Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4114/19.5T8LRA-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO CORREIA
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
PRESUNÇÕES ABSOLUTAS DE INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRESUNÇÕES DE CULPA GRAVE
OMISSÃO DE APRESENTAÇÃO ATEMPADA À INSOLVÊNCIA
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 06/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 186.º, N.ºS. 1, 2 E 3, DO CIRE
Sumário: I – Todas as situações elencadas no art. 186.º, n.º 2, do CIRE configuram presunções absolutas de insolvência culposa, pelo que, tendo-se demonstrado qualquer um desses comportamentos, a insolvência presume-se iuris et de iure como culposa, sem necessidade de demonstrar que a atuação do devedor foi causa da situação de insolvência ou do seu agravamento (nexo de causalidade).

II – Com a alteração introduzida ao art. 186.º, n.º 3 do CIRE pelo art. 2.º, n.º 3 da Lei n.º 9/2022, de 11-01, ficou claro que as situações aí tipificadas configuram meras presunções de culpa grave, sem presunção de causalidade quanto à situação de insolvência, exigindo-se, para qualificação da insolvência como culposa, a demonstração, nos termos do art. 186.º, n.º 1, de ter a mesma sido causada ou agravada em consequência dessa conduta.

III – É de qualificar como culposa a insolvência quando os administradores da insolvente omitiram a apresentação atempada à insolvência, tendo daí resultado o agravamento da situação económica da empresa e prejuízo para os credores.

Decisão Texto Integral:

Apelação n.º 4114/19.5T8LRA-C. C1

Juízo de Comércio de Leiria – Juiz 3

_________________________________

Acordam os juízes que integram este coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I-Relatório

Nos autos de insolvência de X... SA., foi, a 24 de março de 2022, proferida sentença no âmbito do incidente de qualificação, contendo o seguinte dispositivo:

Julgo o presente incidente procedente, por provado, em consequência do que:
1. Qualifico como culposa a insolvência da sociedade comercial “X... SA.”.
2. Considero afectado pela qualificação da insolvência como culposa o Administrador da devedora, o aqui Requerido AA, que declaro ter agido com dolo relativamente à conduta que desencadeou a aplicação do disposto no artigo 186º/1 e 2/d) e f), do CIRE, e com culpa grave relativamente à conduta que desencadeou a aplicação do disposto no artigo 186º/1 e 3/a) do CIRE.
3. Considero afectada pela qualificação da insolvência como culposa a Administradora da devedora, a aqui Requerida BB, que declaro ter agido com culpa grave relativamente à conduta que desencadeou a aplicação do disposto no artigo 186º/1 e 3/a) do CIRE.
4. Decreto a inibição dos Requeridos AA e BB para a administração de patrimónios de terceiros, o primeiro pelo período de quatro anos e a segunda pelo período de dois anos.
5. Declaro os Requeridos AA e BB inibidos para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão da sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, o primeiro pelo período de quatro anos e a segunda pelo período de dois anos.
6. Condeno os Requeridos AA e CC a indemnizarem os credores da devedora declarada insolvente, até ao montante que se vier a apurar e correspondente ao valor dos créditos reconhecidos, constituídos e vencidos após a última data em que os Requeridos deviam ter apresentado a sociedade à insolvência, ou seja, final de Julho de 2019, e até à data de entrada da petição inicial, isto é, 04/12/2019, não satisfeitos pelo produto da massa insolvente (sem prejuízo do limite associado ao património pessoal dos responsáveis), a quantificar em incidente de liquidação, nos termos da parte final do nº 4 do art.º 189º do CIRE”.

                                                                                   *

Inconformados, AA e BB interpuseram recurso dessa decisão, fazendo constar nas alegações apresentadas as conclusões que se passam a transcrever:”
I. O tribunal a quo não analisou criticamente as provas, nem soube extrair dos factos apurados as presunções impostas pelas regras de experiência.
II. Para que a insolvência possa ser qualificada como culposa é necessário que a atuação do devedor tenha sido causa da situação de insolvência ou do seu agravamento (nexo de causalidade), uma vez que o devedor pode ter atuado dolosamente, mas em nada ter contribuído para a criação ou agravamento da insolvência.
III. Relativamente à primeira questão versada na douta sentença recorrida - a venda da máquina perfiladora H... à sociedade LB... Unipessoal, Ldª. – é certo que a máquina foi, efetivamente, vendida à sociedade LC..., Unipessoal, Lda., pelo preço de €55.000,00, acrescidos de IVA à taxa legal, no montante global de €67.650,00.
IV. Pese embora, em sede do processo executivo n.º 788/19...., que correu termos pelo Juízo de Execução ... – J ..., contra a devedora, a máquina tenha sido penhorada e avaliada em €85.000,00 (oitenta e cinco mil euros), tal valor foi ali livremente fixado pelo Agente de Execução, tendo em conta o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 766.º do CPC, traduzindo um valor aproximado da mesma e não o seu valor real.
V. O valor da venda da máquina à sociedade LC..., Unipessoal, Lda. foi apurado de acordo com os preços de mercado, tendo em conta a idade e o estado de conservação da mesma e não, como entendeu o tribunal a quo, para favorecer a sociedade LC..., Unipessoal, Lda., na qual o requerido AA tem interesse direto.
VI. Sem conceder, e ainda que assim fosse, o que apenas por mero raciocínio académico se admite, convém não esquecer que não basta que o negócio tenha sido mais vantajoso para terceiro ou que, in casu, tenha favorecido uma empresa terceira, para que se mostre preenchida a previsão normativa da al. d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
VII. Para que a insolvência se possa qualificar como culposa, no caso de os administradores da devedora terem disposto dos seus bens em proveito pessoal ou de terceiros, é necessário que se demonstre a existência de um flagrante desequilíbrio das prestações contratuais, que permitam objetivamente considerar uma injustificada e irrazoável vantagem para os administradores da devedora ou para terceiros à custa daquela.
VIII. Nenhum dos credores da devedora impugnou a venda da dita máquina à sociedade LC..., Unipessoal, Lda., suscitando a simulação da venda, alegando que o preço da venda foi inferior ao valor de mercado ou colocando em causa o efetivo recebimento do preço por parte da devedora.
IX. Pelo que, inexiste nos autos qualquer facto capaz de asseverar o ilegítimo benefício da sociedade LC..., Unipessoal, Lda. na aquisição da máquina em questão para qualificar de culposa a insolvência da devedora.
X. Relativamente à segunda e última questão versada na douta sentença recorrida – a de saber se ocorreu violação do dever de requerer a declaração de insolvência por parte da devedora e, em caso afirmativo, se esta violação foi culposa e se existe nexo de causalidade entre a conduta omissiva verificada e a situação de insolvência da devedora, ou seja, se essa omissão criou ou agravou a situação de insolvência - como bem refere o tribunal a quo, não se consegue dissolver uma sociedade que tenha dividas ao fisco ou à Segurança Social, como era o caso da devedora.
XI. De igual modo, não se podem reforçar os capitais de uma sociedade quando, como era o caso dos oponentes, não se possui capitais próprios ou crédito bancário para o efeito.
XII. Já quanto à falta da apresentação à insolvência no final de 2018, constitui hoje jurisprudência pacifica dos tribunais superiores que a falta de apresentação tempestiva à insolvência não permite qualificar a insolvência como culposa (cfr., entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12.07.2017, proferido no âmbito do Processo n.º 370/14.3TJCBR-A.C1 (Falcão de Magalhães); o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 24.04.2012, proferido no âmbito do Processo n.º 172/08.6TBGMR-B.G1 (Eduardo José Oliveira Azevedo) e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 04/04/2019, proferido no âmbito do Processo n.º 1826/13.0TBBCL-B.G1 (Heitor Gonçalves), todos disponíveis em www.dgsi.pt).
XIII. Para se poder concluir pela insolvência culposa, é necessário não só provar-se o comportamento omissivo dos administradores da devedora (suficiente para se presumir a culpa), como também que o mesmocriou ou agravou a situação de insolvência.
XIV. É certo que a devedora, embora incapacitada de cumprir a generalidade das suas obrigações vencidas desde o final de 2018, não se apresentou à insolvência.
XV. No entanto, ainda que daí resulte a violação do dever previsto no n.º 1 do artigo 18.º do CIRE, nenhum facto se provou nos autos que permita afirmar que esse comportamento ilícito agravou a situação de insolvência, o que por sua vez inviabiliza a qualificação da insolvência comoculposa nos termos dos n.ºs 1 e 3, al.a) do artigo 186.º do meso diploma legal.
XVI. É, pois, o presente incidente destituído de qualquer fundamento.
XVII. A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 766.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, 186.º, n.º 1, n.º 2, alínea d) e n.º 3, alínea a) do C.I.R.E. e 607.º, n.º 4 do C.P.C.

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O Ministério Público respondeu, pugnando, com os fundamentos que que fez constar nessa peça processual, no sentido da improcedência do recurso e pela manutenção da decisão que qualificou a insolvência como culposa.

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Foram colhidos os vistos, realizada conferência, e obtidos os votos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos.

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II-Objeto do recurso

Como é sabido, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, são as conclusões do recorrente que delimitam a esfera de atuação deste tribunal em sede do recurso (art. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC).

No caso, perante as conclusões apresentadas, a questão a decidir é a de saber se a sentença deve ser revogada por,
a) no tocante à máquina perfiladora não constar dos autos qualquer facto capaz de asseverar o ilegítimo benefício da sociedade LC..., Unipessoal, Lda. na respetiva aquisição (conclusões III a IX)
e
b) nenhum facto se ter provado nos autos que permita afirmar que a não apresentação à insolvência no final de 2018 agravou a situação de insolvência (conclusões X a XV)

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III-Fundamentação

Com vista à incursão nas questões objeto de recurso, importa, antes de mais, transpor a factualidade que na decisão recorrida foi dada como provada e não provada.

Assim, na decisão recorrida consta a este propósito o seguinte:

Com interesse para a apreciação do presente incidente provaram-se os seguintes factos:
1. X... SA é uma sociedade anónima que tem por objeto a “Indústria metalúrgica. Produção, transformação, montagem, importação, exportação de estruturas metálicas, bem como de seus componentes e acessórios. Construção civil e obras públicas. Compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim. Conservação e reparação de edifícios. Comércio, importação e exportação de materiais de construção. Demolição e preparação dos locais de construção. Elaboração de projetos de construção elétricos”.
2. Foi a mesma constituída e iniciou a sua actividade em 2011.
3. A insolvente tinha um capital social de € 500 000,00, constituído por 100 000 acções com o valor unitário de € 5,00.
4. Os órgãos sociais da insolvente, nos exercícios de 2014 a 2017 e 2018 até ao seu encerramento, foram constituídos por BB, DD e EE, respectivamente presidente do conselho de administração e, os dois últimos, vogais do mesmo órgão.
5. BB, ao tempo dos mencionados exercícios era casada com AA, tendo sido declarada a respectiva separação de pessoas e bens por decisão de 14/02/2020, transitada na mesma data, proferida pela Conservatória do Registo Civil ....
6. Sendo que AA, na prática e no dia a dia, com o contributo acessório de BB, era a pessoa que exercia toda a gerência da insolvente X... SA com total poder e liberdade para tal, nas decisões de natureza económica, financeira e contabilística.
7. AA era ainda único sócio e gerente da empresa LB... Unipessoal, Ldª, com o NIPC ..., a qual tinha, em parte, o mesmo objecto social da insolvente X... SA, mais concretamente: «Fabricação e fornecimento de perfis de aço leve, caixilharias, montagens, kits eléctricos e canalização, impermeabilizações e coberturas; engenharia; comércio de materiais de construção; construção, remodelação e restauros de edifícios residenciais e não residenciais; demolição e preparação de locais de construção; execução de revestimentos de paredes e de pavimentos; outras atividades de construção; trabalhos de pinturas e de outros acabamentos.».
8. Os autos de insolvência de X... SA foram instaurados em 4-12-2019.
9. Tendo sido pedida a declaração de insolvência pela empresa M... Unipessoal, Ldª..
10. Tendo, em 30-4-2020, sido decretada a insolvência de X... SA, por sentença já transitada em julgado.
11. Na referida sentença foi, para além do mais, declarado aberto concurso de credores e nomeado como administrador de insolvência o Sr. Dr. FF.
12. Na referida sentença foram considerados provados os seguintes factos:

«1) A Requerente é uma sociedade unipessoal por quotas que tem por objeto atividades de arquitetura e design; actividades de consultadoria, ciências e técnicas; formação e apoio técnico especializado, bem como compra e venda de materiais de construção.

2) Por sua vez, a Requerida é uma sociedade anónima que tem por objeto “Indústria metalúrgica. Produção, transformação, montagem, importação, exportação de estruturas metálicas, bem como de seus componentes e acessórios. Construção civil e obras públicas. Compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim. Conservação e reparação de edifícios. Comércio, importação e exportação de materiais de construção. Demolição e preparação dos locais de construção. Elaboração de projetos de construção elétricos”.

3) No âmbito da sua atividade comercial a Requerida solicitou os serviços da Requerente na elaboração e execução de projetos de arquitetura e especialidade e atividades conexas para obras que iria levar a cabo.

4) Uma vez que os valores em dívida se foram acumulando, a Requerente viu-se forçada a suspender a prestação de serviços à Requerida e exigir os pagamentos em dívida.

5) Não tendo a Requerida cumprido, reconheceu expressamente a mesma no dia 29/6/2017 através de documento intitulado “Reconhecimento de Dívida Acordo de pagamento a prestações e Constituição de penhor”, dever à Requerente a quantia de €62.399,56 (sessenta e dois mil, trezentos e noventa e nove euros e cinquenta e seis cêntimos).

6) O pagamento de tal quantia seria efetuado em prestações a efetuar para o NIB indicado em tal documento, sendo as duas primeiras no valor de €3.400,00 (três mil e quatrocentos euros) /cada, a pagar té dia 3/7/2017 e a segunda até dia 24/7/2017.

7) A restante quantia de €55.599,56, à qual acresce a taxa de juro de 6% ao ano será liquidada em 36 prestações mensais, iguais e sucessivas no valor de €1544,43, a pagar até ao dia 15 de cada mês com inicio em Agosto de 2017, à qual acresce o montante mensal de €277,99, perfazendo o total mensal a pagar o montante de €1822.42, sendo que o não pagamento de uma prestação implicaria o vencimento das restantes (cláusula 3).

8) Como forma de garantir a quantia supra referida, deu a Requerida à Requente em penhor, nos termos do art. 669.º/1 do Código Civil uma Máquina designada pela marca ...: 1386 c/w 3T DECOILER SN: 13750. (cláusula quarta).

9) Tal máquina ficou na posse da Requerida, sendo que através de tal documento foi conferido à Requerente a exclusiva disponibilidade da mesma à credora, aqui Requerente, a qual poderia proceder ao seu levantamento e remoção logo que não fosse paga uma prestação, em consequência do vencimento das restantes.

10) Com o pagamento integral de tais valores ficariam extintos todos os créditos da Requerente decorrentes da dívida supra referida.

11) A Requerida, apesar de ter pago algumas as prestações, nunca cumpriu o seu pagamento de forma pontual, incorrendo sempre em mora.

12) Em Dezembro de 2018 só pagou a quantia de €1.000,00, tendo liquidado apenas o valor de €822,42 em janeiro de 2019.

13) Não tendo pago sequer a prestação de Janeiro de 2019, o que levou ao vencimento das restantes, nos termos do art. 781.º do CC.

14) Vendo-se a Requerente forçada a apresentar a competente execução, com o valor em dívida de €29.344,17, acrescida de €5281,81 a título de juros calculados à taxa acordada, perfazendo o valor da execução o montante de €34.625,98, execução essa n.º788/19...., a qual corre termos no ... do Tribunal Judicial da Comarca ....

15) Onde se nomeou à penhora a máquina supra referida.

16) Tendo a mesma sido penhorada no local em que se encontrava, mais concretamente na Travessa ..., ..., ... ..., onde ficou como fiel depositário o representante da Requerida, AA, não se tendo procedido à remoção da mesma, por as partes terem acordado restabelecer os pagamentos, sendo o próximo no dia 15/2/2019 no valor de €3.000,00.

17) Tendo a Requerida, posteriormente apenas pago os meses de Março e Abril.

18) Neste momento, a Requerida ainda deve à Requerente a quantia de €29.663,21.

19) Desde Abril (de 2019) que a Requerida nada mais pagou à requerente.

20) Tendo a Requerente requerido a remoção da máquina penhorada.

21) No dia 16/10/2019 a Sra. Agente de Execução dirigiu-se à sede da executada para proceder á remoção do bem penhorado nos autos, tendo constatado que as instalações se encontravam encerradas e completamente vazias, desconhecendo-se para onde a Requerida se teria mudado.

22) Posteriormente, a Requerente veio a saber que a Requerida estaria a laborar na Rua ..., em ..., ..., pelo que se dirigiu a Sra. Agente de Execução às instalações da mesma no dia 29/10/2019, tendo a Requerida solicitado a conta do processo e que pagaria no prazo de 5 ou 6 dias, não se tendo procedido à remoção da máquina penhorada.

23) Decorrido o prazo de pagamento, sem que mesmo se encontrasse efetuado, dirigiu-se a Senhora Agente de Execução novamente a tais instalações no dia 26/11/2019 para remover o bem penhorado.

24) Aí chegados, encontrava-se no local o fiel depositário, AA, o qual informou que a máquina não se encontrava ali, sendo que, questionado do paradeiro da mesma, respondeu que a mesma se encontrava no estrangeiro, recusando-se a informar em que país se encontrava.

25) Tal fiel depositário abriu as portas de tais instalações por forma a demonstrar que o bem penhorado não se encontrava no local, o que se veio efetivamente a verificar, pelo que, foi impossível remover o bem penhorado.

26) A Requerida encontra-se em situação de incumprimento generalizado de todas as suas obrigações financeiras vencidas, com um vasto universo de fornecedores.

27) As instituições financeiras retiraram todo o apoio financeiro à requerida, vedando-lhe assim a possibilidade de se recapitalizar através da obtenção de empréstimos bancários.

28) Já correram nos tribunais várias execuções e insolvências instauradas pelas mais diversas entidades contra a requerida com o objetivo de reclamar o seu crédito.».
13. No apenso de reclamação de créditos, através da lista de credores reconhecidos aí apresentada a 05/05/2021, foram reconhecidos pelo Exmº Administrador da Insolvência a 31 credores créditos no valor global de € 378.048,50, lista essa que foi homologada por sentença já transitada em julgado.
14. No âmbito do processo de insolvência foram inicialmente apreendidas duas viaturas automóveis, mas permaneceu apreendida apenas uma delas: a viatura ..., matricula ..-..-UP, que foi liquidada nos autos por € 2.000,00.
15. A máquina perfiladora H..., foi objecto de um contrato de compra e venda, pelo valor de € 67 650,00 (com IVA), entre a insolvente e a empresa LB... Unipessoal, Ldª., titulada e gerida por AA, marido da presidente do Conselho de Administração da insolvente CC.
16. Tal máquina encontrava-se, desde 12-2-2019, penhorada à ordem de um processo de execução instaurado por M... Unipessoal, Ldª contra a insolvente.
17. Sendo AA depositário da aludida máquina no referido processo de execução.
18. AA, gerente de facto da Insolvente X... SA e único sócio da LB... Unipessoal, Ldª, aproveitou a situação de insolvência daquela para adquirir e entrar na posse da máquina perfiladora.
19. Do valor de transacção AA, através da LB... Unipessoal, Ldª, pagou em 10-10-2019, a um (alegado) credor – F..., SA - da insolvente X... SA o valor de € 40 000,00.
20. Entrando o valor remanescente de aquisição (€ 27 650,00) em encontro de contas, dado a LC..., Unipessoal, Lda ser (alegadamente) credora da insolvente.
21. Sendo certo que nenhum valor, em numerário ou passível de em tal ser convertido, entrou em poder da insolvente.
22. No âmbito do processo de execução 788/19.5T8CBR, do J1 do Juízo de Execução de Soure, foi atribuído a tal máquina, a 12/02/2019, o valor de € 85 000,00.
23. No documento que titula a sua aquisição pela LB... Unipessoal, Ldª à insolvente, datado de 26/08/2019, a mesma é valorada em € 55 000,00 (sem IVA).
24. A máquina em referência apresentava-se como um bem essencial para o desenvolvimento da actividade da insolvente – produção e comercialização de casas pré-fabricadas - sendo o seu principal e mais valioso activo..
25. A decisão de venda da máquina perfiladora foi tomada por AA, sendo que tal transmissão ocorreu em 26-8-2019.
26. No exercício de 2018 a insolvente apresentava um resultado operacional negativo de € 604 762,68.
27. E atravessava um período de grande diminuição de actividade reflectida no facto de, no ano de 2018, o passivo ascender a € 1 522 994,46 e as vendas terem diminuído de € 1 489 155,90 em 2017 para € 760 208,54 em 2018.
28. A celebração do referido negócio de compra e venda visava colocar a máquina acima identificada na posse de uma outra empresa, permitindo que a sua exploração pudesse continuar a ser feita por LB... Unipessoal, Ldª e com proveito pessoal de AA, seu sócio gerente.
29. Assim angariando benefícios próprios em prejuízo dos credores da insolvente, que viam o principal activo desta ser transmitido a terceiro, sem que os seus créditos fossem pagos, por via da sua utilização no processo de laboração da insolvente ou através da sua liquidação posterior.
30. A insolvente, nos exercícios de 2017 a 2019, vivenciou uma situação económica e financeira difícil, com o agravamento progressivo da sua condição.
31. Em termos de contas da insolvente verifica-se que os resultados líquidos dos exercícios foram os seguintes:2017 – positivo no montante de € 4 453,54; 2018 – negativo no valor de € 604 762,68; 2019 – positivo no montante de € 50 680,09.
32. AA e BB estavam cientes da situação financeira e de tesouraria da insolvente e de que o passivo total da sociedade, no final dos exercícios de 2018 e 2019 excedia o seu activo global, estando assim perdida mais de metade do capital social de € 500 000,00.
33. Com efeito, os capitais próprios em 2018 e 2019 eram ambos negativos, nos valores de € 451 926,66 e € 401 246,57, respectivamente.
34. Perante este quadro económico e financeiro, AA e BB não providenciaram pela dissolução da sociedade, nem pelo reforço do respectivo capital social.
35. Mantendo o capital social em € 500 000,00.
36. Não obstante esta situação negativa, a insolvente continuou a laborar no ano de 2019, não tendo adoptado qualquer procedimento correctivo do facto do capital social de mostrar negativo, mantendo-se assim em 2018 e 2019.
37. Apesar de para tal ter sido alertada pelo seu Revisor de Contas em Junho de 2019.
38. Assim, no final do ano de 2018, a insolvente registou um resultado negativo de exploração no montante de € 604 762,68, os capitais próprios eram negativos no valor de € 451 926,66, sendo o passivo de € 1 522 994,46, com dívidas a fornecedores e ao Estado de € 563 102,07, quando o total do volume de vendas era de € 760 208,54.
39. Se em 31-12-2018 o volume de vendas era de € 760 208,54, no final de 2019 o mesmo descera para € 407 980,28.
40. Em finais de 2018, a insolvente, ao nível dos activos fixos tangíveis e inventário, registava os valores de € 36 107,88 e € 2 298,16, sendo que os mesmos, no final de 2019, ascendiam a € 626,68 e € 790,22.
2.2. Facto não provado
Com interesse para a apreciação do presente incidente, apenas não se provou que a decisão de venda da máquina perfiladora foi tomada com o consentimento e aceitação de BB”.
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Perante este lastro factual, cuidemos do mérito do recurso.

Na sentença sob recurso a insolvência foi qualificada como culposa, em face do preenchimento dos arts. 186.º, n.ºs. 1 e 2, alíneas d) e f) e 3, alínea a) do CIRE.

O incidente de qualificação da insolvência, introduzido no nosso ordenamento jurídico por influência do Direito espanhol, mais precisamente, da calificación del concurso[2], destina-se a apurar se a insolvência é fortuita ou culposa, isto é, se decorre ou não de uma atuação ilícita por parte do devedor.

Como refere Menezes Leitão[3] “o incidente de qualificação de insolvência (…) constitui uma fase do processo que se destina a averiguar quais as razões que conduziram à situação de insolvência, e consequentemente se essas razões foram puramente fortuitas ou correspondem antes a uma actuação negligente ou mesmo com intuitos fraudulentos do devedor".

Preceitua o art. 186.º, n.º 1 do CIRE que a “insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação dolosa ou com culpa grave do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.

Acrescenta-se no n.º 2 desse normativo “Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham” (…)

d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;

(…)

f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto”.

Finalmente, estatui-se no n.º 3 do art. 186.º “Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido
a) O dever de requerer a declaração de insolvência”.
Por se intrometerem diretamente com decisão a proferir nessa sede, deixaremos a discussão relativa à natureza e abrangência das presunções conferidas pelos n.ºs 2 e 3 deste normativo para o momento em que forem apreciados os fundamentos esgrimidos em sede do recurso.
                                                                                   *

No caso considerou a decisão recorrida existirem dois fundamentos para considerar culposa a insolvência:
A – Por os administradores da devedora terem feito uso do “bem mais valioso” da empresa (máquina perfiladora H...), em termos contrários aos interesses da insolvente, com prejuízo para a mesma e em proveito de terceiros;
B – Por os administradores não terem requerido a insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência.
Vejamos se a argumentação desenvolvida pelos recorrentes é de molde a afetar o mérito da decisão.

A – Alienação da máquina perfiladora H...

Nesta sede defendem os recorrentes que

- os recorrente são alheios à fixação em € 85.000 do valor da máquina no processo executivo 788/19...., tendo o mesmo sido fixado livremente pelo Agente de Execução, traduzindo o mesmo um valor aproximado e não o seu valor real (conclusão IV)

- o valor da venda à LC..., Unipessoal, Lda. foi apurado de acordo com os preços de mercado e não para favorecer a sociedade adquirente (conclusão V);

-  no caso de disposição de bens em proveito pessoal ou de terceiros, para que a insolvência se possa qualificar como culposa é necessário que se demonstre a existência de um flagrante desequilíbrio das prestações, que permitam objetivamente considerar uma injustificada e irrazoável vantagem para os administradores da devedora ou para terceiros à custa desta, sendo que não resulta provado nos autos qualquer facto capaz de asseverar que na venda ocorreu o ilegítimo benefício da sociedade LC..., Unipessoal, Lda. (conclusões VI a IX).

Examinando a factualidade relevante dada como provada, antecipadamente se avança que, no tocante à venda da máquina, deve ter-se por culposa a insolvência, pelo preenchimento da previsão constante da alínea d) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE e não já – e aqui afastamo-nos do decidido em primeira instância – do enunciado na alínea f) desse normativo.

Na verdade, se bem vemos, e no que toca aos bens, tais alíneas excluem-se; se o destino foi, tão só, a sua utilização – o seu uso – estará em causa a alínea f), mas quando se trate de um ato de disposição (venda/doação) do bem, a conduta integra-se na alínea d).

Embora por demasiadamente frequentes as imprecisões do legislador, o rigor interpretativo e linguístico exigem que não se confira idêntico significado aos vocábulos “disposição” e “uso”, sobretudo quando é o texto da norma a autonomizá-los na sua previsão e a criar – a par – exigências específicas de relevância normativa para cada um desses atos.  

Iremos aos elementos factuais que relevam para evidenciar a conclusão antecipada:
i) Está em causa um bem da devedora essencial ao desenvolvimento da sua atividade (o que significa que sem ele ou sem obtenção de equipamento substitutivo, a sua atividade não poderia prosseguir) e que constituía o seu mais valioso ativo (facto provado n.º 24);
ii) Esse bem começou por ser dado em penhor em 29.06.2017 para garantia de um crédito reclamado por um credor – M... Unipessoal, Ldª (facto provado n.º 12);
iii) Tendo a devedora incumprido a obrigação de pagamento da dívida para com a M... Unipessoal, Ldª, esta instaurou execução contra a devedora (facto provado n.º 12);
iv) Nessa execução a máquina foi penhorada em 12.2.2019 tendo-lhe sido atribuído o valor de € 85.000 (factos provados 16 e 22), não havendo qualquer elemento que permita concluir qualquer desajuste desse valor;
v) Apesar de ter sido nomeado como depositário da máquina o seu administrador de facto AA (factos provados n.ºs 6 e 17), quando a Agente de Execução pretendeu proceder à remoção, verificou-se ( a 26.11.2019) que a máquina tinha sido removida para local incerto, tendo o depositário informado que a máquina se encontrava no estrangeiro e recusado a informar em que pais se encontrava (facto provado n.º 12);
vi) O que ocorre é que, tal máquina, já em 26.08.2019, havia sido objeto de venda efetuada à empresa LB... Unipessoal, Ldª, titulada e gerida pelo administrador de facto da devedora (factos provados 15, 23 e 25);
vii) Venda efetuada pelo preço de € 55.000 (facto provado 23), ou seja, em valor significativamente abaixo (64,70%) daquele que lhe havia sido conferido em processo judicial executivo cerca de 6 meses antes;
viii) Sendo que esse preço não entrou efetivamente “em caixa” da devedora, tendo o montante de € 40.000 sido destinado ao pagamento a um credor (FTB), feito pela LB... Unipessoal, Ldª, cerca de um mês e meio depois (em 10.10.2019) e o remanescente a um “encontro de contas” (factos provados 19, 20 e 21);   
ix) Mais se apurou que a venda visava colocar a máquina na posse de outra empresa, permitindo que a sua exploração pudesse continuar a ser feita pela LB... Unipessoal, Ldª, gerida pelo administrador de facto da devedora (facto provado n.º 28).

Ou seja, 8 meses e 8 dias antes da declaração de insolvência, a devedora vende a “preço de saldo” um bem imprescindível ao seu objeto social.

Foi defendido pelos recorrentes em sede de recurso que o valor da máquina conferido em sede de execução era um “valor aproximado” e não o “real”, para, de imediato defender que o valor da venda à LB... Unipessoal, Ldª, esse sim, ter sido apurado tendo em conta a sua idade e estado de conservação.

Todavia, estamos em presença de defesa apoiada em factos e conclusões que não apenas não foram apurados, como contrariam a lógica de racionalidade do que ficou demostrado.

Na verdade, trata-se de um valor atribuído na ação executiva que assegura, enquanto tal, alguma credibilidade em termos de aproximação ao efetivo valor de mercado, o que permite concluir, ante o reduzido hiato temporal que mediou entre a fixação do valor da máquina na ação executiva e a sua venda, que esta foi efetuada em proveito pessoal da LB... Unipessoal, Ldª, sem entrada efetiva de capital e com o único propósito de permitir que a sua exploração pudesse continuar a ser feita pela LB... Unipessoal, Ldª, gerida pelo administrador de facto da devedora.

Defendem depois os recorrentes que, para que a insolvência possa ser qualificada como culposa,

- é necessário que a atuação do devedor tenha sido causa da situação de insolvência ou do seu agravamento (nexo de causalidade), uma vez que o devedor pode ter atuado dolosamente, mas em nada ter contribuído para a criação ou o agravamento da insolvência” (conclusão II)

e que

“é necessário que se demonstre a existência de um flagrante desequilíbrio das prestações contratuais, que permitam objetivamente considerar uma injustificada e irrazoável vantagem para os administradores da devedora ou para terceiros à custa daquela” (cfr. conclusão VII).

Trata-se, segundo se crê, no essencial, de uma adesão ao entendimento defendido por Catarina Serra [Decoctor ergo fraudator, A insolvência culposa (esclarecimento sobre um conceito a propósito de umas presunções), Cadernos de Direito Privado, n.º 21 Janeiro/Março, págs. 60 a 64 e Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, páginas 300 e 301], mas alargando-o também às situações contempladas no art. 186.º, n.º 2, alíneas d) e f), ao arrepio dessa ilustre jurista (que defende exclusivamente a tese da necessidade da prova do nexo causal relativamente às situações previstas nas alíneas h) e i) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE).

Todavia, como resulta expresso da norma, as situações (todas) elencadas no art. 186.º, n.º 2 do CIRE configuram presunções absolutas de insolvência culposa[4][5].

Ou seja, tendo-se demonstrado qualquer um desses comportamentos, a insolvência presume-se iuris et de iure como insolvência culposa, sem necessidade de demonstrar que a atuação do devedor tenha sido causa da situação de insolvência ou do seu agravamento (nexo de causalidade), e muito menos que, nos casos de disposição/uso de bens contrário aos interesses do devedor, em proveito pessoal ou de terceiros, a demonstração da “existência de um flagrante desequilíbrio das prestações contratuais, que permitam objetivamente considerar uma injustificada e irrazoável vantagem para os administradores da devedora ou para terceiros à custa daquela”.


B – Violação do dever de apresentação à insolvência

Divergindo da decisão recorrida os recorrentes defendem que
i) não era possível a dissolução da sociedade devedora por ter dívidas ao fisco e à Segurança Social e não era possível reforçar o respetivo capital social por não se possuírem capitais próprios ou crédito bancário para o efeito (conclusões X e XI)
e que
ii) para se poder concluir pela insolvência culposa é necessário provar-se não apenas o comportamento omissivo (falta de apresentação à insolvência), mas também que o mesmo criou ou agravou a situação de insolvência, sendo que, na situação presente, nenhum facto se provou que permita afirmar esse nexo causal (conclusões X a XV).

Diga-se, antes de mais, para dar resposta à primeira das objeções, que, como parece ter sido assumido, não está em causa a violação de qualquer dever ligado à dissolução da sociedade ou de aumento do capital social.

O que releva e objeto de ponderação, é, tão só, a violação do dever de apresentação à insolvência previsto no art. 18.º do CIRE.

Depois, como segundo argumento, a recorrente sustenta a necessidade de se fazer prova em como o incumprimento do dever de se apresentar à insolvência dever ser causal da criação ou agravamento da insolvência, prova essa que no caso, segundo refere, diz não ter sido feita.

É conhecida a “vexata quaestio” a propósito da presunção constante do art. 186.º, n.º 3 do CIRE[6].

Segundo a corrente maioritária trata-se de uma presunção iuris tantum destinada exclusivamente ao preenchimento do requisito constante do n.º 1 do mesmo preceito relativamente à atuação dos administradores.

Isto é, no caso de verificação de qualquer das situações previstas nas alíneas a) e b) do n.º 3 do art. 186.º, presume-se terem os administradores atuado com culpa grave. Todavia, para que a insolvência seja considerada culposa é ainda necessário que tais situações, quando não ilididas, tenham, em termos causais, criado ou agravado a insolvência.

Uma outra corrente sustenta que a presunção relativa aí cominada traduz-se numa presunção de insolvência culposa, que, quando não ilidida, prejudica a necessidade da demonstração do nexo de causalidade entre o facto omitido e a criação ou o agravamento da situação de insolvência, ou, dito em termos mais rigorosos, a presunção de “culpa grave” do n.º 3, abrange também o nexo de causalidade[7].

Da nossa parte, perante à letra da lei e o seu elemento sistemático, subscreve-se o entendimento de que “o que resulta do art. 186.º, n.º 3, é apenas uma presunção de culpa grave (…) mas não uma presunção da causalidade (…) em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do art. 186.º, n.º 1, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa (…) conduta”[8].

De resto, a alteração introduzida ao n.º 3 do CIRE pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro “presume-se unicamente a existência de culpa grave) parece ter tido como propósito resolver a a vexata quaestio a favor do entendimento que já vínhamos seguindo, sendo hoje inequívoco estarmos em presença de uma presunção de culpa grave e não uma presunção de insolvência.

Apesar desta incursão, diga-se que, tal como os recorrentes, também na decisão recorrida se perfilha esse mesmo posicionamento – o de que a falta de apresentação à insolvência constitui uma mera presunção de culpa.

Na verdade, a dissonância existente não se amarra na interpretação do direito, mas na interpretação dos factos.

Enquanto os recorrentes defendem não se ter feito prova do aludido nexo causal, já na decisão recorrida concluiu inequivocamente que a falta de apresentação à insolvência por parte da devedora agravou a situação de insolvência e causou prejuízos aos seus credores.

E, perante os factos apurados, a conclusão não podia ser outra que não aquela a que chegou a decisão recorrida.

Na verdade, a partir do saldo de exploração negativo de € 604.762,68 no exercício de 2018, com capitais próprios negativos de € 451.926,66 e um passivo global de € 1.522 994,46 e que, no final de 2019, com uma diminuição de vendas para cerca de metade do ano anterior, já estava perdido mais de metade do capital social (cifrando-se em € 401.246,57), incapaz, já em 2017, de efetuar pagamento de uma dívida de € 62.399,56, a ponto de ter dado de garantia e de deixar na disponibilidade do credor a máquina que constituía o seu principal ativo e essencial para o desenvolvimento da sua atividade, com valor a rondar os € 85.000, na ausência de capitalização, impunha-se a apresentação à insolvência (generosamente na sentença recorrida considerou-se que essa apresentação deveria ter ocorrido até final de julho de 2019).

Não sobram dúvidas em como, tal como se concluiu na sentença recorrida, que se apresenta preenchido o condicionalismo fáctico subjacente à presunção de existência de culpa grave dos administradores da insolvente, a que alude o nº 3 do citado art.º 186º; e que a omissão da apresentação atempada à insolvência contribuiu para o agravamento da situação e criou prejuízo aos credores, existindo nexo de causalidade entre essa omissão e a criação desse agravamento, preenchendo-se, assim, a condição prevista no nº 1 do mesmo artigo.

                                                                                     *
Sumário[9]:

(…)

                                                             

IV - DECISÃO.

Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se em julgar  improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

                                                                                    *

Custas pelos apelantes (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2 do CPC).

                                                                                      *

Coimbra,    14 de junho de 2022


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(Paulo Correia)



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(Helena Melo)


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(José Avelino)




[1] Relator – Paulo Correia
Adjuntos – Helena Melo e José Avelino
[2] - Cfr. Lições de Direito da Insolvência, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2.ª edição, 2021, pág. 299-300.
[3] - Direito da Insolvência, Almedina, 4.ª Edição, 2012, pág. 273
[4] - Segue-se, a este propósito, a corrente ultra maioritária defendida, entre outros por Luís Teles de Menezes Leitão (Direito da Insolvência); Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado), Ana Prata, Jorge Morais Carvalho, Rui Simões (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) e Maria do Rosário Epifânio (Manual do Direito da Insolvência).
[5] - Todavia uma significativa corrente doutrinária partilha o entendimento de que nem todas as situações identificadas nas várias alíneas do n.º 2 do art. 186.º valem para a generalidade das “pessoas não singulares” (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª edição, pág. 717; Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª Edição, págs 300-301; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 11.ª edição, pág. 237.
[6] - Por aí se encontrarem plenamente desenvolvidas as linhas de orientação doutrinárias e jurisprudenciais em causa, remete-se para a anotação ao art. 186.º do CIRE efetuada por Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 2013, págs. 504 a 512.
[7] Como exemplo paradigmático deste posicionamento, e que tem na sua base o inconformismo com aquilo que se considera “falta de nexo lógico ou uma qualquer conexão” entre as situações tipificadas no n.º 3 do art. 186.º e a criação ou agravar da insolvência, referencia-se o Ac. do TRC de 22 de maio de 2012, proferido no processo 1053/10.9TJCBR-K.C1 (relator Barateiro Martins)
[8] - Menezes Leitão, Direito da Insolvência, pág. 275.
[9] - Da exclusiva responsabilidade do relator (art. 663.º, n.º 7 do CPC).