Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
285/09.7TBMMV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: ARRENDAMENTO RURAL
PRAZO
Data do Acordão: 11/16/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MONTEMOR-O-VELHO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 5º, NºS 1 E 2, DO DL Nº 385/88, DE 25/10
Sumário: I – Da conjugação dos nºs 1 e 2 do artº 5º do DL nº 385/88, de 25/10, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo DL nº 524/99, de 10/12, extrai-se que se estabelece ali, como regra geral, que os arrendamentos rurais devem ser celebrados por um prazo nunca inferior a 10 anos, salvo (naquilo que configura uma excepção àquela regra) tratando-se de arrendamentos ao agricultor autónomo, em que então esse prazo mínimo é reduzido para 7 anos.

II – A qualificação ou caracterização de um contrato de arrendamento (rural) tem de assentar num determinado quadro factual, ou seja, tem de ser feita com base e a partir dos elementos factuais fornecidos pelos autos e mais concretamente por aqueles que se encontram descritos na matéria factual apurada.

III – Revelando-se os elementos descritos na materialidade actual assente manifestamente insuficientes para qualificar a modalidade de um contrato de arrendamento rural, e particularmente para o caracterizar como sendo a agricultor autónomo, deve funcionar, no que concerne ao seu prazo mínimo de duração, a regra geral inserta no nº 1 do citado artº 5º do RAR, ou seja, o prazo de validade de 10 anos, no caso de as partes terem convencionado um prazo inferior para a duração do contrato (o qual se deverá então considerar substituído por aquele).

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. A autora, A..., instaurou (22/5/2009) contra os réus, B...e mulher C..., todos melhor identificados nos autos, a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumário.

Para o efeito alegou, em síntese, o seguinte:

Que nos autos de acção ordinária que correram termos neste Tribunal Judicial de Montemor-o-Velho sob o nº …, em que era autor B..., ora réu, e ré, a ora autora A..., e outros, terminou a causa por transacção, nos termos da qual os ora réus deram de arrendamento, para fins de exploração agrícola, à ora autora a parte cultivável do prédio identificado no artigo 4º da p.i., pelo prazo de cinco anos, com início no ano agrícola de 2004 e a terminar no fim do ano de 2008, mediante a renda anual de € 250,00.

Porém, não obstante tal prazo estipulado pelas partes para o arrendamento, o certo é que o regime do arrendamento rural aplicável à data determinava que os arrendamentos rurais não podiam ser celebrados por prazo inferior a 10 anos, valendo este, nos casos em que as partes tivessem estipulado nos respectivos contratos prazo mais curto, pelo que a cláusula contratual relativa ao prazo é nula, porque contra legem, valendo, consequentemente, o prazo de 10 anos, por imperativo legal.

A ora autora informou os réus, por carta de 21.02.2009, que o arrendamento se manteria, pelo menos até ao limite dos 10 anos previsto na lei, sendo que em resposta, os réus informaram a mesma, por escrito, que a mesma tinha de fazer a entrega do prédio arrendado, cujo arrendamento teria terminado no fim do ano de 2008, posição com a qual a autora não concorda.

Pelo que terminou pedindo:

a) Que se reconheça à autora o direito ao arrendamento da parte cultivável do prédio rústico denominado terra de semeadura e pinhal, sito em ..., com a área de 21.160 m2, a confrontar ..., pelo prazo inicial de dez anos, com início no ano agrícola de 2004, e a terminar no fim do ano de 2013, em substituição dos cinco anos que constam do texto do contrato, mantendo-se as demais cláusulas.

b)Subsidiariamente, que sejam os réus condenados a reconhecerem que o contrato de arrendamento rural outorgado com a autora se renovou pelo período de dez anos, no dia 01 de Janeiro de 2009.

2. Os réus não contestaram, não obstante terem sido citados e com a cominação de que a falta de contestação importava a confissão dos factos articulados pelo autora.

3. Foi então proferida sentença, na qual - após se ter julgado válida e regular a instância e considerados confessados os factos articulados pela autora (à luz dos artºs 484, nº 1, ex vi 463, e não 464 como certamente por lapso se indicou, do CPC) – se julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, se reconheceu “à autora o direito ao arrendamento da parte cultivável do prédio rústico composto por terra de semeadura e pinhal, sito em ..., com a área de 21.160 m2, a confrontar ..., melhor identificado nos autos, que os ora réus lhe deram de arrendamento, pelo prazo inicial de sete anos, com início no ano agrícola de 2004, e a terminar no início do ano agrícola de 2011, em (e não “sem”, como por manifesto lapso se escreveu) substituição dos cinco anos que constam do contrato celebrado entre as partes, mantendo-se as demais cláusulas desse contrato.”

4. Não se conformando com tal sentença, autora dela apelou.

5. Nas correspondentes alegações que apresentou de tal recurso, a autora/apelante concluiu as mesmas nos seguintes termos:

[…]

6. Não foram apresentadas contra-alegações.

7. Cumpre-nos, agora, apreciar, e decidir.


***

II- Fundamentação


A) De facto.

Pelo tribunal da 1ª instância foram dados como assentes, por confessados, os seguintes factos:

[…]


***

B) De direito.
1. Do objecto do recurso.

É sabido (num entendimento pacífico que continua a manter-se com a actual reforma introduzida pelo DL nº 303/2007 de 24/8 - artºs 684, nº 3, e 685-A, nº 1, da actual versão do CPC e aqui aplicável) que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se fixa e delimita o seu objecto, exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso (cfr. nº 2 – fine - do artº 660 do CPC).

Calcorreando as conclusões das alegações do presente recurso verifica-se que as questões que importa aqui apreciar serão as seguintes:

a) Da nulidade da sentença.

b) Do erro de julgamento de direito (quanto ao mérito das causa).


***

2. Quanto à 1ª questão.

Da nulidade da sentença.
Invoca a autora/apelante a nulidade da sentença por violação do disposto nas als. c) e d) do nº 1 do artº 668 do CPC.

Como é sabido, as situações previstas na previsão do citado normativo têm a ver com vícios internos estruturais da sentença, também conhecidos como erros de actividade ou de construção, e cuja ocorrência conduz à nulidade da sentença.

Apreciemos, pois, cada um dos invocados vícios.
2.1.1 Da nulidade da sentença, por violação do disposto na al. c) do nº 1 do artº 668.
[…]
2.1.2 Da nulidade da sentença, por violação do disposto na al. d) do nº 1 do citado artº 668.
[…]
2.1.3. Por fim, invoca a apelante ainda a violação por parte do tribunal a quo do disposto no artº 266, nº 2, do CPC, pela circunstância de não a ter convidado “a alegar factos que permitissem integrar o contrato em causa, tais como factos demonstrativos da actividade exercida no imóvel”.
Nesse normativo, que é uma emanação do princípio da cooperação, dispõe-se que “o juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes (…)”. Sublinhado nosso
Normativo esse que é depois complementado pelo nº 2 do artigo 508, ao estatuir que “pode ainda o juiz convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada (...)”. Sublinhado nosso
Tal como vem, porém, constituindo entendimento prevalecente, tais normativos reportam-se a situações em que o despacho convite neles referido não se apresenta como vinculativo, e como tal a sua omissão não provoca qualquer nulidade ou sanção (cfr., por todos, Ac. do STJ, de 11/5/1999, in “BMJ, nº 487 – 244”; Ac. do STJ de 25/5/1999, in “BMJ nº 487 – 292” e Ac. do STJ de 29/2/2000, in “Sumários, 38º - 27”).

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3. Quanto à 2ª questão.
Importa, agora, saber se, no que concerne do mérito da causa, houve ou não erro no julgamento de direito.
Convém começar por referir que atenta a forma como a presente a acção foi estruturada e configurada, ela assume a natureza e os contornos de uma acção de simples apreciação positiva (cfr. artº 4, al. a), do CPC).
No fundo, com tal acção pretende a autora ver-lhe reconhecido o direito de que o contrato de arrendamento (rural) que celebrou com os réus, tendo por objecto uma parte do prédio rústico id. nos autos, deve vigorar, contra a pretensão dos últimos, pelo prazo inicial mínimo previsto na Lei do Arrendamento Rural, e não pelo prazo (de 5 anos) que foi estipulado no contrato que então celebraram.
Sendo indubitável, não obstante a escassez dos factos, estarmos na presença de um contrato de arrendamento rural (cfr. nº 3 dos factos assentes), a questão terá que ser decidida à luz do Regime do Arrendamento Rural, aprovado pelo DL nº 385/88 de 25/10 (com as alterações que lhe foram introduzidas pelo DL nº 524/99 de 10/12), e não à luz do actual novo Regime do Arrendamento Rural, aprovado pelo DL nº 294/2009 de 13/10, que entretanto, através do seu artº 43 al. a), revogou aquele (e por força do que se acha prescrito, a tal propósito, nas disposições conjugadas dos artºs 44, 39, nº 2 als a) e b), deste último diploma, que entrou em vigor quando a presente acção já havia sido instaurada).
O referido contrato, repetimo-lo, de arrendamento rural, foi reduzido a escrito, pelo que não se discute a sua validade (cfr. artº 1, e 3, nº 1, do citado DL nº 385/88 de 25/10 com as alterações que lhe foram introduzidas pelo DL nº 524/99 de 10/12, ao qual pertencerão os normativos que adiante venham a ser indicados sem a indicação da sua fonte).
O que se discute, isso sim, é o prazo inicial da sua duração.
No referido contrato foi estipulado que esse prazo seria de 5 anos, com início no ano agrícola de 2004, inclusive, e a terminar no fim do ano de 2008.
Porém, com fundamento de que tal prazo atentava contra o que a esse propósito se encontra então prescrito no RAR, pretendia a autora, a com a presente acção, que o mesmo fosse substituído pelo prazo 10 anos.
No termos do que se acha estatuído no 5, nº 1, “os arrendamentos rurais não podem ser celebrados por prazo inferior a 10 anos, a contar da data em que tiverem início, valendo aquele se tiver sido estipulado prazo mais curto”, dispondo, logo a seguir, no seu nº 2 que “nos arrendamentos ao agricultor autónomo o prazo referido no número anterior é de sete anos”, e já agora, por fim, no seu nº 3 que “findos os prazos estabelecidos nos números anteriores, ou convencionado, se for superior, entende-se renovado o contrato por períodos sucessivos de cinco anos, enquanto o mesmo não for denunciado nos termos do presente diploma”; sendo que os termos e o formalismo a que deve obedecer essa denúncia encontram-se prescritos no artº 18 (sublinhado nosso).
Na sentença recorrida, qualificando-se o arrendamento em causa como sendo na modalidade de agricultor autónomo, decidiu-se, à luz do estatuído no nº 2 do citado artº 5, fixar o prazo de duração do contrato ser de 7 anos, no que discorda a autora/apelante defendendo que esse prazo deve ser fixado em 10 anos, por entender que os factos apurados não permitem caracterizar o contrato naquele modalidade.
Sendo indubitável que o prazo de 5 anos de duração do contrato fixado no mesmo pelas partes afronta contra aquilo a que, a esse respeito, se encontra prescrito no citado artº 5 (norma imperativa, de ordem e interesse público), a questão que aqui urge resolver tem somente ver com o saber se esse prazo deve ser fixado em 10 ou em 7 anos?
A resposta a dar essa questão passa primeiro por saber se o contrato em causa deve ou não ser qualificado como sendo na modalidade de agricultor autónomo.
É que conforme flui e se extrai da conjugação dos nºs 1 e 2 do citado artº 5, estabelece-se ali, como regra geral, que os arrendamentos rurais devem ser celebrados por um prazo nunca inferior a 10 anos, salvo (naquilo que configura uma excepção àquela regra) tratando-se de arrendamentos ao agricultor autónomo em que então esse prazo mínimo é reduzido para 7 anos.
Como é sabido, o legislador do RAR não definiu ou caracterizou directa e expressamente o conceito de agricultor autónomo.
Porém, através do seu artº 33, manda adoptar, para efeitos da Lei do Arrendamento, as definições constantes da Lei de Bases da Reforma Agrária, aprovada pela Lei nº 109/88 de 26/9.
E daí que se fosse buscar a essa Lei a aludida caracterização.
E ali dispunha-se, além do mais, no seu artº 3, nº 4, entender-se, por “Agricultor autónomo – o titular de uma exploração de tipo familiar, quando esta empresa agrícola é constituída por uma pessoa singular que, permanente e predominantemente, utiliza a actividade própria ou de pessoas do seu agregado doméstico, sem recurso ou recurso excepcional ao trabalho assalariado.”
Porém, a referida da Lei de Bases da Reforma Agrária (aprovada pela citada Lei nº 109/88 de 26/9), foi revogada pelo artº 45 da Lei nº 86/95 de 1/9, que aprovou, em sua substituição, a Lei de Bases do Desenvolvimento Agrário.
No que tange a tais definições, e à luz da nova Lei de Bases do Desenvolvimento Agrário (que tudo reduz ao conceito de empresa agrícola), e face ao disposto no artº 21 nº 1 al. a), será de entender o agricultor autónomo como a empresa agrícola de tipo familiar, suportada pela exploração agrícola cujas necessidades de trabalho são asseguradas predominantemente pelo agregado familiar e não pelo utilização de assalariados permanentes. (Vide a propósito, e em tal sentido, Aragão Seia, Costa Calvão e Cristina Aragão Seia, in “Arrendamento Rural, 3ª ed., Almedina, págs. 10, 280/281”).
Aqui chegados, e independentemente da definição que se adopte de agricultor autónomo (seja aquela que constava da revogada Lei de Bases da Reforma Agrária, seja aquela que parece resultar agora da nova Lei de Bases do Desenvolvimento Agrário), a qualificação ou caracterização de um contrato de arrendamento (rural) tem de assentar num determinado quadro factual, ou seja, tem de ser feita com base e a partir dos elementos factuais fornecidos pelos autos e mais concretamente por aqueles que se encontram descritos na matéria factual dada por assente ou apurada. (Cfr., entre outros, nesse sentido Acs. do STJ de 29/3/1993, processo nº 081458, e de 7/10/1993, processo nº 0055422, publicados in www.dgsi.pt/jstj).
Ora, será que os elementos que constam dos autos, e mais concretamente da descrição dos factos assentes, permitem qualificar o contrato em causa, celebrado entre os RR. e a A. (como arrendatária), como sendo na modalidade de agricultor autónomo (ou sequer de outro tipo – vg. empresa agrícola do tipo patronal, segundo a nova terminologia adoptada nova Lei de Bases do Desenvolvimento Agrário)?
É para nós claro que não.
Os únicos elementos que dispomos são aqueles que constam do nº 3 da descrição dos factos assentes.
Ora, tais elementos mostram-se manifestamente insuficientes para qualificar o referido contrato, e particularmente para o caracterizar como sendo a agricultor autónomo.
E sendo assim - e estando-se perante um arrendamento rural em sentido estrito –, no que concerne ao prazo mínimo de duração do mesmo, funciona a regra geral inserta no nº 1 do citado artº 5.
O que equivale a reconhecer e a declarar que o mesmo não poderia ter sido celebrado por um prazo inferior a 10 anos, a contar do seu início, o qual deve, assim, substituir o prazo de 5 anos que foi convencionalmente fixado para a sua duração inicial.
Termos, pois, em que, nessa medida, se terá de julgar procedente o recurso e revogar a sentença recorrida.
***
III- Decisão

Assim, em face do exposto, procedência do recurso e na correspondente revogação da sentença da 1ª instância, acorda-se:

- Em reconhecer à autora o direito ao arrendamento da parte cultivável do prédio rústico composto por terra de semeadura e pinhal, sito em…, com a área de 21.160 m2, a confrontar …, melhor identificado nos autos, que os ora réus lhe deram de arrendamento, pelo prazo inicial de 10 (dez) anos, com início no ano agrícola de 2004, e a terminar no fim do ano agrícola de 2013, em substituição dos cinco anos que constam do contrato celebrado entre as partes, com a manutenção das demais cláusulas desse contrato.

Custas pelos RR./apelados.


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Isaías Pádua (Relator)
Teles Pereira
Manuel Capelo