Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
29/09.3GESRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOURAZ LOPES
Descritores: RECUSA DE JUIZ
Data do Acordão: 04/01/2011
Votação: DECISÃO SINGULAR
Tribunal Recurso: SERTÂ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECUSA
Decisão: NÃO DECRETAMENTO
Legislação Nacional: ARTIGO 43º CPP
Sumário: 1. O regime normativo dos impedimentos, recusa e escusa pretende garantir a imparcialidade do juiz num determinado processo em função das várias circunstâncias que podem, no caso concreto, colocar em causa a sua imparcialidade nesse processo.
2. O facto de existir um processo em que foi suscitada a recusa de um juiz por motivos de intervenção anterior nesse processo à fase de julgamento, sustentado em determinados factos, não é só por si motivo de recusa do mesmo juiz num outro processoque nada tem a haver com o anterior.
Decisão Texto Integral: Decisão sumária, nos termos do artigo 417º n.º 6 alínea d) do CPP.
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Para apreensão da situação em causa impor igualmente referir os seguintes factos que se tornam necessários para a apreciação do incidente.

No processo em apreciação a arguida/requerente do incidente foi acusada pelo Ministério Público de factos consubstanciadores da prática de três crimes de injúria agravado, um crime de ofensa a organismo, serviço, ou pessoa colectiva e um crime de dano qualificado, na forma tentada, p. e p. pelo art. 1810; 184°, e alínea 1), do n° 2 do art. 132° e 187°,213°, n° 1, alínea, 22°, 23° e 14°, n° 1, todos do Código Penal, que terão ocorrido em Março de 2009 sendo ofendidos agentes da GNR.

Não foi, após a dedução de acusação, requerida a instrução, tendo o senhor juiz «recusado» efectuado o despacho a que se alude no artigo 311º no dia 8.11.2010, designado as datas de julgamento para 7 e 17 de Fevereiro de 2011. O mandatário da arguida veio entretanto em 13.12.2010, requerer a alteração das datas designadas, o que foi deferido pelo senhor juiz por despacho de 20.12.2010 para a data de 15.o3.2011.

Pode decisão sumária deste Tribunal da Relação de 23 de Março de 2011, foi negado provimento ao incidente de recusa suscitado pela igualmente pela aqui requerente, «por manifestamente infundado» (cff. Certidão junta a fls. 59 e seguintes).

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Sobre a imparcialidade, como principio fundamental e estrutural do processo penal, sublinha-se que faz parte da “aquisição” constitucional da jurisdição, nomeadamente quando se estabelece a estrutura acusatória do processo penal no artigo 32º nº 5, juntamente com a independência, a que se refere o artigo 203º da CRP, bem como o conjunto de garantias e incompatibilidades estabelecidos no artigo 216º a propósito do Estatuto dos Juízes.

É no acto de julgar que a imparcialidade surge como essência na concretização do estado de justa distância.

Já o referimos noutro local, (A Tutela da Imparcialidade Endoprocessual no processo penal Português, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 71 e ss) que «a imparcialidade evita as distorções decorrentes do preconceito e da busca do interesse próprio; o conhecimento e a capacidade de identificação garantem que as aspirações dos outros serão rigorosamente apreciadas (…)A necessidade de um juiz imparcial surge assim como a essência de um processo que se legitima a si próprio, num processo autopoiético (…). É no total alheamento dos interesses das partes envolvidas no pleito judicial que reside o cerne do princípio da imparcialidade(…)».

A assumpção das dimensões objectiva e subjectiva da imparcialidade, decorrentes do caminho jurisprudencial trilhado pelo TEDH, permite substancializar a vertente subjectiva da imparcialidade no sentido de determinar o que pensa o juiz que intervém num tribunal, no seu foro interior nessa circunstância e se ele esconde qualquer razão para favorecer alguma das partes.

É dogmaticamente pacifico que a imparcialidade do juiz presume-se, nesta vertente subjectiva. Neste sentido e a título exemplificativo veja-se o que refere Thomas Weigend, in a «A Noção de tribunal imparcial e independente na RFA», Revue de science criminelle et de droit pénal comparé, nº 4, 1990, pág. 742: «Não podemos exigir que as decisões dos tribunais do Estado tenham força obrigatória se não presumirmos que os juizes servem unicamente a ideia de verdade e de justiça e não os seus interesses próprios ou interesses de outros».

Na perspectiva objectiva o que se impõe indagar e garantir é se o juiz, por virtude de considerações de carácter orgânico o funcional não apresenta qualquer prejuizo ou preconceito em relação à matéria a decidir, como também se não permite que aparente essa possibilidade.

Porque as aparências não podem ser ignoradas, ou o que é o mesmo, porque se impõe relevar a exterioridade no exercício da função jurisdicional de uma forma inequívoca, é absolutamente assumido pela jurisprudência e por grande parte da doutrina, hoje, o sentido do adágio anglo-saxónico “justice must not only be done; it must also be seen to be done” como conteúdo do que se entende por imparcialidade objectiva

Ou seja o exercício de facto de determinadas funções, como as do juiz, impõem em absoluto uma total transparência no exercício dessas funções. Não basta ser, é preciso parecer. Assim o exige o princípio da confiança dos cidadãos na justiça.

Torna-se por isso necessário configurar uma total objectividade da actividade do juiz de modo a que, quando seja chamado a decidir, o não faça com prejuízos derivados, quer do seu relacionamento pessoal com os demais sujeitos processuais, quer de eventuais interesses que tenha no caso, quer sobretudo da sua intervenção em actos antecedentes ao acto de julgar, que tornem duvidosa essa garantia de isenção que transporta consigo.

Fala-se a propósito das intervenções do juiz em fase anterior à de julgamento de contaminação objectiva do processo. Evitar essa contaminação surge afinal como uma densificação da garantia do direito ao juiz imparcial.

As considerações que antecedem, genericamente têm hoje suporte normativo nos artigos 40º a 47º do CPP.

Conforme decorre do artigo 43º do CPP, «1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir um motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. 2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º. 3. A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis. (…)».

No caso dos autos a requerente sustenta a recusa do juiz no facto de existir um processo onde o senhor juiz foi objecto de recusa, por determinados motivos ligados a esse processo, (proceso 70/08.3CBSRT.C1), sendo que segundo a recorrente, não faz sentido que a intervenção julgador num determinado processo possa “ correr o risco de ser suspeita”, e num outro, em que os intervenientes são os mesmos, já o não seja.

Importa referir antes de mais que o regime normativo dos impedimentos, recusa e escusa pretende garantir a imparcialidade do juiz num determinado processo em função das várias circunstâncias que podem, no caso concreto, colocar em causa a sua imparcialidade nesse processo.

Ao ser questionada a imparcialidade de um juiz, num determinado processo, por determinadas razões concretas, devem tais razões ser sustentadas em factos devidamente identificados, para ope legis ou ope judice, valerem como causa de afastamento desse juiz. Sob pena de se assim não for se violar outro principio fundamental do processo penal de matriz acusatória que é o principio do juiz natural.

Factos que têm que revestir uma dimensão séria e grave.

Ora o simples facto de existir um processo em que foi suscitada a recusa de um juiz por motivos de intervenção anterior nesse processo à fase de julgamento, sustentado em determinados factos, não é só por si motivo de recusa do mesmo juiz num outro processo que nada tem que ver com o anterior.

Recorde-se que esse despoletar de um incidente pode não ter à partida qualquer fundamento e servir apenas para atingir outros interesses alheios ao processo. A ser aceite a tese do recorrente isso bloquearia qualquer intervenção do juiz em todos os nos processos em que fosse sucessivamente recusado levando, no limite a um afastamento do juiz em causa, sem uma razão séria e justificadas. Violando, assim claramente o principio do juiz natural.

Não existindo qualquer facto invocado (ou mesmo perceptível) onde possa sustentar-se um eventual pré-juizo do juiz em relação ao caso que está a julgar - o que não acontece pelo facto de o Tribunal ter intervindo num outro processo onde o requerente do incidente é também arguido - não há qualquer motivo para sustentar uma recusa de um juiz. Porque não está em causa, subjectiva e objectivamente o princípio da imparcialidade do Tribunal.

A lei, o artigo 43º, é muito clara em afirmar a existência de um motivo sério e grave, adequado a gerar a desconfiança do Tribunal». E esse motivo «sério e grave» não pode ser invocado sem qualquer conteúdo. A não ser assim estaria a violar-se de uma forma inequívoca o princípio do juiz natural, que é uma garantia fundamental da independência dos Tribunais.

Ora no caso em apreço, a mera existência de um anterior pedido de recusa num outro processo (que aliás não foi aceite pelo tribunal superior) não supre nem se pode confundir com a existência de motivo “sério e grave” adequado a gerar a desconfiança do Tribunal que ponha em causa a imparcialidade do Tribunal no julgamento a fazer.

Daí que o pedido de recusa seja manifestamente infundado.

III. DISPOSITIVO.

Pelo exposto decide-se negar provimento à requerida recusa, por manifestamente infundada.

Fixa-se a taxa de justiça em 8 Ucs (artigo 45º n.º 7 do CPP).

Notifique.

MOURAZ LOPES