Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1484/15.8T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
PROPRIEDADE
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 11/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA – INSTÂNCIA CENTRAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 473, 1293, 1297, 1300 CC
Sumário: 1 – Nas situações em que a deslocação patrimonial provém de um acto de intromissão do enriquecido em direitos ou bens jurídicos alheios, o enriquecimento é sem causa se, segundo a ordenação substantiva dos bens aprovada pelo direito, ele houver de pertencer a outrem.

2 – Tem, assim, causa justificativa o enriquecimento proveniente da usucapião, visto a lei entender que, não obstante a falta de título válido de aquisição, a posse prolongada da coisa justifica a titularidade do direito e a consolidação do respectivo valor na esfera jurídica do possuidor.

3 – Ou seja, não há enriquecimento sem causa justificativa quando alguém se apropria por usucapião de bens pertencentes a outrem: há um enriquecimento e o correspondente empobrecimento patrimonial, porém, segundo o direito vigente, tal enriquecimento não é sem causa justificativa.

Decisão Texto Integral:


Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I – Relatório

S (…) e marido, A (…), residentes (…) S. Paulo, Brasil, intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra M (…) e marido, G (…), residentes (…)Ansião, pedindo:

1.º - [que se declare que os RR.] fizeram integrar, indevidamente, no seu património, os prédios rústicos (correspondentes actualmente ao prédio rústico inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo 0001.º, da freguesia de Ansião e a ½ do prédio rústico inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo 0002.º, da freguesia de Ansião);

2.º - [que se declare que os RR.] ficaram indevidamente enriquecidos no valor de 80.000,00 € e os AA. empobrecidos em tal montante;

3.º - [que se] reconheça estarem os Autores prejudicados pela conduta dos Réus, sendo esse prejuízo no valor referido;

4.º - [que se] reconheça que os Autores sofreram e estão a sofrer prejuízos de índole não patrimonial com a conduta dos Réus, que se consubstancia no logro e expropriação de bens seus e do correspondente valor;

5.º - [que se condenem os RR.] a entregar aos Autores a quantia de 80.000,00 €, acrescida dos juros legais que se vencerem desde a data da citação e até efectivo e integral reembolso;

6.º - [que se condenem os RR.] a indemnizar os Autores no valor de 20.000,00 €, a título de danos não patrimoniais, acrescido dos juros que se vencerem desde a citação.

Alegaram para tal que, há cerca de 50 anos, no inventário obrigatório por marte do pai da A., foram adjudicados à A. dois prédios rústicos (a verba n.º 7 e ¼ da verba n.º 35 da descrição); prédios esses que, no mês de agosto de 2014, quando os AA. – que residem no Brasil há mais de 50 anos – se deslocaram a Portugal, verificaram ter sido apropriados pelos RR., que “procederam à construção de um prédio urbano, composto por casa de habitação, barracão/garagem e piscina, nos prédios rúticos propriedade dos AA.[2], com o que “locupletaram o seu património ao apoderarem-se de tais bens pertencentes aos AA.[3], bens esses que possuem actualmente o valor de € 40.000,00 cada um; para além de lhes causarem “graves danos patrimoniais e morais, designadamente por lhes terem subtraído de forma ardilosa os imóveis e por se sentirem enganados ao serem espoliados dos seus bens[4].

Situação esta que, segundos os AA., preenche os requisitos do enriquecimento sem causa, uma vez que “o direito de propriedade dos AA. sobre os prédios rústicos foi violado em virtude da apropriação por parte dos RR.[5], “inexistindo causa para o enriquecimento dos RR., [uma vez que] nunca os AA. doaram ou venderam os prédios em apreço aos ora RR. e muito menos deram autorização para a utilização dos mesmos[6].

Assim – continuam os AA. – os RR., com a sua conduta, “viram aumentado o seu património”[7] e “empobreceram o património dos AA.”[8], sendo o “enriquecimento dos RR. injustificado, imoral e injusto”[9], “devendo os RR. ser condenados a pagar aos AA. a quantia de € 80.000,00, por forma a compensá-los do empobrecimento causado”[10], uma vez que “nenhum outro mecanismo legal está reservado aos AA. para obterem dos RR. a restituição patrimonial correspondente ao locupletamento”[11]; e devem ainda pagar-lhes uma indemnização, a título de danos não patrimoniais, em valor nunca inferior a € 20.000,00.

Os RR. contestaram.

Começaram por suscitar a ilegitimidade activa dos AA. (por estes dizerem que foi adjudicada à A. uma parte dum prédio e não estarem acompanhados dos respectivos comproprietários).

Após o que, por impugnação, alegaram circunstanciadamente que o prédio constante da verba n.º 7 (que foi adjudicado à A.) se situa noutro local, distando 5,4 km dos imóveis urbano e rústico dos RR.; e que, quanto ao prédio constante da verba n.º 35, sempre a R. mulher (irmã da A. mulher) esteve convencida que o mesmo lhe havia sido atribuído por inteiro no inventário, razão pela qual os AA. iniciaram em 1972 e concluíram em 1974 a construção da sua casa de habitação, na sequência do que, alegando a factualidade concernente, invocaram tê-lo adquirido por usucapião (acrescentando que, em 04/11/1980, adquiriram a J (…)  e esposa o imóvel confinante a norte, onde construíram a piscina).

Assim, após requerem várias intervenções principais (e alegarem que constataram, agora, que metade do seu prédio inscrito na matriz rústica 0002.º foi registado por terceiros), pedem, reconvencionalmente, que os AA e os intervenientes principais:

1.º Sejam condenados a reconhecer que os Réus/Reconvintes são os legítimos proprietários e possuidores do seguinte imóvel misto: “Casa de habitação de rés-do-chão e anexos, com seis divisões, com a superfície coberta de quatrocentos e quarenta e um metros quadrados e descoberta de mil oitocentos e cinquenta e um metros e cinquenta decímetros quadrados (superfície total de dois mil duzentos e noventa e dois metros e cinquenta decímetros quadrados) sita em x....- y...., freguesia e concelho de Ansião, a confrontar do norte Caminho e nascente Caminho e (…), Sul Herdeiros (…) e poente RRR., inscrita na matriz urbana sob o artigo actual 003... e rústica sob 0002 da actual freguesia de Ansião”, por usucapião ou aquisição prescritiva;

2.º - E que, consequentemente, se ordene o cancelamento da inscrição sob Ap.006de 1997/10/02, bem como a inutilização da descrição 004.../ Torre de y.... -Ansião, lavrado com base na escritura partilha sub judice (doc. n.º 16).

Os AA. responderam, mantendo o alegado na PI e repetindo que, “como os RR. bem sabem, o prédio rústico, inscrito na matriz sob o art. 0002.º da freguesia de Ansião, pertence à A. e R, na proporção de metade a cada uma,”[12] e acrescentado que, “conforme confissão expressa dos RR., que se aceita para não mais ser retirada, os mesmos construíram a sua casa de habitação no referido prédio rústico[13]

Foram admitidas as intervenções principais requeridas, tendo sido admitidos a intervir M (…), J (…), A (…) , H (..), A (…), A (…), A (…), C (…), M (…), M (…)  e C (…), todos com os sinais dos autos, os quais, citados, nada disseram.

Admitida a reconvenção, foi proferido despacho saneador – em que foi declarada a total regularidade da instância, estado em que se mantém – identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

Após o que, realizada a audiência[14], o Exmo. Juiz proferiu sentença, concluindo a sua decisão do seguinte modo:

“ (…)

1. Julgo a presente acção totalmente improcedente e, em consequência,

2. Absolvo os Réus M (…) e G (…) de todos os pedidos formulados pelos Autores S (…) e A (..)

3. Julgo a presente reconvenção totalmente procedente e, em consequência,

4. Declaro os Réus/Reconvintes M (…) e G (…) donos, legítimos proprietários e possuidores do seguinte imóvel misto, por o terem adquirido por usucapião:

- “Casa de habitação de rés-do-chão e anexos, com seis divisões, com a superfície coberta de quatrocentos e quarenta e um metros quadrados e descoberta de mil oitocentos e cinquenta e um metros e cinquenta decímetros quadrados (superfície total de dois mil duzentos e noventa e dois metros e cinquenta decímetros quadrados) sita em x.... – y...., freguesia e concelho de Ansião, a confrontar do norte Caminho e nascente Caminho e (…)  Sul Herdeiros de (…) e poente RRR., inscrita na matriz urbana sob o artigo actual 003...... e rústica sob 0002 da actual freguesia de Ansião”.

5. Consequentemente, ordeno o cancelamento da inscrição sob Ap.006de 1997/10/02, bem como a inutilização da descrição 004.../Torre de y.... –Ansião.

 (…)”

Inconformados com tal decisão, interpõem os AA. recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por decisão que revogue o decidido e que a julgue a acção procedente e a reconvenção improcedente.

Terminaram a sua alegação com as seguintes conclusões

(…)

Os RR/reconvintes responderam, terminando as suas contra-alegações sustentando, em síntese, que a sentença recorrida não violou as normas referidas pelos recorrentes, pelo que deve ser mantida nos seus precisos termos.

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II.- Fundamentação de Facto

A. Factos Provados

1. Por óbito de A (…) procedeu-se ao Inventário Obrigatório nº 25/1964, que correu seus termos no extinto Tribunal de Ansião e Inventários (obrigatórios) nele incorporados com o número 21/1965 a que se procedeu por óbito de J (…) (residente que foi em w..., Ansião) e E (…)

2. No âmbito do referido Inventário foi adjudicado à Autora, entre outros, os seguintes bens, situados na freguesia e concelho de Ansião:

 - Verba n.º 7 – “Uma terra com oliveiras, chamado Quintal, limite da x...., parte do norte, sul e nascente com (…) e poente com (…), inscrito na matriz sob os artigos 0007, 1/20, 2.352 e 2.360, 1/9 (…)”;

 - ¼ da Verba n.º 35 – “Metade de um talho de semeadura, chamado Quintal, limite da x...., parte do norte com (…), nascente caminho, sul (…) e poente (…), inscrito na matriz sob o artigo 0005...., ½ (…)”.

3. A ora Autora encontra-se emigrada no Brasil há mais de 50 anos.

4. Onde reside na companhia de seu marido.

5. Os Autores, no mês de Agosto do ano de 2014 deslocaram-se a Portugal.

6. O prédio inscrito actualmente na matriz com os artigos U- 003.......º, R-0002.º tem o valor de mercado na quantia global de €127.000,00.

7. Os Réus/Reconvintes iniciaram em 1972 e concluíram em 1974 a construção da casa de habitação da qual requereram a sua inscrição fiscal e que veio a ocorrer no serviço local de Finanças de Ansião em 1975 da seguinte forma:

- “Casa de habitação de rés-do-chão e anexos, com seis divisões, sita em y...., com a superfície coberta e total de trezentos e oitenta e nove metros quadrados (mas a real de quatrocentos e quarenta e um metros quadrados de superfície coberta e descoberta de mil oitocentos e cinquenta e um metros e cinquenta decímetros quadrados), a confrontar do norte com JL...., sul e poente com proprietário e nascente caminho”, correspondendo, actualmente, ao artigo matricial 0002 da freguesia (única) de Ansião.

8. As suas confrontações actuais e mais exactas são: do norte Caminho e nascente Caminho e (…), Sul Herdeiros de (…) e poente os próprios Réus/Reconvintes.

9. Os Réus/Reconvintes erigiram e edificaram do referido modo e na sequência do seu casamento (em 27/01/1974) foram habitar a referida casa, nela passando a proceder aos actos normais do dia-a-dia, como a confeccionar e tomar as refeições, recebendo os familiares e amigos e a correspondência postal e ainda dela fazer o centro da sua vida familiar.

10. Na parte remanescente às construções, passam os Réus/Reconvintes a fazer as suas plantações e sementeiras, colhendo os respectivos frutos e produtos dessa superfície descoberta remanescente, logradouro ou quintal, como frutos e legumes.

11. Tudo o que os Réus/Reconvintes vêm fazendo há mais de 5, 10, 20, 30, 40 anos, por si e, pelos seus antepossuidores e anteproprietários que legitimamente representam, há mais de 50 e 60 anos.

12. À vista de toda a gente de x...., Rua da x...., Estrada da x...., freguesia de Torre de y...., incluindo restantes familiares dos Autores/Reconvindos e Réus/Reconvintes.

13. Sem oposição, embargo, obstáculo, reparo, conflito ou escaramuça de/com quem quer que seja ou fosse, incluídos os Autores/Reconvindos.

14. Continuada no tempo.

15. Na firme convicção de não lesarem direitos de terceiros, o que efectivamente nunca lesaram, incluídos os dos Autores/Reconvindos.

16. No dia 04/11/1980, adquiriu o Réu/Reconvinte-marido, na qualidade de comprador, o imóvel confinante a Norte do descrito nos artigos 65.º e ss. da Reconvenção, ao respectivo proprietário confinante, J (…) e mulher E (…) residentes no lugar de k.... , dita freguesia de Torre de y...., Ansião, por escritura pública formalizada no 4º Cartório de Coimbra, exarada de fls. 12 a 13 do L.º 1, descrevendo e inscrevendo o mesmo na Conservatória do Registo Predial de Ansião sob a Ap.006 de 2006/09/04.

17. M (…) registou a seu favor metade indivisa do imóvel rústico a que se refere esta reconvenção, sob a AP.006 de 1997/10/02, da descrição registral 004.../Torre de y...., com base numa escritura de partilha por óbito de E (…) casada que foi com J (…) e residente que foi em z..., dita freguesia de Torre de y...., sendo certo o usufruto que reservou para si, se extinguiu com o seu óbito, coadjuvada por aquele compartilhante e meeiro, J (…) entretanto já falecido, tendo ele deixado como sua única e universal herdeira a dita titular inscrita.

18) Ao prédio rústico a que se refere a verba n.º 35 (referida no ponto 2) corresponde hoje o artigo matricial 0002 da freguesia (única) de Ansião.

19) Os Réus, em comunhão de esforços, procederam – conforme e nas circunstâncias de tempo referidas nos pontos 7 a 15 – à construção de um prédio urbano, composto por casa de habitação, barracão/garagem e piscina, em tal prédio rústico.

20) Os Réus enriqueceram o seu património ao apoderarem-se da totalidade de tal prédio rústico.

21) O que o fizeram à custa dos AA., uma vez que uma parte de tal prédio era dos AA.


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B. Factos não provados

Não se provou

a) Qual o valor do prédio rústico a que se refere a verba n.º 35 (referida no ponto 2), quer na data da construção da casa de habitação dos AA., quer actualmente[15].


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III – Fundamentação de Direito

A presente acção assenta, com todo o respeito, num equívoco jurídico dos AA..

Quando alguém se apropria (designadamente, por usucapião) de bens pertencentes a outrem, há um empobrecimento e o correspondente enriquecimento patrimonial, porém, é o ponto, segundo o direito vigente, tal enriquecimento tem causa justificativa (ou, dito doutro modo, não é sem causa justificativa).

Esta singela asserção jurídica impõe, só por si, o congénito insucesso da pretensão dos AA/apelantes.

Em todo o caso, para que não restem dúvidas, passemos a explicar, circunstanciadamente, o raciocínio jurídico que convoca a referida asserção e que determina o insucesso congénito da pretensão dos AA/apelantes:

Começam os AA. por dizer que, há cerca de 50 anos, lhes foram (mais exactamente, à A. mulher) adjudicados dois bens num inventário, bens esses de que os RR., segundos os AA., se “apropriaram”.

Com a mera expressão “apropriaram” não tinha/tem necessariamente que entender-se que os AA. estavam a querer dizer que os RR. passaram a ser os proprietários de tais bens, porém, o que os AA. disseram a seguir ao longo de toda a PI – como resulta do relatório inicial, em que, justamente para fundamentar o que agora estamos a dizer, transcrevemos diversas passagens da PI – e o que pediram não deixa quaisquer dúvidas sobre o ponto de partida dos AA., ou seja, para os AA., os RR. passaram a ser (e já o eram na data da propositura da acção) proprietários de tais bens (que eram inicialmente, segundo os AA., deles), assim enriquecendo o seu património (e empobrecendo o dos AA.), razão pela qual, a final, pedem (não a sua – dos AA. – declaração de proprietários e a condenação dos RR. à consequente restituição do que não é deles) que os RR. sejam condenados na obrigação de restituir (quantia pecuniária) decorrente do enriquecimento sem causa.

Admitamos pois, como hipótese de raciocínio[16], que os RR. a determinada altura (por usurpação ou por inversão do título de posse), passaram a agir como donos de bens que haviam sido adjudicados à A. mulher; e que tal actuação dos RR. se traduziu na construção da sua casa de habitação.

Tendo isso sucedido (e sabemos agora que, em parte, terá sido isto o que sucedeu), estaríamos por certo caídos numa situação de acessão industrial imobiliária, regulada nos artigos. 1339.º e ss. do C. Civil; segundo os quais, quando não é materialmente possível ou se julga economicamente desaconselhável a separação das coisas ou valores que se reuniram, se atribui o domínio sobre o todo a um dos interessados em conflito, mandando-se, porém, compensar o titular do interesse sacrificado (havendo razões que justifiquem a atribuição do domínio sobre o todo a um deles, não há, segundo a lei, fundamento que justifique o enriquecimento deste à custa do outro, ou seja, ao resultado económico da atribuição).

Ou seja – não esgotando todas as hipóteses previstas nos art. 1340.º e 1341.º do C. Civil e ficando-nos apenas pela mais plausível – estando os RR. de boa fé e tendo a construção maior valor que o prédio onde foi feita a construção[17], os RR. (autores da incorporação) adquiriam a propriedade do prédio dos AA., pagando o valor que este tinha antes da construção[18] (cfr. art. 1340.º/1 do C. Civil).

Mas, claro está, sendo esta a solução jurídica da situação que estamos a hipotizar, caso a mesma se colocasse em juízo, não eram os donos do prédio (os aqui AA.)[19] que na PI da respectiva demanda (tendo por objecto tal situação) vinham pedir o valor do prédio (antes se limitando a reivindicá-lo, restituído ao seu primitivo estado, ou seja, sem a construção), sendo sim os autores da incorporação (os aqui RR.) que, na defesa/reconvenção, invocariam a aquisição do prédio por acessão industrial imobiliária e se ofereceriam – para poder adquirir – para pagar o valor que o prédio tinha antes da construção.

Isto para dizer – sendo “muitíssimo” plausível ser o ocorrido configurável como uma situação de acessão industrial imobiliária – que não é este modo de aquisição da propriedade (do prédio onde foi construída a casa de habitação) que aqui está invocado e sob discussão: os AA. não reivindicam qualquer prédio (como já se referiu, o ponto de partida dos AA. é serem os RR., na data da PI, os proprietários) e os RR. não invocam, como modo de aquisição do que era inicialmente dos AA., a acessão industrial imobiliária, invocando sim, compreensivelmente, a usucapião.

E, compreensivelmente, porquê?

Porque assim, provando a usucapião sobre o prédio que era inicialmente dos AA.[20], nada têm que lhes pagar (enquanto, na acessão industrial imobiliária, tinham que lhes pagar o seu valor[21] à data da incorporação).

Usucapião que, é sabido, é a posse com determinadas características e dignidade (tem que ser pública e pacífica – 1293, a), 1297.º e 1300.º); e por certo período de tempo (20 anos, quanto aos imóveis, se for de má fé).

Posse que, por sua vez, é o exercício de poderes de facto sobre uma coisa em termos de um direito real; que é o poder que está na origem de todo o “domínio”, de toda a “apropriação” e do direito sobre as coisas; que colmata as brechas existentes na ordenação dominial definitiva, pondo fim a situações de indefinição, definindo o estatuto dos bens e acabando também por ser uma contínua força de subversão e contestação do direito real.

Posse que cumpre pois uma dupla função e papel: cobre a lacuna, suprindo a falta do direito real; e permite o trânsito para um direito novo, reconstituindo a ordenação dominial definitiva.

Sendo o direito novo justamente aquele que se constitui pela usucapião, que é uma forma de aquisição originária do direito real e que destrói qualquer outro direito anterior e incompatível; razão pela qual, em síntese, feita a prova da posse boa para usucapião, fica provado o direito real invocado.

Ora, como é evidente, é justamente este o caso dos autos (mais, sempre foi; sendo exactamente por isto que os AA., como já se referiu, em vez de reivindicarem algo que é/seria seu, vêm pedir uma quantia pecuniária de substituição/compensação).

O que está provado nos pontos 7 a 15 da matéria de facto não é (nunca foi nos autos, bem vistas as coisas) contestado pelos AA. e de tais factos resulta a posse por mais de 20 anos dos RR. sobre o prédio que ocupam (e melhor identificado no referido ponto7) e, em consequência, a aquisição da propriedade do mesmo, por usucapião, que, repete-se, é uma forma de aquisição originária do direito real em causa (direito de propriedade) e que destrói qualquer outro direito anterior e incompatível (designadamente, o anterior direito de propriedade dos AA. sobre o “terreno”, ou melhor, sobre metade do “terreno”).

O que – feito este percurso sobre as configurações jurídicas convocáveis e sobre aquela, única, que efectivamente está em causa e foi invocada pelas partes – nos coloca perante a asserção inicial, ou seja, não há enriquecimento sem causa justificativa quando alguém se apropria por usucapião de bens pertencentes a outrem (há um enriquecimento e o correspondente empobrecimento patrimonial, porém, segundo o direito vigente, tal enriquecimento não é sem causa justificativa).

Tem tal observação naturalmente a ver com um dos requisitos da obrigação de restituir, decorrente do enriquecimento sem causa, mais exactamente com o requisito em que se diz que o enriquecimento tem que carecer de causa justificativa (cfr. art. 473.º/1 do C. Civil).

O que naturalmente nos remete para o conceito de “causa do enriquecimento” nas situações em que a deslocação patrimonial, como é o caso, provém de um acto de intromissão do enriquecido (os aqui RR.) em direitos ou bens jurídicos alheios (dos aqui AA.).

Situações essas em que o enriquecimento é sem causa se, segundo a ordenação substantiva dos bens aprovada pelo direito, ele deva pertencer a outro[22].

Como refere o Prof. Antunes Varela[23]

“ (…) Trata-se de um puro problema de interpretação e integração da lei, tendente a fixar a correcta ordenação dos bens à luz do direito vigente. Quando o enriquecimento criado está em harmonia com a orientação jurídica dos bens aceite pelo sistema, pode asseverar-se que a deslocação patrimonial tem causa justificativa; se, pelo contrário, por força da ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa.

Tem, assim, causa justificativa o enriquecimento proveniente da usucapião, visto a lei entender que, não obstante a falta de título válido de aquisição, a posse prolongada da coisa justifica a titularidade do direito e a consolidação do respectivo valor na esfera jurídica do possuidor. (…)”

Não podia, salvo o devido respeito, ser de outro modo.

Embora a posse nasça como uma pura relação de facto, uma vez nascida converte-se num direito, que tem natureza provisória, uma vez que a protecção que a lei confere à posse cessa[24] se, antes do decurso do prazo da usucapião, o titular do direito vier reivindicar a coisa; porém, decorrido o prazo da usucapião, dá-se o trânsito para o novo direito real, reconstitui-se, segundo a “correcta ordenação dos bens à luz do direito vigente”, uma nova ordenação dominial definitiva.

E justamente por a “nova” passar a ser a “correcta ordenação dos bens à luz do direito vigente”, ficam “destruídos” quaisquer direitos anteriores e incompatíveis, não havendo, em razão de tais “destruições”, lugar a quaisquer indemnizações ou obrigações de restituir (com fundamento em enriquecimento sem causa).

Entende a lei que a posse prolongada da coisa e a inércia, desinteresse e incúria do anterior proprietário (e possuidor causal) justificam uma nova ordenação dominial definitiva.

É que importa não esquecer (do que estamos a falar quando falamos de posse e de usucapião) que a posse corresponde à prática reiterada de actos materiais sobre a coisa; de actos que, segundo o consenso público, se traduzem, inequívoca e concludentemente, no exercício dum direito real (no estabelecimento duma relação duradoura com a coisa); de actos praticados com publicidade; tudo isto ao longo de pelo menos 20 anos.

Enfim, entende a lei que o proprietário que não reage, que não se opõe, ao longo de pelo menos 20 anos, aos referidos inequívocos e concludentes actos materiais sobre a coisa, “merece” perder a propriedade sobre a coisa e, claro está, se é assim, não pode aspirar a indemnizações e compensações (uma vez que é imputável à sua inércia, desinteresse e incúria a “subversão”, ratificada pelo direito[25], trazida pela nova ordenação dominial definitiva).

É quanto basta para determinar o naufrágio da apelação e a confirmação do sentenciado na 1ª instância.

Sem prejuízo, como já se deu a entender, de os AA. terem razão quanto ao incorrecto julgamento de alguns pontos de facto.

Efectivamente, ao contrário do que consta da sentença recorrida, está evidentemente provado:

- que ao prédio rústico a que se refere a verba n.º 35 (referida no ponto 2) corresponde hoje o artigo matricial 0002 da freguesia (única) de Ansião;

- que os RR., em comunhão de esforços, procederam – conforme e nas circunstâncias de tempo referidas nos pontos 7 a 15 – à construção de um prédio urbano, composto por casa de habitação, barracão/garagem e piscina, em tal prédio rústico;

- que os RR. enriqueceram o seu património ao apoderarem-se da totalidade de tal prédio rústico; e

- que o fizeram à custa dos AA., uma vez que uma parte de tal prédio era dos AA.

E tais factos ficaram provados com a própria contestação/reconvenção dos RR., em que estes, no seu art. 76.º, reconhecem[26] que, afinal, ao contrário do que a R. mulher sempre pensou, “o actual imóvel rústico matriciado sob o 0002.º da freguesia de Ansião (…) foi adjudicado (…) à viúva, mãe de A. e da R., na proporção de metade indivisa (…), à A. S.... na proporção de 1/4 e à R. M.... na proporção de1/4”.

De tal maneira que a isto, na réplica, os AA. responderam (como fizemos contar do relatório inicial) dizendo que, “como os RR. bem sabem, o prédio rústico, inscrito na matriz sob o art. 0002.º da freguesia de Ansião, pertence à A. e R., na proporção de metade a cada uma”, acrescentando ainda, “conforme confissão expressa dos RR., que se aceita para não mais ser retirada, os mesmos construíram a sua casa de habitação no referido prédio rústico”.

Todavia, como já se explicou, a circunstância (provada) de, há 50 anos atrás, o actual art. 0002.º da freguesia de Ansião ter sido em parte (até podia ser todo) dos AA. não tem qualquer relevo, em termos jurídicos, para o desfecho da lide, uma vez que, repetindo o que já se disse, adquirido tal prédio (actual art. 0002.º da freguesia de Ansião) por usucapião pelos AA., ficaram “destruídos” todos e quaisquer direitos anteriores e incompatíveis (designadamente, o anterior direito de propriedade dos AA.).

Assim como não tem qualquer relevo jurídico o que na alegação recursiva se diz a propósito do outro prédio (artigo 0001 da nova matriz da freguesia de Ansião), uma vez que não é sequer dito/invocado que haja ficado provado que os RR. ocupem tal prédio; e para o que está em causa nos autos – em função do que os AA. pediram – era/seria isto que começava por interessar. Efectivamente, pode tal prédio ficar, como os RR. alegaram, a 5,4 km dos imóveis urbano e rústico dos RR., pode ninguém, nestes últimos 50 anos, ter abusado da inércia e passividade dos AA, enfim, pode tal prédio continuar a ser dos AA. e, ainda assim, o único relevo disto é exactamente o oposto do pretendido pelos AA. (uma vez que, se for assim, é “sinal” que os RR. não se “apropriaram” de tal artigo 0001 da freguesia de Ansião, “apropriação” essa que é o pressuposto de toda a acção).

Em conclusão final:

É verdade que parte do prédio 0002.º (da freguesia de Ansião) pertenceu aos AA. há 50 anos atrás; sendo também verdade que os RR. se “apropriaram” da parte de tal prédio que pertencia/eu aos AA.

Todavia, ficando provados os factos que conduziram à aquisição pelos RR., por usucapião, da totalidade de tal prédio, perderam os AA. todos os direitos que tinham sobre tal prédio, não lhes assistindo o direito a ser indemnizados ou compensados pelo prejuízo/empobrecimento (ou por pretensos danos não patrimoniais) que tiveram por causa de tal “apropriação” pelos RR..

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IV - Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar totalmente improcedente a apelação e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida.

Custas pelos AA/apelantes.


Coimbra, 13/11/2018

Barateiro Martins ( Relator )

Arlindo Oliveira

Emídio Santos


[1] Rel.: Barateiro Martins; Adjs.: Arlindo Oliveira e Emídio Santos.
[2] Art. 8.º da PI.
[3] Art. 9.º da PI.
[4] Art. 11.º da PI.
[5] Art. 39.º da PI
[6] Arts. 40.º, 42.º e 43.º da PI.
[7] Art. 48.º da PI.
[8] Art. 49.º da PI.
[9] Art. 50.º da PI.
[10] Art. 51.º da PI.
[11] Art. 52.º da PI.
[12] Art. 2.º da Réplica.
[13] Art. 3.º da Réplica.
[14] Não sem que antes as partes hajam lavrado transacção, a qual foi homologada; mas que depois os AA. não ratificaram, o que gerou a sua nulidade e o prosseguimento dos autos.

[15] E eram/seriam estes os únicos factos relevantes em termos de valores (e não, como parece ser a posição dos AA., o valor dos actuais prédios dos RR.).

[16] É mais do que isso, uma vez que, como diremos a final (mas sem relevar para um desfecho jurídico favorável aos AA/apelantes), os factos não estão totalmente bem julgados e ao prédio rústico a que se refere a verba n.º 35 (referida no ponto 2 dos factos) corresponde hoje o artigo matricial 0002 da freguesia (única) de Ansião, onde os RR. implantaram a sua casa de habitação.
[17] Como seria por certo o caso; tal não está apurado e o que estamos a dizer, como se referiu dois parágrafos atrás, é uma hipótese de raciocínio e uma nota para a compreensão global da questão.
[18] Tal valor seria actualizável, porém, o ponto de partida era “o valor antes da construção”; daí que os € 3.000,00 previstos na transacção que ficou sem efeito talvez não fossem um valor assim tão irreal.
[19] Falamos em donos do prédio para simplificar, mas como os próprios AA. “reconhecem” na réplica eles seriam donos de apenas metade de tal prédio.
[20] Já referimos que, afinal, era só metade.
[21] Dívida de valor e por isso actualizável.

[22] Veja-se, por ex., o caso da acessão industrial imobiliária atrás referido; aí, embora a lei atribua o domínio sobre o todo a um dos interessados em conflito, manda compensar o titular do interesse sacrificado, uma vez que entende que, havendo embora razões que justifiquem a atribuição do domínio sobre o todo a um deles, não há fundamento que justifique o enriquecimento deste à custa do outro.
[23] In Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª. ed., pág. 487.

[24] Ou seja, enquanto não for judicialmente convencido pelo reivindicante, é reconhecida ao possuidor a titularidade dum direito que goza de eficácia absoluta.
[25] E se o direito ratifica e aprova a “nova ordem”, se a “nova ordem” é por isso lícita (e se até manda retroagir os seus efeitos à data de início da posse – cfr. art. 1288.º e 1317.º/c, ambos do C. Civil), não faz sequer sentido pedir indemnizações por danos não patrimoniais pretensamente causados por algo que, a final, é e representa uma “apropriação” lícita (desde o seu início).
[26] Reconhecem, claro está, sem prejuízo de invocarem ter adquirido a propriedade da totalidade de tal prédio por usucapião.