aquando da compra (20.250,00€).

c. cumulativamente com a resolução do contrato ou com a substituição do veículo automóvel, a condenação da 1ª Ré a pagar aos Autores indemnização no valor de 31.086,00€ (trinta e um euros e oitenta e seis cêntimos – 15.543,00€ para cada Autor), a título de danos patrimoniais e morais, acrescido de juros à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

d. cumulativamente com a resolução do contrato ou com a substituição do veículo automóvel, a condenação da  2ª Ré a acatar a Excepção de Não Cumprimento do Contrato invocada e, em consequência, a efectuar as diligências devidas para que seja retirada a Comunicação ao Banco de Portugal do incumprimento (inexistente) do pagamento do crédito, bem como, caso seja decidida a resolução do contrato, a comunicar ao BdP essa mesma resolução”.

Correspondendo a convite ao aperfeiçoamento, alegaram, em síntese útil, ter adquirido à 1.ª Ré B.... em Dezembro de 2008, o veículo automóvel usado da marca ..., com a matrícula ... e demais características que descreveram, pelo preço de €20.250,00, acrescendo-lhe as despesas administrativas com a abertura do processo e registo automóvel, cujo valor não podem precisar.

Na ocasião, e por intermédio da mesma ré, os AA contraíram empréstimo junto da ré C..., SA, a qual procedeu ao pagamento directamente à B..., SA dos valores referidos.

Aquando da compra, a 1ª Ré assegurou aos Autores que o veículo estava em óptimas condições de funcionamento, sem qualquer desconformidade, tendo excelente dinâmica, conforto, espaço, com um desempenho extraordinário, “estava como novo”.

Sucede, porém, que logo em Março de 2009 foram pelos AA detectadas anomalias no funcionamento da viatura, que prontamente denunciaram à 1.ª ré, e depois novamente em Abril desse mesmo ano, tendo-se esta prontificado a proceder à respectiva reparação. Sucede, porém, que apesar dos demandantes terem deixado o veículo por diversas vezes e durante diferentes períodos, ora nas oficinas da 1.ª ré, ora, por indicação desta, nas oficinas da Peugeot, em ..., nunca os defeitos detectados e denunciados foram reparados, o que levou a que, por carta datada de 2/12/2012, lhe fosse solicitada a sua substituição, solicitação a que a demandada nunca acedeu, encontrando-se os demandantes privados de veículo desde então.

A descrita situação causou aos demandantes os diversos danos que discriminaram, quer de natureza patrimonial, quer de natureza não patrimonial, cujo ressarcimento reclamaram.

Entendendo que devem ser havidos como consumidores, gozando portanto da protecção legal que a estes é concedida, pugnaram os AA pela caracterização do acordo celebrado com a 2.ª ré como contrato de crédito ao consumo conexo com a compra e venda, em consequência do que opuseram a esta a excepção do não cumprimento, suspendendo o pagamento das prestações. Não obstante, a demandada C... não se absteve de comunicar o alegado incumprimento ao BdP, situação igualmente danosa para os demandantes, devendo ser por isso condenada a reconhecer o bom fundamento da excepção que lhe foi oposta e comunicar ao BdP a inexistência de incumprimento ou, sendo caso disso, a resolução do contrato, tal como peticionado.

Citadas as RR, contestaram em peça autónoma, a B... invocando a seu favor a excepção da caducidade do direito dos AA a exigirem quaisquer medidas reparadoras, e designadamente a substituição do veículo, uma vez que, conforme resulta de confissão dos próprios, não deverão ser tidos como consumidores, sendo assim aplicável o regime da venda de coisa defeituosa contido no CC. De todo o modo, mesmo considerando ser aplicável a LDC, conforme pretendem, sempre o direito que pretendem exercer teria prescrito, dado que, tratando-se de uma viatura usada, foi acordado como prazo de garantia um ano, o qual se mostrava largamente ultrapassado à data em que os AA reclamaram à contestante pretender a substituição da viatura.

Em sede de impugnação, alegaram que a viatura vendida era usada e que das anomalias de funcionamento alegadamente reclamadas pelos demandantes, reconhecem apenas as constantes do documento que juntou, sendo que todas as deficiências ali referidas foram por si prontamente reparadas. No que se reporta ao facto do veículo não “ter força na aceleração” e “engasgar quando acelerado”, trata-se de ocorrências verificadas apenas depois dos demandantes terem feito mau uso do mesmo, abastecendo-o com gasolina quando se tratava de viatura a diesel pelo que, a serem reais tais queixas, têm origem em comportamento culposo dos próprios, nenhuma responsabilidade podendo ser assacada à contestante que deverá ser absolvida do pedido.

A C..., por seu turno, veio arguir a nulidade da citação efectuada, por não acompanhada dos documentos referenciados pelos AA na petição inicial, invocando, também ela, a excepção da caducidade em termos em tudo idênticos. Mais defendeu que o contrato celebrado com os AA não pode ser caracterizado como contrato de crédito ao consumo, por não deterem aqueles a qualidade de consumidores, sendo certo que em nenhuma circunstância seria de aplicar o regime do art.º 18.º do DL 133/2009, uma vez que foi celebrado em data anterior à da entrada em vigor deste diploma, sendo aplicável o DL 359/91, de 21/09, no qual o legislador optou claramente pela autonomia dos contratos. Deste modo, verificado o incumprimento, era sua obrigação legal comunicar o facto ao BdP, conforme fez.

Pronunciou-se finalmente pela inoponibilidade da excepção prevista no art.º 428.º do CC, pugnando pela sua absolvição.

Os AA replicaram, defendendo a improcedência das excepções invocadas.

Teve lugar a audiência prévia, com prolação de despacho saneador, fixação do objecto de litígio e enunciação dos temas da prova.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento em cujo termo foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção:

“1. Declarou resolvidos os contratos celebrados entre os Autores, 1ª Ré e 2ª Ré, sendo consequências dessa resolução a obrigação pelos autores de entrega do veículo à 1.ª Ré, a qual já está cumprida, da 1.ª ré de entrega aos autores do remanescente do preço recebido, deduzida da quantia de €6.388,56, ou seja de entrega àqueles da quantia de €13.861,44, a qual depois os autores deverão entregar à 2.ª ré, em face da resolução do contrato com esta;

2. Condenou a 1.ª ré no pagamento aos autores, a título de danos patrimoniais, da quantia de €1.086,00, acrescida de juros à taxa legal desde a sua citação até efectivo e integral pagamento, e a título de danos não patrimoniais, a quantia de €4.000,00, acrescida de juros à taxa legal, desde a prolação da presente sentença até efectivo e integral pagamento.

3. Condenou a 2.ª ré a acatar a excepção de não cumprimento do contrato invocada pelos autores e, em consequência, a efectuar as diligências devidas para que seja retirada a comunicação ao Banco de Portugal do incumprimento (inexistente) do pagamento do crédito, bem como a comunicar ao Banco de Portugal a resolução do contrato de crédito ao consumo que celebrou com aqueles;

4. Absolveu, no mais, as rés do peticionado pelos autores.

Inconformada, apelou a ré B..., SA e, tendo desenvolvido em sede de alegações as razões da sua discordância com o decidido, rematou-as a final com as seguintes conclusões:

...

Com tais fundamentos pretendem seja dado provimento ao recurso e a recorrente absolvida dos pedidos formulados.

Contra alegaram os AA, pugnando pela manutenção do decidido.

Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, as questões submetidas à apreciação deste Tribunal são as seguintes:
i. Determinar se, conforme considerou a decisão apelada, a relação estabelecida entre os AA e a apelante é uma relação de consumo;
ii. Decidir se caducou o direito dos AA à decretada resolução do contrato;
iii. Indagar se os AA actuaram em abuso de direito.

II. Fundamentação

De facto

São os seguintes os factos a considerar, tal como constam da decisão recorrida:

                ...

De Direito

Da qualidade de consumidor

A apelante, conforme enunciado, questiona em sede de recurso a qualificação dos AA como consumidores feita na decisão apelada, sustentando, como já fizera em sede de contestação, que a relação estabelecida não é uma relação de consumo, estando antes submetida ao regime da venda de coisa defeituosa contido no CC. Porque a resolução das questões suscitadas no recurso demanda como primeira operação a determinação do regime aplicável impõe-se, pois, determinar se os AA devem ou não ser havidos como consumidores.

O DL 67/2003, de 8 de Abril, que transpôs para o ordenamento jurídico interno a Directiva n.º 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, veio a ser alterado pelo DL 84/2008, de 21 de Maio (que deu também nova redacção aos art.ºs 4.º e 12.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho), definindo como consumidores, em termos aliás coincidentes com o art.º 2.º da referida Lei 24/96, como “aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do art.º 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho” (cf. art.º 1.º-B, al. a).

Face à definição legal, para que se estabeleça uma relação de consumo é necessário que a uma pessoa[1] sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos outros direitos que sejam destinados a uso não profissional. A qualificação do sujeito como consumidor depende assim, essencialmente, da finalidade do acto de consumo, detendo tal qualidade aquele “que adquire um bem ou serviço para uso privado -uso pessoal, familiar ou doméstico na fórmula da al. a) do art.º 2º da Convenção de Viena de 1980-, de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares, mas não já aquele que obtém ou utiliza bens e serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa”[2].

A Mm.ª juíza entendeu conceder aos aqui AA a protecção reservada aos consumidores, porquanto, reconhecendo embora que afectavam o veículo adquirido com regularidade ao exercício das respectivas profissões, ainda assim “(…) quanto ao negócio de compra e venda e mútuo celebrados, actuaram fora do âmbito das respectivas profissões, não se situando o objecto dos negócios no domínio da sua esfera de conhecimentos (a autora é advogada e o marido formador no âmbito das artes marciais), nem no âmbito das suas profissões, sendo tão desconhecedores e vulneráveis como quaisquer outros consumidores”.

O regime de protecção do consumidor parte da constatação da existência de um flagrante desequilíbrio entre aquele que compra bens ou a quem são prestados serviços, e aquele que profissionalmente os vende ou presta, visando a correcção dessa assimetria. A transcrita fundamentação elege assim como critério a fragilidade e impreparação do adquirente do bem quando em confronto com o experiente e conhecedor vendedor para concluir que os AA carecem da protecção conferida ao consumidor[3]. Ora, sem questionar a conclusão, afigura-se ser pelo menos discutível que face à lei vigente tal critério deva ser levado tão longe que conduza a conceder protecção àquele que adquiriu o bem como uma finalidade exclusivamente profissional, ainda que desinformado e em situação de inferioridade face ao vendedor, o que nos introduz naquela que é verdadeiramente a questão a resolver, ou seja, saber se a aplicação da LDC e do regime legal da venda de bens de consumo pressupõe o uso exclusivamente privado do bem adquirido ou se é ainda apto a receber a tutela da LDC aquele que adquire bens que destina a fins simultaneamente profissionais e não profissionais[4].

Ciente de que a questão central que se coloca no direito do consumo é precisamente a delimitação do conceito de consumidor, nos casos em que o bem é adquirido com uma finalidade predominantemente (ainda que não exclusivamente) pessoal, afigura-se que razões de equidade intercedem no sentido de considerar tais relações como relações de consumo, mesmo considerando a noção restrita a que acima se fez referência, uma vez que o bem foi adquirido, também aqui, para “uso pessoal, familiar ou doméstico”, sendo meramente instrumental ou acidental o seu aproveitamento para uso profissional[5]. Assinale-se que tal interpretação encontra ainda apoio na letra da lei, uma vez que nela não se diz que a destinação tem que ser absoluta e exclusivamente não profissional, cumprindo-se de outro lado a finalidade do regime de conferir protecção ao elo mais fraco da relação. Entendimento diverso equivaleria a excluir do âmbito de protecção do regime adquirentes de bens e consumos em situação de perfeita paridade com aqueles que destinam os mesmos bens a um uso exclusivamente pessoal ou doméstico. Acresce, e aqui há que reconhecer alguma razão aos apelados, que a muitos dos bens adquiridos com esta estrita finalidade poderá ser dada, num momento ou outro, uma afectação profissional[6], sem que a relação de consumo deva, em nosso entender, ser posta em causa.

Revertendo ao caso dos autos, releva ter resultado apurado quanto consta do ponto 13., no sentido da finalidade da aquisição da viatura ter sido “o uso particular dos autores, sendo pelos mesmos utilizado como apoio à sua actividade profissional”. E tanto a satisfação das suas necessidades privadas era a finalidade primária da aquisição que, conforme consta do ponto 120., “Quando procederam à compra do veículo automóvel os AA perspectivaram um carro que correspondesse às necessidades familiares, tendo em conta principalmente o bem-estar e as melhores condições para os seus filhos”. É certo constar igualmente dos factos assentes que a viatura foi utilizada por um e outro para deslocações profissionais - a Autora no exercício da sua profissão de advogada, em ..., e o Autor marido como formador, prestando serviços maioritariamente em Lisboa e Porto. Todavia, atendendo ao facto apurado de residirem em lugar onde as rotas dos transportes públicos são quase inexistentes, carecendo da viatura para se deslocarem a ... para fazer compras, para ir ao médico, para transportar os seus filhos, entre outras actividades inerentes à/para a sua vida diária, atendendo a que o casal dispunha de apenas um veículo automóvel (e os seus membros não desenvolviam a actividade profissional no mesmo local), afigura-se incontornável que a aquisição teve primordial ou prevalentemente por escopo servi-los na sua vida doméstica, no seu quotidiano, finalidade primária não descaracterizada por nele se deslocarem para o trabalho e o utilizarem nas suas deslocações profissionais, a justificar a concessão da protecção devida aos adquirentes consumidores. Com o que improcede a primeira conclusão recursiva.

Da caducidade

Caracterizada a venda dos autos como venda de bens de consumo, os AA beneficiam da protecção da Lei 24/96, de 31 de Julho, sendo ainda aplicável o já referido regime da venda de bens de consumo - Dec. Lei nº 67/2003, de 8 de Abril, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Dec. Lei nº 84/2008, de 21 de Maio -, que abrange especificamente a venda de bens em 2.ª mão (cf. art.º 5.º, n.º 2).

O art.º 4.º da LDC estabelece que “Os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor”[7].

O art.º 2.º do DL 67/2003, na redacção dada pelo DL 84/2008, de 21 de Maio, estabelece, por seu turno, que “O vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda”, consagrando o n.º 2 várias presunções de desconformidade. Assim, no caso do bem não ser conforme à descrição que dele foi feita pelo vendedor (al. a) ou não apresentar as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à sua natureza (al. d), a lei presume que o bem não é conforme ao contrato, recaindo sobre o vendedor o ónus de ilidir tal presunção.

No caso dos autos, atendendo à matéria de facto apurada é inequívoca a falta de conformidade da viatura vendida pela ré B..., SA, quer com a descrição que dela foi feita pela vendedora (cf. o facto assente em 12.), quer porque não apresentava as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e com os quais os AA razoavelmente contavam. Presumindo-se que tais anomalias existiam à data da entrega (cf. art.º 3.º, n.º 2), a ré vendedora é chamada a responder perante o consumidor nos termos do n.º 1 do preceito. Parece aqui oportuno referir que pese embora tenha resultado apurado que os AA abasteceram a viatura de gasolina quando a mesma consumia gasóleo, erro que levou a que se imobilizasse, vindo a ser reparada pela ré entre 30/6 e 1/7, certo é não ter a apelante logrado provar qualquer relação entre este acontecimento e as queixas de falta de aceleração, que vinham detrás (cf. facto não provado ss), donde prevalecer a presunção de falta de conformidade a que se fez referência.

Por outro lado, tratando-se embora de uma viatura usada, contando cerca de 160.000Km percorridos e 4 anos de utilização, conforme agora a recorrente destaca, nem por isso deixam de se aplicar as regras enunciadas, tanto mais que os bens móveis usados gozam imperativamente da garantia de 1 ano, nos termos do n.º 2 do art.º 5.º. Seguramente que com esta alegação não pretenderá a ré defender que se está perante uma falta de conformidade do bem que os AA não poderiam razoavelmente ignorar (cf. n.º e do art.º 2.º), pois a verdade é que tendo assegurado, aquando da compra, “que o veículo estava em óptimas condições de funcionamento, sem qualquer desconformidade, “estava como novo”, e que com aquele carro teriam “um carro para a vida”, nada indicia -muito pelo contrário- que os ora apelados tivessem (ou devessem ter) a mais leve suspeita dos defeitos da viatura.

A apelante sustenta que mesmo a aplicar-se o regime da venda de bens de consumo o direito que os AA vieram exercer se encontra caducado. Vejamos:

Está assente nos autos que o prazo de garantia convencionado foi de 1 ano (e de 1 ano seria igualmente caso nada tivesse sido acordado, atento o disposto nos art.ºs 5.º[8], n.º 2 e 10.º, de cujos termos decorre que só se tivesse sido convencionado prazo superior prevaleceria o acordado).

Segundo o regime fixado no art.º 5.º-A[9], e para o caso dos móveis usados, os direitos do consumidor caducam pelo decurso de qualquer um dos seguintes prazos: i. 1 ano a contar da entrega do bem sem que seja efectuada qualquer denúncia de desconformidade; ii 2 meses a contar da data em que os defeitos sejam detectados sem os denunciar ao vendedor; iii. 2 anos a contar da data da denúncia sem que tenha exercido os seus direitos.

Os AA adquiriram a viatura em 22 de Dezembro de 2008, tendo sido detectado as seguintes deficiências de funcionamento:

- em Março de 2009 tinha o tecto de abrir a encravar, os difusores de água para o pára-brisas estavam entupidos e o vidro da porta traseira do lado do condutor encravava. Tal situação foi relatada à Ré, que o reparou, tendo os AA ficado privados da viatura durante 2 dias;

- Em Abril de 2009 o veículo deixou de acelerar a partir dos 100 Km/h durante uma viagem que teve lugar na Páscoa desse ano. Os AA deram conhecimento à ré, que procedeu à sua reparação, não tendo sido apurado qual o período de privação;

- Em Junho de 2009 a situação repetiu-se, tendo o veículo circulado a 30/40 Km hora pela estrada nacional. Os AA telefonaram de imediato à Ré, tendo deixado o carro para reparação, tendo ficado privados de o utilizarem durante uma semana;

- Em Novembro de 2009 o tecto panorâmico voltou a não abrir, o sistema de difusores de água para o pára-brisas não funcionava, o vidro da porta traseira do lado do condutor fechava, mas com dificuldade, e, ao acelerar, o veículo “engasgava”. Os AA comunicaram à ré e entregaram-lhe o veículo para reparação, tendo ficado privados da sua utilização durante os últimos 15 dias de Dezembro;

- Em Fevereiro de 2010 a viatura revelou novamente os problemas de aceleração, tendo sido deixada nas oficinas da Peugeot em Alcobaça por indicação da ré, depois novamente em Março, e ainda em Junho, aqui permanecendo desta feita 3 semanas consecutivas;

- Finalmente, em Novembro de 2010 o veículo começou a engasgar, a não responder à aceleração e o vidro traseiro do lado do condutor não fechava, tendo os AA deixado novamente a viatura nas oficinas da ré, solicitando desta feita a substituição da viatura, o que fez por carta de 2/12.

- Em Março de 2017 a viatura ainda se encontrava nas oficinas da ré.

Dos factos agora elencados resulta que a viatura, pela primeira vez em Março de 2009, apresentava o tecto de abrir encravado, os difusores de água para o pára-brisas entupidos e o vidro da porta traseira do lado do condutor encravava também, tendo surgido problemas de aceleração em Abril desse mesmo ano. Tais defeitos, porque disso se trata, foram reaparecendo ciclicamente, subsistiam em Novembro de 2009, altura em que ficaram reparados os problemas do difusor e do tecto panorâmico, tendo reaparecido os problemas de aceleração em Fevereiro, Março e Junho de 2010, e novamente em Novembro de 2010, altura em que a porta se encontrava novamente encravada quando a autora procedeu à entrega do veículo na oficina da 1.ª ré, tendo então e pela primeira vez solicitado a sua substituição.

Face ao relatado, parece evidente que os defeitos foram sempre denunciados dentro do prazo de 60 dias. A recorrente entende que os direitos que os AA pretendem exercer caducaram com base no seguinte argumento: tendo os defeitos subsistido, vale a data da primeira denúncia, pelo que a acção deveria ter sido instaurada até Março/Abril de 2011, sendo certo que tal ocorreu apenas em Julho; a entender-se que vale a última, que teve lugar em Novembro de 2010, então já se tinha esgotado o prazo de garantia, pelo que a caducidade tinham operado igualmente.

Não cremos, porém, que lhe assista razão.

Por um lado, embora os defeitos que a viatura apresentava em Novembro de 2010 já tivessem surgido em datas anteriores, a verdade é que a Ré, por si ou por intermédio da oficina oficial da marca em Alcobaça, ia procedendo às reparações e entregava a viatura aparentemente reparada[10]. Daí que os AA se vissem obrigados a nova denúncia quando o problema ressurgia. Deste modo, tendo os defeitos sido mais uma vez denunciados em Novembro de 2010, no limite portanto do prazo da garantia, e a acção, tendo por base esses mesmos defeitos, sido instaurada em Julho de 2011, a conclusão que se extrai é a de que foi tempestivamente interposta.

Por outro lado, pese embora tenha sido convencionado o prazo de 1 ano, a verdade é que a Ré, conforme os autos evidenciam, aceitou sempre reparar a viatura sem custos para os AA, assim assumindo, em nosso entender, um comportamento concludente no sentido da extensão da garantia, e isto até Novembro de 2010, pelo que a denúncia então efectuada e a subsequente acção seriam tempestivas. De todo o modo, mesmo a assim não ser entendido, invocar a caducidade com fundamento no decurso do prazo de 1 ano, quando na verdade permitiu que os AA deixassem a viatura na sua oficina ou na oficina da marca seguindo as suas instruções durante um ano mais, seria conduta de duvidosa licitude, atento o disposto no art.º 334.º do CC.

Finalmente, haverá que atentar em quanto dispõe o n.º 4 do citado art.º 5.º-A, por cujos termos o prazo para o exercício dos direitos suspende-se durante o período em que o consumidor estiver privado do uso dos bens com o objectivo de realização das operações de reparação ou substituição. Pois bem, nos termos da factualidade apurada, os AA viram-se privados da viatura pelo período de pelo menos 6 semanas e dois dias por efeito das reparações a que foi sujeita, a que acresce o período que decorreu entre 22 de Novembro de 2010 e Março de 2011, porquanto, tendo então solicitado a substituição da viatura, o administrador da apelante manifestou interesse em resolver o problema, apontando um veículo da marca Renault, modelo Espace, para substituir o veículo em discussão nos autos (cf. factos assentes de 88. a 91.). Tal solução, conforme evidencia a missiva a que se alude no ponto 77. só terá ficado inviabilizada no final desse mês, maneira que, somando os quatro meses decorridos aos computados 6 semanas e 2 dias, mesmo a considerar a denúncia inicial, a acção era ainda tempestiva, com o que improcede o segundo grande argumento recursivo.

Do exercício abusivo do direito

Alega finalmente a recorrente que os defeitos que a viatura ostentava não justificavam a resolução do contrato, mostrando-se abusiva a opção agora feita pelos AA, tanto mais que circularam com o veículo cerca de um ano depois do termo da garantia. Os recorrentes insurgem-se contra o conhecimento da questão, que dizem ser nova.

Sendo correcto que esta questão não foi efectivamente suscitada perante a 1.ª instância, a verdade é que a excepção do abuso de direito é de conhecimento oficioso pelo que, a verificar-se, e cumprido que fosse o contraditório, poderia/deveria ser conhecida (cf. art.º 608.º, n.º 2, “in fine”, aplicável ex vi do n.º 2 do art.º 663.º, sendo ambos os preceitos do CPC). Deste modo, e porque os apelados se pronunciaram nas contra alegações, conhecer-se-á da excepção agora invocada.

Não seguindo neste aspecto a directiva que transpôs, o legislador português não estabeleceu, no art.º 4.º, qualquer hierarquia nos direitos que concedeu ao consumidor, antes colocou ao mesmo nível os direitos à reposição da conformidade sem encargos, através da reparação ou substituição, à redução do preço ou à resolução do contrato. Todavia, avisadamente, estabelecendo embora que o consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos, não deixou de ressalvar os casos em que tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito nos termos gerais (cf. n.ºs 1 e 5), abuso de direito que funciona aqui como critério limitador daquele exercício.

Não há dúvida que o par reparação/substituição, indo ao encontro do princípio da manutenção do contrato, será a opção que mais facilmente satisfará os interesses de vendedor e comprador, e sendo esta possível e surgindo como desproporcionadas a redução do preço e a resolução, poderá equacionar-se se pela via do abuso de direito, não será de impor ao consumidor a conservação do negócio jurídico. De todo o modo afigura-se pacífico que se o consumidor vai optando pela reparação e o vendedor se mostra incapaz de restituir ao bem a conformidade contratada, então a opção pela resolução terá de ser tida como inteiramente legítima. Nesse sentido, e versando sobre caso com semelhanças, decidiu o STJ que “Tratando- se de compra e venda de um automóvel novo de gama média/alta que após várias substituições de embraiagem, de software e de volante do motor, continuava a apresentar defeitos na embraiagem, pode o comprador consumidor recusar nova proposta de substituição de embraiagem – a terceira – e requerer a resolução do contrato, sem incorrer em abuso de direito.”[11]

Improcede, pois, também este derradeiro fundamento do recurso, impondo-se a confirmação da decisão recorrida.

.III. Decisão

Acordam os juízes da 3.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, mantendo a sentença apelada.

Custas pela recorrente.


***


[1] Sem curar de saber se “aquele” a que a lei se reporta poderá ser também uma pessoa jurídica ou colectiva, discussão que a ambiguidade da fórmula legal propicia.
[2] Prof. Calvão da Silva, “Compra e venda de coisas defeituosas”, Almedina, 4.ª edição, pág. 118.
[3] Neste sentido, escreveu-se no acórdão de 18/6/2013 do TRL, proferido no processo 2154/2.4 TBALM-A.L1-7, acessível em www.dgsi,pt: “Assim de jure condito, propende-se a entender que os negócios abrangidos por tal regime são os que se estabelecem entre profissionais actuando no âmbito da sua actividade e pessoas que actuem fora do seu âmbito de actividade profissional, dos quais resulte a aquisição de bens destinados a uso não profissional, levando em última análise que seja afastada qualquer aplicação profissional do bem, mesmo que não exclusiva. Sabido é, que se visa a necessidade da defesa dos interesses daqueles que se vêm envolvidos na voracidade de uma sociedade com apelo constante ao consumo, mesmo desenfreado, relativamente a bens, muitas vezes com características que não se mostram como perceptíveis à generalidade das pessoas, face até as técnicas agressivas de venda, e cuja aquisição surge cada vez em condições mais complexas, determinando assim que se procure salvaguardar a posição daqueles, que em tal quatro se mostram mais desprotegidos, pretendendo estabelecer um possível equilíbrio entre os contratantes.
Daí que, no atendimento da realidade concreta, sempre rica e mutável, não se mostre inviável compaginar o entendimento enunciado, com a possibilidade, aferida casuisticamente, de estender a protecção devida ao consumidor, a determinada entidade que exerça de forma profissional uma certa actividade económica, visando obter benefícios. Para tanto não deverá ela própria ser idêntica ao outro contraente, nem ter em vista dar um destino empresarial aos bens ou serviços adquiridos, antes actuando fora do âmbito da sua especialidade, competência própria ou objecto específico da sua actividade, não dispondo, em conformidade, de preparação técnica por a utilização do bem adquirido se encontrar fora do domínio da sua especialidade, de modo a que se mostre em relação ao bem que adquiriu, tão leiga como um consumidor, numa efectiva ponderação das especificidades da situação de facto desenhada com razões de justiça e equidade, alicerçadas, designadamente, no princípio da boa-fé na formação e execução dos contratos”.

[4] Entendimento que surge perfilhado por Menezes Leitão, no seu “Direito das Obrigações”, vol. III 2015, pág. 125. No mesmo sentido, Calvão da Silva, depois de admitir a complexidade da questão e ponderar que “No mínimo, deve dizer-se que só haverá contrato de consumo se a coisa comprada for principalmente ou predominantemente destinada a uso não profissional”, acaba por concluir que “(….) quem adquire um bem com intenção de o usar na sua profissão e na vida privada não deixa de actuar na veste de um profissional, com a suposta qualificação técnica e aptidão para a negociação contratual inerentes ao status de quem atua no âmbito da sua actividade profissional, qualificação ou competência que não perde pelo facto de destinar a coisa ainda e também a uso não profissional”- Compra e Venda de Coisas Defeituosas, 4.ª ed., Almedina pág. 121.
[5] Defendendo o critério da preponderância, Paulo Duarte, in “O conceito jurídico de consumidor segundo o art.º 2.º/1 da Lei de Defesa do Consumidor”, in BFDUC, Vol. LXXV, Coimbra, 1999, págs. 678 e seguintes.
[6]  E os exemplos podem multiplicar-se, começando por um objecto nos tempos que correm imprescindível, como é o caso do telemóvel, dos quais dificilmente se poderá fazer um uso exclusivamente pessoal dado que, mesmo quem dispõe de um telefone profissional, acaba sempre por fornecer um contacto alternativo e ser contactado para o seu tlm pessoal. Deixará por isso o adquirente de beneficiar da tutela do consumidor?  
[7] O consumidor goza também de tutela constitucional, dispondo o art.º 60.º, n.º 1 da CRP que o consumidor tem “direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação, à protecção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos”.
[8] O art.º 5.º-A não estabelece, em bom rigor, garantias de bom funcionamento dos bens vendidos durante os prazos aqui previstos, uma vez que o vendedor só é responsável pelos defeitos existentes no momento da entrega do bem. Todavia, considerando a presunção do n.º 2 do art.º 3.º, responderá perante o consumidor a não ser que faça prova de que o defeito é posterior.

[9]1 - Os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam no termo de qualquer dos prazos referidos no artigo anterior e na ausência de denúncia da desconformidade pelo consumidor, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2 - Para exercer os seus direitos, o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, a contar da data em que a tenha detectado.
3 - Caso o consumidor tenha efectuado a denúncia da desconformidade, tratando-se de bem móvel, os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam decorridos dois anos a contar da data da denúncia e, tratando-se de bem imóvel, no prazo de três anos a contar desta mesma data.
(…)

[10] Não obstante, e conforme a Mmª juíza assinalou, não invocaram os AA na réplica o reconhecimento dos defeitos, cujo ónus da invocação, enquanto facto impeditivo da caducidade (contra excepção), sobre eles recaía.
[11] Acórdão de 5 de Maio de 2015, proferido no processo 1725/12.3TBRG.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt.