Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
170/18.1GCPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME HABITUAL
CONTAGEM DO PRAZO DE PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
Data do Acordão: 10/09/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE POMBAL – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 152.º, N.º 1; 118.º, N.º 1, AL. B) E 119.º, N.º 2, AL. B), TODOS DO CP
Sumário: I - Até à entrada em vigor das alterações introduzidas ao C. Penal pelo Dec. Lei n.º 48/95, de 15 de Março, o prazo de prescrição do procedimento criminal do crime de maus tratos entre cônjuges era o de cinco anos (art.º 117.º, n.º 1, c) daquele código).

A partir de então, o procedimento criminal pelo crime de maus tratos do cônjuge, depois crime de maus tratos e actualmente, crime de violência doméstica, prescreve em dez anos (art.º 118.º, n.º 1, b) do C. Penal).

II - Em qualquer caso, estamos sempre perante um crime habitual, um crime que tem por objecto a prática reiterada da mesma acção.

Nos crimes habituais, o prazo de prescrição só corre desde o dia da prática do último acto (art.º 118.º, n.º 2, b) do C. Penal na primitiva redacção e art.º 119.º, n.º 2, b) do C. Penal, na redacção em vigor) o que significa que a lei aplicável é a que estiver em vigor na data da prática do último acto da conduta reiterada.

III – Constituindo o objecto da acção típica do crime imputado ao arguido uma conduta repetida do recorrente desde o início do matrimónio ocorrido em Março de 1982, que tem por objecto dirigir palavras e expressões injuriosas à assistente, assim se definindo um padrão de comportamento, acrescendo condutas de outra natureza, a primeira ocorrida em Agosto de 2003, a segunda em Dezembro de 2010 e a terceira, quarta e quinta, em Abril, Junho e Agosto de 2018, respectivamente, tendo o último acto ocorrido no dia 25 de Agosto de 2018, só a partir desta data se iniciou o prazo de prescrição do procedimento criminal de dez anos.

Decisão Texto Integral:












Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 

I. RELATÓRIO

            No Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo Local Criminal de Pombal – Juiz 1, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, do arguido RM, com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material e concurso efectivo, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, a) e 2 do C. Penal e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 86º, nº 1, c) do Regime Jurídico das Armas e suas Munições [doravante RJAM] aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.

            A assistente IS acompanhou a acusação pública e deduziu pedido de indemnização contra o arguido com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 2000, por danos não patrimoniais sofridos.

            Por sentença de 7 de Maio de 2019 foi o arguido absolvido da prática do imputado crime de detenção de arma proibida e condenado pela prática do imputado crime de violência doméstica, na pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na respectiva execução por igual período, com sujeição a regime de prova e condicionada às regras de conduta de afastamento da vítima, afastamento da residência da vítima e proibição de contactos com a vítima.

Mais foi o arguido condenado no pagamento da quantia de € 900 à assistente, acrescida de juros de mora à taxa legal, a partir da data da sentença e até integral pagamento.


*

Inconformado com a decisão recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            44) Entre as condutas pretensamente imputadas ao arguido, medeiam períodos muito prolongados e incompatíveis com a subsistência da mesma unidade de acção, do mesmo "pedaço de vida".

45) O que impõe considerar a presença de fortes motivos para crer verificada a prescrição do procedimento criminal quanto às condutas cometidas antes de 2008, na perspectiva da imputação do crime de maus tratos previsto e punido pelo artigo 152.º, nºs 1 e 2 do Código Penal, na redacção anterior à Lei nº 59/2007 de 04/07.

46) E mesmo que assim não fosse, relativamente aos factos ocorridos desde 1982 até 2008, sempre teria decorrido o prazo prescricional respectivo – 10 anos, nos termos do disposto no artigo 118.º, nº1, b) do Código Penal – até ao início do inquérito e, até ao primeiro acto interruptivo da prescrição (apresentação da denúncia).

(...)



Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A prescrição do procedimento criminal;

(...)


*

            Importa ter presente, para a resolução destas questões, o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

            A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

            “ (…).

            1 – RM e IS casaram no dia 20 de Março de 1982, tendo fixado a residência comum na R dos A, (...).

2 – Daquele casamento nasceram dois filhos: SS e RG, ambos actualmente maiores de idade, e este último residente com o casal.

3 – E, desde o início da união que o arguido chama a IS, um número não concretamente apurado de vezes, "filha da puta" e "lontra", dirigindo-lhe ainda expressões como "não vales nada!" ou "fodeste-me a vida".

4 – Pelo menos por uma ocasião ocorrida no mês de Agosto de 2003, o arguido puxou o cabelo e desferiu várias chapadas na cara da assistente.

5 – No dia 18/12/2010, no interior da habitação do casal, o arguido dirigiu-se à assistente, agarrou-lhe o pescoço com as duas mãos, comprimindo-o, ao mesmo tempo que lhe dizia que era naquele dia que a matava.

6 – No dia 01/04/2018, arguido e assistente encetaram discussão de contornos não concretamente apurados, que levaram a que a assistente entrasse em crise de ansiedade, vendo-se mesmo forçada a recorrer a tratamento hospitalar.

7 – No dia 03/06/2018, pelas 21h50, o arguido deslocou-se ao n.º (...) da R dos A, (...) e, da via pública, dirigiu a IS, em tom alto, perfeitamente audível para quem estivesse num raio de 10/15m, as seguintes expressões: "destruíste-me a vida", "eu sempre trabalhei", "isto é meu", e "já te pedi o divórcio por três vezes".

8 – No dia 25/08/2018, pelas 17h00, no exterior da habitação de ambos, o arguido, em tom alto e ameaçador, dirigiu as seguintes expressões à assistente: "Eu corto-te o pescoço, tu és uma bosta, corto-te às postas". Acto contínuo, o arguido investiu sobre a mesma com a intenção de a agredir, tendo sido impedido de o fazer pela filha de ambos, SS, ali presente.

9 – No dia 13 de Junho de 2018, no interior da garagem da residência do casal, foi encontrada uma espingarda sem marca referenciável, de tiro a tiro, percussão central e carregamento manual, com o na de série 207994, calibre 14mm, com 113,5cm de comprimento, sendo 65 cm de cano, de alma lisa.

10 – [nem] O arguido, nem assistente, nem filho do casal, possuem qualquer documentação respeitante à arma em questão, nomeadamente manifesto/registo, licença de uso e porte de arma, nem qualquer outro tipo de autorização para a deter.

11 – Ao actuar da forma descrita, agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, com intenção de menosprezar a sua mulher e de a ofender na honra e consideração que lhe são devidas, de a maltratar física e psiquicamente e de a inibir de agir livremente, como pretendia e conseguiu, assim agindo de molde a atingir a dignidade humana e a integridade física e psíquica desta, resultados estes que representou, procurou e logrou alcançar. Ao proferir, de forma séria e agressiva, a expressão "Eu corto-te o pescoço, tu és uma bosta, corto-te às postas" agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de a perturbar e de fazer crer à assistente que a iria molestar fisicamente, de forma a incutir-lhe receio pela sua segurança e bem-estar e a afectar a sua tranquilidade, paz individual, autonomia, decisão e que a inibiram de se movimentar livremente, consequência esta que igualmente previu, procurou e logrou atingir.

12 – Mais sabia o arguido que os seus actos eram praticados na residência comum do casal, em frente a uma filha de ambos, e que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

(...)


*

            Da prescrição do procedimento criminal

            1. Alega o recorrente – conclusões 44 a 46 – que entre as condutas que lhe são atribuídas medeiam períodos prolongados, incompatíveis com a mesma unidade de acção, com o mesmo pedaço de vida, pelo que existem fortes motivos para se ter por verificada a prescrição do procedimento criminal quanto aos factos ocorridos desde 1982 e até 2008, por terem decorrido dez anos desde a sua prática até à apresentação da denúncia.   

            Vejamos.

A prescrição do procedimento criminal, a limitação temporal da perseguibilidade do facto, tem por fundamentos, o esbatimento do juízo de censura da comunidade, o desaparecimento de exigências de prevenção especial com o decurso do tempo e, por último, também o desaparecimento de exigências de prevenção positiva pela pacificação ou frustração das expectativas da comunidade na validade da norma violada (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas/Editorial Notícias, pág. 699).

Os prazos de prescrição do procedimento criminal encontram-se fixados em abstracto no C. Penal (art. 118º), em função da gravidade do facto, aferida pela moldura penal aplicável.

O C. Penal, na versão original, previa o crime de maus tratos entre cônjuges no art. 153º, nºs 1, a) e 3. A conduta típica consistia em o agente infligir ao seu cônjuge maus tratos físicos, o tratar cruelmente ou não lhe prestar os cuidados ou assistência à saúde. E a moldura penal era a de prisão de seis meses a três anos e multa até cem dias.

Com as alterações introduzidas ao C. Penal pelo Dec. Lei nº 48/95, de 15 de Março, o crime de maus tratos do cônjuge passou a estar previsto no art. 152º, nº 2. A conduta típica consistia em o agente infligir ao cônjuge ou a quem com ele convivesse em condições análogas às dos cônjuges maus tratos físicos ou psíquicos. E a moldura penal era a de pena de prisão de um a cinco anos.

Com as alterações introduzidas ao C. Penal pela Lei nº 65/98, de 2 de Setembro, o crime passou a ter a designação de maus tratos, mas manteve o tipo e a moldura penal.

Com as alterações introduzidas ao C. Penal pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, o crime passou a ter a designação de violência doméstica. A conduta típica passou a ser a inflicção, de modo reiterado ou não, de maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais, ao cônjuge ou ex-cônjuge. A moldura penal manteve-se em prisão de um a cinco anos.

Não obstante as posteriores alterações introduzidas ao C. Penal, o crime de violência doméstica, tendo por ofendido o cônjuge ou ex-cônjuge, manteve o tipo e a moldura penal. 

Até à entrada em vigor das alterações introduzidas ao C. Penal pelo Dec. Lei nº 48/95, de 15 de Março, o prazo de prescrição do procedimento criminal crime de maus tratos entre cônjuges era o de cinco anos (art. 117º, nº 1, c) daquele código.

A partir de então, o procedimento criminal pelo crime de maus tratos do cônjuge, depois crime de maus tratos e actualmente, crime de violência doméstica, prescreve em dez anos (art. 118º, nº 1, b) do C. Penal).

Em qualquer caso, estamos sempre perante um crime habitual, um crime que tem por objecto a prática reiterada da mesma acção.

Nos crimes habituais, o prazo de prescrição só corre desde o dia da prática do último acto (art. 118º, nº 2, b) do C. Penal na primitiva redacção e art. 119º, nº 2, b) do C. Penal, na redacção em vigor) o que significa que a lei aplicável é a que estiver em vigor na data da prática do último acto da conduta reiterada.

Contrariamente ao afirmado pelo recorrente, não existem condutas isoladas intercaladas por prolongados hiatos temporais, pois logo no ponto 3 dos factos provados é descrita uma conduta repetida do recorrente desde o início do matrimónio ocorrido em Março de 1982, que tem por objecto dirigir palavras e expressões injuriosas à assistente, assim se definindo um padrão de comportamento. É certo que nos pontos 4, 5, 6, 7 e 8 dos factos provados são descritas condutas de outra natureza, a primeira ocorrida em Agosto de 2003, a segunda em Dezembro de 2010 e a terceira, quarta e quinta, em Abril, Junho e Agosto de 2018, respectivamente.

Acontece que, não obstante os sete anos que medeiam entre a primeira e a segunda condutas e os oito anos que medeiam entre a segunda e as, terceira, quarta e quinta condutas, todas estas condutas têm que ser consideradas conjuntamente com a conduta repetida desde 1982, descrita no ponto 3 dos factos provados pois que, é todo este conjunto que constitui o objecto da acção típica do crime.

Assim, tendo o último acto ocorrido no dia 25 de Agosto de 2018, só a partir desta data se iniciou o prazo de prescrição do procedimento criminal que, conforme dito, é o de dez anos.

Em conclusão, não se verifica a prescrição do procedimento criminal.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.

(...)


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Coimbra, 9 de Outubro de 2019

Acórdão integralmente revisto por Vasques Osório – relator – e Helena Bolieiro – adjunta