Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
990/10.5T2OBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: COIMA
DECISÃO CONDENATÓRIA
FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 07/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL DE OLIVEIRA DO BAIRRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 58º, DO D.L. 433/82, DE 27/10
Sumário: Em razão da génese e teleologia do procedimento contra-ordenacional, a fundamentação, tal como está estabelecida no art.º 58º, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, será suficiente desde que justifique as razões pelas quais - atentos os factos descritos, as provas obtidas e as normas violadas (art.º 58º, n.º 1, alíneas b) e c)) - é aplicada esta ou aquela sanção ao arguido, de modo que este, lendo a decisão, se possa aperceber, de acordo com os critérios da normalidade de entendimento, as razões pelas quais é condenado e, consequentemente, impugnar tais fundamentos.
A decisão administrativa que não contenha os requisitos do artigo 58º, do referido Diploma, está ferida de nulidade, sendo-lhe aplicável a disposição do artigo 379.º, n.º 1, al. a), do C.P.P., sendo esta de conhecimento oficioso pelo Tribunal.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
1. Z.. - .., Lda., devidamente identificada nos autos, impugnou judicialmente a decisão da Inspecção-Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território que lhe impôs as seguintes sanções:
a) A coima de € 38.500,00 (trinta e oito mil e quinhentos euros), pela prática de uma contra-ordenação ambiental muito grave, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 20.º, n.º 1 e 24.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 169/2003, de 23 de Agosto, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 64/2008, de 8 de Abril, e da alínea b) do n.º 4 do artigo 22.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, na redacção dada pela Lei n.º 89/2009, de 31 de Agosto;
b) A coima de € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros), pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 7.º, n.º 3 e 67.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro;
c) Efectuado o cúmulo jurídico, a coima única de € 39.250,00 (trinta e nove mil duzentos e cinquenta euros).
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2. No início da audiência de julgamento, «ao abrigo do disposto no artigo 338.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (aplicável por força do disposto nos artigos 66.º do RGCO e 13.º, n.º 7, do Decreto-Lei n.º 17/91, de 10 de Janeiro», a Mma. Juíza da Comarca do Juízo de Instância Criminal de Oliveira do Bairro (Comarca do Baixo Vouga) proferiu decisão do seguinte teor:
«Face ao exposto, ao abrigo da conjugação das normas previstas nos artigos 58.º, n.º 1, alíneas b) e c), 41.º, n.º 1 do RGCO e 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, alínea a) e 380.º, do Código de Processo Penal, declara-se nula a decisão administrativa de fls. 68 a 78, determinando-se, consequentemente, o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no artigo 64.º, n.º 3, do RGCO, o que se decide, neste momento, ao abrigo do disposto no artigo 388.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (aplicável por força do disposto nos artigos 66.º do RGCO e 13.º, n.º 7, do Decreto-Lei n.º 17/91, de 10 de Janeiro), razão pela qual, consequentemente, não se procederá à produção de qualquer meio de prova».
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3. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, tendo extraído da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1.ª - Nos presentes autos, a arguida “Z.. - .., Lda.”, inconformada com a decisão proferida pela Inspecção Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território, impugnou judicialmente aquela decisão, que a condenou numa coima única de 39.250,00€, pela prática das contra-ordenações p. e p. pelos arts. 20.º, n.º 1 e 24.º, n.º 1, al. d), do DL 196/2003, de 23-08, e art. 7.º, n.º 3 e 67.º, n.º 2, al. a), do DL 178/2006, de 05-09.
2.ª - A sentença recorrida decidiu-se pelo arquivamento dos autos, por entender que a decisão administrativa violou o disposto nos arts. 58.º, n.º 1, als. b) e c) e 41.º, n.º 1, do DL 433/82, de 27-10, doravante denominado RGCO, e arts. 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, al. a) e 380.º, todos do Código de Processo Penal, com o que o Ministério Público discorda.
3.ª - Da decisão da autoridade administrativa, da factualidade dada como provada consta o seguinte:
«a) Que no dia 10 de Setembro de 2008, pelas 10h00m - cfr. autos de notícia n.º 192/2008 e n.° 191/2008 - foi efectuada uma acção de fiscalização levada a cabo pelo Serviço de Protecção à Natureza e Ambiente (SEPNA) da Guarda Nacional Republicana (...) a um depósito de sucata sito na E.N. … propriedade da “Z… - .., Lda., pessoa colectiva n.º … com sede na Rua …Aveiro.
b) Que em parte da área da implementação da empresa, nomeadamente no parqueamento, se encontravam diversos resíduos (material ferroso, plásticos, filtros, bancos de automóveis, pára-choques, etc.) sem qualquer tipo de separação.
c) Que o responsável T... informou que os resíduos eram provenientes da sua antiga empresa em S. Bernardo Aveiro e como estava a proceder ao licenciamento das operações de gestão de VFV [veículos fim de vida] para estas novas instalações já tinha deslocado os mesmos para ali onde seriam separados antes de os entregar a operadores licenciados para operações de gestão de resíduos.
d) Que a arguida não linha qualquer licenciamento para as operações de gestão de VFV que levava a cabo.
e) Que laborava no local desde o início de 2008 e os VFV eram provenientes, na sua maioria, de França.
f) Que os factos acima descritos foram constatados pelo autuante R... (...) e testemunhados por F... (...) e C... (...).
g) Que a arguida declarou em sede de IRC, e relativamente ao exercício de 2007, um lucro tributável de €10.221,16.
h) Que ao proceder a operações de desmantelamento de VFV sem licenciamento da entidade competente a arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada e de que era capaz.
i) Que ao não proceder à separação na origem de todos os resíduos por si produzidos a arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada por se encontrar a laborar e de que era capaz».
4.ª - A decisão administrativa respeita todos os requisitos formais, designadamente, do artigo 58.º, n.º 1, als. a) a d), do RGCO, pelo que, ao contrário do que se defende na sentença recorrida, não padece de qualquer nulidade, pois contém todos os elementos necessários, designadamente os respeitantes à culpa.
5.ª - Compulsado o texto da decisão administrativa, constata-se ter-se feito constar os elementos respeitantes à imputação subjectiva dos factos à arguida, designadamente, ao dizer-se:
«h) Que ao proceder a operações de desmantelamento de VFV sem licenciamento da entidade competente a arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada e de que era capaz.
i) Que ao não proceder à separação na origem de todos os resíduos por si produzidos a arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada por se encontrar a laborar e de que era capaz», pelo que a decisão da entidade administrativa não padece de qualquer nulidade, ao contrário do que se defende na sentença recorrida.
6.ª - A sentença recorrida, ao considerar não resultar da decisão administrativa quais os factos que resultaram apurados e que permitem a subsunção no enquadramento jurídico das infracções que determinaram a aplicação de coimas, violou o disposto no art. 58.º, n.º 1, als. a) a d), do RGCO.
7.ª - Acresce que, a propósito das questões suscitadas pelo Tribunal nos pontos a) a c) da sentença e enumeradas a fls. 164 a 167, a arguida recorrente não as arguiu nas conclusões do recurso interposto da decisão da autoridade administrativa, pelo que, a tratar-se de nulidade sanável, nos termos do art. 379.°, n.° 2, do Código de Processo Penal, em conjugação com o art. 120.° do mesmo diploma legal, tal nulidade nunca poderia ser oficiosamente conhecida pelo Tribunal.
8.ª - Se a nulidade relativa não for expressamente arguida pelos interessados, o Juiz não pode oficiosamente dela conhecer, ao contrário das nulidades absolutas e uma vez que a nulidade arguida pela empresa apenas se prende com os factos respeitantes à culpa, pelo que a sentença recorrida violou o disposto nos arts. 379.º, n.° 2, do Código de Processo Penal, em conjugação com o art. 120.°.
9.ª - As questões levantadas pelo Tribunal na sentença recorrida sobre a factualidade pela qual a arguida vem acusada, nos pontos a) a c) da sentença e enumeradas a fls. 164 a 167, impõem-lhe a realização da audiência de julgamento, com toda a produção da prova indicada pelos sujeitos processuais, pelo que, ao determinar o arquivamento dos autos, a sentença recorrida violou o disposto no art. 72.º, n.ºs l e 2, do RGCO.
10.ª - Ainda que se venha a entender que a decisão administrativa é nula, sempre se dirá, ademais, que a consequência nunca seria o arquivamento dos autos, conforme se entendeu na sentença recorrida.
11.ª - Com efeito, é nosso entender que, sendo a decisão administrativa nula, tal nulidade teria como consequência a remessa do processo de contra-ordenação para a autoridade administrativa.
O art. 122.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do art. 41.º, n.º 1, do RGCO, obriga a que “A declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição (...)”. Ou seja, qualquer nulidade de que a decisão administrativa padeça, determinaria o reenvio dos autos para a entidade administrativa, com a subsequente prolação de nova decisão administrativa expurgada daquele vício, e não o arquivamento dos autos, tal como se entendeu na decisão recorrida.
12.ª - Caso se conclua pela existência de alguma nulidade, a sentença recorrida, ao decidir pelo arquivamento dos autos e ao não ordenar o reenvio para a entidade administrativa, violou desse modo o art. 122.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do art. 41.º, n.º l, do RGCO.
Por todo o exposto, deve ser a decisão recorrida revogada, uma vez que a decisão administrativa não evidencia nenhuma nulidade nem padece de qualquer outro vício, e ser designada data para realização de audiência de discussão e julgamento, com a produção da prova indicada pelo Ministério Público e pela arguida no recurso da decisão da entidade administrativa, ou, caso assim não se entenda, o reenvio do processo para a autoridade administrativa, a fim de a decisão administrativa ser expurgada de qualquer nulidade, assim se fazendo justiça!
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4. A arguida Z.. - .., Lda. rematou a resposta que apresentou ao recurso nos termos infra transcritos:
1. A arguida no recurso de contra ordenação que deduziu, logo em questão prévia alegou a ausência de factos integradores do elemento subjectivo do tipo e, consequentemente, requer o arquivamento dos autos, por o convite ao aperfeiçoamento não ser neste ramo do direito possível, não sendo necessário que alegue expressamente que tal omissão consubstancia uma nulidade;
2. A ausência de factos integradores do elemento subjectivo do tipo imputado à arguida nunca poderiam determinar um despacho remessa, antes, como, exemplarmente, o faz a decisão em crise, o arquivamento dos autos, por, ao contrário do que sucede em Processo Civil, neste domínio, não ser admissível o despacho convite;
3. Não restam dúvidas quanto à inexistência de factos que integrem o elemento subjectivo do tipo, isto é, o dolo ou a negligência. Com efeito, em lugar algum da decisão administrativa são dados por assentes factos dos quais decorra a imputação à arguida de uma conduta dolosa ou negligente. Pura e simplesmente a imputação subjectiva da infracção é inexistente.
4. Ademais, as considerações expendidas pela autoridade administrativa a esse título em sede de apreciação probatória, são irrelevantes na medida em que também o elemento subjectivo, na modalidade que se venha a apurar, tem de constar da factualidade dada como provada o que, como se deixa exposto e, lapidarmente, consta da sentença recorrida, não sucedeu.
5. Como já se decidiu superiormente, “não constando da factualidade apurada de uma decisão da autoridade administrativa que a arguida agiu com dolo ou negligência, essa factualidade é insuficiente para integrar a contra ordenação imputada à arguida, devendo esta ser absolvida da mesma”;
6. O recurso para o Tribunal tem de conformar-se aos factos e ao direito vertidos na, agora, acusação, ou seja, na decisão da autoridade administrativa, sob pena de se ir para além do objecto do processo. O Tribunal, pese embora, podendo alterar a decisão, fica vinculado, quanto a factos típicos, aos constantes da “decisão - acusação”. Não pode o Tribunal alterar substancialmente os factos constantes desta, nem tão pouco, como é evidente, decidir sobre matéria de facto que não corresponda àquela que consta da decisão da autoridade administrativa. É o que ora sucede e o Tribunal, experimentado, dedicado e cauteloso não deixou de sentenciar.
7. Ainda que assim não fosse, a igual solução se chegaria, uma vez que a decisão administrativa é, ainda, omissa quanto aos factos não provados, desconsiderando, em absoluto, a defesa oportunamente apresentada pela arguida em sede de processo administrativo.
Termos em que, nos melhores de direito, cujo proficiente e experimentado suprimento de V.ªs Ex.ªs se invoca, deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se integralmente a decisão vertida na conhecedora peça processual sob censura, como é de justiça.
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5. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto formulou parecer do seguinte teor:
«No que ao mérito do recurso respeita acompanha-se na íntegra a bem elaborada motivação da Ex.ma Magistrada do M.° P.° no Juízo de Instância Criminal de Oliveira do Bairro.
Na verdade, os elementos constantes da decisão administrativa, pese embora a falta de especificação em algumas partes, contêm o suficiente, em elementos objectivos, para que a firma arguida perceba a razão pela qual foi sancionada. E de tal forma é assim que a mesma nem sequer contesta esses elementos objectivos, apenas se cinge aos elementos subjectivos. É que a decisão refere que os resíduos, tal como a foto junta com o auto de notícia e as testemunhas depois decerto explicitariam, se encontram sem separação, o que basta para a firma arguida perceber do que se trata. E refere em termos idênticos que a mesma detinha veículos em fim de vida para desmantelar, o mesmo é dizer para proceder a operações de desmantelamento, tendo, também aqui, a aludida firma entendido o que afirmava a decisão. É que se não fosse assim a mesma teria recorrido, explicitamente, também desta parte da decisão o que não fez, apenas se cingindo ao elemento subjectivo.
E, como refere a jurisprudência citada pela Magistrada recorrente, e como é, parece-me, compreensível, não se pode exigir num processo que se pretende célere e simples, efectuado por autoridades administrativas, o rigor que se deve ter numa acusação ou numa sentença em processo crime, em que os valores em causa, tal como se encontra determinado por lei, são marcadamente distintos, sabido como é que o direito penal é tido como a ultima ratio, o substrato mínimo, os valores fundamentais para uma vivência em sociedade.
Assim sendo, mesmo no que respeita ao elemento subjectivo, como se retira do ponto III h) e i), parece-me que a decisão tem os elementos mínimos suficientes para ser, como foi - veja-se a contestação, que não apenas a questão prévia - entendida pela firma arguida e deste modo para ser apreciada em julgamento, não podendo proceder a questão prévia levantada, e alargada, na sentença.
Para além de que, como também refere a recorrente, a eventual nulidade não é insanável e depende de arguição nos termos dos arts. 119.º e 120.º do CPP, aplicáveis por força do art. 41.º n.º 1 do RGCO, não podendo pois ser oficiosamente conhecida, sendo que a mesma nunca levaria ao arquivamento dos autos, mas à repetição do acto considerado nulo, nos termos do art. 122.º, n.º 2 do CPP.
(…).
Pelo que entendo que o recurso merece provimento».
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6. Cumprido o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal, a arguida exerceu o seu direito de resposta, mas nada acrescentou com relevância para a decisão a proferir.
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7. Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Fundamentação:
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Em processo de contra-ordenação, o regime de recurso interposto, para o Tribunal da Relação, de decisões proferidas em 1.ª Instância deve observar as regras específicas referidas nos arts. 73.º a 75.º do DL 433/82, de 27-10, com as alterações introduzidas pelo DL n.º 244/95, de 14-09 e pela Lei n.º 109/2001, de 24-12 (Regime Jurídico das Contra-Ordenações, doravante apenas designado por RGCO), seguindo, em tudo o mais, a tramitação do recurso em processo penal (art. 74.º, n.º 4), em função do princípio da subsidiariedade genericamente enunciado no art. 41.º, n.º 1, do citado diploma.
Em recursos interpostos de decisões do Tribunal de 1.ª Instância, no âmbito de processos de contra-ordenação, o Tribunal da Relação apenas conhece, em regra, da matéria de direito, sem prejuízo de poder “alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação temática aos termos e ao sentido da decisão recorrida”, “anulá-la e devolver o processo ao tribunal recorrido” (cfr. art. 75.º, n.ºs 1 e 2, ainda do mesmo corpo normativo).
Por outro lado, e como é sobejamente conhecido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação (art. 412.º, n.º 1 do CPP).
São estas as questões que o recorrente submete à apreciação deste Tribunal:
a) Se a decisão recorrida padece (ou não) da nulidade prevista nas normas, conjugadas, dos artigos 58.º, n.º 1, alíneas b) e c) do RGCO e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal;
b) Se, a verificar-se essa nulidade, a mesma: (i) está dependente de arguição, motivo por que, a decisão recorrida não podia ter-se pronunciado, para ter esse vício como verificado, sobre a factualidade vertida nos pontos a) a c) do despacho judicial em causa, enumerados a fls. 164/167; (ii) tem como consequência a remessa do processo de contra-ordenação para a autoridade administrativa, tendo em vista a reformulação da respectiva decisão, e não o arquivamento dos autos.
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2. Na decisão administrativa foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
«a) Que no dia 10 de Setembro de 2008, pelas 10h00m - cfr. autos de notícia n.º 192/2008 e n.º 191/2008 - foi efectuada uma acção de fiscalização levada a cabo pelo Serviço de Protecção à Natureza e Ambiente (SEPNA) da Guarda Nacional Republicana (Brigada Territorial n.º 5 - Grupo Territorial de Aveiro - Destacamento Territorial de Aveiro) a um depósito de sucata sito na E.N. …, concelho de Oliveira do Bairro, propriedade da sociedade “Z… - .., Lda.”, pessoa colectiva n.º … com sede na Rua …Aveiro.
b) Que em parte da área de implementação da empresa, nomeadamente no parqueamento, se encontravam diversos resíduos (material ferroso, plásticos, filtros, bancos de automóveis, pára-choques etc.) sem qualquer tipo de separação.
c) Que o responsável T... informou que os resíduos eram provenientes da sua antiga empresa em S. Bernardo Aveiro e como estava a proceder ao licenciamento das operações de gestão de VFV para estas novas instalações tinha já deslocado os mesmos para ali onde seriam separados antes de os entregar a operadores licenciados para operações de gestão de resíduos.
d) Que a arguida não tinha qualquer licenciamento para as operações de gestão de VFV que levava a cabo.
e) Que laborava no local desde o início de 2008 e os VFV eram provenientes, na sua maioria, de França.
f) Que os factos acima descritos foram constatados pelo autuante R..., Soldado n.º …e testemunhados por F..., Cabo n.º .. e C..., Cabo n. .., do Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente (SEPNA) da Guarda Nacional Republicana (Brigada Territorial n.º 5 - Grupo Territorial de Aveiro - Destacamento Territorial de Aveiro).
g) Que a arguida declarou em sede de IRC, e relativamente ao exercício de 2007, um lucro tributável de € 10.221,16.
h) Que ao proceder a operações de desmantelamento de VFV sem licenciamento da entidade competente a arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada e de que era capaz.
i) Que ao não proceder à separação na origem de todos os resíduos por si produzidos a arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada por se encontrar a laborar e de que era capaz».
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3. O despacho recorrido está fundamentado, de facto e de direito, nestes termos:
«Z.. - .., Lda.”, (…), inconformada com a decisão proferida pela “Inspecção Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território”, que lhe aplicou, respectivamente, a coima única de € 39.250,00 pela prática das contra-ordenações previstas e punidas nos artigos 20.º, n.º 1 e 24.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 196/2003, de 23 de Agosto e 7.º, n.º 3 e 67.º, n.º 2, alínea a) do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 05 de Setembro, impugnou judicialmente essa decisão, invocando, nomeadamente, a nulidade da decisão administrativa, por omissão dos requisitos contidos no artigo 58.º do RGCOC, designadamente, por omissão de factos susceptíveis de caracterizar a imputação subjectiva da infracção.
Trata-se de questão prévia, cuja procedência obsta à apreciação do mérito da decisão administrativa, no que concerne à verificação das contra-ordenações e medida das coimas aplicadas, razão pela qual, aplicando o disposto no artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (por força do disposto nos artigos 66.º do RGCOC e 13.º, n.º 7, do Decreto-Lei n.º 17/91, de 10 de Janeiro) se passará ao conhecimento da mesma.
Apreciando:
Dispõe o n.º 1 do artigo 58.º do RGCOC (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro) que: “A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: a) a identificação dos arguidos; b) a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas; a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; d) a coima e as sanções acessórias”.
(…).
É controvertida a questão de saber a consequência processual resultante da omissão destes requisitos.
Há quem defenda que consubstancia uma nulidade, por aplicação subsidiária dos preceitos do processo criminal relativos às decisões condenatórias, em consonância com o preceituado no artigo 41.º do RGCOC, nomeadamente, o regime previsto nos artigos 374.º, n.ºs 2 e 3 e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal – neste sentido, cfr. MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, “Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 2.ª edição, Dezembro de 2002, Vislis Editores, págs. 334 e 335, anot. 4.
Por outro lado, há quem defenda que consubstancia uma mera irregularidade (aplicando-se o regime previsto no artigo 123.º do Código de Processo Penal) – neste sentido, cfr. ANTÓNIO BEÇA PEREIRA, “Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas Anotado”, 6.ª edição, Almedina, Março de 2005, pág. 109, anot. 2.
No âmbito da primeira das posições enunciadas – aplicação do regime das nulidades da sentença – defendem os Ilustres Comentadores referidos que, além do mais, se trata de vício de conhecimento oficioso, por entenderem que, se o artigo 380.º do Código de Processo Penal ao estabelecer que o regime das irregularidades da sentença, de menor importância, compreende o conhecimento oficioso, deverá concluir-se que também valerá este conhecimento oficioso para as nulidades previstas no artigo 379.º, “pois seria incongruente um regime legal em que houvesse a preocupação de correcção oficiosa de irregularidades de menor importância e não se possibilitasse ao tribunal corrigir as de maior gravidade” (cfr. ob. loc. cit.).
Face ao exposto, cabe, pois, apreciar se a decisão administrativa recorrida preenche os requisitos enunciados no artigo 58.º do RGCOC e, em caso negativo, qual a consequência processual dessa omissão.
A douta decisão recorrida está plasmada a fls. 68 a 78 dos autos.
Quanto aos factos imputados à arguida aí se refere que, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar ali enunciados, foi realizada uma inspecção de fiscalização a instalações da propriedade da arguida, tendo sido detectado:
“b) Que em parte da área de implementação da empresa, nomeadamente no parqueamento, se encontravam diversos resíduos (material ferroso, plásticos, filtros, bancos de automóveis, pára-choques, etc.) sem qualquer tipo de separação.
(…)
d) Que a arguida não tinha qualquer licenciamento para as operações de gestão de VFV que levava a cabo.
(….)
h) Que ao proceder a operações de desmantelamento de VFV sem licenciamento da entidade competente a arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada e de que era capaz.
i) Que ao não proceder à separação na origem de todos os resíduos por si produzidos a arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada por se encontrar a laborar e de que era capaz”.
Ora, salvo o devido respeito, tal não corresponde à imputação de qualquer factualidade específica à arguida, tratando-se de mero juízo conclusivo.
Com efeito, verifica-se que o elenco de factos dados como provados na decisão recorrida é escasso, não permitindo, em nosso entender, perceber, desde logo:
a. o modo como se encontravam dispostos os “resíduos” encontrados (material ferroso, plásticos, filtros, bancos de automóveis, pára-choques, sendo que o vocábulo “etc.” nada representa), sendo certo que bastaria à entidade administrativa fazer a descrição da situação encontrada, com remissão para suporte fotográfico, se necessário. Considerando que a factualidade que vem imputada à arguida não especifica tal questão, entendemos, salvo o devido respeito, não ser possível retirar que os resíduos foram encontrados sem qualquer tipo de separação, pois que tal se trata de mera conclusão que não tem, assim, qualquer suporte fáctico;
b. a falta de licenciamento da sociedade arguida para as operações de VFV que levava a cabo: porém, não lhe é concretamente imputada qualquer operação de VFV, sendo que apenas em factualidade relativa ao tipo subjectivo vem referido que “ao proceder a operações de desmantelamento de VFV sem licenciamento da entidade competente” – v. alínea h) da factualidade dada como provada na decisão administrativa – sem que, contudo, venha imputada à arguida, objectivamente, a prática de operações de desmantelamento, pois a factualidade objectiva da infracção apenas refere vagamente a falta de licenciamento para as operações de VFV que a arguida levava a cabo, sem especificar quais.
c. os cuidados a que a arguida estava obrigada e de que era capaz e que foram omitidos, pois não consta do elenco de factos provados, sequer, a actividade a que se dedica a sociedade arguida, por forma a aferir-se se, da actividade que a mesma pratica, é exigível que a mesma agisse de determinada forma, para além do que, como bem alega a recorrente nas suas doutas alegações de recurso, não vem imputada factualidade que permita aferir que a arguida agiu representando como possível a prática da contra-ordenação, mas sem se conformar com essa realização ou não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.
Do exposto, resulta assim, no nosso modesto entendimento, que a decisão recorrida é omissa na descrição fáctica dos elementos objectivos e subjectivos das infracções cuja verificação se considerou e que determinaram a aplicação de coimas à arguida, não contendo a decisão recorrida factualidade suficiente que permita concluir pela verificação das aludidas infracções (falta de licença para proceder a operações de desmantelamento e existência de resíduos sem a devida separação, promovendo a sua separação por fluxos e fileiras).
Ou seja: não resulta da decisão administrativa quais os factos que resultaram apurados e que permitem a subsunção no enquadramento jurídico das infracções que determinaram a aplicação de coimas.
Assim, a decisão recorrida é omissa quanto a factos essenciais que consubstanciam a prática da contra-ordenação que se julgou verificada.
Não contendo tal indicação, falta-lhe elemento essencial, pelo que a decisão, de per si, não permite a apreensão dos fundamentos da decisão administrativa, pelo que, só por aqui, concluímos não ser a decisão recorrida passível de juízos acerca da verificação das imputadas infracções, o que colide com o exercício do direito de defesa da sociedade arguida, pois tal não permite que se ataquem os pressupostos e fundamentos da decisão, precisamente, por ausência/omissão de tais elementos, nem permite, por outro lado, que o Tribunal analise tais fundamentos ou pressupostos em ordem a aferir se há a verificação da factualidade que consubstancia a prática da contra-ordenação.
Acresce que, não obstante, concluiu a entidade administrativa pela prática das infracções a título de negligência, sendo certo que tal factualidade não vem suficientemente elencada, razão pela qual não é possível sindicar os fundamentos de facto em que assentou a formação da convicção da entidade administrativa a tal propósito, inexistindo, assim, qualquer facto que sustente tal conclusão. Afigura-se-nos, pois, que a imputação negligente também não encontra sustento em qualquer factualidade concreta.
Concluímos, pois, que a decisão administrativa recorrida não contém os elementos exigidos na alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do RGCOC [omissão completa dos factos imputados, quer do tipo objectivo, quer do tipo subjectivo].
Resta, apenas, tomar posição acerca da consequência processual de tal omissão: nulidade ou mera irregularidade.
A nossa posição é a de que se trata de nulidade. Com efeito, sufragamos inteiramente os argumentos invocados por MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA (cfr. ob. loc. cit.), que, com vénia e salvo o devido respeito por posição diversa, aqui damos por reproduzidos, pois argumentam, validamente, no sentido do afastamento da posição defendida por ANTÓNIO BEÇA PEREIRA, uma vez que não é o facto de a decisão condenatória se converter em acusação em caso de impugnação (nos termos do disposto no artigo 62.º, n.º 1, do RGCOC) que impede a aplicação subsidiária do regime das nulidades, por comparação com o regime dos processos de contra-ordenações fiscais aduaneiras, em que a apresentação do processo ao juiz também é equivalente à acusação, mas sem que se impeça que a falta dos requisitos da decisão administrativa condenatória constitua nulidade insanável. Para além disso, no nosso modesto entendimento, consideramos que não vale só por si o argumento de que as nulidades têm de estar expressamente previstas na lei, nos termos do artigo 118.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, porquanto, perante a total omissão legislativa da consequência processual da falta dos requisitos exigidos para a decisão condenatória, por aplicação subsidiária das normas processuais penais, estamos perante nulidade expressamente prevista na lei.
Acresce que entendemos que a posição adoptada é a mais consentânea com a possibilidade do cabal exercício do direito de defesa dos arguidos – de consagração constitucional (cfr. artigo 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa) –, porquanto os mesmos, apesar de poderem recorrer, como foi o caso, não se encontram na posse dos fundamentos da decisão que lhes permitam indicar os concretos pontos em que manifestam a sua discordância.
No mesmo seguimento, aceitar que uma decisão nestes termos consubstanciaria uma mera irregularidade também não permitiria fazer uma sindicância segura da mesma, pois são desconhecidos os juízos em que assenta.
Na esteira dos referidos Ilustres Comentadores entendemos também que se trata de vício de conhecimento oficioso, precisamente por aderirmos, também, aos argumentos que a este propósito invocam, sendo certo, no entanto, que no caso em apreço a própria recorrente havia suscitado a questão da nulidade da decisão administrativa, embora com argumentos não totalmente coincidentes com os supra elencados.
Face ao exposto, ao abrigo do disposto da conjugação das normas previstas nos artigos 58.º, n.º 1, alíneas b) e c), 41.º, n.º 1 do RGCOC e 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, alínea a) e 380.º, do Código de Processo Penal, declara-se nula a decisão administrativa de fls. 68 a 78, determinando-se, consequentemente, o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no artigo 64.º, n.º 3, do RGCOC, o que se decide, neste momento, ao abrigo do disposto no artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (aplicável por força do disposto nos artigos 66.º do RGCOC e 13.º, n.º 7, do Decreto-Lei n.º 17/91, de 10 de Janeiro), razão pela qual, consequentemente, não se procederá à produção de qualquer meio de prova».
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4. Mérito do recurso:
Dispõe o n.º 1 do art. 58.º do Decreto-Lei 433/82 (na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 244/95, de 14/9) que a decisão que aplica a coima ou sanções acessórias dever conter a identificação dos arguidos [al. a)]; a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas [al. b)]; a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão [al. c)]; a coima e as sanções acessórias [al. d)].
Mesmo em matéria contra-ordenacional, da narração acusatória devem constar os factos relativos à culpabilidade, onde se reconheça o conhecimento (representação) e a vontade de realização do facto material típico - do tipo objecto (elementos objectivos, naturalísticos ou normativos) de uma infracção.
Como referem Simas Santos e Lopes de Sousa, in “Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral”, 3.ª edição, 2006, Vislis Editores, em anotação ao art. 58.º, «os requisitos previstos neste artigo para a decisão condenatória contra-ordenacional visam assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão.
Por isso as exigências aqui feitas deverão considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos».
A lei não define qual o âmbito ou rigor da fundamentação que aqui se impõe, mas temos entendido que não se impõe aqui uma fundamentação com o rigor e a exigência que se impõem no art. 374.º, n.º 2, do CPP, por várias razões: por um lado, porque esta é uma decisão administrativa, que não se confunde com a sentença penal, como o ilícito contra-ordenacional não se confunde com o ilícito penal (são realidades distintas, revestindo a sentença penal uma maior solenidade, tendo em conta, precisamente, uma supremacia dos interesses em causa); por outro, porque aquela decisão, quando impugnada, converte-se em acusação, passando o processo a assumir uma natureza judicial (art. 62.º, n.º 1, do DL 433/82, de 27.10, doravante apenas designado por RGCO).
Não faz, assim, qualquer sentido que a decisão administrativa - que em caso de impugnação se converte em acusação - tenha de obedecer a um rigorismo de fundamentação semelhante ao da sentença penal. Por um lado, seria incongruente e destituído de qualquer sentido que a fundamentação exigida no artigo em causa tivesse a amplitude prevista no artigo 374.º, n.º 2, do CPP, relativamente à fundamentação da sentença, quando naquele se estabelecem outros elementos que deve conter a decisão administrativa - essa exigência não faria sentido se ao dever de fundamentar que aí se prevê se atribuísse o alcance que resulta do artigo 374.º, n.º 2, do CPP, retirando sentido à exigência contida nas alíneas b) e c) (primeira parte) daquele art. 58.º.
Como é referido no Ac. do STJ de 21-09-2006, proferido no proc. n.º 06P3200, in www.dgsi.pt., assumindo a decisão prevista no artigo 58.º o carácter de uma sentença condenatória em matéria contra-ordenacional, tem uma estrutura semelhante prevista para a sentença penal no artigo 374.º, embora só aproveitando desta os elementos mais elementares e básicos acima descritos.
O que se compreende se tivermos em consideração que o processo contra-ordenacional é, até à fase judicial um procedimento de cariz administrativo, sujeito a valores de celeridade e simplicidade, diferentes dos que regem as decisões judiciais em matéria penal, não lhes sendo, por isso, aplicável, na sua totalidade e sem a devida adaptação, o disposto no artigo 374.º do CPP.
Como está escrito no recente Ac. desta Relação de Coimbra de 02-03-2011 (proc. n.º 583/09.0T20BR.C1), publicado em www.dgsi.pt, relatado pelo Exmo. Desembargador Paulo Guerra, «as contra-ordenações não respeitam à tutela de bens jurídicos ético-penalmente relevantes, mas apenas e tão-só à tutela de meras conveniências de organização social e económica e à defesa de interesses da mais variada gama, que ao Estado incumbe regular através de uma actuação de pendor intervencionista, que nos últimos anos se vem acentuando com progressiva visibilidade, impondo regras de conduta dos mais variados domínios de relevo para a organização e bem-estar social.
Estas normas, ditas de mera ordenação social (que não devem validar a afirmação de que estaremos perante um “direito de bagatelas penais”), não têm a ressonância ética das normas penais mas não deixam de ter a sua tutela assegurada através da descrição legal de ilícitos que tomam o nome de contra-ordenações, cuja violação é punível com a aplicação de coimas, a que podem, em determinados casos, acrescer sanções acessórias.
A execução da vertente sancionatória pressupõe um processo previamente determinado, de pendor não tão marcadamente garantístico como o processo penal (que por força da gravosa natureza das sanções que por seu intermédio podem ser aplicadas, exige a observância de apertadas garantias de defesa), mas que assegure, ainda assim, os direitos de audiência e de defesa (arts. 32.º, n.º 10, da CRP e art. 50.º do RGCO).
Para essa finalidade, o legislador adoptou um procedimento consideravelmente mais simplificado e menos formal do que o processo penal, cujo quadro geral consta dos arts. 33.º e ss. do RGCO».
As condutas ou comportamentos contra-ordenacionais, em si mesmos, isto é, independentemente da sua proibição legal, são axiologicamente neutros e, daí que, a coima represente um mal que de nenhum modo se liga à personalidade do agente, antes servindo como mera “admonição”, como especial advertência ou reprimenda conducente à observância de certas proibições ou imposições legais (cfr. Figueiredo Dias, “O movimento de descrimininalização e o ilícito de mera ordenação social”, estudo publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, I (1983, 19/33).
Em razão da génese e teleologia do procedimento contra-ordenacional, a fundamentação, tal como está estabelecida no art. 58.º do referido diploma, será, pois, suficiente desde que justifique as razões pelas quais - atentos os factos descritos, as provas obtidas e as normas violadas [art. 358.º, n.º 1, alíneas b) e c)] -, é aplicada esta ou aquela sanção ao arguido, de modo que este, lendo a decisão, se possa aperceber, de acordo com os critérios da normalidade de entendimento, as razões pelas quais é condenado e, consequentemente, impugnar tais fundamentos.
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Não tem havido unanimidade, quer na doutrina, quer na jurisprudência, acerca da qualificação do vício decorrente da inobservância dos requisitos formais exigidos pelo artigo 58.º, n.º 1, do RGCO. Para uns, trata-se de uma nulidade, a arguir pelo interessado ou de conhecimento oficioso (cfr., v.g., Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, ob. cit., págs. 387/390; Acs. do STJ de 21-09-2006 proc. n.º 06P3200; da Relação de Évora de 17-10-2006, proc. n.º 2194/06-1; da Relação de Lisboa de 28-04-2004, proc. n.º 1947/2004-3; da Relação do Porto de 27-02-2002 e 24-02-2010, proc. n.º 0111558 e 10798/08.2TBMAL.P1, respectivamente, todos publicados no “site” www.dgsi.pt). Para outros, de mera irregularidade (a título meramente exemplificativo, António Beça Pereira, em “Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas”, Almedina, 2007, págs. 115/116; Acs. da Relação do Porto de 15-03-2006, proc. n.º 0443636; da Relação de Évora de 15-06-2004, publicados no sítio acima indicado, e da Relação de Lisboa, in CJ, tomo V, pág. 144).
Efectivamente, o RGCO não contém qualquer disposição onde esteja prevista a consequência processual para a preterição dos requisitos elencados no artigo 58.º, provindo a aludida controvérsia dessa vacuidade.
Entendemos, todavia, como Simas Santos e Jorge de Sousa (ob. cit., pág. 387), não se vislumbrar que a necessária aplicação subsidiária das normas do processo criminal (cfr. art. 41.º do RGCO) possa levar a outra solução senão a de considerar que a decisão administrativa que não contenha os requisitos do artigo 58.º do RGCO está ferida de nulidade, sendo-lhe aplicável a disposição do artigo 379.º, n.º 1, al. a), do CPP.
E que tipo de nulidade?
Sem dúvida, de conhecimento oficioso pelo Tribunal.
Na realidade, tal decorre inequivocamente da redacção do n.º 2 do art. 379.º do CPP, quando consagra que “as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso” (o “negrito” pertence-nos) - entre outros, cfr. Acs. do STJ de 31-05-2001, proferido no proc. n.º 260/01; 08-11-01 (proc. n.º 3130/01) e 14-05-03 (proc. n.º 518/03), todos publicados no Boletim Interno do STJ, n.ºs 51, 55 e 71, respectivamente, e Ac., ainda do STJ, de 02-02-2005, C.J, tomo I, pág. 188.
Assim sendo, carecem de razão as objecções contrapostas pelo recorrente ao conhecimento oficioso pelo Tribunal a quo das circunstâncias consubstanciadoras de nulidade da decisão administrativa, por preterição, na decisão administrativa, das formalidades elencadas no artigo 58.º, n.º 1, do RGCO.
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Para verificar se a decisão administrativa comporta os elementos típicos objectivos e subjectivo das contra-ordenações aí indicadas, torna-se imprescindível a análise das correspondentes disposições legais que se indicam como violadas pela arguida.
Assim, segundo o artigo 20.º, n.º 1, do DL 169/2003, de 23 de Agosto, na redacção dada pelo DL 64/2008, de 8 de Abril, «As operações de tratamento de VFV estão sujeitas a licenciamento nos termos do disposto no Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro, bem como os requisitos técnicos mínimos constantes dos n.ºs 2 e 3 do anexo IV do presente diploma, sem prejuízo da demais legislação».
À luz do artigo 24.º do mesmo diploma, o exercício da actividade em violação do disposto na citada norma constitui contra-ordenação ambiental muito grave, sancionada, a título de negligência, nos termos do disposto nos arts. 9.º, n.º 1, e 22.º, n.º 4, da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, na redacção da Lei n.º 89/2009, de 31 de Agosto, com coima de € 38500 a € 70000, se praticadas por pessoa colectiva.
Por seu turno, dispõe o art. 7.º, n.º 3, do DL n.º 178/2006, de 5 de Setembro: «Os produtores de resíduos devem proceder à separação dos resíduos na origem de forma a promover a valorização por fluxos e fileiras».
E o artigo 67.º, do mesmo diploma:
«1 - (…)
2 - Constitui contra-ordenação, punível com coima de € 250 a € 2500, no caso de pessoas singulares, e de € 2500 a € 30000, no caso de pessoas colectivas:
a) A não separação, na origem, dos resíduos produzidos, de forma a promover preferencialmente a sua valorização, em violação do disposto no n.º 3 do artigo 7.º;
(…).
3 - A tentativa e a negligência são puníveis, sendo nesse caso reduzidos para metade os limites mínimos e máximos das coimas referidos no presente artigo».
Não obstante as considerações acima expostas sobre a menor exigência na fundamentação da sentença da entidade administrativa em relação à sentença penal, não se pode deixar de exigir que exista, pelo menos, a fundamentação mínima indispensável ao exercício de defesa do arguido, sob pena de manifesta violação da norma constitucional do art. 32.º, n.º 10 da CRP.
Ora, afigura-se-nos que a decisão administrativa não peca por omissão, na descrição dos pertinentes elementos relativos ao tipo objectivo e subjectivo de ilícitos em causa.
A Expressão “sem qualquer tipo de separação” dos resíduos descritos, tem um sentido naturalístico e corresponde a dizer que os materiais indicados (“material ferroso, plásticos, filtros, bancos de automóveis, pára-choques”) estavam armazenados uns conjuntamente com os outros, sem ser por fluxos e fileiras como exige o citado artigo 7.º, n.º 3, do DL 178/2006.
Relativamente à falta de licenciamento, ainda que de forma não devidamente estruturada, não deixa de estar objectivamente concretizada a operação de gestão de VFV (veículos em fim de vida) imputada à arguida, traduzida no desmantelamento daquelas viaturas, sem o necessário licenciamento da entidade competente.
Por fim, relativamente ao tipo subjectivo, como se disse, as contra-ordenações são punidas quer por dolo quer a título de negligência.
Na decisão administrativa está referenciado que a arguida, em ambos os domínios objectivos de comportamento, não agiu com o cuidado a que estava obrigada e de que era capaz.
Tanto basta para configurar a actuação negligente.
Esta, como decorre do disposto no artigo 15.º do Código Penal, podendo ser consciente ou inconsciente, reconduz-se, neste último caso, ao facto de o agente, não tendo procedido com o cuidado objectivamente devido, não chega sequer a representar a possibilidade de realização do facto.
Quando determinado comportamento é imposto por uma norma jurídica específica, como forma de evitar a verificação do resultado que se procura evitar, a actuação negligente traduzir-se-á na inobservância do comportamento imposto por essa norma jurídica.
No caso dos autos, a falta de licença para a actividade que a arguida exercia (desmantelamento de VFV) e a não separação dos resíduos, acompanhadas da descrição de ordem subjectiva supra mencionada, evidenciam suficientemente que o arguido actuou com «…violação de exigências de comportamento em geral obrigatórias, cujo cumprimento o direito requer, na situação concreta respectiva, para evitar realizações não dolosas de um tipo de objectivo de ilícito» - Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Especial, pág. 641.
Em síntese conclusiva: embora a referência ao tipo objectivo e subjectivo das concretas contra-ordenações imputadas à arguida não prime pelo rigor formal, afigura-se-nos, ainda assim, que a descrição contida na decisão administrativa é suficiente para que o recorrente pudesse exercer, como efectivamente exerceu, o seu direito de defesa, não se verificando, pois, a alegada nulidade.
Consequentemente, impõe-se a revogação da decisão recorrida, devendo o tribunal a quo proceder ao julgamento, com a produção da prova que tenha por necessária, sendo, a final, elaborada sentença em conformidade.
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III. Dispositivo:
Posto o que precede, acordam os Juízes que compõem a 5.ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido, devendo o tribunal a quo proceder ao julgamento, com a produção da prova que tenha por necessária à boa decisão da causa, sendo, a final, elabora a sentença devida.
Sem tributação.
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Alberto Mira (Relator)

Elisa Sales