Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | PAULO CORREIA | ||
Descritores: | QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA PRESUNÇÕES ABSOLUTAS DE INSOLVÊNCIA CULPOSA PRESUNÇÕES DE CULPA GRAVE OMISSÃO DE APRESENTAÇÃO ATEMPADA À INSOLVÊNCIA NEXO DE CAUSALIDADE | ||
Data do Acordão: | 06/14/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO DE COMÉRCIO DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA | ||
Texto Integral: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 186.º, N.ºS. 1, 2 E 3, DO CIRE | ||
Sumário: | I – Todas as situações elencadas no art. 186.º, n.º 2, do CIRE configuram presunções absolutas de insolvência culposa, pelo que, tendo-se demonstrado qualquer um desses comportamentos, a insolvência presume-se iuris et de iure como culposa, sem necessidade de demonstrar que a atuação do devedor foi causa da situação de insolvência ou do seu agravamento (nexo de causalidade).
II – Com a alteração introduzida ao art. 186.º, n.º 3 do CIRE pelo art. 2.º, n.º 3 da Lei n.º 9/2022, de 11-01, ficou claro que as situações aí tipificadas configuram meras presunções de culpa grave, sem presunção de causalidade quanto à situação de insolvência, exigindo-se, para qualificação da insolvência como culposa, a demonstração, nos termos do art. 186.º, n.º 1, de ter a mesma sido causada ou agravada em consequência dessa conduta. III – É de qualificar como culposa a insolvência quando os administradores da insolvente omitiram a apresentação atempada à insolvência, tendo daí resultado o agravamento da situação económica da empresa e prejuízo para os credores. | ||
Decisão Texto Integral: |
Apelação n.º 4114/19.5T8LRA-C. C1 Juízo de Comércio de Leiria – Juiz 3 _________________________________ Acordam os juízes que integram este coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:
I-Relatório Nos autos de insolvência de X... SA., foi, a 24 de março de 2022, proferida sentença no âmbito do incidente de qualificação, contendo o seguinte dispositivo: “Julgo o presente incidente procedente, por provado, em consequência do que: * Inconformados, AA e BB interpuseram recurso dessa decisão, fazendo constar nas alegações apresentadas as conclusões que se passam a transcrever:” * O Ministério Público respondeu, pugnando, com os fundamentos que que fez constar nessa peça processual, no sentido da improcedência do recurso e pela manutenção da decisão que qualificou a insolvência como culposa. * Foram colhidos os vistos, realizada conferência, e obtidos os votos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos. * II-Objeto do recurso Como é sabido, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, são as conclusões do recorrente que delimitam a esfera de atuação deste tribunal em sede do recurso (art. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC). No caso, perante as conclusões apresentadas, a questão a decidir é a de saber se a sentença deve ser revogada por,
* III-Fundamentação Com vista à incursão nas questões objeto de recurso, importa, antes de mais, transpor a factualidade que na decisão recorrida foi dada como provada e não provada. Assim, na decisão recorrida consta a este propósito o seguinte: “Com interesse para a apreciação do presente incidente provaram-se os seguintes factos: «1) A Requerente é uma sociedade unipessoal por quotas que tem por objeto atividades de arquitetura e design; actividades de consultadoria, ciências e técnicas; formação e apoio técnico especializado, bem como compra e venda de materiais de construção. 2) Por sua vez, a Requerida é uma sociedade anónima que tem por objeto “Indústria metalúrgica. Produção, transformação, montagem, importação, exportação de estruturas metálicas, bem como de seus componentes e acessórios. Construção civil e obras públicas. Compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim. Conservação e reparação de edifícios. Comércio, importação e exportação de materiais de construção. Demolição e preparação dos locais de construção. Elaboração de projetos de construção elétricos”. 3) No âmbito da sua atividade comercial a Requerida solicitou os serviços da Requerente na elaboração e execução de projetos de arquitetura e especialidade e atividades conexas para obras que iria levar a cabo. 4) Uma vez que os valores em dívida se foram acumulando, a Requerente viu-se forçada a suspender a prestação de serviços à Requerida e exigir os pagamentos em dívida. 5) Não tendo a Requerida cumprido, reconheceu expressamente a mesma no dia 29/6/2017 através de documento intitulado “Reconhecimento de Dívida Acordo de pagamento a prestações e Constituição de penhor”, dever à Requerente a quantia de €62.399,56 (sessenta e dois mil, trezentos e noventa e nove euros e cinquenta e seis cêntimos). 6) O pagamento de tal quantia seria efetuado em prestações a efetuar para o NIB indicado em tal documento, sendo as duas primeiras no valor de €3.400,00 (três mil e quatrocentos euros) /cada, a pagar té dia 3/7/2017 e a segunda até dia 24/7/2017. 7) A restante quantia de €55.599,56, à qual acresce a taxa de juro de 6% ao ano será liquidada em 36 prestações mensais, iguais e sucessivas no valor de €1544,43, a pagar até ao dia 15 de cada mês com inicio em Agosto de 2017, à qual acresce o montante mensal de €277,99, perfazendo o total mensal a pagar o montante de €1822.42, sendo que o não pagamento de uma prestação implicaria o vencimento das restantes (cláusula 3). 8) Como forma de garantir a quantia supra referida, deu a Requerida à Requente em penhor, nos termos do art. 669.º/1 do Código Civil uma Máquina designada pela marca ...: 1386 c/w 3T DECOILER SN: 13750. (cláusula quarta). 9) Tal máquina ficou na posse da Requerida, sendo que através de tal documento foi conferido à Requerente a exclusiva disponibilidade da mesma à credora, aqui Requerente, a qual poderia proceder ao seu levantamento e remoção logo que não fosse paga uma prestação, em consequência do vencimento das restantes. 10) Com o pagamento integral de tais valores ficariam extintos todos os créditos da Requerente decorrentes da dívida supra referida. 11) A Requerida, apesar de ter pago algumas as prestações, nunca cumpriu o seu pagamento de forma pontual, incorrendo sempre em mora. 12) Em Dezembro de 2018 só pagou a quantia de €1.000,00, tendo liquidado apenas o valor de €822,42 em janeiro de 2019. 13) Não tendo pago sequer a prestação de Janeiro de 2019, o que levou ao vencimento das restantes, nos termos do art. 781.º do CC. 14) Vendo-se a Requerente forçada a apresentar a competente execução, com o valor em dívida de €29.344,17, acrescida de €5281,81 a título de juros calculados à taxa acordada, perfazendo o valor da execução o montante de €34.625,98, execução essa n.º788/19...., a qual corre termos no ... do Tribunal Judicial da Comarca .... 15) Onde se nomeou à penhora a máquina supra referida. 16) Tendo a mesma sido penhorada no local em que se encontrava, mais concretamente na Travessa ..., ..., ... ..., onde ficou como fiel depositário o representante da Requerida, AA, não se tendo procedido à remoção da mesma, por as partes terem acordado restabelecer os pagamentos, sendo o próximo no dia 15/2/2019 no valor de €3.000,00. 17) Tendo a Requerida, posteriormente apenas pago os meses de Março e Abril. 18) Neste momento, a Requerida ainda deve à Requerente a quantia de €29.663,21. 19) Desde Abril (de 2019) que a Requerida nada mais pagou à requerente. 20) Tendo a Requerente requerido a remoção da máquina penhorada. 21) No dia 16/10/2019 a Sra. Agente de Execução dirigiu-se à sede da executada para proceder á remoção do bem penhorado nos autos, tendo constatado que as instalações se encontravam encerradas e completamente vazias, desconhecendo-se para onde a Requerida se teria mudado. 22) Posteriormente, a Requerente veio a saber que a Requerida estaria a laborar na Rua ..., em ..., ..., pelo que se dirigiu a Sra. Agente de Execução às instalações da mesma no dia 29/10/2019, tendo a Requerida solicitado a conta do processo e que pagaria no prazo de 5 ou 6 dias, não se tendo procedido à remoção da máquina penhorada. 23) Decorrido o prazo de pagamento, sem que mesmo se encontrasse efetuado, dirigiu-se a Senhora Agente de Execução novamente a tais instalações no dia 26/11/2019 para remover o bem penhorado. 24) Aí chegados, encontrava-se no local o fiel depositário, AA, o qual informou que a máquina não se encontrava ali, sendo que, questionado do paradeiro da mesma, respondeu que a mesma se encontrava no estrangeiro, recusando-se a informar em que país se encontrava. 25) Tal fiel depositário abriu as portas de tais instalações por forma a demonstrar que o bem penhorado não se encontrava no local, o que se veio efetivamente a verificar, pelo que, foi impossível remover o bem penhorado. 26) A Requerida encontra-se em situação de incumprimento generalizado de todas as suas obrigações financeiras vencidas, com um vasto universo de fornecedores. 27) As instituições financeiras retiraram todo o apoio financeiro à requerida, vedando-lhe assim a possibilidade de se recapitalizar através da obtenção de empréstimos bancários. 28) Já correram nos tribunais várias execuções e insolvências instauradas pelas mais diversas entidades contra a requerida com o objetivo de reclamar o seu crédito.». Perante este lastro factual, cuidemos do mérito do recurso. Na sentença sob recurso a insolvência foi qualificada como culposa, em face do preenchimento dos arts. 186.º, n.ºs. 1 e 2, alíneas d) e f) e 3, alínea a) do CIRE. O incidente de qualificação da insolvência, introduzido no nosso ordenamento jurídico por influência do Direito espanhol, mais precisamente, da calificación del concurso[2], destina-se a apurar se a insolvência é fortuita ou culposa, isto é, se decorre ou não de uma atuação ilícita por parte do devedor. Como refere Menezes Leitão[3] “o incidente de qualificação de insolvência (…) constitui uma fase do processo que se destina a averiguar quais as razões que conduziram à situação de insolvência, e consequentemente se essas razões foram puramente fortuitas ou correspondem antes a uma actuação negligente ou mesmo com intuitos fraudulentos do devedor". Preceitua o art. 186.º, n.º 1 do CIRE que a “insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação dolosa ou com culpa grave do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”. Acrescenta-se no n.º 2 desse normativo “Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham” (…) d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros; (…) f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto”. Finalmente, estatui-se no n.º 3 do art. 186.º “Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido No caso considerou a decisão recorrida existirem dois fundamentos para considerar culposa a insolvência: Nesta sede defendem os recorrentes que - os recorrente são alheios à fixação em € 85.000 do valor da máquina no processo executivo 788/19...., tendo o mesmo sido fixado livremente pelo Agente de Execução, traduzindo o mesmo um valor aproximado e não o seu valor real (conclusão IV) - o valor da venda à LC..., Unipessoal, Lda. foi apurado de acordo com os preços de mercado e não para favorecer a sociedade adquirente (conclusão V); - no caso de disposição de bens em proveito pessoal ou de terceiros, para que a insolvência se possa qualificar como culposa é necessário que se demonstre a existência de um flagrante desequilíbrio das prestações, que permitam objetivamente considerar uma injustificada e irrazoável vantagem para os administradores da devedora ou para terceiros à custa desta, sendo que não resulta provado nos autos qualquer facto capaz de asseverar que na venda ocorreu o ilegítimo benefício da sociedade LC..., Unipessoal, Lda. (conclusões VI a IX). Examinando a factualidade relevante dada como provada, antecipadamente se avança que, no tocante à venda da máquina, deve ter-se por culposa a insolvência, pelo preenchimento da previsão constante da alínea d) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE e não já – e aqui afastamo-nos do decidido em primeira instância – do enunciado na alínea f) desse normativo. Na verdade, se bem vemos, e no que toca aos bens, tais alíneas excluem-se; se o destino foi, tão só, a sua utilização – o seu uso – estará em causa a alínea f), mas quando se trate de um ato de disposição (venda/doação) do bem, a conduta integra-se na alínea d). Embora por demasiadamente frequentes as imprecisões do legislador, o rigor interpretativo e linguístico exigem que não se confira idêntico significado aos vocábulos “disposição” e “uso”, sobretudo quando é o texto da norma a autonomizá-los na sua previsão e a criar – a par – exigências específicas de relevância normativa para cada um desses atos. Iremos aos elementos factuais que relevam para evidenciar a conclusão antecipada: Ou seja, 8 meses e 8 dias antes da declaração de insolvência, a devedora vende a “preço de saldo” um bem imprescindível ao seu objeto social. Foi defendido pelos recorrentes em sede de recurso que o valor da máquina conferido em sede de execução era um “valor aproximado” e não o “real”, para, de imediato defender que o valor da venda à LB... Unipessoal, Ldª, esse sim, ter sido apurado tendo em conta a sua idade e estado de conservação. Todavia, estamos em presença de defesa apoiada em factos e conclusões que não apenas não foram apurados, como contrariam a lógica de racionalidade do que ficou demostrado. Na verdade, trata-se de um valor atribuído na ação executiva que assegura, enquanto tal, alguma credibilidade em termos de aproximação ao efetivo valor de mercado, o que permite concluir, ante o reduzido hiato temporal que mediou entre a fixação do valor da máquina na ação executiva e a sua venda, que esta foi efetuada em proveito pessoal da LB... Unipessoal, Ldª, sem entrada efetiva de capital e com o único propósito de permitir que a sua exploração pudesse continuar a ser feita pela LB... Unipessoal, Ldª, gerida pelo administrador de facto da devedora. Defendem depois os recorrentes que, para que a insolvência possa ser qualificada como culposa, - é necessário que a atuação do devedor tenha sido causa da situação de insolvência ou do seu agravamento (nexo de causalidade), uma vez que o devedor pode ter atuado dolosamente, mas em nada ter contribuído para a criação ou o agravamento da insolvência” (conclusão II) e que “é necessário que se demonstre a existência de um flagrante desequilíbrio das prestações contratuais, que permitam objetivamente considerar uma injustificada e irrazoável vantagem para os administradores da devedora ou para terceiros à custa daquela” (cfr. conclusão VII). Trata-se, segundo se crê, no essencial, de uma adesão ao entendimento defendido por Catarina Serra [Decoctor ergo fraudator, A insolvência culposa (esclarecimento sobre um conceito a propósito de umas presunções), Cadernos de Direito Privado, n.º 21 Janeiro/Março, págs. 60 a 64 e Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, páginas 300 e 301], mas alargando-o também às situações contempladas no art. 186.º, n.º 2, alíneas d) e f), ao arrepio dessa ilustre jurista (que defende exclusivamente a tese da necessidade da prova do nexo causal relativamente às situações previstas nas alíneas h) e i) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE). Todavia, como resulta expresso da norma, as situações (todas) elencadas no art. 186.º, n.º 2 do CIRE configuram presunções absolutas de insolvência culposa[4][5]. Ou seja, tendo-se demonstrado qualquer um desses comportamentos, a insolvência presume-se iuris et de iure como insolvência culposa, sem necessidade de demonstrar que a atuação do devedor tenha sido causa da situação de insolvência ou do seu agravamento (nexo de causalidade), e muito menos que, nos casos de disposição/uso de bens contrário aos interesses do devedor, em proveito pessoal ou de terceiros, a demonstração da “existência de um flagrante desequilíbrio das prestações contratuais, que permitam objetivamente considerar uma injustificada e irrazoável vantagem para os administradores da devedora ou para terceiros à custa daquela”. Divergindo da decisão recorrida os recorrentes defendem que Diga-se, antes de mais, para dar resposta à primeira das objeções, que, como parece ter sido assumido, não está em causa a violação de qualquer dever ligado à dissolução da sociedade ou de aumento do capital social. O que releva e objeto de ponderação, é, tão só, a violação do dever de apresentação à insolvência previsto no art. 18.º do CIRE. Depois, como segundo argumento, a recorrente sustenta a necessidade de se fazer prova em como o incumprimento do dever de se apresentar à insolvência dever ser causal da criação ou agravamento da insolvência, prova essa que no caso, segundo refere, diz não ter sido feita. É conhecida a “vexata quaestio” a propósito da presunção constante do art. 186.º, n.º 3 do CIRE[6]. Segundo a corrente maioritária trata-se de uma presunção iuris tantum destinada exclusivamente ao preenchimento do requisito constante do n.º 1 do mesmo preceito relativamente à atuação dos administradores. Isto é, no caso de verificação de qualquer das situações previstas nas alíneas a) e b) do n.º 3 do art. 186.º, presume-se terem os administradores atuado com culpa grave. Todavia, para que a insolvência seja considerada culposa é ainda necessário que tais situações, quando não ilididas, tenham, em termos causais, criado ou agravado a insolvência. Uma outra corrente sustenta que a presunção relativa aí cominada traduz-se numa presunção de insolvência culposa, que, quando não ilidida, prejudica a necessidade da demonstração do nexo de causalidade entre o facto omitido e a criação ou o agravamento da situação de insolvência, ou, dito em termos mais rigorosos, a presunção de “culpa grave” do n.º 3, abrange também o nexo de causalidade[7]. Da nossa parte, perante à letra da lei e o seu elemento sistemático, subscreve-se o entendimento de que “o que resulta do art. 186.º, n.º 3, é apenas uma presunção de culpa grave (…) mas não uma presunção da causalidade (…) em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do art. 186.º, n.º 1, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa (…) conduta”[8]. De resto, a alteração introduzida ao n.º 3 do CIRE pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro “presume-se unicamente a existência de culpa grave) parece ter tido como propósito resolver a a vexata quaestio a favor do entendimento que já vínhamos seguindo, sendo hoje inequívoco estarmos em presença de uma presunção de culpa grave e não uma presunção de insolvência. Apesar desta incursão, diga-se que, tal como os recorrentes, também na decisão recorrida se perfilha esse mesmo posicionamento – o de que a falta de apresentação à insolvência constitui uma mera presunção de culpa. Na verdade, a dissonância existente não se amarra na interpretação do direito, mas na interpretação dos factos. Enquanto os recorrentes defendem não se ter feito prova do aludido nexo causal, já na decisão recorrida concluiu inequivocamente que a falta de apresentação à insolvência por parte da devedora agravou a situação de insolvência e causou prejuízos aos seus credores. E, perante os factos apurados, a conclusão não podia ser outra que não aquela a que chegou a decisão recorrida. Na verdade, a partir do saldo de exploração negativo de € 604.762,68 no exercício de 2018, com capitais próprios negativos de € 451.926,66 e um passivo global de € 1.522 994,46 e que, no final de 2019, com uma diminuição de vendas para cerca de metade do ano anterior, já estava perdido mais de metade do capital social (cifrando-se em € 401.246,57), incapaz, já em 2017, de efetuar pagamento de uma dívida de € 62.399,56, a ponto de ter dado de garantia e de deixar na disponibilidade do credor a máquina que constituía o seu principal ativo e essencial para o desenvolvimento da sua atividade, com valor a rondar os € 85.000, na ausência de capitalização, impunha-se a apresentação à insolvência (generosamente na sentença recorrida considerou-se que essa apresentação deveria ter ocorrido até final de julho de 2019). Não sobram dúvidas em como, tal como se concluiu na sentença recorrida, que se apresenta preenchido o condicionalismo fáctico subjacente à presunção de existência de culpa grave dos administradores da insolvente, a que alude o nº 3 do citado art.º 186º; e que a omissão da apresentação atempada à insolvência contribuiu para o agravamento da situação e criou prejuízo aos credores, existindo nexo de causalidade entre essa omissão e a criação desse agravamento, preenchendo-se, assim, a condição prevista no nº 1 do mesmo artigo. * (…)
IV - DECISÃO. Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida. * Custas pelos apelantes (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2 do CPC). * Coimbra, 14 de junho de 2022
______________________ (Paulo Correia) ______________________ (Helena Melo)
_______________________ (José Avelino)
[1] Relator – Paulo Correia Adjuntos – Helena Melo e José Avelino [2] - Cfr. Lições de Direito da Insolvência, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2.ª edição, 2021, pág. 299-300. [3] - Direito da Insolvência, Almedina, 4.ª Edição, 2012, pág. 273 [4] - Segue-se, a este propósito, a corrente ultra maioritária defendida, entre outros por Luís Teles de Menezes Leitão (Direito da Insolvência); Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado), Ana Prata, Jorge Morais Carvalho, Rui Simões (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) e Maria do Rosário Epifânio (Manual do Direito da Insolvência). [5] - Todavia uma significativa corrente doutrinária partilha o entendimento de que nem todas as situações identificadas nas várias alíneas do n.º 2 do art. 186.º valem para a generalidade das “pessoas não singulares” (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª edição, pág. 717; Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª Edição, págs 300-301; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 11.ª edição, pág. 237. [6] - Por aí se encontrarem plenamente desenvolvidas as linhas de orientação doutrinárias e jurisprudenciais em causa, remete-se para a anotação ao art. 186.º do CIRE efetuada por Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 2013, págs. 504 a 512. [7] Como exemplo paradigmático deste posicionamento, e que tem na sua base o inconformismo com aquilo que se considera “falta de nexo lógico ou uma qualquer conexão” entre as situações tipificadas no n.º 3 do art. 186.º e a criação ou agravar da insolvência, referencia-se o Ac. do TRC de 22 de maio de 2012, proferido no processo 1053/10.9TJCBR-K.C1 (relator Barateiro Martins) [8] - Menezes Leitão, Direito da Insolvência, pág. 275. [9] - Da exclusiva responsabilidade do relator (art. 663.º, n.º 7 do CPC). |