Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1769/11.2TJCBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSÃO
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Data do Acordão: 12/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CONDEIXA-A-NOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 238, Nº 1; 239.º DO CIRE; 158.º DO CPC E 205.º, Nº 1, DA CONSTITUIÇÃO
Sumário: 1. A expressão “razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e agregado familiar”, inserida na alínea b) i) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE, conduz-nos ao critério decisivo para a aferição do valor do rendimento a excluir da afectação à insolvência.

2. A circunstância de o legislador prescrever a necessidade de fundamentação da exclusão de um montante superior a três vezes o salário mínimo nacional não deve ser assimilada como significando que esse quantum seja o mínimo a atribuir ao devedor. Quer tão só dizer que deve ser especialmente justificada essa posição, com a explanação da razão ou razões da fixação da verba assim escolhida.

3. O sustento mínimo não é o mesmo que limite mínimo: é, pura e simplesmente, a medida exacta da exclusão prevista na lei.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Nos autos de insolvência de A... e mulher B... , a correr termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Condeixa-A-Nova, vieram estes suscitar o incidente de exoneração do passivo restante, alegando, para o que ora interessa, que o respectivo agregado familiar é composto pelo casal e por dois filhos menores, de 5 e 1 ano de idade; que o insolvente marido está desempregado, vivendo de serviços ocasionais da sua área de formação, enquanto a insolvente B... aufere o vencimento mensal de € 900,00; que as despesas suportadas mensalmente, incluindo um crédito pessoal para a sociedade C... LDA, ascendem a € 2.153,06; que os Requerentes cumprem os requisitos previstos no art.º 238, nº 1 do CIRE.

O Sr. Administrador da Insolvência declarou nada ter opor à requerida exoneração.

Na assembleia de credores, dois dos credores presentes - Banco D...e E..., Lda - opuseram-se à referida pretensão dos insolventes.

A fls. 118 e seguintes foi proferido despacho inicial no qual se deferiu a exoneração do passivo restante dos Requerentes, mediante determinadas condições a observar durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo, e, designadamente, o dever para cada um dos insolventes de ceder ao fiduciário nomeado o rendimento disponível correspondente ao valor superior ao montante da remuneração mínima mensal garantida anualmente fixado.

Irresignados, desta decisão recorreram os insolventes, recurso admitido como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos cumpre decidir.

São os seguintes os factos que estão dados como provados em 1ª instância:

1º - Os devedores apresentaram-se à insolvência em 10 de Maio de 2011.

2º - Em 22 de Junho de 2011 foi proferida sentença que declarou a insolvência dos devedores.

3º - Os devedores são casados entre si no regime de comunhão de adquiridos e residem na Rua ..., Condeixa-A-Nova.

4º - O seu agregado familiar é composto pelos próprios e por dois filhos menores.

5º - O devedor marido foi durante vários anos sócio e gerente da sociedade C... - Sociedade de Construções, Lda, que se dedicava à construção de habitações colectivas e individuais cuja venda promovia.

6º - A partir de 2002, com o fim do crédito bonificado a jovens casais, a empresa começou a sofrer dificuldades financeiras.

7º - Situação que se agravou a partir de 2005 em resultado da queda abrupta da facturação da empresa que passou a sobreviver em grande parte a cobro do endividamento sucessivo dos sócios.

8º - Em 2008 foi contraído um empréstimo pessoal de € 10.000,00 para suprir as necessidades de tesouraria da empresa cujas prestações mensais foram durante algum tempo suportadas pela sociedade.

9º - Por volta do ano de 2009 tais prestações passaram a ser liquidadas pelos devedores.

10º - Tendo em vista ultrapassar a falta de liquidez da sociedade, os devedores constituíram-se garantes de empréstimos contraídos pela empresa junto da banca.

11º - O devedor marido avalizou ainda várias letras sacadas pela C... a favor de vários fornecedores.

12º - A C... foi declarada insolvente em 23 de Março de 2011.

13º - O devedor marido encontra-se desempregado desde a declaração de insolvência da C..., sem beneficiar de qualquer prestação social.

14º - Efectua trabalhos pontuais na sua área de formação sem rendimento fixo.

15º - A devedora esposa aufere um salário no montante de € 900,00.

16º - Na sequência da declaração de insolvência, o Sr. Administrador apreendeu para a massa:

- um prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Condeixa-A-Nova sob o nº ... e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o nº ....

- um prédio urbano descrito na mesma Conservatória sob o nº ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ....

17º - Os devedores não têm antecedentes criminais.

18º - O Sr. Administrador de Insolvência reconheceu créditos no montante global de € 1.961.221,35.       

No que concerne ao elenco dos factos provados, uma vez que não há alusão a controvérsia ou negação resultante do contraditório do processo, e que a decisão recorrida não afastou do acervo que reuniu as verbas indicadas pelos recorrentes no ponto 34 da petição, ou tão pouco consigna quaisquer outras em sua substituição, há que aditar ao aludido elenco o seguinte:

19 - O agregado familiar dos devedores vinha suportando mensalmente, à data do pedido, além das despesas de vestuário e alimentação, os seguintes encargos:

Crédito habitação: € 380,00.

Prestação automóvel: € 340,00.

Electricidade: € 40,00.

Água: € 35,00.

Gás: € 50,00.

Telecomunicações: 60,00.

Seguro de vida: € 36,13.

Quota Ordem dos Engenheiros: € 10.00.

                                                                          *

A apelação.

Os apelantes encerram as respectivas alegações com um enunciado conclusivo em que circunscrevem o objecto do vertente recurso às seguintes questões:

1º - A falta de fundamentação da decisão recorrida;

2º - A não inclusão na matéria provada dos vários tipo de despesas dos requerentes e respectivos montantes;

3º - A inadequação por insuficiência do valor do rendimento disponível que foi excluído na decisão recorrida da cessão ao fiduciário.

No que concerne à inclusão das despesas alegadas no acervo fáctico dado como provado já se encontra o mesmo aditado com a matéria pertinente, pelo que são apenas duas as questões a abordar.

Não houve resposta por banda dos apelados.

                                                                               *

Quanto à invocada ausência de fundamentação da decisão recorrida.

Invocam os recorrentes a falta de fundamentação da decisão recorrida no que tange à ponderação que legitimou a fixação do montante a excluir do rendimento a ceder ao fiduciário, com o que se teria incumprido o disposto nos art.ºs 158 do CPC e 205, nº 1, da Constituição.

Todavia, tal não corresponde à realidade.

O despacho recorrido, depois de alinhar a matéria de facto que teve por provada, teceu várias considerações de direito sobre os requisitos do deferimento do pedido de exoneração do passivo restante pelo insolvente, e, após balizar os parâmetros do montante a excluir do rendimento a ceder pelos recorrentes, veio a ponderar que, para a exclusão da cessão “o devedor pode nem sequer ter um emprego”. E a considerou, ao abrigo do art.º 239, nº 3 do CIRE, que o valor do salário mínimo nacional, ficando aquém do valor máximo normalmente admitido (3 salários mínimos), já satisfazia o requisito legal do razoavelmente necessário ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.

Embora parca - e mesmo algo deficiente, tem de reconhecer-se -, a fundamentação, está lá.

Donde que a questão improceda. 

 

Sobre os montantes a excluir da cessão do rendimento disponível dos insolventes.

Inconformados com o segmento da decisão recorrida que apenas lhes ressalvou da cessão do rendimento disponível as quantias correspondentes à remuneração mínima mensal garantida fixada anualmente, entendem os insolventes, agora apelantes, que a lei tem apenas como limite mínimo da exclusão no art.º 239, nº 3, al. b) -i) do CIRE, o equivalente a três salários mínimos nacionais; e que, de todo o modo, em função das necessidades mínimas, não só deles próprios como dos dois filhos menores que integram o agregado familiar, deverá ser poupada à cessão a importância equivalente, não a dois, mas a três salários mínimos nacionais.

Vejamos.

Este colectivo já foi chamado a tomar posição sobre esta matéria[1], pelo que se afigura ser de trazer à colação o essencial do argumentário que para o seu tratamento foi então avançado.

Com efeito, o art.º 235 do actual CIRE estabelece como princípio geral o de que “se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste”.

De harmonia com o nº 1 do art.º 239 do CIRE “Não havendo motivo para indeferimento liminar é proferido o despacho inicial na assembleia de apreciação do relatório ou nos 10 dias subsequentes”. Dispõe também o nº 2 do citado artigo que “nos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido ao fiduciário”.

Prescreve-se ainda no nº 3:

“Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:

a) (…)

b) Do que seja razoavelmente necessário para:

i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;

ii) (…);

iii) (…).”

A expressão “razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e agregado familiar” conduz-nos, assim, ao critério decisivo para a aferição do valor do rendimento a excluir da afectação à insolvência.

A circunstância de o legislador prescrever a necessidade de fundamentação da exclusão de um montante superior a três vezes o salário mínimo nacional não deve ser assimilada como significando que esse quantum seja o mínimo a atribuir ao devedor. Quer tão só dizer que deve ser especialmente justificada essa posição, com a explanação da razão ou razões da fixação da verba assim escolhida.

Na letra do mencionado preceito apenas se diz que o montante a excluir “não deve exceder”, mas, como é evidente, dela não deriva - directa ou indirectamente - que esteja vedado ao tribunal arbitrar uma verba inferior. Estamos, por conseguinte, diante de um montante máximo normal, que, no entanto, o juiz poderá ultrapassar mediante fundamentação específica para a solução adoptada. O que à luz do princípio geral da fundamentação das decisões judiciais também não afasta a obrigação de - ainda que sumariamente - ser também explicado o valor concretamente excluído da cessão, ainda que ele se situe abaixo do equivalente aos aludidos três salários mínimos nacionais.

Na verdade, na exclusão prevista na subalínea i) da al. b) do n.º 3 do art.º 239º o legislador estabeleceu, em primeiro lugar, através de um conceito aberto, um valor geral por referência a um critério abstracto (o razoavelmente necessário ao sustento minimamente condigno do devedor e seu agregado familiar), a preencher pelo aplicador em cada caso concreto, conforme as circunstâncias peculiares do devedor; depois, estabeleceu um limite máximo concreto por referência a um critério quantificável objectivamente (o equivalente a três salários mínimos nacionais), sendo certo que este limite máximo concreto ainda pode ser excedido em casos justificados.

Haverá assim que encontrar no circunstancialismo do caso o equivalente concreto ao critério abstracto apontado. E sustento mínimo não é, por isso, o mesmo que limite mínimo: é, pura e simplesmente, a medida exacta da exclusão prevista na lei.

O conceito de “sustento minimamente digno” não se confunde com o de mínimo de sobrevivência. Existe igualmente no nosso ordenamento num patamar inferior ao do salário mínimo (funcionando como critério orientador ou apontando para um tal limite mínimo de sobrevivência) o chamado rendimento social de inserção.

Por outro lado, se é certo que nada justifica que se exclua da cessão quantia inferior ao salário mínimo nacional - hipótese em que sempre se poria em causa o sustento minimamente digno do próprio devedor - também tudo aconselha a que aquele mesmo valor - o s.m.n. - se deva ter como regra (como, aliás, terá sido a perspectiva da decisão ora recorrida).

Mesmo que existam dependentes do devedor - como é o caso -  e o vencimento deste ultrapasse a fasquia do s.m.n., não será, assim, automaticamente razoável a exclusão de uma verba superior ao s.m.n. relativamente ao rendimento disponível (a ceder ao fiduciário por força da lei).

Esta interpretação é igualmente a que melhor se respeita a unidade do sistema, quando, p. ex., se observa a forma como está gizada a disciplina da penhora do vencimento no processo executivo. Na verdade, compulsando art.º 824º, n.º 2, do CPC, na redacção conferida pelo DL n.º 38/2003, de 08.3 (e diplomas ulteriores), também aí se pode ler que “a impenhorabilidade prescrita no número anterior tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não seja de alimentos, o montante equivalente a um salário mínimo nacional”. Estes limites referem-se, assim, à impenhorabilidade prevista no n.º 1 do mesmo artigo, de tal sorte que quando os 2/3 ali mencionados excedam o valor de três salários mínimos nacionais tal impenhorabilidade fica limitada a este valor, sendo penhorável, juntamente com o terço restante, a parte dos 2/3 que o exceda; quando os 2/3 sejam inferiores ao valor de um salário mínimo nacional, a parte impenhorável do rendimento eleva-se, coincidindo com o valor deste, desde que o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não seja de alimentos.

Em ambas as situações se visa um justo equilíbrio, procurando-se tutelar adequadamente os interesses conflituantes de credor e devedor.

A cessão do rendimento disponível prevista do art.º 239 do CIRE tem na sua origem uma certa ideia de penalização do insolvente, privando-o de proventos futuros que em circunstâncias normais lhe adviriam. No entanto, entendeu-se que o sacrifício dos interesses dos credores só justifica o proporcional sacrifício do insolvente até ao limite que não coloque em perigo a possibilidade de uma existência condigna para ele e para o respectivo agregado familiar.

É certo que o s.m.n. corresponde à quantia que em dado momento o Estado estabelece como o valor abaixo do qual fica fortemente comprometida a possibilidade de uma vida condigna para quem o aufere. Como não pode deixar de ser, sempre que se apurem circunstâncias verdadeiramente excepcionais não repugna aceitar que se possa ir além desse valor-regra.

No entanto, o simples facto de os devedores-insolventes terem a seu cargo duas crianças de 1 e 5 anos não é enquadrável nessa excepcionalidade, até porque o próprio salário mínimo nacional não varia em função do número ou idade dos elementos que compõem o agregado de quem o recebe.

E também não pode entrar nesse domínio da excepcionalidade o volume dos encargos entretanto assumidos pelos insolventes (mais de 2.000/mês), dado que a situação que para estes decorre do seu actual estatuto tem naturalmente de implicar a supressão de alguns dos hábitos que com eles se conexionam. Nos encargos incompatíveis com a insolvência que os apelantes terão de suprimir (senão totalmente pelo menos em grande parte) estarão claramente aqueles a que se vêm a reportar na conclusão 29ª da sua alegação, envolvendo gastos com combustível, telecomunicações e quota para a O. dos Engenheiros do insolvente marido, perfazendo a cifra mensal de € 220,00.

Ora - permanecendo no caso em apreço e nas suas coordenadas - importa relevar que o recorrente marido aufere proventos incertos ou ocasionais, enquanto a recorrente mulher aufere € 900,00 mensais, tendo ambos a seu cargo dois filhos menores que lhe irão acarretar os encargos normais para as crianças da mesma idade.

Nesta perspectiva, a magnitude relativa do passivo acumulado (mais de € 1.750.000,00) impõe uma adequada salvaguarda dos legítimos interesses dos credores, em detrimento das despesas do agregado familiar dos recorrentes, que excedam o admissível como encargo normal com os filhos em função dos critérios fornecidos pelas regras da experiência comum.

Donde que acabe por se revelar inteiramente ajustada à supra referida função sancionatória do art.º 239, nº 3, b), subalínea i), a exclusão da cedência do rendimento de cada um dos apelantes de um valor não superior a um salário mínimo nacional conforme ficou plasmado na decisão recorrida.

Ou seja, o recurso improcede.


     Pelo exposto,
na improcedência da apelação, confirmam a decisão recorrida.

      Custas pelos recorrentes.

Freitas Neto (Relator)

Carlos Barreira

Barateiro Martins


[1] Na apelação nº 117/11.6tbpcv-C.C1 também relatado pelo ora relator.