Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2073/10.9T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: OBRIGAÇÃO ILÍQUIDA
VALOR
OBRIGAÇÃO
Data do Acordão: 10/23/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA, JUÍZO DE GRANDE INSTÂNCIA CÍVEL, JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 805º, Nº 3, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A mera circunstância de ser controvertido o valor da obrigação – por força de desacordo ou divergência das partes relativamente à verificação ou interpretação de determinados factos ou circunstâncias – não é bastante para conferir à obrigação um carácter ilíquido.

II – Para que se possa falar em obrigação ilíquida é necessário que o seu valor não esteja apurado ou não seja conhecido das partes (ou, pelo menos, do devedor), quer porque está dependente de factos ou operações adicionais que ainda não ocorreram ou não foram realizadas, quer porque esses factos ou operações ainda não foram levados ao conhecimento do devedor, de tal forma que este não está em condições de saber qual o exacto conteúdo da sua obrigação.

III – Se a indefinição do valor da obrigação resulta apenas da circunstância de as partes estarem em desacordo acerca do preço previamente contratado, não estamos perante uma obrigação ilíquida, ainda que, por efeito da prova produzida acerca do facto controvertido, a obrigação venha a ser fixada pelo tribunal em valor inferior àquele que era peticionado pelo credor.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A..., Ldª., com sede no Edifício ..., em Lisboa, intentou acção, com processo ordinário, contra B..., residente na Rua ..., Vagos, pedindo que este seja condenado a pagar-lhe as quantias de 1.921,70€, 26.946,27€ e 60.636,08€ e os juros de mora que sobre essas quantias se vencerem respectivamente desde 7 de Setembro de 2004, 14 de Agosto de 2004 e 20 de Agosto de 2004 até integral pagamento, às taxas dos juros comerciais legais, liquidando os vencidos até 6 de Dezembro de 2010 em 53.805,40€.

Alega, para o efeito, que forneceu ao Réu as mercadorias que identifica na petição inicial e que este não procedeu ao pagamento do preço devido, apesar de ter ficado acordado que tal pagamento seria efectuado no prazo de 60 dias após a recepção da respectiva factura.

O Réu contestou, invocando a prescrição de uma parte dos juros peticionados e, embora aceite os fornecimentos alegados pela Autora, afirma que tais fornecimentos não foram efectuados nas datas indicadas na petição inicial, além de que o prazo de pagamento que foi acordado nunca foi inferior a 120 dias. Aceitando que o preço não foi pago e que as mercadorias não foram devolvidas à Autora, alega que os preços vertidos nas facturas não correspondem aos preços que haviam sido contratados e que, por essa razão, contactou o vendedor da Autora no sentido de as facturas serem corrigidas ou de ser emitida uma nota de débito no valor de 2.720,16€, correspondente à diferença de preços, pedindo-lhe ainda que fosse efectuado o pagamento do prémio de 0,05€, acrescido de IVA, pela compra de cada garrafa Smirnof ICE, conforme havia sido acordado entre as partes; convencido de que o problema iria ser resolvido, aceitou as mercadorias; porque a Autora não deu resposta à sua solicitação, comunicou-lhe, por carta de 19/10/2005, que procedesse ao levantamento da mercadoria e enviou nota de débito no valor de 19.997,43€, correspondente ao valor do prémio que lhe era devido e aos prejuízos que sofreu com a ocupação do seu armazém, com aquelas mercadorias, pelo período de quatro meses; porque a Autora não levantava a mercadoria, o Réu emitiu novas de débito correspondentes ao prejuízo sofrido com a ocupação do armazém, sendo que mais tarde enviou alguma dessa mercadoria para o lixo por ter expirado o prazo de validade para o seu consumo.

Com estes fundamentos, conclui pela improcedência da acção e pede, em reconvenção, que a Autora seja condenada:

- A pagar-lhe a quantia de €104.789,30 referentes às notas de débito referidas nos artigos 61º e 62º, acrescidas de juros de mora vencidos e vincendos, até efectivo e integral pagamento, perfazendo os já vencidos a quantia de €42.029,78.

- A pagar-lhe a quantia de €145,20, devido a título de despesas pela remoção de mercadoria de acordo com o alegado nos art. 65º e 66º acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, até efectivo e integral pagamento, perfazendo os já vencidos a quantia de €56,88.

- A proceder ao levantamento das mercadorias do armazém do réu/reconvinte, a expensas suas, no prazo que lhe vier a ser fixado, o qual nunca deve ser superior a 10 dias.

A Autora replicou, impugnando os factos alegados pelo Réu e concluindo pela improcedência da reconvenção.

Foi proferido despacho saneador, onde se julgou procedente a invocada excepção de prescrição no que respeita aos juros de mora anteriores a 06/12/2005, razão pela qual o Réu foi absolvido do pedido referente a esses juros.

Foi efectuada a selecção da matéria de facto assente e base instrutória.

Após realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção e a reconvenção parcialmente procedentes, condenou o Réu a pagar à Autora a quantia global de €86.167,25 (factura n.º 255.567/€25.799,59 + factura n.º 255.903/€58.445,96 + factura n.º 256.912/€1.921,70) acrescida de juros de mora vencidos desde 6 de Dezembro de 2005 até integral pagamento à taxa de juros supletiva para os créditos das sociedades comerciais e condenou a Autora a pagar ao Réu a quantia que se vier a liquidar resultante da multiplicação por cinco cêntimos da quantidade de garrafas SMIRNOFF ICE que o Réu adquiriu à Autora.

Inconformado com essa decisão, o Réu veio interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

1ª - A douta sentença recorrida emanada do Ilustre Tribunal “a quo” condenou o réu a pagar à autora o capital global de (factura nº 255.567/€25.799,59 + factura nº 255.903/€58.445,96 + factura nº 256.912/€1.921,70) €86.167,25 (oitenta e seis mil cento e sessenta e sete euros e vinte e cinco cêntimos), acrescidos de juros de mora vencidos desde 6 de Dezembro de 2006 até integral pagamento à taxa de juros supletiva para os créditos das sociedades comerciais.

2ª - A autora, peticionou que o réu fosse condenado a pagar-lhe o capital de €89.504,05, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos até ao efectivo e integral pagamento.

3ª - A douta sentença veio a dar como assente que o réu enviou missivas à autora em 07 de Fevereiro de 2005, 19 de Outubro de 2005, 30 de Novembro de 2005, 15 de Maio de 2006 e 31 de Junho de 2006, juntas a fls. 41, 44, 47, 52, 55 e 58 dos autos (alínea F dos factos assentes), nelas suscitando o problema existente na diferença do preço acordado existente entre o preço das notas de encomenda e as facturas que lhe haviam sido remetidas.

4ª - Apesar de ter sido interpelada pelo réu, por variadíssimas vezes, no sentido de solucionar o problema com a diferença de preços relativo às bebidas que lhe haviam sido fornecidas esta remeteu-se, repetidamente ao silêncio, nunca aceitando as diferenças de preço reclamadas pelo réu, nem tendo efectuado qualquer diligência para solucionar o problema.

5ª - O Tribunal “a quo” deu como provado que havia uma diferença de preços entre o valor acordado pela autora e réu nas notas de encomenda e o valor constante das facturas emitidas pela autora e peticionado na presente acção, liquidando os valores em divida da seguinte forma:

- Na factura 255.567, emitida em 15/06/2004, o valor de 25.799,59 (descontando ao valor da factura o valor de €903,60, mais o respectivo IVA, à taxa de 19%)

- Na factura 255.903 emitida em 21/06/2004, o valor de 58.445,96 (descontando ao valor da factura o valor de €1.756,56, mais o respectivo IVA, à taxa de 19%)

- Na factura 256.912, emitida em 09/07/2004, no valor de €1.921,70, por não haver nesta qualquer desconformidade.

6ª - O réu apenas veio a ser condenado no pagamento da quantia de €86.167,25.

7ª - A obrigação era ilíquida.

8ª - O réu só ficou a conhecer o montante de que era devedor após a instrução da causa, pelo que só depois da data em que transitar em julgado a presente sentença, é que serão devidos juros moratórios sobre os montantes liquidados em cada uma das as facturas nº 255.567 e 255.903, indicados na conclusão 5ª.

9ª - É ilíquida a obrigação cuja existência é certa, mas cujo montante não está ainda fixado.

10ª - O crédito era ilíquido, pelo que não há mora enquanto não se tornar líquido, salvo se a ilíquidez for imputável ao devedor.

11ª - A obrigação apenas se torna liquida com trânsito em julgado da sentença em primeira instância, pelo que os juros, “in casu” não são devidos desde 06 de Dezembro de 2006, como assentou o Tribunal “a quo”, mas sim apenas desde a data do trânsito em julgado da sentença em primeira instância relativamente ao valor de cada uma das facturas nº 255.567 e nº 255.903 (identificadas na conclusão nº 5)

12ª - Ao condenar o réu ao pagamento de juros moratórios desde 06 de Dezembro de 2006 relativamente às facturas nº 255.567 e nº 255.903, a douta sentença recorrida violou o disposto no artigo 805º, nº 3, do Código Civil, devendo nesta parte ser revogada, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.

Não foram apresentadas contra-alegações.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se a obrigação em causa nos autos é ou não uma obrigação ilíquida com vista a determinar o momento a partir do qual o Apelante está obrigado ao pagamento de juros de mora.


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III.

Na 1ª instância foi fixada a seguinte matéria de facto:

A autora e o réu são comerciantes e dedicam-se ao comércio de bebidas – alínea A) dos Factos Assentes.

A autora forneceu ao réu, a pedido deste, as seguintes mercadorias:

01 – 1.584 unidades Smirnoff Black Ice 24x0,0275;

02 – 0.660 unidades J & B Rare 12x0,070;

03 – 0.720 unidades J & B Walker Red 12x0,070;

04 – 0.120 unidades Old Parr 6x100;

05 – 0.660 unidades Gordon’s Gin 12x0,070;

06 – 0.504 unidades Safari 6x0,070;

07 – 0.072 unidades João Pires 03ROT 19 6x0,75;

08 – 1.320 unidades J & B Rare 12x0,070;

09 – 0.720 unidades J & B Walker Red 12x0,070;

10 – 0.180 unidades J & B 15anos Pagoda Lata 6x0,070;

11 – 0.120 unidades J Walker Black 12x0,070;

12 – 0.024 unidades Dimple 15anos 12x0,070;

13 – 0.300 unidades Logan Deluxe 40ºLT 12X0,070;

14 – 0.432 unidades Croft Brandy 12x1,00;

15 – 0.720 unidades Smirnoff Red 12x0,070;

16 – 4.752 unidades Smirnoff Ice Icon 24x0,27;

18 – 0.024 unidades Tequilla Cuervo Gold 6x0,70;

19 – 0.090 unidades Sheridan Ultimate 6x0,50;

20 – 0.504 unidades Baileys 12X0,070;

21 – 1.008 unidades Safari 6x0,070 – alíneas B) e C) dos Factos Assentes.

Na sequência da entrega dessas bebidas ao réu a autora emitiu em nome do réu e enviou-lhe as seguintes facturas:

01 – factura n.º 256.912, emitida em 09/07/2004, no valor de €1.921,710;

02 – factura n.º 255.567, emitida em 15/06/2004, no valor de € 26.946,27;

03 – factura n.º 255.903, emitida em 21/06/2004, no valor de € 60.636,08 – alínea D) dos Factos Assentes.

Tais facturas deveriam ter sido pagas até pelo menos 120 dias da data da sua emissão – alínea E) dos Factos Assentes.

Dão-se como integralmente reproduzidas as missivas que o réu enviou à autora com datas de 7 de Fevereiro de 2005, 19 de Outubro de 2005, 24 de Outubro de 2005, 30 de Novembro de 2005, 15 de Maio de 2006 e 31 de Julho de 2006, juntas a folhas 41, 44, 47, 52, 55 e 58 – alínea F) dos Factos Assentes.

A autora não aceitou as diferenças de preço reclamadas pelo réu, nem levantou as mercadorias das instalações do réu – alínea G) dos Factos Assentes.

A autora e o réu tinham acordado que o preço das bebidas a suportar pelo réu seria o valor, sem IVA mas já incluindo o IEC, mencionado nas notas de encomenda do réu com os n.ºs 0015754 e 0015755, juntas a folhas 38 e 39 e aqui dadas por reproduzidas – resposta ao ponto 1º da Base Instrutória.

Na factura nº 255903 a autora indicou um preço global superior em 1.756,56€ (antes do IVA) ao valor que estava acordado – resposta ao ponto 2º da Base Instrutória.

E na factura nº 255567 a autora indicou um preço global superior em 963,60€ (antes do IVA) ao valor que estava acordado – resposta ao ponto 3º da Base Instrutória.

Em data não apurada a autora prometeu ao réu um prémio pela compra de SMIRNOFF ICE que equivaleria ao valor de cinco cêntimos por garrafa – resposta ao ponto 7º da Base Instrutória.

Aquando do fornecimento referido nos autos esse prémio estava por realizar – resposta ao ponto 8º da Base Instrutória.

A mercadoria estava distribuída em diversas paletes que ocupavam espaço no armazém do réu, o qual, posteriormente, transferiu parte dessas paletes para o exterior do seu armazém – respostas aos pontos 12º, 15º e 16º da Base Instrutória.

A sua presença no armazém impedia a utilização por outra forma do espaço por elas ocupado – resposta ao ponto 13º da Base Instrutória.

Em algumas ocasiões o réu mudou as paletes de sítio para reduzir o espaço por elas ocupado – resposta ao ponto 14º da Base Instrutória.

No final de 2006 parte da mercadoria tinha atingido o fim do prazo de validade para efeitos de consumo humano – resposta ao ponto 17º da Base Instrutória.

Para levar as garrafas da mercadoria com o prazo de validade expirado, o réu contratou uma empresa especializada em reencaminhar vidro para um centro de resíduos – resposta ao ponto 18º da Base Instrutória.

Nessa diligência gastou 145,00€ - resposta ao ponto 19º da Base Instrutória.


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IV.

O presente recurso de apelação incide apenas sobre a parte da sentença que condenou o Apelante ao pagamento de juros de mora desde 06/12/2006 sobre as quantias a que se reportam as facturas nºs 255.567 e 255.903.

Na perspectiva do Apelante, aqueles juros apenas são devidos desde a data do trânsito em julgado da sentença em 1ª instância e a sentença – ao condenar em moldes diversos – teria incorrido em violação do disposto no art. 805º, nº 3, do Código Civil.

O raciocínio/argumentação do Apelante que está subjacente a tal alegação é o seguinte: o Tribunal recorrido deu como provado – tal como havia sido alegado pelo Apelante – que os valores constantes das facturas supra citadas (peticionado pela Autora) eram superiores aos preços que as partes haviam contratado e, por essa razão, o Réu/Apelante foi condenado a pagar valor inferior ao que havia sido pedido; assim, o crédito era ilíquido, apenas se tornando líquido com o trânsito em julgado da sentença e, consequentemente, não poderia existir mora em momento anterior.

Não nos parece, porém, que lhe assista razão.

É certo que, como decorre do disposto no art. 805º, nº 3, do Código Civil, “se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor…”.

Mas, salvo o devido respeito, o crédito em causa não poderá ser configurado como um crédito ilíquido.

Em termos gerais, poderemos definir a obrigação ilíquida como sendo aquela cuja existência é certa, mas cujo montante ainda não está fixado ou apurado[1]. Mas, para que se possa afirmar que o valor da obrigação não está fixado ou apurado – sendo, por isso, uma obrigação ilíquida – não basta que as partes estejam em desacordo acerca desse valor, já que aquilo que releva para esse efeito é a circunstância de as partes – ou pelo menos o devedor – desconhecerem esse valor por não disporem ainda de todos os elementos que são necessários ao seu apuramento.

Com efeito, se o valor da obrigação é determinado em função de critérios, factos ou circunstâncias previamente definidos, que são do conhecimento das partes, não existirá qualquer obrigação ilíquida e a mera circunstância de as partes não estarem de acordo acerca desse valor – porque não estão de acordo quanto à verificação (ou não) dos factos (pré-existentes) que servem de base ao apuramento daquele valor – não é idónea para transformar em ilíquida uma obrigação cujo valor não depende de quaisquer outros factos (que ainda não tenham ocorrido ou não sejam do conhecimento de alguma ou de ambas as partes) ou de operações que ainda não tenham sido efectuadas.

Se a indefinição do valor da obrigação apenas resultar de uma divergência ou desacordo das partes relativamente à verificação ou interpretação dos factos ou circunstâncias que, alegadamente, teriam sido previamente estabelecidos, não estamos perante uma obrigação ilíquida; tal indefinição resolver-se-á apenas através da prova (ou não) desses factos ou pressupostos pré-existentes, sem necessidade de apurar quaisquer outros factos adicionais ou de proceder a qualquer outra operação. Estaremos, de facto, perante uma obrigação ilíquida quando a indefinição do valor da obrigação resulta da circunstância de não terem ainda ocorrido ou serem desconhecidos de alguma das partes algum ou alguns dos factos que são necessários para o apuramento e conhecimento desse valor.

Assim, e como se refere no Acórdão da Relação de Lisboa de 06/12/2011 (processo nº 7303/06.9TBALM.L1-7)[2], “o n.º 3 do artigo 805º do Código Civil deve ser interpretado no sentido de que o crédito só é ilíquido quando, à data em que deve ser efectuado o pagamento, não for possível proceder à sua liquidação, ou seja, saber qual a quantia em dívida” sendo que “…para que o crédito se considere ilíquido não basta que o devedor impugne a obrigação de pagar ou alegue que a quantia pedida não é (total ou parcialmente) devida”.

No mesmo sentido se pronuncia o Acórdão do STJ de 29/11/2005 (processo nº 05B3287)[3], em cujo sumário se escreve o seguinte: “Não é pelo simples facto de ser controvertido o montante da dívida que ela se torna ilíquida, isto é, de montante incerto e por isso desconhecido do devedor”; “Para efeito da aplicação do princípio in illiquidis non fit mora constante da 1ª parte do nº3º do art. 805º C.Civ. só releva a iliquidez objectiva, e esta só se verifica quando o devedor não estiver em condições de saber quanto deve”; “O princípio referido não tem cabimento quando, dispondo o devedor dos elementos necessários para saber o montante do seu débito, ocorra, afinal, iliquidez tão só aparente ou subjectiva”; “Estando o demandado, em vista da obra feita, em condições de saber quanto devia ao demandante, o facto de a quantia em que foram condenados ser inferior à pedida não afasta a condenação em juros de mora, assente em culpa no atraso do pagamento”.

E, ainda no mesmo sentido, podemos ver o Acórdão da Relação de Coimbra de 07/09/2010 (processo nº 81/1998.C1)[4], onde se escreve que “O facto de um devedor contestar o montante líquido exigido pelo credor, não torna a obrigação ilíquida, ainda que a prestação venha a ser fixada pelo tribunal em montante inferior ao pedido”.

No caso dos autos, estamos perante contratos de compra e venda que foram celebrados entre as partes e a obrigação reclamada nos autos corresponde ao pagamento do preço devido, sucedendo apenas que a Autora reclamava um preço superior ao que havia sido contratado. Ou seja, a indefinição do valor a pagar pelo Réu/Apelante apenas resultava da circunstância de as partes não estarem de acordo acerca da verificação de um determinado facto (a efectiva contratação do preço devido) e, portanto, o apuramento do valor da obrigação não estava dependente de qualquer liquidação propriamente dita (mediante a averiguação de quaisquer outros factos ou mediante a realização de quaisquer outras operações), mas apenas da prova (ou não) do acordo que, alegadamente, teria sido efectuado entre as partes.

Tendo ficado demonstrada a celebração desse acordo, é evidente que a obrigação do Réu/Apelante era líquida, já que o seu valor decorria apenas do acordo celebrado e, portanto, o Apelante (tal como a Apelada, embora esta tivesse reclamado indevidamente um valor superior) tinha todos os elementos para determinar o valor que estava obrigado a pagar; a mera circunstância de a Autora reclamar um valor superior não releva para o efeito de conferir àquela obrigação um carácter ilíquido e, consequentemente, para o efeito de ilibar o devedor do pagamento dos juros de mora que, manifestamente, seriam devidos, caso o credor tivesse reclamado a quantia a que, efectivamente, tinha direito. 

E não se diga que, por força desse diferendo com a Autora, o Apelante não tinha condições para cumprir a sua obrigação, já que, sabendo qual era o seu exacto conteúdo e apesar de a Autora reclamar valor superior, poderia ter efectuado – ou, pelo menos, oferecido – o pagamento da quantia que, na sua perspectiva (e, correctamente, como se apurou), era devida, sem que, para o efeito, carecesse, em absoluto, que a Autora procedesse à correcção das facturas ou autorizasse a emissão de uma nota de débito e, não o tendo feito, incorreu em mora relativamente às quantias que, efectivamente, estava obrigado a pagar.

Improcede, pois, o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 713º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – A mera circunstância de ser controvertido o valor da obrigação – por força de desacordo ou divergência das partes relativamente à verificação ou interpretação de determinados factos ou circunstâncias – não é bastante para conferir à obrigação um carácter ilíquido.

II – Para que se possa falar em obrigação ilíquida é necessário que o seu valor não esteja apurado ou não seja conhecido das partes (ou, pelo menos, do devedor), quer porque está dependente de factos ou operações adicionais que ainda não ocorreram ou não foram realizadas, quer porque esses factos ou operações ainda não foram levados ao conhecimento do devedor, de tal forma que este não está em condições de saber qual o exacto conteúdo da sua obrigação.

III – Se a indefinição do valor da obrigação resulta apenas da circunstância de as partes estarem em desacordo acerca do preço previamente contratado, não estamos perante uma obrigação ilíquida, ainda que, por efeito da prova produzida acerca do facto controvertido, a obrigação venha a ser fixada pelo tribunal em valor inferior àquele que era peticionado pelo credor.


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo do Apelante.
Notifique.

Maria Catarina Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª ed., pág. 115, nota 1.
[2] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[3] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[4] Também disponível em http://www.dgsi.pt.