Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2037/19.7T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO MÍNIMO DISPONÍVEL
CRITÉRIOS PARA A SUA FIXAÇÃO
Data do Acordão: 01/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUIZO DE COMÉRCIO DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 235º E 239º,Nº 3 DO CIRE.
Sumário: 1. Na fixação do rendimento disponível deverá atender-se como limite mínimo de referência o correspondente à retribuição mínima nacional garantida.

2. Tratando-se de um valor a fixar casuisticamente pelo tribunal, atentas as específicas circunstâncias do insolvente e do seu agregado familiar, não são de atender as concretas despesas alegadamente suportadas pelo insolvente, mas tão só as abstratamente adequadas a assegurar uma vivência condigna.

3. Na fixação de tal valor haverá que ter em consideração a capacidade do outro progenitor para contribuir para o sustento de cada um dos menores que façam parte do agregado familiar.

Decisão Texto Integral:












Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

A..., divorciada, veio apresentar-se à insolvência, formulando pedido de exoneração do passivo restante, alegando factos tendentes a justificar a concessão deste benefício e requerendo que lhe seja fixado um rendimento disponível no valor equivalente a 1.450,00€, com base no seguinte condicionalismo sócio-económico.

Declarada a insolvência da Requerente, o Administrador da Insolvência pronunciou-se no sentido de nada ter a opor ao requerido.

Notificados os credores para se pronunciarem sobre o pedido de exoneração do passivo restante,

- o credor E... deduziu oposição à concessão do benefício, alegando, em síntese, que o instituto é contrário à lei fundamental por desonerar a devedora das obrigações que assumiu e pôr em causa o princípio da igualdade, que o seu crédito resulta de contrato resolvido em 2012, que a insolvente absteve-se de se apresentar à insolvência “nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica” e que se encontra impossibilitada de cumprir as obrigações vencidas desde 2012;

- o Banco ..., S.A. também deduziu oposição à admissibilidade do mesmo, alegando, em síntese, que a admissão do pedido causa-lhe prejuízos e que o instituto traduz-se num “benefício desmedido a devedores sobreendividados e conscientemente colocados em tal situação”.

O Juiz a quo proferiu despacho a declarar encerrado o processo de insolvência, deferindo liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, determinando a cessão do rendimento  disponível que a insolvente venha a auferir, com exclusão do montante mensal correspondente a 1,9 do salário mínimo  nacional que para cada ano seja legalmente determinado.

Inconformada com tal decisão, a Requerida dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

...

Termos em que deve ser julgada procedente, porque provada, a presente alegação, alterando-se o valor do rendimento indisponível da recorrente de 1,9 salários mínimos nacionais para 2,2 salários mínimos nacionais.


*

Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr. artigos 635º e 639º do Novo Código de Processo Civil –, a questão a decidir é uma só:
1. Se é de alterar a decisão recorrida que excluiu do rendimento disponível o equivalente a 1,9 do salário mínimo nacional, por se afigurar insuficiente.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
 O Tribunal a quo deu como provado os seguintes factos, com interesse para a decisão recorrida e que não foram objeto de impugnação:
1) A insolvente nasceu no dia 15 de janeiro de 1971, é divorciada e do respetivo assento de nascimento não consta que já beneficiou da exoneração do passivo restante (págs. 3 a 5 do requerimento com a ref.ª ...).
2) M... e A..., nascidas respetivamente a 25 de julho de 2008 e 9 de julho de 2010, estão registadas como filhas da requerente e de M..., encontrando-se regulado o exercício das responsabilidades parentais nos termos do qual ficaram a residir com a mãe, ficando o pai obrigado a pagar a pensão de alimentos de duzentos euros para cada uma das filhas (docs. 3, 6 e 7 da p.i.).
3) A requerente e filhas vivem em casa arrendada em (....) , cuja renda mensal é de €350,00 (doc. 11 e 12 da p.i. e relatório do A.I.).
4) A insolvente é professora do ensino secundário, exerce funções no ... e aufere o vencimento mensal líquido de cerca de €1.400 (doc. 8 da p.i. e relatório do A.I.);
5) O incumprimento do crédito de que é titular o credor E... ocorreu em 2012 (relatório do A.I. e falta de oposição ao alegado pelo credor).
6) O endividamento da insolvente resulta maioritariamente das responsabilidades assumidas enquanto fiadora/avalista da sociedade V..., Lda. e de contrato de mútuo com hipoteca, contraído juntamente com o ex-cônjuge (relatório do A.I.).
7) O Sr. Administrador da Insolvência apresentou a lista de créditos reconhecidos junta ao apenso A que não foi impugnada, cujo teor se dá por reproduzido.
8) A insolvente não tem antecedentes criminais (ref.ª ...).
O procedimento de exoneração do passivo restante, introduzido na nossa legislação pelo CIRE (aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18 de Março, e objeto de sucessivas alterações), corresponde à Discharge na lei norte americana e à Restschuldbefreiung da lei alemã[1], traduzindo uma ideia de “fresh start” em que ocorre a extinção das dívidas e a libertação do devedor por forma a que este não fique inibido de começar de novo e poder retomar a sua atividade económica.
Os diferentes regimes de tratamento do sobre-endividamento da pessoa singular podem agrupar-se em duas categorias: i) o modelo (puro) do fresh start e ii) o modelo derivado do earned start ou da reabilitação.
“O primeiro baseia-se na ideia de que a liquidação patrimonial e o pagamento das dívidas devem ter lugar ter lugar no curso do processo de insolvência, sendo que, uma vez concluído, restem ou não dívidas por pagar, o devedor deverá ser libertado de forma a poder retomar, com tranquilidade, a sua vida. O modelo da reabilitação assenta ainda no fresh start mas desenvolve um raciocínio diferente: o raciocínio de que o devedor não deve ser exonerado em quaisquer circunstâncias pois, em principio, os contratos são para cumprir (pacta sunt servanda). Em conformidade com isto, o devedor deve passar por uma espécie de período de prova, durante o qual parte dos seus rendimentos é afetada ao pagamento das dívidas remanescentes. Só findo este período, e tendo ficado demonstrado que o devedor merece (earns) a exoneração, deverá ser-lhe concedido o benefício[2]”.
Temos assim alguns ordenamentos jurídicos que concedem um perdão imediato e incondicional do remanescente da dívida e outros regimes, mais penalizadores e responsabilizadores dos sobreendividados, impondo um período longo durante o qual o devedor deve afetar a parte penhorável do seu salário ao pagamento das dívidas não pagas no decurso do processo de insolvência[3].
O artigo 235º do CIRE (Código de Insolvência e Recuperação de Empresas)[4] atribui ao devedor que seja uma pessoa singular, a possibilidade de lhe vir a ser concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
Ou seja, em linguagem comum, como afirma Assunção Cristas, “apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que tenha conseguido satisfazer totalmente ou a totalidade dos credores, o devedor pessoa singular fica vinculado ao pagamento aos credores durante cinco anos, findos os quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do cumprimento do remanescente[5]”.
Trata-se, assim, de uma “versão bastante mitigada”[6] do modelo do fresh start, na medida em que, a seguir à liquidação, decorre um “período probatório” de cinco anos, durante o qual o devedor deverá afetar o seu rendimento disponível ao pagamento das dívidas aos credores que não foram integralmente satisfeitas no processo de insolvência. Só depois de decorrido tal período e se a sua conduta tiver sido exemplar, poderá o devedor requerer a exoneração, obtendo, assim, o remanescente não pago.
Como consta do Preâmbulo não publicado do Decreto-Lei que aprova o Código da Insolvência[7], “A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o credor permaneça, durante um período de cinco anos – designado período de cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume entre várias outras obrigações a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (…), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, e tendo o devedor adoptado um comportamento liso para com os credores, cumprindo todos os deveres que sob ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor de eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento”.
Tratando-se de um benefício concedido pelo legislador, o devedor terá de se esforçar por merecer a concessão do mesmo – perdão total das dívidas não integralmente satisfeitas – e aquela dependerá da efectiva cedência do “rendimento disponível”, tal como se acha definido no nº 3 do art. 239º do CIRE, durante o período de cinco anos posterior ao encerramento do processo de insolvência.
A concessão de tal benefício surge como a contrapartida do sacrifício do devedor que, durante o período de cessão se encontra sujeito, entre outras, à obrigação de “exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado” e à obrigação de “entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão” – als. b) e c), do nº4 do art. 239º.
Expostos os motivos e objetivos que subjazem à consagração de tal instituto, passemos à análise da concreta questão objeto do presente recurso, respeitante à determinação dos rendimentos a ceder durante o período de cinco anos de “provação”.
Alegando auferir um vencimento bruto mensal de 1.982,40 € como professora do ensino secundário, vivendo com as suas duas filhas menores, e suportar despesas ordinárias no valor de 499,20€, a que acresce a quantia de 10€ no seu almoço diário, alegando, ainda, que o pai das menores não paga a pensão de alimentos no valor de 200,00€ fixada para cada uma das filhas, concluiu necessitar um rendimento, para si, não inferior a 750€ e de 350,00€, para cada filha.
A decisão recorrida, considerando ser de considerar que o salário mínimo nacional corresponde ao montante mínimo necessário a assegurar a subsistência com um mínimo de dignidade, que há que atender ao custo marginal de uma pessoa extra no agregado familiar, e que as despesas reconhecias pelo administrador de Insolvência no seu relatório são desproporcionadas, que o pai está obrigado a contribuir para o sustento das menores, determinou que o rendimento disponível a ceder pela devedora será integrado por todos os rendimentos que lhe advenham a qualquer título (nomeadamente os subsídios de férias e de natal), com exclusão de montante equivalente a 1,9 do salário mínimo nacional[8].
Insurge-se a Apelante contra o decidido, sustentando dever ser-lhe fixado o correspondente a 2,2 o salário mínimo nacional, argumentando, em primeiro lugar, que a sentença não fundamentou “devidamente” a determinação do rendimento disponível.
Relativamente a tal fundamento nada mais haverá que acrescentar para além de que a decisão recorrida expôs, ao longo de três páginas, os motivos pelos quais determinou a exclusão da cessão dos rendimentos que a insolvente aufira em montante superior a 1,9 salário mínimo nacional, e não os valores peticionados pela requente. De qualquer modo, a Apelante também não extrai qualquer consequência de tal alegação.
Mais alega que o tribunal ignorou o alegado na P.I. e no relatório do A.I., relativamente às despesas suportadas pela recorrente, o que não corresponde à verdade. A sentença recorrida não “ignorou” o por si alegado e o referido pelo A.I. relativamente às despesas suportadas pela Insolvente. A decisão recorrida apreciou os montantes das despesas referidos nos autos, concluindo que o valor de 1.900€ de despesas lhe parece “desproporcionado”, até porque “são superiores a rendimento da insolvente”.
Segundo a apelante, não se pode considerar que a recorrente tem a faculdade de exigir o pagamento coercivo das pensões das pensões de alimentos das menores do pai destas, porquanto, independentemente de tal pensão, a Requerente terá sempre de garantir a subsistência das menores.
Também nesta parte não podemos dar razão à apelante. Se o tribunal fixou (ou o Requerido acordou) uma pensão alimentar a cargo do progenitor no montante de 200€ para cada menor, tal significa que será o montante adequado face ao vencimento deste, ou seja, que o progenitor terá condições para arcar com tal despesa mensal. Como tal, a despesa a considerar pelo tribunal como necessária para o sustento de cada um dos menores terá de ter em consideração a capacidade do outro progenitor de contribuir para o sustento daquelas[9].
Por fim, insurge-se a apelante contra o facto de o juiz a quo não ter excluído dos rendimentos a ceder o montante necessário a satisfazer as despesas por si invocadas e cuja existência terá sido reconhecida pelo A.I..
A análise de tal questão e a necessidade de assentar nalguns critérios gerais para a determinação do montante a excluir ao abrigo da alínea levar-nos-á a um olhar mais atento sobre o modo como a doutrina e a jurisprudência têm vindo a tratar tal questão.
Encontrando-se em causa a decisão que defere liminarmente a cessão do rendimento disponível que o devedor venha a auferir no prazo de cinco anos para efeitos da concessão do benefício da exoneração do passivo restante, a única questão controvertida passa pela determinação de quais os rendimentos a excluir da cessão, por via do ponto i), alínea b), do nº 3 do artigo 239º do CIRE.
Segundo o nº 3 do artigo 239º do CIRE, por rendimento disponível entende-se o conjunto de todos os rendimentos que provenham, a qualquer título, ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o art. 115º cedidos a terceiros, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e dos seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua atividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
A razão de ser da exclusão de certos rendimentos [como é o caso da prevista no ponto i)] assenta na designada função interna do património (base ou suporte de vida do seu titular) e na sua prevalência sobre a função externa (garantia geral dos credores)[10].
Sendo o rendimento disponível integrado por todos os rendimentos que o devedor aufira, a qualquer título, dele será excetuado “o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”.
Se o legislador estabeleceu um limite máximo para a exclusão do rendimento disponível a ceder pelo insolvente (o equivalente a três vezes o salário mínimo nacional, coincidente com o valor máximo de impenhorabilidade previsto no nº 2 do artigo 824º do CPC[11]), optou por não fixar qualquer limite mínimo, em nosso entender, pelo facto de não nos encontramos perante uma prestação coativamente imposta por lei, assentando a cedência do rendimento disponível num ato inicial voluntário do insolvente, como contrapartida de um benefício a que o mesmo pretende aceder[12] – o perdão das dívidas, com a extinção do passivo sobrante.
Não indicando o artigo 239º, nº 3, al. a), i), qualquer limite mínimo, fazendo apenas referência ao referido conceito geral e abstrato – “o montante razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar –, é deixado ao juiz a tarefa de, caso a caso e atentas as circunstâncias específicas de cada devedor, concretizar e quantificar esse mesmo conceito[13]”.
Remetendo-nos o legislador para um conceito aberto e indeterminado – o direito a um mínimo de sobrevivência que radica no princípio da dignidade da pessoa humana –, haverá que proceder à sua objetivização, de modo a evitar desigualdades no tratamento da questão.
O apelo do legislador ao conceito do rendimento necessário para o sustento minimamente digno do devedor e dos seus membros do agregado familiar remete-nos para o valor constitucionalmente protegido da salvaguarda da pessoa humana e da sua dignidade pessoal (princípio com acolhimento, não só, nos arts. 1º, 13º, 59º, nº1, e 67º, nº1 da CRP, mas ainda nos arts. 1º e 25º, nº1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem).
A jurisprudência maioritária[14] vem assentando na ideia de que, se a lei alude ao salário mínimo nacional para definir o limite máximo isento da cessão do rendimento disponível, também se deverá atender[15] a esse salário mínimo nacional para, no caso concreto, determinar, a partir dele, qual o quantum que deve ser considerado compatível com o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar[16].
Também a doutrina[17] sustenta que não se deverá, nunca por nunca, fixar um quantitativo inferior ao salário mínimo nacional que esteja em vigor.
No procedimento conducente à exoneração do passivo restante são também tidos em consideração os interesses dos credores a verem os seus créditos satisfeitos, buscando-se um ponto de equilíbrio entre tais interesses e o direito do insolvente e do seu agregado a ter um sustento que lhe permita viver com um mínimo de dignidade[18].
Um olhar pela jurisprudência permite-nos ainda assentar nas seguintes ideias que constituirão um denominador comum na definição do concreto montante a excluir do rendimento disponível a ceder pelo insolvente:
1. Na fixação do rendimento disponível, deve ter-se em consideração as condições pessoais do devedor e do seu agregado familiar (idade, estado de saúde, situação profissional, rendimentos), pelo que o valor a excluir não poderá deixar de ter em consideração o número de membros do agregado familiar e respetivos rendimentos, auferidos independentemente da sua natureza. Alguma jurisprudência[19] recorre a fórmulas matemáticas, nomeadamente a escala de Oxford, fixada pela OCEDE, para a determinação da capitação dos rendimentos do agregado familiar – em que o índice 1 é atribuído ao 1º adulto do agregado familiar, o índice 0,7, para os restantes adultos, atribuindo 0,5 por cada criança. Outras decisões partem do valor equivalente a um salário mínimo por adulto do agregado e 0,5 por cada criança (atendendo-se, ainda, no caso de insolvência de só um dos progenitores, à capacidade do outro progenitor de contribuição para o sustento dos filhos)[20].
2. A fixação de um rendimento indisponível não visa assegurar a manutenção do padrão de vida anterior à declaração de insolvência, mas apenas uma vivência minimamente condigna, cabendo ao visado adequar-se à especial condição em que se encontra, ajustando as despesas ou encargos e o seu nível de vida, em general e na medida do possível, à realidade em que se encontra[21]. Sendo o critério a usar pelo julgador o da dignidade da pessoa humana, este encontra-se associado à dimensão dos gastos necessários à subsistência e custeio das necessidades primárias e não assente em referências grupais ou padrões de consumo próprios da classe social antes integrada, nível de vida correspondente ou a uma específica formação profissional ou atividade ou hábitos de vida pretéritos[22].
3. Não haverá que atender às concretas despesas comprovadas ou meramente alegadas pelo insolvente, procurando-se antes a determinação do que é razoável gastar para prover ao seu sustento e do seu agregado familiar que, eventualmente, tenha a seu cargo[23]. Quanto a eventuais despesas extraordinárias deverão ser atendidas pelo tribunal, já não no âmbito do ponto i), mas com recurso ao disposto na al. ii) que determina a exclusão de “outras despesas ressalvadas pelo juiz, a requerimento do devedor[24]”.
No caso em apreço, partindo destes critérios, tenderíamos a considerar adequada a exclusão do rendimento disponível de um montante mensal equivalente a 1,50 do salário mínimo mensal[25] – considerando-se que o progenitor também assumiu a obrigação de concorrer para o sustento da menor –, encontraríamos um valor mínimo de 900,00€.
Auferindo a insolvente a remuneração líquida mensal de 1.400€, e tendo a decisão a quo determinado a exclusão da cessão do equivalente a 1,9 da remuneração mínima garantida – o que equivale à exclusão do montante de 1.140 € mensais face ao rendimento mínimo em vigor –, teremos de concluir não ter ocorrido qualquer violação do disposto no artigo 239º, nº3, al. b), do CIRE.

A apelação é de improceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirma-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pela apelante, sem prejuízo do disposto no artigo 248º CIRE.           

                                                                            Coimbra, 14 de janeiro de 2020

V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC.

1. Na fixação do rendimento disponível deverá atender-se como limite mínimo de referência o correspondente à retribuição mínima nacional garantida.

2. Tratando-se de um valor a fixar casuisticamente pelo tribunal, atentas as específicas circunstâncias do insolvente e do seu agregado familiar, não são de atender as concretas despesas alegadamente suportadas pelo insolvente, mas tão só as abstratamente adequadas a assegurar uma vivência condigna.

3. Na fixação de tal valor haverá que ter em consideração a capacidade do outro progenitor para contribuir para o sustento de cada um dos menores que façam parte do agregado familiar.


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[1] Tal modelo é expressamente referenciado no ponto 45 do Preâmbulo do Dec. Lei nº 53/2004, que aprova o CIRE.
[2] Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina 2019-Reimpressão, p. 559. Em igual sentido, Catarina Serra e Maria Manuel Leitão Marques, segundo as quais a filosofia do fresh start, encara o sobre-endividamento como um risco natural da economia de mercado, particularmente associada à expansão do mercado do crédito – o crédito é uma atividade que se faz com risco e, por isso, o sobre-endividamento é um risco antecipado e calculado pelos credores: “o consumidor que ousa recorrer ao crédito e é mal sucedido não deve ser, por isso, excessivamente penalizado e, sobretudo, não deve ser excluído do mercado por um tempo demasiado longo – “Regular o sobreendividamento” in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações Sobre o Anteprojecto de Código”, Ministério da Justiça – Gabinete de Justiça e Planeamento, Coimbra Editora, Outubro de 2004, pp.88-91.
[3] Catarina Serra e Maria Leitão Marques, dando como ex. do primeiro o norte-americano e, em certa medida o inglês, e integrando o segundo, a Alemanha e a Áustria – artigo e local citado, p. 94-95, nota (5).
[4] Código a que pertencerão todas as disposições citadas sem menção de origem.
[5] Assunção Cristas, “Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante”, in THEMIS 2005, Edição especial, “Novo Direito da Insolvência”, Almedina, pág. 167.
[6] Na expressão de Maria Manuel Leitão Marques e Catarina Frade, estudo citado, pág. 94.
[7] Da autoria de Osório de Castro, e que se mostra publicado in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações Sobre o Anteprojecto de Código”, Ministério da Justiça – Gabinete de Justiça e Planeamento, Coimbra Editora, Outubro de 2004, pág. 233.
[8] O que, face ao valor do rendimento mínimo mensal em vigor, daria um valor de 1140,00 €.
[9] Neste sentido, foi proferido, entre outros, o Acórdão do TRC de 15 de outubro de 2019, relatado por Maria Catarina Gonçalves e no qual a aqui relatora foi adjunta.
[10] Cfr., neste sentido, Lectícia Marques, “Fresh Start: a exoneração do passivo restante ou uma nova oportunidade concedida a pessoas singulares”, 2009, pág. 19, disponível in www.repositório-aberto.up.pt., e José Gonçalves Ferreira, “A Exoneração do Passivo Restante”, Coimbra Editora, pág. 91, e quanto à distinção entre a função interna e a função externa do património, cfr. Luís Carvalho Fernandes, “Exoneração do Passivo Restante na Insolvência das Pessoas Singulares no Direito Português”, in Coletânea de Estudos sobre a Insolvência”, QUID JURIS, pág. 295.
[11] No sentido de que se trata de um limite máximo, se pronunciam Luís A. Carvalho Fernandes, “Exoneração do Passivo Restante na Insolvência das Pessoas Singulares no Direito Português”, in Coletânea de Estudos sobre a Insolvência”, QUID JURIS, pág. 295, e Assunção Cristas, “Exoneração do Passivo Restante”, artigo publicado na revista THEMIS, da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Edição Especial, Almedina, pág. 174.
[12] Embora a doutrina venha entendendo que a cessão não tem fonte negocial, mas legal, no sentido em que a cessão não depende da vontade do devedor, logo de qualquer ato seu, salvo, naturalmente, pelo que respeita ao facto de a exoneração ter sido por ele pedida – cfr., Luís Carvalho Fernandes, estudo e local citados, p. 294.
[13] Acórdão do TR de Guimarães, relatado por Maria Rosa Tching, disponível in www.dgsi.pt.
[14] Cfr., entre muitos outros, Acórdão do STJ de 02-02-2016, relatado por Fonseca Ramos, disponível in www.dgsi.pt.
[15] A ele se recorrendo como mero referencial, não serão, nesta sede, de aplicar automaticamente as regras de impenhorabilidade de salários e outros rendimentos consagradas no artigo 738º do NCPC – anterior 824º – (impenhorabilidade de 2/3 do vencimento ou outros rendimentos periódicos, ou de um valor inferior à remuneração mínima mensal garantida), juntamente com a avaliação dos gastos necessários à subsistência e custo das necessidades primárias do devedor e do seu agregado familiar.
[16] Como já se pronunciou inúmeras vezes o Tribunal Constitucional, “o salário mínimo nacional, contendo em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o “mínimo dos mínimos” não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo, assim como, também uma pensão de invalidez, doença, velhice ou viuvez cujo montante não seja superior ao salário mínimo nacional não pode deixar de conter em si a ideia de que a sua atribuição corresponde ao mínimo considerado necessário para a subsistência do respetivo beneficiário – Acórdão do Tribunal Constitucional nº177/2002, de 23.04, relatado por Maria dos Prazeres Beleza.
[17] José Gonçalves Ferreira, “A exoneração do passivo restante”, Coimbra Editora, p.94.
[18] Cfr., Mafalda Bravo Correia, “Critérios de Fixação do rendimento disponível no âmbito do procedimento de exoneração o passivo restante na Jurisprudência e sua conjugação com o dever de prestar alimentos.”, in Julgar – nº 31- 2017, p.118. No sentido da inexistência de qualquer inconstitucionalidade material na ponderação dos interesses em jogo do devedor insolvente e dos credores na previsão do instituto da exoneração do passivo restante, se pronunciou Paulo Mota Pinto, “Exoneração do passivo restante: Fundamento e constitucionalidade”, in “III Congresso de Direito da Insolvência”, Coord. Catarina Serra, Almedina, pp.175-195.
[19] Cfr., entre outros, Acórdão do TRL de 11-10-2016, relatado por Carla Câmara, Acórdão do TRG de 08-05-2015, relatado por Manuela Fialho, disponíveis in www.dgsi.pt.
[20] Na determinação de tal montante, o Acórdão TRL de 20-09-2012, propôs ainda como critério orientador que o rendimento per capita do agregado familiar do insolvente não deve, em princípio, ser inferir a ¾ do indexante dos apoios sociais, de acordo com o disposto no artigo 824º, nº4, do CPC, na redação do DL nº 226/2008, de 20 de Novembro, norma esta que foi eliminada pelo atual Código – Acórdão relatado por Tomé Ramião, disponível in www.dgsi.pt.
[21] Acórdão TRE de 04.12.2014, relatado por Cristina Cerdeira, e Acórdão TRG de 19-03-2013, relatado por António Santos, disponível in www.dgsi.pt.
[22] Acórdão do TRC de 31-01-2012, relatado por Carlos Marinho, disponível in www.dgsi.pt.
[23] Como se afirma no Acórdão do TRC de 31.01.2012, não pode existir qualquer correspondência entre o valor a fixar e o montante global das despesas indicadas pelo devedor, por falta de suporte legal – relatado por Carlos Marinho, disponível in www.dgsi.pt.
[24] Onde se inserirão despesas extraordinárias por doença aguda ou crónica, incapacidade, etc.
[25] Fixado pelo DL nº 117/2018, de 27 de Dezembro, para o ano de 2019, no valor de 600,00 €.