Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3833/17.5T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
DECLARAÇÃO DE RISCO
DECLARAÇÕES INEXACTAS
ANULABILIDADE
DOLO
Data do Acordão: 09/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 24, 25 DO DL Nº 72/2008 DE 16/4
Sumário: 1.- O segurado/tomador do seguro está obrigado, na celebração do contrato, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para apreciação do risco pelo segurador, ainda que as mesmas não sejam solicitadas no questionário fornecido por este (art. 24º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16/4 (LCS).

2.- A anulabilidade do contrato de seguro prevista no art. 25º, nº 1, da LCS basta-se com o incumprimento doloso daquele dever, não sendo imprescindível que a omissão ou declaração inexacta seja susceptível de influenciar o segurador na decisão de contratar.

Decisão Texto Integral:





Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

A (…) intentou ação contra “A (…) - Companhia de Seguros, S.A.”, pedindo a condenação desta a pagar-lhe € 129.838,20, acrescida de juros vincendos.

Para tanto, o Autor alegou, em síntese:

Celebrou com a Ré um contrato de seguro do ramo multirriscos habitação, relativo a um apartamento;

No dia 8 de outubro de 2014, deparou-se com o apartamento vandalizado, com danos no valor de € 107.762,76;

Viu-se privado de habitar o apartamento, sendo que o mesmo, no mercado, teria uma renda mensal de cerca de € 650,00.

A Ré contestou, em síntese:

O contrato é anulável, porquanto o Autor omitiu que adquirira o imóvel no âmbito de um processo de execução fiscal e que não tinha a sua posse efetiva; caso a Ré tivesse sido informada desses factos, não teria celebrado o contrato.

A ré impugnou ainda a ocorrência do sinistro, os danos invocados e o seu valor.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença a julgar a ação parcialmente procedente, com o seguinte dispositivo:

a) Condeno a ré, “A (…)”, a ressarcir o autor dos prejuízos causados no imóvel segurado, em montante a liquidar em incidente próprio, sobre o qual incidem juros de mora, à taxa prevista para os juros civis, calculados desde a data em que a quantia em causa seja liquidada e até integral pagamento;

b) Absolvo a ré do demais peticionado.


*

Inconformada, a Ré recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

(…)

40. Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 24.º n.º 1 e 25.º n.º 1 do RJCS.


*

            Contra-alegou o Autor, defendendo a correção do decidido.

*

            Questões a decidir:

A reapreciação dos indicados factos não provados.

A alegada anulabilidade do contrato de seguro.


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            O Tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:

1.º Em 10 de setembro de 2012, o autor celebrou com a ré (à data com a designação de “A (…) S.A.”) um seguro multirriscos habitação, titulado pela apólice n.º (...) , tendo como objeto seguro a fração autónoma, sita (…), em (...) – cfr. proposta de fls. 26-verso a 30-verso, apólice de fls. 31-verso a 32-verso e respetivas condições contratuais gerais e especiais de fls. 33-verso a 85, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

2.º Em 10 de setembro de 2014, foi realizado aumento do capital coberto em tal contrato – cfr. ata adicional de fls. 5 e 6, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

3.º O autor é sócio-gerente da “M (…), Lda.”, que interveio como mediadora no contrato referido em 1.º - cfr. certidão permanente de fls. 86 a 87 e apólice de seguro de fls. 31-verso a 32-verso, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

4.º O autor adquiriu o imóvel em questão no âmbito de um processo de execução fiscal que correu termos no Serviço de Finanças da (...) com o n.º (...) – cfr. documento de fls. 171, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

5.º O imóvel foi adjudicado ao autor em 31 de agosto de 2012 – cfr. certidão permanente de fls. 88, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

6.º O autor tomou posse efetiva do imóvel no dia 29 de setembro de 2014, data em que procedeu à troca do canhão da fechadura da respetiva porta de entrada.

7.º Em data não concretamente apurada, mas entre 29 de setembro de 2014 e 8 de outubro de 2014, através de arrombamento da porta de entrada, o apartamento em questão foi vandalizado, dele tendo sido retiradas/danificadas louças sanitárias, móveis fixos de cozinha e de casa de banho, torneiras e acessórios, roupeiros, pavimentos de madeira, rodapés de madeira e granito, portas e guarnições de carvalho, azulejos, estores, pedras de granito polido, tubos de canalização PEX, instalação elétrica, de iluminação e de água, e inscritos diversos desenhos/símbolos nas paredes.

8.º No dia 8 de outubro de 2014, o autor participou o sinistro à P.S.P. de (...) , o que deu origem ao processo de inquérito com o n.º 246/15.7PBLRA – cfr. auto de notícia de fls. 8, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

9.º Esse inquérito foi arquivado por não se ter apurado a identidade dos autores da factualidade denunciada – cfr. despacho de fls. 11, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

10.º Em 21 de outubro de 2014, o autor participou o sinistro à ré.

11.º O autor não informou a ré dos factos aludidos nos pontos 4.º a 6.º.

12.º Do sinistro resultaram danos (descritos em 7.º), que implicaram a realização dos trabalhos elencados a fls. 13-verso e 14 e 184 e 184-verso.


*

A reapreciação da matéria de facto.

Estão em causa os seguintes factos não provados:

b) O autor devia ter comunicado à ré que adquirira o imóvel no âmbito de um processo de execução fiscal e que não tinha a posse efetiva do mesmo, para avaliação e aferição de aceitação do risco.

c) O autor sabia que omitia factos essenciais, dada a natureza das funções que exerce como mediador de seguros.

d) A ré não teria aceitado celebrar o contrato de seguro, caso lhe tivessem sido comunicados os factos referidos na alínea b).

A Recorrente invoca as declarações de (…)

A prova a reconsiderar está sujeita à livre apreciação do julgador.

Na reapreciação dos factos, o Tribunal da Relação altera a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida, reapreciada a pedido dos interessados, impuser decisão diversa (art.662, nº1, do Código de Processo Civil).

Este tribunal forma a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos impugnados. (Abrantes Geraldes, Recursos, 3ªedição, 2010, Almedina, pág.320.)

Vejamos:

As alíneas b) e c) expressam matéria jurídica e conclusiva, pelo que não são factos a reapreciar.

Quanto à alínea d):

Comecemos por dizer que, como veremos infra na análise jurídica, sendo as circunstâncias envolvidas significativas, é de presumir a influência delas sobre a vontade contratual da seguradora, que será diversa. Assim nos dizem as regras da experiência.

Essa influência retira-se também da razoabilidade das declarações de F (...) e D (...) , sem que sejam infirmadas pelas de E (...) .

Por seu lado, o questionário para o seguro é uma referência, mas não o limite das circunstâncias atendíveis. Expressão disso é também a sua secção delimitada que permite mencionar outras circunstâncias significativas.

O quesito relativo às cedências da coisa expressa a preocupação e a importância da ocupação da casa pelo proprietário ou por terceiro.

Os documentos de fls. 204 e seguintes são circunscritos, limitados aos respetivos casos. Entendemos que eles não permitem uma generalização sobre a postura da Ré.

Este caso apresenta particularidades, que concretizaremos infra, que exigiriam uma especial atenção das partes.

A invocada autonomia dos mediadores, para avaliar e decidir certos riscos, habituais e “normais”, não afasta o seu dever de informar as partes sobre a existência de riscos não habituais, especiais ou “fora do normal”.

Por tudo isto, aceitando o sentido das declarações de (…) temos por plausível que a Ré, sabendo dos factos assentes em 4 a 6, do contencioso judicial admitido sobre a casa e da ocupação desta por S (…), até agosto de 2014 (conforme a motivação do Tribunal recorrido, nesta parte não questionada), não contrataria nos mesmos termos, faria outra ponderação do risco e, pelo menos, alteraria a cláusula relativa ao prémio do seguro.

Pelo exposto, julga-se a impugnação parcialmente procedente e, eliminando as alíneas b) a d) dos “factos não provados”, declara-se ainda provado que a Ré, sabendo dos factos assentes em 4 a 6, do contencioso judicial admitido sobre a casa e da ocupação desta por S (…) até agosto de 2014, não contrataria nos mesmos termos, faria outra ponderação do risco e, pelo menos, alteraria a cláusula relativa ao prémio do seguro.


*

A alegada anulabilidade do contrato de seguro.

O risco constitui um elemento essencial deste contrato.

Dispõe o artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 72/2008 (LCS):

“1 - O tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador.

“2 - O disposto no número anterior é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito.

Por sua vez, o artigo 25.º da LCS diz-nos:

“1 - Em caso de incumprimento doloso do dever referido no n.º 1 do artigo anterior, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro.

“2 - Não tendo ocorrido sinistro, a declaração referida no número anterior deve ser enviada no prazo de três meses a contar do conhecimento daquele incumprimento.

“3 - O segurador não está obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso referido no n.º 1 ou no decurso do prazo previsto no número anterior, seguindo-se o regime geral da anulabilidade.

“4 - O segurador tem direito ao prémio devido até ao final do prazo referido no n.º 2, salvo se tiver concorrido dolo ou negligência grosseira do segurador ou do seu representante.

“5 - Em caso de dolo do tomador do seguro ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem, o prémio é devido até ao termo do contrato.”

Também conforme o preâmbulo da lei em análise, mantém-se a regra que dá preponderância ao dever de declaração do tomador sobre o ónus de questionação do segurador. (Ver acórdão desta Relação, de 11.2.2014, proc. 1265/09, em www.dgsi.pt.)

Originária ou supervenientemente, recai sobre o segurado/tomador a obrigação de não prestar declarações inexactas, assim como não omitir qualquer facto ou circunstância que possam influir na existência ou condições do contrato.

É com base nas declarações prestadas pelo tomador/segurado que a seguradora vai decidir a sua vontade de contratar ou não e em que condições.

O questionário não é o limite das circunstâncias pertinentes, mas é uma referência, pela qual a seguradora dá conhecimento ao proponente de um conjunto de circunstâncias concretas em que se baseia para assumir o risco.

A necessidade do questionário resulta da circunstância do segurador não poder proceder a minuciosas indagações, para concretizar um seguro.

O contrato de seguro assenta, especialmente, na boa fé das partes. (STJ, acórdão de 2.12.2013, proc. 2199/10, em www.dgsi.pt.)

O incumprimento doloso daquele dever declarativo do segurado conduz à anulabilidade do contrato.

Esta anulabilidade basta-se com o incumprimento doloso daquele dever, relativo a circunstâncias significativas.

Nos termos do art. 253º do Código Civil, “entende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante”.

Feito este enquadramento legal, no caso importa considerar:

Apesar da adjudicação (formal) de 31.8.2012, o Autor só tomou posse efetiva da casa em 29.9.2014, sendo certo que, entretanto, habitou aquela outra pessoa e que à data do sinistro o Autor ainda não habitava a mesma.

            O Autor adquiriu a casa em processo de execução fiscal, tendo ocorrido contencioso intentado pelo anterior proprietário, durante um tempo posterior a agosto de 2012.

            O Autor é mediador de seguros.

            Entendemos que aquelas circunstâncias são significativas para a apreciação do risco e que o Autor conhecia e devia, razoavelmente, entendê-las como tal.

            Muitas vezes, a habitação por outrem, que não pelo seu proprietário, revela um menor cuidado nela. (E daí o quesito da seguradora sobre as cedências da coisa.)

            A falta de posse efetiva, naquele relativo longo período (2 anos), retira ao Autor o domínio sobre a coisa, tornando irrelevantes, naquele tempo, os seus dados pessoais comunicados à seguradora; seriam então pertinentes os dados relativos ao detentor.

            O contencioso e a venda forçada da casa potenciam, como se deteta algumas vezes, “atos de retaliação” sobre a coisa.

            O Autor estava obrigado, mesmo que supervenientemente (arts. 91º e seguintes da LCS), a comunicar que não tinha o domínio sobre a casa, estava lá habitar outra pessoa que seria (ou não) obrigada a sair da mesma, em tempo indefinido.

            Nesse contexto, o risco (de problemas) era muito superior ao normal. Quem está para sair, a mal, não diligenciará pela casa da mesma forma que aquele que é o seu habitante e dono estabilizado.

            Ao omitir aquela realidade, que conhece, não pode desconhecer, o Autor age dolosamente, mantendo a seguradora em erro relativo à mesma.

E, como dissemos já, conforme a lei citada, não é imprescindível à anulabilidade a omissão ou a declaração inexacta susceptíveis de influenciar a seguradora na decisão de contratar.

A previsão do citado artigo 25.º, nº 1, da LCS, não exige a verificação de tal nexo.

Confrontemos aquele preceito com o nº 4 do seu artigo 26.º, para o caso de incumprimento por negligência: “se, antes da cessação ou da alteração do contrato, ocorrer um sinistro cuja verificação ou consequências tenham sido influenciadas por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexactidões negligentes” (…).

Se fosse intenção do legislador exigir essa influência tê-lo-ia feito de forma expressa, como o fez em relação às omissões negligentes. (Neste sentido, acórdão da Relação do Porto, de 14.9.2015, proc. 172/13, em www.dgsi.pt.)

Sendo as circunstâncias significativas, é de presumir a influência delas sobre a vontade contratual da seguradora, que será diversa.

De qualquer maneira, fica provado que a Ré, sabendo dos factos assentes em 4 a 6, do contencioso judicial admitido sobre a casa e da ocupação desta por S (…) até agosto de 2014, não contrataria nos mesmos termos, faria outra ponderação do risco e, pelo menos, alteraria a cláusula relativa ao prémio do seguro.

Por fim, conforme o referido art.25º, 3, da LCS (o segurador não está obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso), no caso a Ré não responde pelo sinistro demonstrado.

Uma nota final sobre a pretensa autonomia do mediador para contratar este seguro e sobre a pretensa postura da Ré, que desconsiderava a posse efetiva:

Essa autonomia, para contratar seguros em certas condições, e a desconsideração referida não foram completamente alegadas e completamente esclarecidas. Nessas condições, elas não podendo contender com o dever de informar a seguradora da existência de outros riscos, especiais ou “fora do normal”.

A situação analisada revela-se especial.


*

Decisão.

Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, revoga-se a decisão recorrida e absolve-se a Ré de todos os pedidos.

Custas pelo Autor, em ambas as instâncias, vencido totalmente (art.527º do CPC).

Coimbra, 2019-09-17


Fernando Monteiro ( Relator )

António Carvalho Martins

Carlos Moreira