Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1131/10.4TBPBL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIREITO DE REGRESSO
SEGURADORA
NEXO DE CAUSALIDADE
CASO JULGADO
Data do Acordão: 05/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 19º, Nº 1, AL. C) DO D. L. Nº 522/85, DE 31/12
Sumário: I – O direito de regresso previsto no art. 19º, nº 1, al. c) do DL 522/85 exige para a sua verificação e procedência a alegação e prova, por parte da seguradora que o invoque, do nexo de causalidade entre o facto tipo descrito nesse preceito e o acidente.

II - Quando em acção destinada a exigir a responsabilidade pelos danos decorrentes de acidente de viação, por decisão transitada em julgado, os réus nessa acção tenham sido absolvidos do pedido, tal decisão impede que esses réus possam ser chamados em incidente de intervenção acessória provocada destinada a garantir o direito de regresso nos termos do art. 19º, nº 1, al. c) do DL 522/85, de 31/12, em acção proposta pelo mesmo autor contra a seguradora do seu veículo, com base num contrato de seguro contra todos os riscos, por força da autoridade do caso julgado daquela primeira decisão.

III - A verificação da excepção dilatória que constitui a apreciação da autoridade do caso julgado não obsta que não sejam as mesmas as partes, o pedido ou a causa de pedir nas duas acções.

Decisão Texto Integral:                         Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Relatório

No 3º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal, D… moveu contra Companhia de Seguros A…, S.A. acção declarativa com forma de processo comum ordinário pedindo a condenação desta no pagamento de determinada quantia alegando que foi interveniente em acidente de viação de que resultaram danos para o seu veículo que, por sua vez, estava segurado contra todos os riscos pela Ré, razão pela qual peticiona desta a indemnização como ressarcimento dos prejuízos que sofreu.

Na contestação a Ré, defendendo-se por impugnação alegou que o contrato celebrado com o autor e tendo por objecto o veículo de matrícula …- UN não era válido; o acidente foi da responsabilidade de … que não era portador de licença de condução mas que conduzia o veículo de matrícula …-83 propriedade de ...

Requereu ainda a intervenção acessória provocada do Fundo de Garantia Automóvel, de M… e de F… fundamento essa intervenção na afirmação de, no caso de vir a ser condenada ter um direito de regresso contra estes fundado nos arts. 21º, nº 2, al. b) do DL 522/85, de 31/12 com a redacção dada pelo DL 130/94, de 19/5 e no art. 29º, nº 6 do referido DL 522/85. Para além disso, o chamado a intervir F… detinha a efectiva direcção do veículo IX por o mesmo lhe pertencer, sabia e autorizava a respectiva condução pelo seu filho M… que o fazia sem ser portador de carta de condução e seguro e inspecção válidos.

O autor respondeu à contestação e deduziu oposição ao pedido de intervenção acessória provocada alegando que no âmbito do processo 26/07.6TBPBL, em acção intentada pelo autor contra os ora chamados, por decisão transitada em julgado, foram os chamados, ali réus, absolvidos do pedido.

Acrescenta que no referido processo foi julgado o acidente de viação que está a ser julgado nos presentes autos sendo que resultou não provado a responsabilidade dos ora chamados no acidente, pelo que se estaria perante uma situação de caso julgado.

Por decisão proferida em 15/10/2010 o Tribunal recorrido proferiu decisão indeferindo o pedido de intervenção acessória provocada por entender que existia uma situação de caso julgado.

Inconformada com esta decisão que indeferiu o pedido de intervenção, dela recorreu a Ré concluindo que:

O recorrido não contra alegou.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

… …

 Fundamentação

Os factos que servem a decisão a proferir são os constantes do relatório, razão pela qual não há necessidade de os reproduzir, sem embargo de os mesmos virem a ser reproduzidos se ao longo da exposição decisória se houver necessidade de tal reprodução. 

Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº 3 e 690º, nºs 1 e 3, do CPCivil), nem criar decisões sobre matéria nova, o que importa decidir na presente Apelação é saber se existe fundamento legal para a dedução do pedido de intervenção acessória provocada e se, em consequência, esse incidente deve ser admitido.

Estabelece o art. 330º, nº 1 do CPC que “o réu que tenha direito de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo aintervir como auxiliar na defesa sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal“, acrecentando o nº 2  que a intervenção do chamado se circunscreve à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento.

Pretende-se, pois, com este nº 2 que a “relação jurídica de regresso dependa da que é discutida na acção na medida em que o estabelecimento desta implica a vrificação dum pressuposto do direito de regresso ou a existência do direito do autor contra o réu. O terceiro é chamado para que, quanto a essa verificação, se possa constituir perante ele caso julgado”[1]

Estas primeiras considerações permitem, em nosso entender, situar o pedido de intervenção acessória provocada no contexto do pedido e da causa e pedir que o autor accione contra o réu e na relação dessa causa de pedir e pedido com o chamado, permitindo também, e desde já, que se refira que só faz sentido que o terceiro auxilie o réu na defesa respeitante às questões implicadas pela verificação do direito do autor, ou seja esse chamamento circunscreve-se ao âmbito das questões que respeitam ao pedido e causa de pedir com repercussão na existência e no conteúdo do direito de regresso[2].

Refere a ora recorrente que a causa de pedir no incidente de intervenção acessória provocada é a falta de habilitação legal para a prática da condução por parte do chamado M… e que, sendo irrelevante o nexo de causalidade entre essa falta de habilitação e os danos sofridos pelo autor, o incidente de intervenção deveria ter sido recebido e não rejeitado não se podendo convocar a existência de caso julgado como o fez a decisão recorrida, por referência a uma acção em que se discutiu a responsabilidade do acidente que causou os danos aqui peticionados ao autor e em que esse mesmo M… e seu pai foram absolvidos.

Analisando toda esta argumentação, observamos que o art. 19º, nº 1 do DL 522/85 estabelecia que “Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso:

c) Contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado”.

A respeito deste preceito existiu e persiste na jurisprudência, inclusive na do STJ, não obstante o acórdão uniformizador de Jurisprudência nº 6, de 28 de Maio de 2002[3], diverso entendimento sobre o que se exige para o exercício desse direito de regresso, sustentando uns que basta para a procedência do direito a mera verificação objectiva da inexistência de habilitação para conduzir e defendendo outros que para lá da verificação objectiva dessa falta de habilitação (ou a apresentação de uma TAS superior ao legalmente permitido) é necessário também a prova pela seguradora de um nexo de causalidade entre esses elementos objectivos e os danos ressarcidos.

   Não esquecendo os argumentos dos que argumentam um princípio de objectivação exclusiva e suficiente para o exercício desse direito de regresso, considerando desnecessária a alegação e a prova do nexo de causalidade entre esse elemento objectivo descrito no art. 19º, nº 1 e os danos sofridos/ressarcidos pela seguradora, temos por mais consistente afirmar-se[4] que no âmbito do DL 522/85, de 31 de Dezembro, aqui em vigor, para que o alegado direito de regresso da seguradora que satisfez a indemnização seja reconhecido, tem a mesma, para além de alegar e provar a culpa do condutor na produção do evento danoso (o acidente), ainda de alegar e provar factos de onde resulte o nexo de causalidade entre os factos tipo do art. 19º, nº 1, al. c) e o evento deles resultante.

Foi esta a doutrina dominante (embora não uniforme) que acabou por ter sido adoptada no acórdão uniformizador de jurisprudência nº 6/2002, de 28 de Maio (DR I S, de 18/7/2002) que saída do plenário do STJ deve naturalmente, deve ser observada, na ausência de relevantes argumentos novos, que naquele aresto não tenham sido debatidos e valorados.

Não sendo, na verdade, tal nexo de causalidade facto notório, que dispensa alegação e prova e não integrando, pois, tal situação – a prevista na al. c) do art. 19º do DL 522/85, de 31 de Dezembro – uma presunção de culpa do condutor do veículo causador do acidente, tem, assim, a seguradora de alegar e provar, para que o seu invocado direito proceda, o nexo de causalidade entre a actuação do condutor, que agiu sob o efeito do álcool, e a ocorrência do acidente[5].

Na verdade, cremos que o direito de regresso em causa tem que ser demonstrado nos termos gerais do direito, uma vez que nenhuma disposição do citado DL 522/85 veio afastar o regime geral da responsabilidade, quer criando presunções, quer alterando o ónus da prova ou outro circunstancialismo que se desvie do regime geral – citado acórdão uniformizador nº 6/2002.

Diga-se, no entanto, que mesmo para os defensores da tese segundo a qual ao direito de regresso basta a alegação e a prova do facto tipo objectivo referido no art. 19º, nº 1, al. c) alguns, apercebendo-se do sentido de justiça necessário à defesa desse entendimento admitem como equilibrado admitir ao condutor que não tenha habilitação a alegação e a prova da inexistência de qualquer nexo de causalidade entre a inabilitação legal e o resultado do acidente como forma de se opor ao direito de regresso[6].

Com estes reconhecem “[é] possível conceber casos em que o acidente ficou a dever-se, no todo ou em parte, a conduta culposa do lesado ou de terceiro, apesar de o condutor interveniente não estar legalmente habilitado, conduzir sob influência de álcool ou outros tóxicos ou ter abandonado o sinistrado.

E então não estará este lesante obrigado a indemnizar porque a própria responsabilidade pelo risco, já de si excepcional (art. 483°, nº 2), é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (art. 505° CC). E não estando o lesante obrigado a indemnizar também não o está a Seguradora que, como é da natureza do contrato de seguro, só responde na medida da responsabilidade do segurado. Se a Seguradora, apesar disso, pagou indemnização ao lesado, fê-lo não em cumprimento da obrigação de indemnizar mas por qualquer outra razão, não tendo, pois, direito de regresso que supõe responsabilidade do solvens (497°, nº 2) ou satisfação do direito do credor para além da parte que lhe - ao devedor que paga - competia (524° CC)”[7].    

A construção desta obrigação de alegar e provar que os danos do acidente não provieram da circunstância de não estar habilitado a conduzir, a cargo daquele contra quem é exercido o direito de regresso é decalcada da alínea f) do art. 19º, nº 1 citado e no qual se estabelece a obrigação de caber ao demandado provar que o acidente não foi provocado ou os danos não sofreram agravamento pelo mau funcionamento do veículo, presumindo aqui a lei que o veículo sujeito a inspecção obrigatória provocou o acidente por deficiência técnica.

Porém, enquanto estes partem da leitura desta alínea para aplicarem semelhante entendimento aos casos da alínea c) com o argumento de que “um legislador que é suposto consagrar as soluções mais acertadas e exprimir em termos adequados o seu pensamento teria deixado na letra da al. c), se fosse essa a sua intenção, algum elemento no sentido de apenas punir esses condutores quando a inabilitação legal (não interessa considerar aqui as demais hipóteses ali previstas) tivesse sido causa dos danos. E não se enxerga aí rasto de tal mens legislatoris”, nós teremos de opor que nos parece muito mais sustentável que se o legislador quisesse efectivamente para a alínea c) uma construção semelhante à da al. f), presumindo do facto tipo a responsabilidade pelo reembolso, decerto teria deixado plasmado na al.c) essa presunção como o fez para esta última.

Ainda, pelas mesmas razões de ordem sistemática, nos parece menos defensável que mesmo dentro da alínea c) do art. 19º citado se pretenda distinguir os casos de condução sob influência do álcool dos restantes, maximé dos de condução inabilitada, com a justificação de a doutrina do acórdão uniformizador só teria sentido para estes últimos “[p]or tal acórdão assentar, não numa interpretação restritiva da referida alínea c), mas sim, no que respeita ao fundamento do regresso nele examinado, na interpretação da expressão "agido sob a influência do álcool"”[8].

Veja-se que na alínea c) referida (e também nas alienas a e b) esses factos tipo são, todos eles, consubstanciadores da prática de ilícitos penais (ou contraordenacionais no caso da condução sob o efeito do álcool com TAS não superior 1,2 g/l) para os quais existe uma sanção não civil e, na economia do seguro obrigatório, a circunstância de o condutor do veículo interveniente no acidente não estar habilitado com a respectiva licença é de nula importância se não se provar que o mesmo foi o causador do acidente de onde resultaram os danos da mesma forma que o ser autor ou cúmplice de um crime de roubo, furto ou furto de uso de veículo (al.b) em nada importa se acaso esse veículo não for o causador do acidente como decorre da própria letra deste preceito. A censura social sobre quem conduza sem habilitação inscrita na incriminação penal não deve pois ser transferida, sem mais, para o quadro civil com a criação de uma presunção de responsabilidade pelos danos sofridos pelo lesado, quando não, como alguns sustentam, com uma obrigação inderrogável pela reembolso, sem discussão alguma sobre a responsabilidade efectiva por esses mesmos danos. É que não vemos diferença alguma no que se refere à discussão da responsabilidade sobre a indemnização, quando o apuramento da conduta causadora do acidente diga respeito a um condutor habilitado ou não a conduzir, sem embargo de essa circunstância poder constituir, como constitui, um facto tipo para o exercício do direito de regresso mas que não exime a seguradora de ter de provar o nexo de causalidade ente esse facto e os danos que pagou e cujo reembolso pretenda.                 

Com este entendimento, na consideração de que ao incidente de intervenção acessória provocada não é indiferente, mas antes importa, o nexo de causalidade entre os danos que o autor pretende ver ressarcidos pela Ré e a responsabilidade pela produção do acidente de onde se diz terem imergido os mesmos, abordaremos de imediato a questão central do recurso e que é a de saber se o tribunal recorrido decidiu correctamente quando indeferiu o incidente.

O fundamento deste indeferimento, recordamo-lo agora, foi o de que em acção proposta pelo ora Autor D… contra os chamados F… e M… e em que se discutiu a responsabilidade destes pela produção do acidente de que resultaram os danos cujo ressarcimento agora se pede contra a Ré seguradora, foi decida a absolvição do pedido daqueles chamados.

Conforme podemos certificar do doc. junto aos autos a fls. 58 a 65 na acção que com nº 226/07.6TBPBL que correu termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal proposta por D…, foi a mesma julgada totalmente improcedente e absolvidos do pedido os aí Réus Fundo de Garantia Automóvel, M… e F…

Nessa acção o autor pedia a condenação dos réus no pagamento da quantia de 23.939,00 € alegando que em 13 de Junho de 2004 ocorreu um acidente de viação causado por M…, condutor do veículo de matrícula IX-…, propriedade de F...

Ora, com alguma parcimónia de fundamentação, o tribunal recorrido indeferiu o incidente de intervenção acessória provocada afirmando apenas que “tendo em conta os fundamentos alegados pelo autor, bem como o teor do documento junto aos autos a fls. 71 e ss. (cópia da sentença proferida no âmbito da referida acção ordinária) verifica-se que efectivamente naquele processo foi julgado o acidente em causa nos autos, em acção intentada pelo ora autor contra o Fundo de Garantia Automóvel, M… e F…, tendo estes sido absolvidos do pedido.

Existe pois uma situação de caso julgado.

Por todo o exposto, ao abrigo das disposições legais acima referidas, rejeito o requerimento de intervenção acessória provocada”.

A recorrente protesta no entanto a inexistência de caso julgado afirmando que nesta acção não são as mesmas as partes, já que na anterior acção ela não esteve presente, não são os mesmos os pedidos porquanto no chamamento o pedido é o do reconhecimento do direito de regresso e não são as mesmas as causas de pedir pois na acção anterior essa era o acidente de viação e no incidente a causa é apenas a inexistência de carta de condução por parte de M…, condutor do veículo de matrícula IX.

Analisando estes argumentos e tendo presente que a excepção de caso julgado exige nas acções em confronto a identidade de sujeitos, de pedidos e de causas de pedir (art. 498º, nº 1 do CPC) teremos de reconhecer que a ora Ré não foi parte na acção em que se discutiu o acidente de viação e, assim, sem sequer se poder dizer que existe alteração da posição das partes, teremos de reconhecer não existe manifestamente identidade de sujeitos.

Já quanto à identidade de pedidos e causas de pedir tendo presente o que afirmámos anteriormente a respeito dos requisitos do incidente de intervenção acessória provocada e dos pressupostos de facto e de direito necessários ao exercício do direito de regresso facultado pelo art. 19º, nº 1, al. c) do DL 522/85, podemos concluir que os pedidos e as causas de pedir que importa confrontar são as deduzidas pelo autor em ambas as acções e não estas com aquilo a que a recorrente apelida de causa de pedir e pedido do incidente.              

Como antes afirmámos, a relação jurídica de regresso, dependendo da que é discutida na acção na medida em que o estabelecimento desta implica a verificação dum pressuposto do direito de regresso ou a existência do direito do autor contra o réu, impôe que só faça sentido que o chamado auxilie o réu na defesa respeitante às questões que respeitam ao pedido e causa de pedir com repercussão na existência e no conteúdo do direito de regresso. E se assim é não se pode afirmar a autonomia que a recorrente reclama entre a causa de pedir e o pedido da acção e a causa de pedir e o pedido do incidente, razão pela qual entendemos que quanto ao pedido existe identidade.

No que se refere à causa de pedir, sublinhamos que o autor nesta acção demanda a seguradora com a qual celebrou um contrato de seguro contra todos os riscos, não pretendendo já a discussão do acidente para apuramento das responsabilidades, razão pela qual não se pode dizer que existe identidade de causas de pedir entre as duas acções, sendo apenas na parte que diz respeito ao incidente que a ré/recorrente problematiza a identidade causas de pedir (entre a da acção e a do incidente) sendo certo que, mesmo nessa perspectiva, atendendo ao entendimento professado nesta decisão de recurso quanto aos requisitos de alegação e prova necessários à procedência do incidente, sempre teríamos de concluir pela identidade de causas de pedir entre a acção 226/07 e a “causa de pedir” do incidente de intervenção.

Em resumo, tendo concluído pela não identidade dos sujeitos tal traz á evidência a inexistência de caso julgado. Contudo, estamos situados perante uma situação particular em que os chamados já foram demandados com base nos mesmos factos e no mesmo pedido, tendo sido absolvidos por se ter entendido que não eram responsáveis pelos danos resultantes do acidente que agora, nesta acção, em que foi interposto o presente recurso, o autor vem peticionar contra a ré com base na existência de um contrato de seguro contra todos os riscos. Ou seja, para se concluir pela existência de um direito de regresso da ré/recorrente seria necessário que nesta acção se viesse a discutir, de novo, a responsabilidade dos chamados que já foi objecto de decisão e análise numa outra acção, o que abriria a possibilidade, ainda que na ausência de uma excepção de caso julgado, a uma contradição de decisões relativamente aos chamados.

Para resolver situações como as descritas é que a doutrina e a jurisprudência distinguem a excepção de caso julgado da chamada “autoridade do caso julgado das decisões”, conforme, aliás, se decidiu no Ac do STJ de 12/1/90, BMJ 393, pág.563.

Definindo o âmbito de aplicação de cada um dos conceitos, refere Teixeira de Sousa “[A] excepção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contraria na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção do caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (...), mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica (...).Quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva a repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente (“ O objecto da sentença e o caso julgado material”, BMJ 325, pág.171 e segs.).

A autoridade do caso julgado tem o efeito positivo de impor a primeira decisão e como elucida Lebre de Freitas “ “Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”[9].

A jurisprudência tem acolhido esta distinção[10], sendo que para a autoridade do caso julgado não se exige a coexistência da tríplice identidade, prevista no art.498º do CPC[11].

Como se decidiu nesta Relação e nesta mesma secção[12], “[C]onsiderando que a força e autoridade do caso julgado visam evitar que a questão decidida pelo órgão jurisdicional possa ser validamente definida, mais tarde, em termos diferentes por outro ou pelo mesmo tribunal e que possui também um valor enunciativo, que exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada e afasta todo o efeito incompatível, isto é, todo aquele que seja excluído pelo que foi definido na decisão transitada(…)”, uma vez que o fundamento do direito de regresso que a recorrente pretende ver exercido através do incidente de intervenção acessória  está dependente da discussão sobre a responsabilidade dos chamados que foi objecto de decisão noutra acção, com absolvição do pedido, já se vê que não pode subsistir o incidente baseado no direito de regresso inscrito no art. 19º, nº 1, al. c) do DL 522/85 quando entretanto já foi julgado, com trânsito em julgado que a esses chamados não se pode imputar a responsabilidade pela produção do acidente de onde emergem os danos que agora, nesta acção  o autor pretende ver ressarcidos pela seguradora do seu veículo com base na existência de um contrato de seguro contra todos os riscos.

Ora, como a autoridade do caso julgado consubstancia uma excepção dilatória de conhecimento oficioso (arts.494º, i) e 495º do CPC), tal implica o indeferimento do incidente não por existência de caso julgado mas sim por essa autoridade do caso julgado, improcedendo pois a Apelação e mantendo-se com os fundamentos expostos a rejeição do incidente.

… …

Síntese conclusiva

- O direito de regresso previsto no art. 19º, nº 1, al. c) do DL 522/85 exige para a sua verificação e procedência a alegação e prova, por parte da seguradora que o invoque, do nexo de causalidade entre o facto tipo descrito nesse preceito e o acidente. 

- Quando em acção destinada a exigir a responsabilidade pelos danos decorrentes de acidente de viação, por decisão transitada em julgado, os réus nessa acção tenham sido absolvidos do pedido, tal decisão impede que esses réus possam ser chamados em incidente de intervenção acessória provocada destinada a garantir o direito de regresso nos termos do art. 19º, nº 1, al. c) do DL 522/85, em acção proposta pelo mesmo autor contra a seguradora do seu veículo, com base num contrato de seguro contra todos os riscos, por força da autoridade do caso julgado daquela primeira decisão.

- à verificação da excepção dilatória que constitui a apreciação da autoridade do caso julgado não obsta que não sejam as mesmas as partes, o pedido ou a causa de pedir nas dias acções.

…  ...

Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.


Manuel Capelo (Relator)

Jacinto Meca

Falcão de Magalhães


[1] Vd. Lebre de Freitas CPC Anotado, vol. 1, 2ª edição, p. 634
[2] Vd. Lebre de Freitas op. e loc. Cit.

[3] Estabelece tal acórdão uniformizador que “A alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do anexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente”.

[4] ver por todos o ac. do STJ de 6-5-2010 no proc. 2148/05.6TBLLE.E1.S1, in dgsi.pt

[5] Vd. Maria Clara Lopes, Responsabilidade Civil Extracontratual, p. 107
[6] Ver por todos o ac. do STJ de 20.5.03, proferido no Pº 03A1331, publicado na CJ Ano XI, tomo II, pág. 63,
[7] Vd. ac. de 24-10-2006 no proc. 06A2774in dgsi.pt
[8] Vd. ac. STJ de 3-7-2003 na revista O3B1419
[9]  Lebre de Freitas, op. cit. Volume 2º, p.354
[10] Vd. por ex., Ac do STJ de 26/1/94, BMJ 433, pág.515, Ac RC de 21/1/97, C.J. ano XXII, tomo I, pág.24.

[11] Vd. cf., por ex., Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág.320, Ac RC de 21/1/97, C.J. ano XXII, tomo I, pág.24, Ac RC de 27/9/05, em www dgsi.pt.
[12] ac. de 15-5-2007, no proc. 80/1995.C1, in dgsi.pt