Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
86/15.3T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO ESTRADAL
IMPOSSIBILIDADE DE IDENTIFICAÇÃO DO AUTOR DA INFRACÇÃO
ILISÃO DE PRESUNÇÃO
FASE ADMINISTRATIVA
FASE JUDICIAL
Data do Acordão: 02/24/2016
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: VISEU (INSTÂNCIA LOCAL – SECÇÃO CRIMINAL – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CONTRAORDENACIONAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 171.º, N.ºS 1 E 2, DO CÓDIGO DA ESTRADA
Sumário: Está vedado ao titular do documento de identificação do veículo, em sede de impugnação judicial, a ilisão da presunção - juris tantum - decorrente dos n.ºs 2 e 3 do artigo 171.º do Código da Estrada.
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito dos autos de contraordenação que correram termos no na Comarca de Viseu – Inst. Local – Secção Criminal – J2, o arguido, ora recorrente, A..., melhor identificado nos autos, impugnou judicialmente a decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, proferida em 31.10.2103, que o condenou, pela prática da contraordenação ao disposto no artigo 28, nº 1, alínea b), punida nos termos dos artigos 28.º, n.º 5 e 27º, n.º 2, alínea a) 2.º e 138º e 145º, alínea b), todos do Código da Estrada, na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 45 [quarenta e cinco] dias, suspendendo-a na sua execução por um período de 365 dias, condicionada à frequência de uma ação de formação no módulo velocidade, a frequentar durante o período de suspensão.

2. Concluindo, então:

i O arguido não cometeu a infração por que vem condenado.

ii O veículo em causa nos autos não era conduzido pelo arguido no dia e hora identificados na decisão condenatória.

iii Quem o conduzia era o seu sogro, Sr. B... , melhor identificado supra, nos termos e para os efeitos do art. 171º - 2 e 3 do CE.

iv Deve a identificação agora promovida ser devidamente valorada, sob pena de se admitir a responsabilização puramente objetiva do arguido, em violação dos mais elementares princípios do direito penal, aqui subsidiariamente aplicáveis, tudo com as legais consequências.

Para além do mais,

v A decisão da ANSR que condenou o arguido em sanção acessória de inibição de conduzir perece de vícios formais, não cumprindo com o preceituado no art. 181º CE, pelo que deverá ser declarada nula.

vi Nomeadamente, não descreve com suficiente rigor e clareza as circunstâncias de facto que justificam a condenação e fundamenta-se em um único meio de prova insidioso, e que tolera margens de erro, sem suporte legal.

vii Tudo em prejuízo do direito de defesa do arguido.

viii Ao que acresce que a condenação em processo contraordenacional é materialmente uma acusação em processo penal, pelo que se lhe aplicam, subsidiariamente, os preceitos legais do CPP, impondo-se maior rigor na sua elaboração.

ix Acresce que os agentes de fiscalização utilizaram um meio de prova irregular, pelo que a sua utilização determina a nulidade do procedimento, com o inevitável e consequente arquivamento dos autos.

Nestes termos, uma vez admitida e devidamente valorada a identificação promovida ao abrigo do art. 171º - 2 e 3 do CE, deve ser declarada a suspensão do presente procedimento e, a final, o seu arquivamento, por falta de preenchimento do tipo de ilícito contraordenacional imputado ao arguido, tudo com as legais consequências.

Sem prescindir, deverá ser declarada a nulidade da decisão condenatória emitida pela ANSR, em consequência dos vícios formais supra identificados, e inevitavelmente ser arquivado o presente procedimento.

Nessa conformidade deverá ser ordenada a devolução ao arguido do valor por si entregue a título de depósito.

Ainda sem prescindir, deverá ainda ser arquivado o procedimento por estar em causa um meio de prova insidioso e irregular, sem força probatória suficiente.

3. Recebida a impugnação judicial e realizada a audiência de julgamento, por sentença de 07.05.2015, decidiu o tribunal pela sua improcedência, mantendo, em consequência, a decisão proferida pela autoridade administrativa.

4. Inconformado com o assim decidido recorre o arguido, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

a) Decidiu o Tribunal a quo improceder a impugnação judicial apresentada, mantendo a decisão proferida pela autoridade administrativa, nomeadamente e para além do pagamento da respetiva coima, a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 45 dias, suspensa na sua execução por um período de 365 dias, condicionada à frequência de uma ação de formação no módulo velocidade.

b) Contudo, não se conforma o Recorrente com a mesma, porquanto não interpretou nem analisou as nulidades oportunamente invocadas à luz de todos os preceitos e princípios aplicáveis ao processo contraordenacional, nomeadamente os do processo criminal, ademais que aqui se trata de um processo intrinsecamente sancionatório.

b.1) De facto, a dita Sentença ao considerar que a decisão da autoridade administrativa [ANSR] se insere numa fase administrativa do processo de contraordenação, razão pela qual lhe são aplicáveis os princípios fundamentais de direito e do processo administrativo, violou o disposto no artigo 41.º do RGCO [aplicável por remissão direta do artigo 132.º do Código da Estrada], artigos 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 1 e 10, todos da CRP, e jurisprudência já exposta.

b.2) sendo certo que “Um auto de notícia que não descrever de forma suficiente a conduta do (alegado) infrator, violando o disposto no art.º 170º, nº 1 do Código da Estrada e o prescrito no art.º 283º nº 3 al. b) do C.P.Penal, é nulo (…). Os autos de notícia, em regra, só dão conta do facto essencial a sancionar – no caso, uma manobra de mudança de direção -, mas omitem todas as demais circunstâncias relevantes (…) O que a lei quer é que se descrevam os factos e não a sua previsão típica, que além de não facultar defesa, também não permite a necessária graduação da ilicitude da conduta” [Acórdão da Relação de Guimarães, de 01.10.2007, processo n.º 1535/07-1], o que in casu sucedeu, pelo que deve a Sentença em crise ser considerada nula [neste sentido, veja-se, entre outros, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27.01.2004, processo n.º 10583/2003-5 e, decisivamente, o Assento n.º 1/2003 (DR, I-A, de 25-1-2003] e substituída por outra que considere procedentes aquelas nulidades, revogando-se, deste modo e igualmente, a decisão administrativa proferida pela ANSR quanto ao Recorrente.

SEM PRESCINDIR,

c) o Tribunal a quo limita a sua decisão a uma questão de direito, pois em face da referida presunção, que não pode ser ilidida nesta fase [judicial, nomeadamente, a consagrada no artigo 171º do Código da Estrada, a qual remete para identificação do condutor por parte do proprietário do veículo], não deu qualquer relevo às declarações do arguido e das referidas testemunhas por este arroladas.

c.1) Ou seja, o Tribunal a quo justifica que não deu como provado que não era o arguido o condutor do veículo em questão e que não deu qualquer relevo às declarações e testemunhos prestadas na audiência de julgamento apenas por considerar que a referida presunção não pode ser ilidida nesta fase judicial, sendo esta – a sua opinião ou juízo jurídico – a única razão de tal [e não na prova produzida, porque essa, aliás, e conforme Sentença em crise, não foi relevada].

Pelo que constata-se, deste modo, que o que está aqui em causa é uma questão/matéria intrinsecamente de direito: descortinar se é admissível e atendível, ou não, nos termos legais e constitucionais aplicáveis ao caso sub judice, a identificação do condutor efetuada pelo titular do documento de propriedade do veículo em apreço na fase judicial – sendo, deste modo, o presente recurso admissível, porque limitado a uma questão de direito [cfr. artigo 75.º do RGCO].

CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA,

d) a verdade é que sempre se deverá considerar, com todo o respeito, o presente recurso admissível igualmente por força do artigo 410.º do CPP.

d.1) seja através da sua alínea c) [erro na apreciação da prova], dado o Tribunal a quo não ter atendido nem relevado a prova produzida em audiência devido a uma questão de direito, conforme já explanado.

d.2) seja através da sua alínea b) [contradição da fundamentação], uma vez que, apesar de “ (não ter dado) qualquer relevo às declarações do arguido e das referidas testemunhas por este arroladas, inquiridas em audiência” e se ler na Sentença em crise que “Relativamente às declarações que foram prestadas pelo próprio recorrente, A... , em audiência, na parte em que referiu que não era ele o condutor do veículo em questão, mas antes o seu sogro, B... , a quem tinha emprestado o veículo em causa, assim como os depoimentos das demais testemunhas inquiridas em audiência, que foram arroladas pelo referido recorrente, B... , C... e D... , os quais corroboraram, em certa medida, tal versão do recorrente (…), dá como não provado que “O veículo em causa era conduzido pelo arguido no dia e hora aludidos (…)” e que “Quem o conduzia era o seu sogro, o Sr. B... (…)”, o que, com o devido respeito na esteira do Acórdão do STJ de 07.12.2005, é apreensível a partir do seu texto, a incoerência interna com os termos da decisão, sendo certo que:

* Numa primeira análise refere o Tribunal a quo que não releva a prova produzida mas, apesar disso, dá como não provados esses mesmos alegados factos que não relevou;

* Numa outra análise, apesar de determinar a aludida Sentença – não obstante algumas contradições evidenciadas, que nem específica e concretiza quais – que, o recorrente referiu que não era ele o condutor, facto que foi corroborado pelas testemunhas inquiridas em audiência de julgamento [sendo que o próprio, efetivo e real condutor – B... , sogro do recorrente – assim o assumiu], apesar de tal, decide dar como não provado que o veículo em causa não era conduzido pelo arguido e que quem o conduzia era o seu sogro, o Sr. B... .

De quaisquer dos pontos de vista acima elencados é, pois, manifesta a contradição por parte do Tribunal a quo, cujo vício e para os efeitos do artigo 410.º do CPP se requer.

COM EFEITO

e) O entendimento de que, por força do artigo 171º do Código da Estrada, recai sobre o titular do documento do veículo a identificação do condutor e que essa presunção, não obstante de juris tantum, não pode ser ilidida em fase judicial – plasmado na Sentença em crise – é por demais violador dos princípios basilares e ordenadores do sistema judicial português, inclusive criminais e constitucionais, de que se destacam os princípios da culpa, da justiça, da legalidade e, sobretudo, o princípio da tutela judicial efetiva.

e.1) O princípio da tutela judicial efetiva deve ser assegurado e concretizado na fase judicial, nomeadamente [e até dependente de (!)] uma intervenção judicial real, dotada de plena jurisdição, isto é, suscetível de se pronunciar efetivamente sobre todas as questões relevantes para a definição da responsabilidade, in casu, contraordenacional, o que não sucede se se partilhar o entendimento do Tribunal a quo, pois impede o Tribunal de avaliar se era o Recorrente ou não o condutor do veículo na data e horas mencionadas na decisão administrativa e, por conseguinte, admite que o recorrente seja condenado por infração que simplesmente não cometeu.

e.2) Ainda que persistissem dúvidas na aplicação desta norma [artigo 171º do Código da Estrada], a verdade é que tal deveria ser interpretado sempre à luz da aceitação dos meios de defesa disponíveis ao Arguido/Recorrente e, sobretudo, pela intervenção e apreciação do Tribunal de todas as questões pertinentes para uma decisão correta, adequada e justa.

e.3) Nesse sentido, cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra [de 05.07.2006, 20.09.2006 e 28.09.2010, processos n.ºs 1511/06, 1302/06 e 1106/09.6TAPDL.L1-5, respetivamente], do Tribunal da Relação de Guimarães [de 01.10.2007 e 25.02.2008, processo n.ºs 1535/07-1 e 1983/07-1, respetivamente], bem como Acórdão n.º 276/04, de 20.04.2004, este do Tribunal Constitucional.

SUBSIDIARIAMENTE

f) Deve o referido n.º 2 do artigo 171.º do Código da Estrada ser declarado inconstitucional, quando interpretado no sentido de não ser admitida a elisão de presunção nele estabelecida, de modo a que o afastamento da presunção só possa ocorrer na fase administrativa do procedimento, por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado no n.º 1 do artigo 20.º e n.º 4 do artigo 268º, ambos da CRP, na medida em que preclude [a exigência e existência] de plena jurisdição que por força desse princípio deve ser reconhecida ao Tribunal.

g) Mais se argui e se requer, por identidade de razão, a violação, por essa interpretação normativa do n.º 2 do artigo 171.º do Código da Estrada, do n.º 1 do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

h) Inconstitucionalidade ainda que também deve, com o devido respeito, ser declarada por violação do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, na medida que em, não se permitindo que a presunção estabelecida no n.º 2 do artigo 171.º do Código da Estrada seja ilidida na fase de impugnação judicial da decisão proferida pela autoridade administrativa, admite-se que o recorrente seja condenado por infração que simplesmente não cometeu.

CONCLUINDO,

i) Resulta, assim, que o Tribunal a quo não cumpriu com todas as imposições legais inerentes e impostas a Ele, bem como, com todo o respeito, não interpretou do modo mais correto a disposição legal aplicável ao caso nem a [melhor e mais justa] ratio daquela.

j) Daí a presente impugnação judicial.

l) Daí a não conformação com a Sentença que considerou aquela improcedente.

m) Daí a convicção do Recorrente de que não pode ser condenado por algo [ademais, infração que comporta quer sanção pecuniária, quer sanção acessória] que simplesmente não cometeu.

Termos em que se requer a este Venerando Tribunal que se digne a revogar a sentença em crise por não ter aplicado e ponderado os princípios e preceitos que a lei assim determina aplicável ao caso sub judice, mormente na sua análise e juízo às nulidades invocadas.

Sem prescindir, e caso não se entenda que a questão aqui em causa é exclusivamente de direito, deverá ainda ser reconhecido e corrigido o erro na apreciação da prova e/ou vício de contradição na fundamentação, nos termos e para os efeitos do artigo 410.º-2, b) e c) do CPP, com as legais consequências.

Por fim, deverá ainda ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que permita ao recorrente identificar e provar que na data e local constante da decisão administrativa não era o condutor do veículo naquela também referido.

Subsidiariamente, deve ainda:

I) O n.º 2 do artigo 171.º do Código da Estrada ser declarado inconstitucional por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado no n.º 1 do artigo 20.º e n.º 4 do artigo 268.º, ambos da CRP, na medida em que preclude [a exigência e existência] de plena jurisdição que por força desse princípio deve ser reconhecida ao Tribunal; e/ou

II) Mais se argui e se requer, por identidade de razão, a violação por essa interpretação normativa do n.º 2 do artigo 171.º do Código da Estrada do n.º 1 do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; e/ou

III) Ser o aludido normativo declarado inconstitucional também por violação do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, na medida que em, não se permitindo que a presunção estabelecida no n.º 2 do artigo 171.º do Código da Estrada seja ilidida na fase de impugnação judicial da decisão proferida pela autoridade administrativa, admite-se que o recorrente seja condenado por uma infração que simplesmente não cometeu.

Fazendo, deste modo, este Venerando Tribunal toda e acostumada Justiça!

5. Por despacho de 25.05.2015 foi o recurso admitido, fixado o respetivo regime de subida e efeito.

6. Ao recurso respondeu a Digna Procuradora-Adjunta, contrariando a argumentação desenvolvida no recurso, para concluir: A sentença é insuscetível de qualquer reparo ou censura, não padece de qualquer vício ou nulidade, pelo que deverá ser confirmada e, em consequência, ser negado provimento ao recurso interposto pelo recorrente.

7. Na Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no qual, sufragando, no essencial, a resposta apresentada em 1.ª instância pelo Ministério Público, se pronunciou no sentido de dever o recurso improceder.

8. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, reagiu o recorrente, concluindo como no requerimento de interposição do recurso.

9. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões, sem prejuízo das questões que importe oficiosamente conhecer, ainda que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

Neste quadro, as questões colocadas traduzem-se em saber se:

- Viola a decisão recorrida os artigos 41.º do RGCO, 20.º, n.º 4 e 32.º, n.ºs 1 e 10 da CRP;

 - A elisão da presunção decorrente do artigo 171º do Código da Estrada deve ser admitida, também, na fase de impugnação judicial do procedimento contraordenacional;

- Ocorrem os vícios de erro notório na apreciação da prova e/ou de contradição insanável da fundamentação;

- É inconstitucional por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado nos artigos 20.º, nº 1 e 268.º, n.º 4, ambos da CRP, a interpretação do n.º 2, do artigo 171.º do C. da Estrada no sentido de não permitir, em sede de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, a elisão da presunção, precludindo, assim, a plena jurisdição que, por força de tal princípio, deve ser reconhecida aos tribunais;

- Viola, por identidade de razão, semelhante interpretação normativa do n.º 2 do artigo 171.º do C. da Estrada o n.º 1 do artigo 6º da CEDH;

- É inconstitucional por violação do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, a interpretação do n.º 2 do artigo 171º do C. da Estrada no sentido de não permitir que a presunção, a que se reporta, seja ilidida na fase de impugnação judicial da decisão administrativa, por admitir que o arguido venha a ser condenado por infração que não cometeu.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença em crise [transcrição parcial]:

A... veio interpor recurso por não se conformar com a decisão administrativa, proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, que o condenou na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 45 dias, suspensa na sua execução por um período de 365 dias, condicionada à frequência de uma ação de formação no módulo velocidade devendo esta ser frequentada no período da suspensão, pela prática da contraordenação prevista e punida pelas disposições conjugadas dos artigos 28º, nºs. 1, alínea b), e 5, 27º, nº 2 alínea a), ponto 2º, 138º, 145º, alínea b) do Código da Estrada, alicerçando a sua fundamentação, em síntese, nas seguintes razões:

» Não cometeu a infração por que vem condenado;

» O veículo em causa nos autos não era conduzido pelo arguido no dia e hora identificados na decisão condenatória;

» Quem conduzia o veículo era o seu sogro, o Sr. B... , melhor identificado no ponto 39 da impugnação;

» Deve a identificação agora promovida ser devidamente valorada, sob pena de se admitir a responsabilização puramente objetiva do arguido, em violação dos mais elementares princípios do direito penal, aqui subsidiariamente aplicáveis, tudo com as legais consequências;

» A decisão da ANSR que o condenou em sanção acessória de inibição de conduzir perece de vícios formais, não cumprindo com o preceituado no artigo 181º do C.E., pelo que deverá ser nula, nomeadamente não descreve com suficiente rigor e clareza as circunstâncias de facto que justificam a condenação, e fundamenta-se num único meio de prova insidioso, e que tolera margens de erro sem suporte legal, tudo em prejuízo do direito de defesa do arguido;

» Ao que acresce que a condenação em processo contraordenacional é materialmente uma acusação em processo penal, pelo que se lhe aplicam, subsidiariamente, os preceitos legais do CPP, impondo-se mais rigor na sua elaboração;

» Acresce que os agentes de fiscalização utilizaram um meio de prova irregular, pelo que a sua utilização determina a nulidade do procedimento, com o inevitável e consequente arquivamento dos autos.

Com tais fundamentos conclui pedindo que, uma vez admitida e devidamente valorada a identificação promovida ao abrigo do artigo 171º, nº 2 e 3 do C.E., seja declarada a suspensão do presente procedimento e, a final, o seu arquivamento, por falta de preenchimento do tipo de ilícito contraordenacional que lhe foi imputado, tudo com as legais consequências. Sem prescindir, deverá ser declarada a nulidade da decisão condenatória emitida pela ANSR, em consequência dos vícios formais supra identificados, e inevitavelmente ser arquivado o presente procedimento.

Nessa conformidade deverá ser ordenada a devolução ao arguido do valor por si entregue a título de depósito.

Ainda sem prescindir, deverá ainda ser arquivado o procedimento por estar em causa um meio de prova insidioso e irregular, sem força probatória suficiente.

Por despacho de fls. 71 foi admitido o recurso.

Realizou-se a audiência de julgamento com observância do formalismo legal pertinente.

O tribunal é competente.

O processo é o próprio.

O Ministério Público e o recorrente têm legitimidade.

QUESTÃO PRÉVIA:

Das invocadas nulidades:

Sustenta o recorrente que a decisão da ANSR que o condenou em sanção acessória de inibição de conduzir perece de vícios formais, não cumprindo com o preceituado no artigo 181º do C.E., pelo que deverá ser nula, nomeadamente não descreve com suficiente rigor e clareza as circunstâncias de facto que justificam a condenação, e fundamenta-se num único meio de prova insidioso, e que tolera margens de erro sem suporte legal, tudo em prejuízo do direito de defesa do arguido, sendo certo que a condenação em processo contraordenacional é materialmente uma acusação em processo penal, pelo que se lhe aplicam, subsidiariamente, os preceitos legais do CPP, impondo-se mais rigor na sua elaboração.

Sustenta ainda que os agentes de fiscalização utilizaram um meio de prova irregular, pelo que a sua utilização determina a nulidade do procedimento, com o inevitável e consequente arquivamento dos autos.

Ora, antes de mais importa referir que o Regime Geral das Contra Ordenações – adiante designado por R.G.C.O., não indica expressamente as situações que podem configurar nulidade.

Contudo, estabelece o artigo 41º do R.G.C.O. uma regra de direito subsidiário, segundo o qual sempre que o contrário não resultar daquele diploma, são aplicáveis ou devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.

Estamos, assim, perante uma remissão global para as normas do processo criminal que, por esta via, se constituem genericamente em normas integradoras do processo contraordenacional, sendo certo que tal aplicação apenas não é de fazer quando da Constituição da Republica Portuguesa, do próprio R.G.C.O. ou de legislação especial resulte o afastamento de tais normas.

As normas constantes dos artigos 118º a 123º, do Código de Processo Penal, regulam, em geral, as consequências da inobservância das prescrições legais estabelecidas para a prática de atos processuais. Tais disposições não esgotam, porém, tudo o que diga respeito a tal matéria, havendo que atender a outras normas esparsas no código, designadamente, o caso especial das nulidades da sentença (cfr. 379º do Código de Processo Penal).

O artigo 118º, nº 1, do Código de Processo Penal, dispõe que “a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei”. 

Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato é irregular (cfr. artigo 118º, nº 2, do Código de Processo Penal). 

Consagra-se neste artigo o princípio da legalidade no domínio das nulidades processuais. 

Assim, para que algum acto processual, relativamente ao qual tenha havido violação ou inobservância das disposições legais do processo penal, padeça do vício de nulidade é necessário que a lei o diga expressamente; de outro modo, o acto viciado sofrerá do vício menor de irregularidade, submetido ao regime do artigo 123º, mas não será nulo.

Exigências de economia processual impõem, de facto, que a lei não considere todas as imperfeições sob o mesmo plano, mas antes gradue os efeitos dos vícios em razão da sua gravidade. 

Com efeito, as espécies de invalidades previstas na lei são: a nulidade insanável, a nulidade dependente de arguição e a irregularidade. 

As primeiras consubstanciam as infrações mais graves e são de conhecimento oficioso em qualquer estado do procedimento, mas não obstam à formação de caso julgado; as segundas correspondem a infrações de gravidade mediana, que devem ser arguidas pelo interessado, dentro de determinados limites temporais e que ficam sanadas pela intervenção de certos eventos previstos na lei; as últimas correspondem a infrações mais leves, que podem ser reparadas oficiosamente e em qualquer momento.

Se para que o acto possa ser declarado nulo é necessário que a lei expressamente comine a nulidade, também para que a nulidade seja considerada insanável importa que a lei expressamente o preveja. 

A consagração do princípio da taxatividade das nulidades insanáveis e dependentes de arguição afasta, desde logo, a possibilidade de aplicação analógica daqueles preceitos aos casos omissos.

Com efeito, as nulidades insanáveis estão enumeradas no artigo 119º do referido diploma legal, acrescendo-lhes as que assim são cominadas em outras disposições legais. 

Desde que não cominadas como insanáveis, as nulidades consagradas na lei serão sanáveis, segundo o regime dos artigos 120º a 121º, do mesmo diploma legal. 

As irregularidades, por sua vez, encontram-se previstas no artigo 123º do mesmo diploma.

Ora no que respeita  aos requisitos da decisão administrativa, dispõe o artigo 58º, nº 1, do RGCO que:

“A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:

 a) A identificação dos arguidos; 

b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas; 

c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; 

d) A coima e as sanções acessórias.”

Por sua vez, e no que se refere às decisões administrativas em matéria rodoviária, dispõe o artigo 181º, do Código da Estrada que:

“1 - A decisão que aplica a coima ou a sanção acessória deve conter:

  a) A identificação do infrator; 

b) A descrição sumária dos factos, das provas e das circunstâncias relevantes para a decisão; 

c) A indicação das normas violadas; 

d) A coima e a sanção acessória; 

e) A condenação em custas. 

2 - Da decisão deve ainda constar que: 

a) A condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada por escrito, constando de alegações e conclusões, no prazo de 15 dias úteis após o seu conhecimento e junto da autoridade administrativa que aplicou a coima; 

b) Em caso de impugnação judicial, o tribunal pode decidir mediante audiência ou, caso o arguido e o Ministério Público não se oponham, mediante simples despacho. 

3- A decisão deve conter ainda: 

a) A ordem de pagamento da coima e das custas no prazo máximo de 15 dias úteis após a decisão se tornar definitiva; 

b) A indicação de que, no prazo referido na alínea anterior, pode requerer o pagamento da coima em prestações, nos termos do disposto no artigo 183.º 

4 - Não tendo o arguido exercido o direito de defesa, a fundamentação a que se refere a alínea b) do n.º 1 pode ser feita por simples remissão para o auto de notícia.

Ora, uma vez que os requisitos da decisão da autoridade administrativa se encontram definidos no citado artigo, não há que chamar à colação o regime do artigo 374º do Código de Processo Penal, que estabelece os requisitos da sentença.

Teremos, assim de concluir, que na fundamentação da decisão administrativa que aplica uma coima ou/e sanções acessórias não se impõe o rigor e a exigência que se impõe para a sentença penal, no art.º 374º, n.º 2, do C. Proc. Penal. 

Tal decisão insere-se numa fase administrativa do processo de contraordenação, razão pela qual lhe são aplicáveis os princípios fundamentais de direito e do processo administrativo. 

Com efeito, o legislador ao distinguir duas fases - a administrativa e a judicial - certamente, não teve certamente em mente a aplicação dos princípios processuais penais à fase administrativa. 

Por outro lado, atento os princípios fundamentais do direito administrativo e o disposto nos artigos 58.º do RGCOC e 181º, do Código da Estrada, o que se deve exigir numa decisão administrativa respeitante a uma infração estradal, como à generalidade das mesmas, é o respeito por três princípios essenciais, que são: a suficiência, a clareza e a congruência. 

Aquela fundamentação, tal como é estabelecida no art.º 58º, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, será suficiente desde que se justifiquem as razões pelas quais é aplicada esta ou aquela sanção ao arguido, de modo que este, lendo a decisão, se possa aperceber, de acordo com os critérios de normalidade de entendimento, das razões pelas quais é condenado e, consequentemente, possa impugnar tais fundamentos.

Assim, o que se impõe é que a correspondente fundamentação, de facto e de direito, ainda que sucinta ou por remissão para todos os factos do processo contra ordenacional, transcreva a respetiva factualidade, indique as normas jurídicas violadas e a coima e/ou sanção acessória aplicada, possibilitando, assim, um conhecimento perfeito dos factos e normas imputadas.

Acresce, que a culpa nas contraordenações não se baseia em qualquer censura ético – penal, mas tão só na violação de certo procedimento imposto ao agente, bastando-se por isso com a imputação do facto ao agente (neste sentido Acórdão da Relação do Porto de 12/09/2007, in www.dgsi.pt).

Atentas estas breves considerações importa, de seguida, aferir se se encontra verificada ou não a nulidade invocada pelo recorrente. 

Ora, analisada a decisão administrativa, constatamos que a mesma se encontra devidamente fundamentada, descrevendo com suficiente rigor e clareza as circunstâncias de facto que justificam a condenação em causa, bem com as normas legais aplicáveis.

Acresce que na decisão administrativa constam os elementos probatórios valorados, designadamente o teor auto de contraordenação nº 911104976, que consta de fls. 5, o qual foi levantado em conformidade com o disposto no artigo 170º do Código da Estrada, na redação em vigor à data dos imputados factos (introduzida pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro), o qual faz fé sobre os factos presenciados pelo autuante, até prova em contrário, assim como os elementos de prova obtidos através de aparelhos ou instrumentos aprovados nos termos legais e regulamentares. 

No que se refere à questão da prova de certas infrações, como seja o caso do excesso de velocidade, consagrou-se a prevalência do valor apurado, resultante da dedução da margem de erro do valor registado, quando a infração for aferida por aparelhos ou instrumentos aprovados nos termos legais e regulamentares (cfr. Portaria nº 1542/2007 de 6 de Dezembro, que aprova o Regulamento dos Cinemómetros e respetivo anexo).

Ora, na referida decisão, para além do dia, da hora e do local - dia 23/12/2012, pelas 11 horas e 31 minutos, na A25, ao km 94,1, no sentido O/E, Viseu – consta que o condutor do veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula 02-IQ-96, circulava à velocidade de pelo menos 112 km/h, correspondente à velocidade registada de 118 km/h, deduzido o valor do erro máximo admissível, sendo a velocidade máxima permitida naquele local de 80 km/h (conforme sinalização). Refere-se ainda na referida decisão que tal velocidade foi verificada através do equipamento marca Multanova Modelo MUVR-6FD nº 03-09-2950, aprovado pelo IPQ (Despacho de Aprovação Modelo nº 111.20.06.3.43, de 18/06/07) e aprovado para uso pelo Despacho nº 15919/2001, da A.N.S.R., de 12/08/11, com verificação periódica pelo IPQ em 3/05/12 (cfr. fls. 5, 6 e 7).

Tendo o radar em causa sido homologado e aprovado após certificação pelo IPQ, com a referida verificação periódica, teremos de concluir que não foi utilizado nenhum meio de prova irregular, nem nenhum método proibido de prova, nos termos previstos no art.º 126.º do Código de Processo Penal.

Pelo exposto, não padece a decisão recorrida das invocadas nulidades.

Não há nulidades, exceções ou questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

3. Apreciação

Factos Provados

Com relevo para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 23/12/2012, pelas 11 horas e 31 minutos, na A25, ao km 94,1, no sentido O/E, Viseu, o condutor do veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula IQ... , circulava à velocidade de pelo menos 112 km/h, correspondente à velocidade registada de 118 km/h, deduzido o valor do erro máximo admissível, sendo a velocidade máxima permitida naquele local de 80 km/h (conforme sinalização).

2. Tal velocidade foi verificada através do equipamento marca Multanova Modelo MUVR-6FD nº 03-09-2950, aprovado pelo IPQ (Despacho de Aprovação Modelo nº 111.20.06.3.43, de 18/06/07) e aprovado para uso pelo Despacho nº 15919/2001, da A.N.S.R., de 12/08/11, com verificação periódica pelo IPQ em 3/05/12.

3. Como não foi possível identificar o condutor foi levantado o auto de contraordenação, constante de fls. 5, contra o arguido, enquanto titular do documento de identificação do veículo.

4. No dia 8/04/2013 foi o arguido notificado nos termos constantes de fls. 183, verso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

5. O arguido não identificou no prazo legal de defesa outra pessoa como autora da contraordenação, nem apresentou defesa, tendo no entanto efetuado o pagamento voluntário da coima. 

6. O arguido não atuou com o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz.

7. O arguido na data da prática dos factos tinha averbado no seu registo individual de condutor a prática de uma contraordenação grave (auto nº 251638103) praticada em 19/03/2007, nos termos constantes de fls. 10, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

8. O arguido tem ainda averbado no seu registo individual de condutor a prática de uma outra contraordenação grave (auto nº 912577533) praticada em 30/03/2013, nos termos constantes de fls. 198, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

Factos não provados

Com relevo para a decisão da causa nada mais se provou para além ou em contradição com o supra referido, e designadamente que:

» O veículo em causa não era conduzido pelo arguido no dia e hora aludidos no ponto 1 dos factos provados;

» Quem o conduzia era o seu sogro, o Sr. B... , com domicílio fiscal na Rua (...) Senhora da Hora, com BI nº (...) , emitido em 8/03/2007, pelo SIC de Lisboa, contribuinte nº (...) , com o título de condução P- (...) – válida até 28/12/2014, emitida pelo IMTT- Vila Real.

Convicção do Tribunal:

O Tribunal fundou a sua convicção com base na análise crítica de toda prova produzida em audiência, conjugada com a prova documental junta aos autos, as regras da experiência, e a presunção decorrente do disposto no artigo 171º do Código da Estrada, que adiante se fará menção, que não obstante ser juris tantum, não pode ser ilidida nesta fase.

Com efeito, e no que concerne à prova documental, teve-se em consideração: o teor do auto de contraordenação de fls. 5, prova fotográfica de fls. 6, certificado de verificação de fls. 7, A.R. de fls. 8, o aludido na decisão administrativa quanto ao pagamento da coima, certificados do registo individual de condutor de fls. 10, 69 e 198, teor da notificação efetuada ao recorrente constante de fls. 183 (frente e verso), comprovativo do pagamento da coima de fls. 184 a 186.

Teve-se ainda em consideração o depoimento da testemunha E... , agente autuante, o qual depôs de forma isenta e credível e confirmou o teor do auto de fls. 5, esclarecendo que tal auto foi levantado ao proprietário do veículo por não ter sido possível identificar o condutor, e que o radar em causa foi devidamente homologado e verificado, conforme consta de tal auto.

Relativamente às declarações que foram prestadas pelo próprio recorrente, A... , em audiência, na parte em que referiu que não era ele condutor do veículo em questão, mas antes o seu sogro, B... , a quem tinha emprestado o veículo em causa, assim como os depoimentos das demais testemunhas inquiridas em audiência, que foram arroladas pelo referido recorrente, B... , C... e D... , os quais corroboraram, em certa medida, tal versão do recorrente, cumpre desde logo dizer que, para além de tais depoimentos não se terem afigurado totalmente isentos, nem credíveis, à luz das regras da experiência (atentas algumas contradições evidenciadas relativamente ao modo como ocorreram os factos que cada uma delas relatou), o certo é que também não se afiguraram com relevo, atenta a presunção decorrente do disposto no artigo 171º do Código da Estrada, que recai sobre titular do documento de identificação do veículo (in casu o aqui recorrente), a qual, não obstante ser juris tantum, não pode ser ilidida nesta fase.

Com efeito, não tendo sido identificado o condutor no momento em que a infração foi cometida, o referido auto de contraordenação foi levantado contra o arguido/recorrente, enquanto titular do documento de identificação do veículo, sendo que o mesmo foi posteriormente notificado nos termos constantes de fls. 183, verso, e designadamente para proceder à identificação do infrator, no prazo legal, e não o fez (conforme, aliás, o mesmo admitiu em audiência).

Ora, conforme tem sido entendido pela maioria da jurisprudência, o titular do documento de identificação do veículo que, notificado expressamente para os termos do artigo 171.º do Código da Estrada, não tenha identificado o condutor no prazo de defesa, já não o poderá fazer na fase de impugnação judicial da decisão administrativa de aplicação de coima e sanção acessória. A presunção em causa é juris tantum, a qual só pode ser ilidida se for provada a utilização abusiva do veículo ou identificado um terceiro, dentro do prazo legal concedido para a defesa. Ultrapassado esse prazo, já não é possível afastar a presunção, sob pena de não ter qualquer utilidade o disposto no artigo 171.º do Código da Estrada. Seria contrário ao espírito e letra da lei que tal presunção pudesse ser ilidida depois de aplicada a sanção pela autoridade competente, pelo que, mesmo sendo juris tantum, a lei fixa as hipóteses em que pode ser ilidida e fixa o prazo para tanto (Sobre esta matéria veja-se além do mais o Acórdão da Relação de Coimbra, de 6 de Março de 2002, C.J., Ano XXVIII, tomo II, p. 37; o Acórdão da Relação de Coimbra de 12 de Dezembro de 2007, processo 213/06.1TBMMV.C1; o Acórdão da Relação de Guimarães, de 3 de Outubro de 2005, processo 1388/05-2; o Acórdão da Relação de Évora, de 20 de Dezembro de 2005, processo 1803/05-1 (estes últimos publicados em www.dgsi.pt).

Em suma, não tendo sido alegado nem demonstrado a utilização abusiva do veículo, o tribunal, em face da referida presunção, que não pode ser ilidida nesta fase, não deu qualquer relevo às declarações do arguido e das referidas testemunhas por este arroladas, inquiridas em audiência, na parte em que relataram que não era o arguido o condutor do veículo em questão, sendo antes tal condutor a testemunha B... e, por conseguinte, foram dados como não provados tais factos acima elencados. 

3.1.

Afirma o recorrente haver violado a sentença recorrida, enquanto considerou inaplicável à decisão da autoridade administrativa o dever de fundamentação previsto para as sentenças penais, o artigo 41.º do RGCO, 20.º, n.º 4 e 32.º, n.ºs 1 e 10 da CRP.

Recuando à impugnação judicial, sobre a qual o tribunal a quo emitiu pronúncia, deteta-se na base da imputação à decisão da ANSR dos ditos vícios formais a inobservância do artigo 181.º do Código da Estrada, por não descrever a mesma, com suficiente rigor e clareza as circunstâncias de facto que justificam a condenação.

Ora, independentemente do juízo que, em abstrato, se faça sobre a aplicação dos preceitos concernentes à sentença penal [vg. artigos 374.º, n.º 2 e 379º do CPP] às decisões proferidas - no âmbito do processo contraordenacional - pela autoridade administrativa, o certo é que estabelecendo o artigo 181.º do Código da Estrada os requisitos da decisão condenatória, não se assiste no domínio do direito das contraordenações rodoviárias a qualquer omissão que conduza à aplicação - relativamente à elaboração da sentença, onde se inclui o dever de fundamentação - subsidiária do CPP.

Não merecerá, pois, contestação que o direito especial prevalece sobre o direito geral.

Nesta medida, confrontada a decisão da ANSR com as exigências reportadas no dito preceito, designadamente quanto à descrição sumária dos factos, das provas e das circunstâncias relevantes para a decisão, à indicação das normas violadas e às sanções aplicáveis, a única conclusão a tirar é a de que resultaram observados todos os requisitos impostos pelo legislador.

Sempre se dirá, contudo, que, como tem vindo a ser entendimento desta Relação, no processo de contraordenação, em sede de fundamentação da decisão administrativa não é de exigir o rigor formal nem a precisão descritiva que se exige numa sentença judicial; a lei não define qual o âmbito ou rigor da fundamentação…mas têm-se entendido que não se impõe aqui uma fundamentação com o rigor e exigência que se impõem para a sentença penal, no art.º 374.º, n.º 2, do C. Proc. Penal; a matriz subjacente à fundamentação de uma decisão administrativa em processo de contraordenação consente um modo sumário de fundamentar do qual se possa concluir: a) que quem decidiu não agiu discricionariamente; b) que a decisão tem virtualidade para convencer os interessados e os cidadãos em geral da sua correção e justiça; e c) que o controlo da legalidade do decidido, nomeadamente, por via de recurso, não é prejudicada ou inviabilizado pela forma que tomou – [cf., por todos, os acórdãos do TRC de 03.10.2012, de 20.06.2012 e de 21.09.2011, disponíveis em www.dgsi.pt]

Na verdade, conforme elucidam Simas Santos e Lopes de Sousa [“Contra-Ordenações – Anotações ao Regime Geral”, 4.ª Ed., Vislis Editores, p. 419], a imposição legal de uma “descrição sumária” não exige a enumeração dos factos provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal” como se reclama para as sentenças proferidas em processo criminal. O que se exige é que a descrição factual que consta da decisão administrativa, interpretada à luz das garantias do direito de defesa, seja suficiente para permitir ao arguido aperceber-se dos factos que lhe são imputados e defender-se adequadamente.

Ainda a propósito escrevem Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral: Importa, porém, salientar que nos encontramos no domínio de uma fase administrativa, sujeita às características da celeridade e simplicidade processual, pelo que o dever de fundamentação deverá assumir uma dimensão qualitativamente menos intensa em relação à sentença penal. O que de qualquer forma deverá ser patente para o arguido são as razões de facto e de direito que levaram à sua condenação, possibilitando ao arguido um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial e, simultaneamente, e já em sede de impugnação judicial permitir ao tribunal conhecer o processo lógico de formação da decisão administrativa. Tal perceção poderá resultar do teor da própria decisão ou da remissão por esta elaborada» - [cf Notas ao Regime Geral da Contra-Ordenações e Coimas”, Almedina, pág. 192 e ss.].

Conclui-se, pois, no sentido de não merecer censura, nesta parte, a sentença recorrida, a qual fez correta aplicação do artigo 181.º do Código da Estrada, cujos requisitos foram integralmente respeitados na decisão administrativa, não ocorrendo, assim, violação das normas, designadamente constitucionais, convocadas pelo recorrente.

Destinando-se os recursos à reapreciação das questões colocadas perante o tribunal recorrido, e não ao conhecimento de matéria não anteriormente suscitada, surge a destempo a invocação [ex novo] da nulidade do auto de notícia, a qual, a verificar-se, não tendo sido invocada no âmbito do procedimento administrativo quando o arguido foi notificado para exercer a defesa, tão pouco em sede de impugnação judicial, terá de haver-se como sanada.

3.2

Não se conforma o recorrente com o entendimento perfilhado na decisão recorrida no sentido de, na fase judicial, estar vedado ao titular do documento de identificação do veículo ilidir a presunção do n.º 2 do artigo 171.º do Código da Estrada. 

Com efeito, debruçando-nos sobre a respetiva fundamentação, sobressai - o que, aliás, vem expressamente afirmado - ter sido adotada a posição que restringe à fase administrativa do procedimento contraordenacional o direito do arguido, traduzido na faculdade de infirmação da dita presunção, reconhecida, sem reserva, como juris tantum.

A eventual preclusão de elisão, na medida em que se detete haver-se repercutido na confeção da matéria de facto, não pode, a nosso ver, deixar de ser encarada como questão a ser objeto de prévia apreciação.

Trata-se de problemática já dirimida pelos tribunais superiores, embora nem sempre de modo convergente.

Na verdade, por um lado, encontram-se os que defendem que caso não seja possível identificar o autor da contraordenação, levantado o correspondente auto ao titular do documento de identificação do veículo, contra quem passa a correr o respetivo processo, se, na fase administrativa, no prazo concedido para a defesa, notificado que seja para o efeito, não identificar, nos termos da lei, pessoa distinta como autora da contraordenação, a presunção juris tantum, decorrente do regime estabelecido no artigo 171.º do Código da Estrada, de ser ele o seu autor não pode vir a ser ilidida em sede de impugnação judicial.

De outro lado, surge a posição que encara o n.º 2 do artigo 171º do Código da Estrada como estabelecendo, tão só, uma presunção tendente a assegurar a legitimidade passiva do procedimento.

Orientação que mereceu acolhimento no acórdão do TRG de 27.04.2009, [proc. n.º 897/08.1], disponível em www.dgsi.pt, donde se extrata: “Assim, pensamos que o referido n.º 2, quando estabelece que o processo correrá contra o titular do documento de identificação do veículo se o agente de autoridade não puder identificar o autor da infração, ressalvada a situação de esse titular vir, no prazo que a lei assinala …para tal fim, indicar outra pessoa como a que, realmente, tenha cometido a infração, não pretende mais do que consagrar um pressuposto processual de legitimidade passiva do titular inscrito do “veículo infrator”, baseada na presunção natural de que se o mesmo titular não indica quem conduzia o veículo aquando da prática da contraordenação, é porque era ele mesmo a conduzi-lo, que é a situação mais comum.”

A admitir a elisão da presunção em causa na fase de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, surgem, ainda, os acórdãos do TRC de 05.07.2006, [proc. n.º 1511/06], de 20.09.2006, [proc. n.º 1302/06], disponíveis em www.dgsi.pt.

Aderimos à primeira das mencionadas teses, já defendida pela relatora no acordão desta Relação de 18/09/2013 proferido no processo 664/13.5TBVIS, sobre a questão da oportunidade de identificação do condutor nos termos do art. 171.º do CE como fundamento de extinção da responsabilidade contra-ordenacional taurado, contra ele, processo deto.dentificaç era ele, efetivamente, a conduzir.o que n sido instaurado, contra ele, process quando, no momento da infracção, este não seja identificado.

Aliás em conformidade com o entendimento sobre tal questão já plasmado no Ac Rel de Coimbra, de 12-12-2007 (Relator Des Inácio Monteiro) que por economia de meios e eficácia prática, transcrevemos no essencial, seguros de que, de outra forma, a solução legislativa - que não afronta os princípios constitucionais - não faria qualquer sentido.

”Informa o disposto no art. 171.º, n.º 3, do CE o seguinte:

«Se, no prazo concedido para a defesa, o titular do documento de identificação do veículo identificar, com todos os elementos constantes do n.º 1, pessoa distinta como autora da contra-ordenação, o processo é suspenso, sendo instaurado novo processo contra a pessoa identificada como infractora».

E comina ainda a lei no art. 171.º, n.º 4, do CE:

«O processo referido no n.º 2 será arquivado quando se comprove que outra pessoa praticou a contra-ordenação ou houve utilização abusiva do veículo».

Das normas atrás referidas concluímos que, encontrando-se o veículo em circulação no momento da contra-ordenação, se presume a responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo, isto é, uma presunção juris tantum que apenas pode ser ilidida quando se provar a utilização abusiva do veículo ou for identificado um terceiro no prazo legal.

Ora, sobre o arguido, enquanto titular do documento de identificação do veículo, recai o dever de identificação do condutor e não sobre o terceiro.

Porém, este dever imposto legalmente deve ser cumprido no prazo concedido para a defesa, não sendo possível afastar a presunção uma vez decorrido aquele prazo, sob pena de não ter qualquer utilidade o disposto no art. 171.º, do CE.

E compreende-se que assim seja, pois as sanções contra-ordenacionais não constituem penas, mas medidas sancionatórias de carácter não penal, não repugnando que possam recair sobre quem não cometeu o facto ilícito típico, mas sobre quem, em determinadas circunstâncias, o podia e devia evitar.”

Aliás, dispõe o Artigo 135.º do C. Estrada, sob a epígrafe “ Responsabilidade pelas infracções” que:

“1 - São responsáveis pelas contra-ordenações rodoviárias os agentes que pratiquem os factos constitutivos das mesmas, designados em cada diploma legal, sem prejuízo das excepções e presunções expressamente previstas naqueles diplomas.

2 - As pessoas colectivas ou equiparadas são responsáveis nos termos da lei geral.

3 - A responsabilidade pelas infracções previstas no Código da Estrada e legislação complementar recai no:

a) Condutor do veículo, relativamente às infracções que respeitem ao exercício da condução;

b) Titular do documento de identificação do veículo relativamente às infracções que respeitem às condições de admissão do veículo ao trânsito nas vias públicas, bem como pelas infracções referidas na alínea anterior, quando não for possível identificar o condutor;

c) Peão, relativamente às infracções que respeitem ao trânsito de peões.

4 - Se o titular do documento de identificação do veículo provar que o condutor o utilizou abusivamente ou infringiu as ordens, as instruções ou os termos da autorização concedida cessa a sua responsabilidade, sendo responsável, neste caso, o condutor.”

No caso dos autos, verifica-se que o arguido/recorrente foi devidamente notificado e advertido de que poderia identificar pessoa distinta como autor da contra­ ordenação, no prazo concedido para a defesa, devendo-o fazer junto da Delegação Distrital de Viação, e que, não obstante, o arguido não se dirigiu àquela entidade a fim de identificar outra pessoa como o autor da infracção.

Foram assim assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa em contra-ordenação constitucionalmente assegurados no art. 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa.

Não tendo identificado o condutor no prazo que lhe foi concedido, não pode depois o recorrente vir discutir a autoria da prática da contra-ordenação.

Por decorrência dos mencionados preceitos, afigura-se-nos certo:

- Na impossibilidade de identificar o autor da infração responsável é o titular do documento de identificação do veículo, correndo contra ele o correspondente procedimento;

- Caso, este, no prazo concedido para a defesa, venha a identificar, pela forma legalmente prevista, outra pessoa como sendo a autora da infração, o procedimento que lhe foi movido é suspenso, tendo lugar a instauração de novo processo contra o identificado infrator;

- A responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo assenta na presunção legal, juris tantum, que encontra fundamento na circunstância de coincidindo, em princípio, na mesma pessoa a titularidade do documento de identificação do veículo e a titularidade do correspondente direito ser razoável – não excessivo, nomeadamente em face dos princípios da culpa e da proporcionalidade - exigir-lhe que saiba quem, com o mesmo, por ocasião da prática da infração, circulava na via pública.

Presunção que, tal como afirmado no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 276/04 – ainda que com referência ao artigo 152.º, n.º 1 do Código da Estrada, na redação do D.L. n.º 2/98, de 3 de Janeiro -, é constitucionalmente admissível, pois o que está em causa é uma mera presunção, sempre ilidível, de responsabilidade do efetivo proprietário ou possuidor e este sentido é conforme à Constituiçãonão viola[ndo] o princípio da culpa (…).

Mas, se relativamente ao que se acaba de dizer não se detectam divergências relevantes, permanece - como vimos - a dissidência relativamente à fase processual em que ao titular do documento de identificação do veículo é permitida a elisão da presunção, mais concretamente se o pode fazer ultrapassada que seja a fase administrativa do procedimento, o que vale por dizer se o pode fazer em sede de impugnação judicial.

E aqui, reconhecendo a valia, pelo menos, em parte dos argumentos utilizados na defesa da posição contrária, entendemos que o ónus de elisão da presunção se restringe à fase administrativa, sendo que na fase judicial, o tema do objecto do processo já vem tematicamente vinculado pela decisão administrativa, incluindo o autor da contraordenação, salvo no caso de justo impedimento, devidamente comprovado, ou na falta da notificação tempestivamente alegada e provada. Como é sabido, não há regra sem excepção, sendo portanto de realçar a responsabilidade de arguir em tempo a invalidade de uma notificação ou a sua falta.

Além do mais, o direito à presunção de inocência passa pelo entendimento de que o princípio ou direito de audiência do transgressor se opera através da oportunidade que lhe é conferida de influir através da sua audição no decurso do processo. O que foi cumprido aquando da dita notificação.

Na base do princípio da audiência reside o respeito pela dignidade pessoal do homem, através da exigência de que este não se torne em objecto das decisões, o que demanda considerá-lo como sujeito activo e participante eficaz no desenvolvimento do processo.

Por isso a consequência da omissão do dever de esclarecer a identidade do condutor de um veículo que lhe pertence e pelo qual é responsável, no prazo que a lei lhe assinala, não atenta contra qualquer princípio constitucional. O seu direito de audiência/defesa foi-lhe assegurado. De notar que o direito de guardar silêncio só pode ser reconhecido no âmbito do direito penal, por força da prática de um crime e da sua consequência, a pena.

Por outro lado, não se trata de um direito à não auto-inculpação, pelo contrário. E como se constata no processo, o recorrente não justificou por que razão não indicou o senhor seu sogro como condutor no prazo processualmente estipulado para o efeito, mas não se coibiu de o fazer em sede de impugnação judicial. Acresce que mesmo se de direito à não auto inculpação se tratasse, sempre seria de ponderar que em processo meramente contra-ordenacional este direito não é absoluto. Recorde-se que no ordenamento jurídico estradal o condutor é obrigado a entregar documentos e a prestar informações que podem vir a ser utilizadas para comprovar uma infracção.

Citando o Prof Faria Costa (Noções Fundamentais de Direito Penal) “Entre o direito penal e o direito de mera ordenação social intercede uma diferença qualitativa e não meramente quantitativa.

… Na verdade, o fundamento que encontrámos para o direito penal e as funções que lhe vão conexas não podem, sem erro de perspectiva, ser coincidentes com o que fundamenta e sustenta, ainda que só funcionalmente, o direito de mera ordenação social” - pags 35 e 36.

Não ignoramos que por força das grandes modificações sociais, tecnológicas, industriais e culturais, a sociedade mundial actual abrange novos espaços de danosidade que importa prevenir e eliminar. A implicar uma reforma e adaptação do clássico direito penal que vem sendo considerado ineficiente para enfrentar as novas realidades delitivas.
Uma possível resposta por parte do legislador, visando a proteção dos direitos sociais, seria alcançar a prevenção através do Direito Penal Secundário, com o consequente perigo de pulverização do princípio da subsidiariedade, defendido pelos movimentos político criminais contemporâneos focados num Direito Penal mínimo, garantista, com os seus princípios fundamentais, freios do poder e do arbítrio do Estado.

Amplificados pelos meios de comunicação, os argumentos alarmistas do risco de catástrofes, provocaram nos operadores jurídicos o fomento de um alargamento do Direito Penal com o claro objetivo de tentar impedir a nova criminalidade, e assim prevenir a exposição da coletividade a perigos irreparáveis.

Correndo o risco de sermos apelidados de conservadores nesta matéria, e certos de que existe uma urgente necessidade de adaptação do direito penal aos novos espaços de vida, de forma a responder aos anseios da sociedade de risco, afigura-se-nos imprescindível obstar à abundante utilização de tipos penais de perigo abstracto, assim como às normas penais em branco.

O que implica reflectir sobre a autonomia e estrutura do chamado Direito Penal Secundário e sobretudo impedir que o Direito Penal assuma indiscriminadamente nos seus domínios a responsabilidade de atuar como norma de reforço num domínio característico do Direito Administrativo.

O direito de mera ordenação social é dotado de característica diversa daquela para a qual sempre foi estruturado e pensado o Direito Penal, já pela diferente relevância das condutas tipificadas, pautadas por distintos níveis de dignidade ético-juridica, a justificar que as regras que visam promover a defesa do arguido no processo penal, sejam interpretadas de forma menos exigente quando sejam aplicadas no processo contra-ordenacional.

Conclui-se, em conformidade com o exposto que:

- está vedado ao titular do documento de identificação do veículo, a elisão da presunção (que decorre do supra referido preceito do Código da Estrada) em sede de impugnação judicial.

- não se verifica a inconstitucionalidade do art 171º, nº 2 do Código da Estrada, nem a violação do n.º 1 do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem,

- nem se verifica a violação do n.º 10 do artigo 32.º da CRP

3.3

Não oferecendo dúvida que o recurso para a Relação da decisão proferida em sede de impugnação judicial da decisão pela autoridade administrativa se encontra, em princípio, circunscrito às questões de direito [cf. artigo 75.º, n.º 1 do RGCO], também transparece relativamente pacífico, designadamente na jurisprudência dos tribunais superiores [cf., entre outros, os acórdãos do TRG de 04.042005, CJ, XXX, T. II, pág. 300; TRE de 03.02.2004, proc. n.º 2720/03, disponível em www.dgsi.pt; TRL de 08.04.2008, CJ, XXXIII, T. II, pág. 143; vd. na doutrina António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral, “Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas”, Almedina, pág. 273], que tal não preclude o conhecimento dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º, do CPP - [cf. os artigos 132.º do CE e 41.º, n.º 1 do RGCO].

Vícios que, no caso, não deixaram de ser convocados pelo recorrente, quando se refere a erro na apreciação da prova, alegação que, precedida da referência ao artigo 410.º do CPP, sugere querer reportar-se ao erro «notório», e em contradição da fundamentação.

Impõe-se, pois, indagar se do texto da sentença recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, ressalta uma lacuna/omissão relevante, juízos incompatíveis e/ou uma apreciação manifestamente ilógica, capazes de comprometer uma decisão criteriosa.

Tendo sempre presente que os vícios se traduzem em patologias exclusivas da decisão de facto, no caso presente, não se deteta a respetiva existência, não consubstanciando erro notório na apreciação da prova, tão pouco contradição insanável da fundamentação os aspetos vertidos nos diferentes itens do ponto d. das conclusões, pois, embora, não se exclua uma certa colisão entre os fundamentos invocados, a sentença acaba por ser esclarecedora quanto ao que, na conformação da matéria de facto, a condicionou.

Neste sentido são elucidativas as seguintes passagens da fundamentação:

- O Tribunal fundou a sua convicção com base na análise crítica de toda a prova produzida em audiência, conjugada com a prova documental junta aos autos, as regras da experiência, e a presunção decorrente do disposto no artigo 171º do Código da Estrada, que adiante se fará menção, que não obstante ser juris tantum, não pode ser ilidida nesta fase;

- Relativamente às declarações que foram prestadas pelo próprio recorrente (…), em audiência, na parte em que referiu que não era ele o condutor do veículo em questão, mas antes o seu sogro, B... , a quem tinha emprestado o veículo em causa, assim como os depoimentos das demais testemunhas inquiridas em audiência de julgamento, que foram arroladas pelo referido recorrente, B... (…), C... (…) e D... (…), os quais corroboraram, em certa medida, tal versão do recorrente, cumpre desde logo dizer que, para além de tais depoimentos não se terem afigurado totalmente isentos, nem credíveis, à luz das regras da experiência (atentas algumas contradições evidenciadas relativamente ao modo como ocorreram os factos que cada uma delas relatou), o certo é que também não se afiguraram com relevo, atenta a presunção decorrente do disposto no artigo 171º do Código da Estrada, que recai sobre o titular do documento de identificação do veículo (in casu o aqui recorrente), a qual, não obstante ser juris tantum, não pode ser ilidida nesta fase;

- Em suma, não tendo sido alegado nem demonstrado a utilização abusiva do veículo, o tribunal em face da referida presunção, que não pode ser ilidida nesta fase, não deu qualquer relevo às declarações do arguido e das referidas testemunhas por este arroladas, inquiridas em audiência, na parte em que relataram que não era o arguido o condutor do veículo em questão, sendo antes tal condutor a testemunha B... e, por conseguinte, foram dados como não provados tais factos acima elencados.

- Ou seja, o julgador, aquando do juízo síntese, não deixa margem para dúvida sobre as razões que conduziram a que não tivesse dado qualquer relevo às declarações do arguido e ao depoimento das testemunhas, por este, arroladas, aniquilando, assim, tudo o que anteriormente havia consignado.

Significa, pois, que a colisão entre os fundamentos apresentados é desfeita na síntese conclusiva e, nessa medida, qualquer contradição sempre se revelaria sanada.

III. DISPOSITIVO

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Sem tributação.

*

Coimbra, 24 de Fevereiro de 2016

Processado por computador e revisto pela relatora (artigo 94º nº 2 CPP).

(Isabel Valongo - relatora)



[Maria José Nogueira - adjunta (segue voto de vencido)]

[Alberto Mira (Presidente da Secção - voto de desempate)]



(Voto de vencido)

Com o respeito devido pela posição que fez vencimento e ciente das divergências que, designadamente ao nível dos tribunais superiores, se vem fazendo sentir na matéria, perfilho diferente entendimento, assim expresso no projeto de acórdão que, enquanto relatora, elaborei:

A eventual preclusão de elisão, na medida em que se detete haver-se repercutido na confeção da matéria de facto, não pode, a nosso ver, deixar de ser encarada como questão a ser objeto de prévia apreciação.

Trata-se de problemática já dirimida pelos tribunais superiores, embora nem sempre de modo convergente.

Na verdade, por um lado, encontram-se aqueles que defendem que caso não seja possível identificar o autor da contraordenação, levantado o correspondente auto ao titular do documento de identificação do veículo, contra quem passa a correr o respetivo processo, se, na fase administrativa, no prazo concedido para a defesa, notificado que seja para o efeito, não identificar, nos termos da lei, pessoa distinta como autora da contraordenação, a presunção juris tantum, decorrente do regime estabelecido no artigo 171.º do Código da Estrada, de ser ele o seu autor não pode vir a ser ilidida em sede de impugnação judicial.

Neste sentido lê-se no acórdão do TRC de 12.12.2007 [proc. n.º 213/06.1TBMMV.C1], disponível em www.dgsi.pt: Ora, sobre o arguido, enquanto titular do documento de identificação do veículo, recai o dever de identificação do condutor ….

 Porém, este dever imposto legalmente deve ser cumprido no prazo concedido para a defesa, não sendo possível afastar a presunção uma vez decorrido aquele prazo, sob pena de não ter qualquer utilidade o disposto no art. 171º, do CE.

E compreende-se que assim seja, pois as sanções contraordenacionais não constituem penas, não repugnando que possam recair sobre quem não cometeu o facto ilícito típico, mas sobre quem, em determinadas circunstâncias, o podia e devia evitar.

No caso dos autos, verifica-se que o arguido/recorrente foi devidamente notificado e advertido de que poderia identificar pessoa distinta como autora da contraordenação, no prazo concedido para a defesa (…), não obstante, o arguido não se dirigiu àquela entidade a fim de identificar outra pessoa como autor da infração.

Foram assim assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa em contraordenação constitucionalmente assegurados no art. 32.º n.º 10 da Constituição da República Portuguesa.

Foi-lhe dada a oportunidade para o fazer e se o arguido não exerceu tal direito foi porque não quis.

(…)

Reagiu posteriormente à notificação da decisão administrativa que o considerou autor da contraordenação e lhe aplicou a sanção de inibição de conduzir …

(…) Ora, não tendo identificado o condutor no prazo que lhe foi concedido, não pode agora o recorrente vir discutir a autoria da prática da contraordenação …».

Posição, igualmente, sufragada nos acórdãos do TRC de 06.03.2002 [CJ, Ano XXVIII, T. II, pág. 37] e do TRG de 03.10.2005 [proc. n.º 1388/05-2], disponível em www.dgsi.pt.

Já por via do direito resultar garantido com a audição prévia do arguido, já por as normas do artigo 171.º, n.º 2 a 5, do Código da Estrada, como normas processuais, encerrarem uma restrição ao direito de defesa (…) como sempre acontece nas normas processuais de cariz sancionatório (…), mas constituírem um corolário do princípio de que o proprietário do automóvel é responsável pela circulação do mesmo, e pela circulação que permite que se faça do mesmo, também assim se pronunciou o acórdão do TRL de 26.11.2015 [proc. n.º 150/15.9Y5LSB.L1-9], disponível em www.dgi.pt

De outro lado, surge a posição que encara o n.º 2 do artigo 171º do Código da Estrada como estabelecendo, tão só, uma presunção tendente a assegurar a legitimidade passiva do procedimento.

Orientação que mereceu acolhimento no acórdão do TRG de 27.04.2009, [proc. n.º 897/08.1], disponível em www.dgsi.pt, donde se extrata: Assim, pensamos que o referido n.º 2, quando estabelece que o processo correrá contra o titular do documento de identificação do veículo se o agente de autoridade não puder identificar o autor da infração, ressalvada a situação de esse titular vir, no prazo que a lei assinala …para tal fim, indicar outra pessoa como a que, realmente, tenha cometido a infração, não pretende mais do que consagrar um pressuposto processual de legitimidade passiva do titular inscrito do “veículo infrator”, baseada na presunção natural de que se o mesmo titular não indica quem conduzia o veículo aquando da prática da contraordenação, é porque era ele mesmo a conduzi-lo, que é a situação mais comum.

A admitir a elisão da presunção em causa na fase de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, surgem, ainda, os acórdãos do TRC de 05.07.2006, [proc. n.º 1511/06], de 20.09.2006, [proc. n.º 1302/06], disponíveis em www.dgsi.pt.

Como bem sintetiza o acórdão do TRL de 28.09.2010, [proc. n.º 1106/09.6TAPDl.L1-5], disponível em www.dgsi.pt: Sustenta-se, em abono desse entendimento, que o proprietário do veículo, apesar de não ter oportunamente identificado o condutor, não fica inibido de, em sede de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, invocar e provar que não era ele o condutor do veículo no momento da infração, logrando, desse modo, afastar a presunção legal, prosseguindo: Porém, importa não esquecer que a presunção juris tantum é ilidível mediante prova do contrário, pelo que a jurisprudência que segue esta interpretação da lei, julgando-a a mais conforme aos ditames da Constituição, não prescinde da prova de que o autor da contraordenação é um determinado cidadão, devidamente identificado, e não o «titular do documento de identificação do veículo» (…) Por isso, diz-se no referido Acórdão da Relação de Coimbra de 5 de Julho de 2006 (…) não bastará ao proprietário do veículo que foi utilizado na prática de determinada contraordenação, alegar e mesmo provar que não era ele o condutor do veículo na ocasião. Necessário será que identifique quem era o condutor do veículo nessa mesma ocasião, e se essa indicação só for feita em sede de impugnação judicial, necessário será que faça prova de tal facto. Sem que esteja não só provado que era outro o condutor do veículo, mas também a sua correta identificação, a responsabilidade do proprietário subsiste por força do estatuído no artigo 171º, n.º 2, do Código da Estrada, para concluir: Ora, aplicando este entendimento ao caso em apreço, extrai-se que o recurso não pode obter provimento.

Como já se disse, o recurso aqui em causa restringe-se à matéria de direito.

Ora, da factualidade provada, constante da decisão recorrida, não consta a identificação do condutor que, na ocasião, conduzia o veículo em questão.

Não se vislumbrando qualquer vício de conhecimento oficioso – e porque este tribunal apenas conhece de matéria de direito, não lhe cabendo questionar a apreciação da prova e os factos provados e definitivamente assentes – teremos de inferir que o arguido, mesmo que se adira à posição jurisprudencial que admite que a mencionada presunção seja ilidida na fase da impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, não logrou, efetivamente, afastar tal presunção, de forma a eximir-se à responsabilidade que sobre ele recai por força do disposto no artigo 171º, n.º 2, do Código da Estrada, sem que vislumbre que, deste modo, se adote qualquer interpretação desconforme aos ditames constitucionais.

Vejamos, pois, o quadro legal pertinente.

Dispõe o artigo 135.º do Código da Estrada [Responsabilidade pelas infrações]:

(…)

3 – A responsabilidade pelas infrações previstas no Código da Estrada e legislação complementar recai no:

a) Condutor do veículo, relativamente às infrações que respeitem ao exercício da condução;

b) Titular do documento de identificação do veículo relativamente às infrações que respeitem às condições de admissão do veículo ao trânsito nas vias públicas, bem como pelas infrações referidas na alínea anterior quando não for possível identificar o condutor.

No que respeita à identificação do arguido, refere o artigo 171.º do citado diploma:

(…)

2 – Quando se trate de contraordenação praticada no exercício da condução e o agente de autoridade não puder identificar o autor da infração, deve ser levantado o auto de contraordenação ao titular do documento de identificação do veículo, correndo contra ele o correspondente processo.

3 – Se, no prazo concedido para a defesa, o titular do documento de identificação do veículo identificar, com todos os elementos constantes do n.º 1, pessoa distinta como autora da contraordenação, o processo é suspenso, sendo instaurado novo processo contra a pessoa identificada como infratora.

(…).

À luz de tais preceitos parece isento de dúvida que: (i) Na impossibilidade de identificar o autor da infração responsável é o titular do documento de identificação do veículo, correndo contra ele o correspondente procedimento; (ii) Caso, este, no prazo concedido para a defesa, venha a identificar, pela forma legalmente prevista, outra pessoa como sendo a autora da infração, o procedimento que lhe foi movido é suspenso, tendo lugar a instauração de novo processo contra o identificado infrator; (iii) a responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo assenta na presunção legal, juris tantum, que encontra fundamento na circunstância de coincidindo, em princípio, na mesma pessoa a titularidade do documento de identificação do veículo e a titularidade do correspondente direito ser razoável – não excessivo, nomeadamente em face dos princípios da culpa e da proporcionalidade - exigir-lhe que saiba quem, com o mesmo, por ocasião da prática da infração, circulava na via pública.

Presunção que, tal como afirmado no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 276/04 – ainda que com referência ao artigo 152.º, n.º 1 do Código da Estrada, na redação do D.L. n.º 2/98, de 3 de Janeiro -, é constitucionalmente admissível, pois o que está em causa é uma mera presunção, sempre ilidível, de responsabilidade do efetivo proprietário ou possuidor e este sentido é conforme à Constituiçãonão viola[ndo] o princípio da culpa (…).

Mas, se relativamente ao que se acaba de dizer não se detetam divergências relevantes, permanece - como vimos - de pé a dissidência relativamente à fase processual em que ao titular do documento de identificação do veículo é permitida a elisão da presunção, mais concretamente se o pode fazer ultrapassada que seja a fase administrativa do procedimento, o que vale por dizer se o pode fazer em sede de impugnação judicial.

E aqui, reconhecendo, embora, a valia, pelo menos, em parte dos argumentos esgrimidos em abono da posição contrária, somos tentados a acompanhar o entendimento que não restringe o ónus de elisão da presunção à fase administrativa, estendendo-a, por isso, à fase judicial.

Primeiro por se nos afigurar que a não elisão, no prazo concedido para a defesa, da dita presunção, apenas tem como efeito que o procedimento instaurado com o auto de contraordenação, levantado ao titular do documento de identificação do veículo, prossiga, contra este, os ulteriores trâmites, propendendo-se, assim, para a perspetiva de legitimidade processual a que se reporta o, já citado, acórdão do TRG de 27.04.2009.

Depois, porque sopesados os fundamentos subjacentes a cada um das posições, antevêem-se os que surgem a sustentar o entendimento acolhido na sentença, no confronto com aqueles outros que suportam a tese oposta, de ordem mais pragmática e menos conforme aos requisitos constitucionais de acesso aos tribunais para tutela efetiva de direitos e interesses legalmente reconhecidos, através de um processo equitativo, no âmbito de um processo judicial de impugnação de uma decisão administrativa de cariz sancionatório – [cf. o acórdão do TC n.º 135/2009]

Com efeito, tal como considerou o acórdão do TRC de 07.10.2015 [proc. n.º 1/14.1T8VLF.C1], disponível em www.dgsi.pt: Este entendimento, que se afigura mais conforme aos ditames da Constituição, saiu reforçado com o já citado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 135/2009, de 18 de Março, o qual declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 5 e 268º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, da norma constante do artigo 175.º, n.º 4 do Código da Estrada, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3/5, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23/2, interpretada no sentido de que, paga voluntariamente a coima, ao arguido não é consentido, na fase de impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção acessória de inibição de conduzir, discutir a existência da infração.

Como se salienta no referido aresto, não se questionando a possibilidade de o legislador, mesmo em matéria sancionatória, estabelecer presunções, fazendo presumir a responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo, é intolerável a inidibilidade desta presunção, ao impedir-se que o arguido faça prova, perante o tribunal, da sua irresponsabilidade, acrescentando-se que, ainda que sejam menos intensas as preocupações garantísticas em processos contraordenacionais em comparação com o processo criminal, aquelas não podem, contudo, ser de tal modo desvalorizadas que ponham em cheque a própria efetividade da tutela jurisdicional e as exigências de um processo equitativo.

Em síntese:

(i) Não se mostra vedado ao titular do documento de identificação do veículo, em sede de impugnação judicial, a elisão da presunção que decorre do supra referido preceito do Código da Estrada;

(ii) Já porque a não elisão, no prazo concedido para a defesa, da dita presunção apenas tem como efeito que o procedimento instaurado com o auto de contraordenação, levantado ao titular do documento de identificação do veículo, prossiga, contra este, os ulteriores trâmites; Já porque sopesados os fundamentos subjacentes a cada uma das posições, antevêem-se os que surgem a sustentar o entendimento acolhido na sentença, no confronto com aqueles outros que suportam a tese oposta, de ordem mais pragmática e menos conforme aos requisitos constitucionais de acesso aos tribunais para tutela efetiva de direitos e interesses legalmente reconhecidos, através de um processo equitativo, no âmbito de um processo judicial de impugnação de uma decisão administrativa de cariz sancionatório – [cf. o acórdão do TC n.º 135/2009].

Em consequência, no caso concreto, decidiria pela invalidade da decisão recorrida, determinando que, pelo mesmo juiz, fosse proferida nova sentença, a qual, expurgada do pressuposto de que partiu quanto à inadmissibilidade, na fase de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, de o arguido ilidir a presunção, decorrente do artigo 171.º, n.º 2 do Código da Estrada, fixasse a matéria de facto, em conformidade com a prova analisada e produzida em sede de audiência de julgamento, decidindo, após, de direito.