Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
160/14.3TLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RAMALHO PINTO
Descritores: ACÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
CONDENAÇÃO
PEDIDO
NULIDADE DE SENTENÇA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
CONSTITUCIONALIDADE
CÓDIGO DE PROCESSO DO TRABALHO
CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
MÁ FÉ
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 09/26/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: LEI Nº 63/2013, DE 27/08; ARTºS 74º, 77º E 186º-O DO CPT
Sumário: I – A Lei 63/2013, de 27/08, trouxe duas novidades: - a criação de um procedimento próprio para utilização pela ACT (Autoridade para as Condições do Trabalho), quando esta considere estar na presença de falsos contratos de prestação de serviço; - a instituição de um novo tipo de processo judicial com natureza urgente, denominado acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.

II – Esta nova acção especial para reconhecimento da existência de contrato de trabalho surgiu com o objectivo de instituir um mecanismo de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços – “falsos recibos verdes” (acção com natureza urgente e oficiosa, iniciando-se sem qualquer intervenção do trabalhador ou do empregador).

III – No direito processual do trabalho, a lei impõe ao julgador que condene, ainda que para além do que foi peticionado, quando isso resulte da aplicação à matéria de facto provada ou de que o juiz possa servir-se, de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação colectiva – artº 74º do CPT de 1999.

IV – O julgamento deste tipo de acções deverá traduzir a realidade e não ficar restrito ao peticionado pelo M.ºP.º ou ao alegado no articulado do trabalhador, se o houver, devendo a sentença fixar a data do início da relação laboral – nº 8 do artº 186º-O (norma imperativa).

V – É entendimento pacífico, a nível jurisprudencial, que o tribunal superior não deve conhecer de nulidade ou nulidades da sentença que não tenham sido arguidas, expressa e separadamente, no requerimento de interposição do recurso, mas somente nas respectivas alegações – artº 77º, nº 1 do CPT.

VI – Não são inconstitucionais os artºs 186º-K a 186º-R do CPT (introduzidos pela Lei nº 63/2013, de 27/08).

VII – O controlo da matéria de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode deixar de respeitar a livre apreciação da prova obtida na 1ª instância, com base nos princípios da imediação e da oralidade.

VIII – Como critério geral de distinção pode dizer-se que é questão de facto tudo o que vise apurar ocorrências da vida real, eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior, bem como o estado, a qualidade ou a situação real das pessoas ou das coisas.

IX – Numa acção em que se cuida de qualificar o contrato como de trabalho ou de prestação de serviços, as expressões “sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré” e “com tarefas minuciosamente indicadas e definidas” revestem carácter claramente de direito, a primeira, e conclusivo, a segunda (pelo que tais expressões devem ser dadas como não escritas, havendo-as).

X – Dos conceitos vazados nos artºs 1152º e 1154º do Código Civil decorre que as diferenças entre contrato de trabalho e contrato de prestação de serviços são estabelecidas através, por um lado, da obrigatoriedade da retribuição (presente no contrato de trabalho, mas não necessariamente no contrato de prestação de serviços, embora na realidade também nele exista retribuição, na maior parte dos casos); por outro, na prestação objecto do contrato – uma obrigação de meios (actividade, no contrato de trabalho) ou de resultado (no contrato de prestação de serviços) – e, por último, na existência ou não de subordinação jurídica do prestador de trabalho ao respectivo credor.

XI – Decisivo para a distinção é o chamado elemento de “subordinação jurídica”, que consiste na circunstância de o prestador do trabalho desenvolver a sua actividade sob a autoridade e direcção do empregador.

XII – No artº 12º do CT de 2003 (na redacção da Lei nº 9/2006, de 20/03) foi estabelecida uma presunção legal da existência de um contrato de trabalho, desde que verificados cumulativamente os dois requisitos/índices aí enunciados.

XIII – O litigante de má fé deve ser previamente ouvido ao abrigo do princípio do contraditório, sob pena de não dever ser condenado como tal.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:                                                          

                        O Ministério público  veio instaurar, no Tribunal do Trabalho de Leiria, a presente acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 26º, nº 1, al i), e 186º-K, nº 1, do Código de Processo de Trabalho, ambos com as alterações introduzidas pela Lei nº 63/2013 de 27 de Agosto,  contra A... ,  pedindo que seja reconhecida e declarada a existência de um contrato de trabalho entre a Ré e a trabalhadora B... , fixando-se a data do seu início em 1/09/2013.

                        Alegou, para tanto e síntese:

                        Apesar de a referida B... e a Ré terem outorgado um contrato de prestação de serviços, a primeira sempre trabalhou de forma subordinada para a Ré, pelo que estamos na presença de um contrato de trabalho.

                        Contestou a Ré, pugnando pela improcedência da acção e dizendo que nunca houve qualquer vínculo laboral ou relação de subordinação próprios das relações entre entidades empregadoras e empregados.

                        Efectuado o julgamento, foi proferida sentença, decidindo o seguinte:

                        “Condeno a A... a:

                a) Reconhecer a existência de contrato de trabalho por tempo indeterminado celebrado entre si e a trabalhadora B..., melhor identificada anos autos, fixando-se a data do seu início em 01.09.2012.

                b) Pagar a multa no montante de 30 UC´s por litigância de má fé – cfr. artigo 27º nº 3 do RCP.

                c) Pagar as custas processuais.

                Valor da ação: € 30.000,01.     

                                                               x
                        Inconformada, veio a Ré, para além de arguir, expressa e separadamente, nulidade da sentença, interpor recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
[…]

                        O MºPº apresentou contra-alegações, propugnando pela manutenção do julgado.

                                                                       x

                        Definindo-se o âmbito do recurso  pelas suas conclusões, temos como questões a apreciar:

                        - as nulidades da sentença;

        - se se verifica a inconstitucionalidade dos artºs 186º-K a 186º-R do Código de Processo do Trabalho;

                - a impugnação da matéria de facto;

                - a qualificação do contrato que ligava a B... à Ré.
                -  a prolação da decisão recorrida no que toca à litigância de má-fé sem observância do princípio do contraditório;

                                                                  x
                                                                       x         
                        A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:
[…]

                                                                       x

                        O direito:

                        Vem a recorrente apontar dois  fundamentos de nulidade à sentença:

                         - ter fixado o início do contrato de trabalho em 1/9/2012, quando foi o que foi peticionado foi que esse início ocorreu em 1/9/2013, o que  constitui  excesso de condenação -al. e) do nº 1 do artº 615º do CPC;

                        - de acordo com a conclusão 3ª do recurso, o tribunal “a quo”  não ter concedido à recorrente oportunidade processual para se pronunciar quer sobre os factos não alegados, quer sobre a ampliação da pronúncia condenatória, pelo que a decisão é nula e de nenhum efeito, nos termos e para os efeitos da mesma  alínea e) do nº 1 do artigo 615º do CPC.

                        Acontece que, quanto a esse primeiro fundamento, se a nulidade foi alegada expressa e separadamente no requerimento de interposição do recurso, o mesmo não aconteceu com o segundo.

                        Conhecendo desse primeiro fundamento, importa transcrever aqui, para melhor compreensão do que se irá expor, os artºs 186º- L a 186-O do CPT, aditados pela Lei nº 63/2013, de 27/8:

                “Artigo 186.º -L

                Petição inicial e contestação

                1 — Na petição inicial, o Ministério Público expõe sucintamente a pretensão e os respetivos fundamentos, devendo juntar todos os elementos de prova recolhidos até ao momento.

                2 — O empregador é citado para contestar no prazo de 10 dias.

                3 — A petição inicial e a contestação não carecem de forma articulada, devendo ser apresentados em duplicado, nos termos do n.º 1 do artigo 148.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.

                4 — O duplicado da petição inicial e da contestação são remetidos ao trabalhador simultaneamente com a notificação da data da audiência de julgamento, com a expressa advertência de que pode, no prazo de 10 dias, aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, apresentar articulado próprio e constituir mandatário.

                Artigo 186.º -M

                Falta de contestação

                Se o empregador não contestar, o juiz profere, no prazo de 10 dias, decisão condenatória, a não ser que ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias ou que o pedido seja manifestamente improcedente.

                Artigo 186.º -N

                Termos posteriores aos articulados

                1 — Se a ação tiver de prosseguir, pode o juiz julgar logo procedente alguma exceção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer ou decidir do mérito da causa.

                2 — A audiência de julgamento realiza -se dentro de 30 dias, não sendo aplicável o disposto nos n.ºs 1 a 3 do artigo 151.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.

                3 — As provas são oferecidas na audiência, podendo cada parte apresentar até três testemunhas.

                Artigo 186.º -O

                Audiência de partes e julgamento

                1 — Se o empregador e o trabalhador estiverem presentes ou representados, o juiz realiza a audiência de partes, procurando conciliá-los.

                2 — Frustrando -se a conciliação, inicia -se imediatamente o julgamento, produzindo -se as provas que ao caso couberem.

                3 — Não é motivo de adiamento a falta, ainda que justificada, de qualquer das partes ou dos seus mandatários.

                4 — Quando as partes não tenham constituído mandatário judicial ou este não comparecer, a inquirição das testemunhas é efetuada pelo juiz.

                5 — Se ao juiz parecer indispensável, para boa decisão da causa, que se proceda a alguma diligência suspende a audiência na altura que reputar mais conveniente conveniente e marca logo dia para a sua continuação, devendo o julgamento concluir -se dentro de 30 dias.

                6 — Finda a produção de prova, pode cada um dos mandatários fazer uma breve alegação oral.

                7 — A sentença, sucintamente fundamentada, é logo ditada para a ata.

                8 — A sentença que reconheça a existência de um contrato de trabalho fixa a data do início da relação laboral.

                9 — A decisão proferida pelo tribunal é comunicada à ACT e ao Instituto da Segurança Social, I. P.

                        São duas as novidades trazidas por essa Lei 63/2013:

                        - a criação de um procedimento próprio para utilização pela ACT, quando esta considere estar na presença de “falsos” contratos de prestação de serviço;
                        - a instituição de um novo tipo de processo judicial com natureza urgente, denominado acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.

                        Como muito bem refere o MºP, nas contra-alegações de recurso, esta nova acção especial para reconhecimento da existência de contrato de trabalho surgiu com o objectivo de instituir um mecanismo de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços. Trata-se de uma acção com natureza urgente e oficiosa, iniciando-se sem qualquer intervenção do trabalhador ou do empregador, bastando, para o efeito, uma participação da Autoridade para as Condições do Trabalho, que a desencadeia. Institui-se um regime de celeridade e oficiosidade, a petição inicial e a contestação não têm de revestir forma articulada e a realização da audiência de julgamento não fica dependente do acordo das partes, nem pode ser adiada devido à falta destas, e dos respectivos mandatários, mesmo que justificada.

                        Dito isto, temos que, efectivamente e como aponta a recorrente, o pedido formulado pelo MºPº foi no sentido de que o  início do contrato de trabalho se verificou em 1/9/2013, sendo que a sentença acabou por fixar esse início em 1/9/2012.

                        Nos termos da al. e) do nº 1 do artigo 617º do CPC, a sentença é nula quando o juiz “condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido”.

                         Dispõe o artº 608º, nº 2, do CPC, que o juiz deve resolver na sentença todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuando aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

                        Por sua vez o artº 609º, nº 1, do mesmo Código, estabelece que a sentença não pode condenar em quantidade superior nem em objecto diverso do pedido.

                        Tais normativos são manifestações do princípio do dispositivo: face ao princípio da autonomia da vontade, cabe às partes definir nos respectivos articulados o objecto da causa, aos quais o juiz fica limitado na apreciação que fizer do litígio. O autor fá-lo expondo os respectivos pedidos e causas de pedir, o réu fá-lo através das excepções que invoca ou (quando reconvém), através do pedido reconvencional e da respectiva causa de pedir.

                        Como refere Bernardo da Gama Lobo Xavier, Iniciação ao Direito do Trabalho, Verbo, pag. 33, há normas de interesse e ordem pública que  têm de valer para assegurar determinados valores, que o legislador considera fundamentais, impondo-se, portanto, à vontade das partes e diminuindo a sua liberdade de estipulação. Assim é na maioria das normas do contrato de trabalho.

                        Esse princípio de ordem pública exprime-se pelo estabelecimento de normas que consagram garantias para o trabalhador que não podem ser diminuídas nem pela vontade comum das partes.

                        Dessas normas resultam, muitas vezes, direitos irrenunciáveis, como sucede, designadamente, com o direito do trabalhador à retribuição convencional ou legalmente estabelecida, durante a vigência do contrato de trabalho, o direito do mesmo à reparação, nos termos legalmente previstos, por danos emergentes de acidente de trabalho, etc.

                        Compreende-se, pois, que, para salvaguarda destes direitos, o legislador tenha introduzido no Código de Processo de Trabalho uma norma como a que instituiu no artº 74º desse diploma, ao estabelecer que “O juiz deve condenar em quantidade superior ao pedido ou em objecto diverso dele quando isso resulte da aplicação à matéria provada, ou aos factos de que possa servir-se, nos termos do artigo 514.º do Código de Processo Civil, de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho”.

                        No direito processual do trabalho, a lei impõe ao julgador que condene, ainda que para além do que foi peticionado, quando isso resulte da aplicação à matéria de facto provada ou de que o juiz possa servir-se, de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação colectiva -  artº 74º do CPT de 1999 (correspondente ao artº 69º do CPT de 1981). Como refere Leite Ferreira, em anotação ao mencionado preceito, “preceitos inderrogáveis serão apenas aqueles que o são absolutamente, isto é, que reconhecem um direito a cujo exercício o seu titular não pode renunciar, como será o caso do direito a indemnização por acidente de trabalho ou por doença profissional. Se, em vez disso, os preceitos são inderrogáveis apenas no plano jurídico porque o exercício do direito que reconhecem está confiado à livre determinação da vontade das partes, a possibilidade de condenação ultra vel extra petitum tem de considerar-se excluída. Nestes casos a decisão condenatória deve ter por limite o pedido formulado no aspecto quantitativo e qualitativo”.

                        Para o Prof. Castro Mendes, in Pedido e Causa de Pedir no Processo do Trabalho, Curso de Direito Processual do Trabalho, Suplemento da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1964, pag. 132-133, citado por Albino Mendes Baptista, no seu CPT anotado, “a disposição do art. 69º do CPT só se justifica realmente concebendo a condenação ultra ou extra petitum como o suprimento, pelo juiz, dum direito de exercício necessário imperfeitamente exercido pelo seu titular (ou seu representante). Se o autor pede (como podia não ter pedido) o seu salário, apesar da norma que o impõe ser inderrogável, nos termos que ficaram expostos, o juiz em meu entender deve cingir-se ao pedido ainda que porventura o autor tivesse direito a mais.”

                        A Lei nº 63/2103, que expressa e significativamente veio consagrar a “Instituição de mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado”- artº 1º, contém normas de interesse e ordem pública, designada, mas não exclusivamente, no que respeita à introdução da acção  de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, aditando os artºs 186.º -K a 186.º -R ao CPT.

                        Teve-se em vista combater uma realidade que se vem prolongando ao longo do tempo, de verdadeiros contratos de trabalho subordinado encobertos sob a designação de contratos de prestação de serviços, ou, para usar uma expressão da gíria, os “falsos recibos verdes,” os quais, para além de afectarem o trabalhador subordinado em alguns dos seus direitos, prejudicam, igualmente, interesses do Estado, de natureza fiscal e de segurança social.

                        E porque se trata de um interesse de ordem pública, estamos perante uma acção oficiosa,  instaurada na sequência da intervenção da ACT - nº 1 do artº 186-K, ou por conhecimento e por iniciativa do MºPº- nº 2, que dispensa a intervenção do próprio trabalhador em causa, que é meramente facultativa nº 4 do artº 168º-L. Ou seja, na instauração da acção, dispensa-se, expressamente, a iniciativa e até o consentimento do trabalhador, ao qual é conferida apenas a possibilidade de apresentar articulado próprio e constituir mandatário.

                        Assim sendo, o julgamento da acção deverá traduzir a realidade e não ficar restrito ao peticionado pelo MºPº ou ao alegado no articulado do trabalhador, se o houver, devendo a sentença, mesmo que tal não seja indicado por qualquer daqueles, “fixar a data do início da relação laboral”- nº 8 do artº 186º-O. Esta norma, tal como todas as outras referidas, apresenta-se como imperativa, estando em causa, como já se aludiu, valores que o legislador considera fundamentais, impondo-se, portanto, à vontade das partes e diminuindo a sua liberdade de estipulação. Funciona aqui o princípio do inquisitório, aparecendo o princípio do dispositivo como claramente mitigado.

                        Como tal, não estava a Srª Juíza impedida de fixar uma data diversa da peticionada pelo MºP, desde que prova apontasse nesse sentido, aspecto que abordaremos mais adiante, aquando da impugnação da matéria de facto.

                        Assim improcedendo este fundamento de nulidade.

                        Quanto ao outro, que tivemos oportunidade já de enunciar, também já referimos que não foi arguido de acordo com o nº 1 do artº 77º do Cod. Proc. Trabalho, que estipula que a “arguição de nulidades da sentença é feita expressa e separadamente no requerimento de interposição do recurso”.
                        Esta regra peculiar de que as nulidades da sentença têm de ser arguidas expressa e separadamente no requerimento de interposição do recurso é ditada por razões de economia e celeridade processuais e prende-se com a faculdade que o juiz tem de poder sempre suprir a nulidade antes da subida do recurso (nº 3 do artº 77º). Para que tal faculdade possa ser exercida, importa que a nulidade seja arguida no requerimento de interposição do recurso que é dirigido ao juiz e não nas alegações do recurso que são dirigidas ao tribunal superior, o que implica, naturalmente, que a motivação da arguição também conste daquele requerimento.
                        E tem sido entendimento pacífico, a nível jurisprudencial, que o tribunal superior não deve conhecer da nulidade ou nulidades da sentença que não tenham sido arguidas, expressa e separadamente, no requerimento de interposição do recurso, mas somente nas respectivas alegações - cfr., a título de exemplo, os Acórdãos do STJ de 25/10/95, Col. Jur.- Ac. do STJ,  1995, III, 279, e de 23/4/98, BMJ, 476, 297.
                        No caso em apreço, o recorrente remeteu a arguição da nulidade para as alegações do recurso, não lhe dedicando uma única palavra que fosse no requerimento de interposição de recurso.
                        Ou seja, não incluiu, tal como resulta obrigatório do referido artº 77º, nº 1, do C.P.T., no requerimento de interposição do recurso, a  decisiva e autónoma motivação da arguição, o que torna extemporânea a arguição da nulidade e obsta a que dela se conheça- cfr., neste sentido e entre outros, os Acórdãos do STJ de 28/1/98, Ac. Dout., 436, 558, de 28/5/97, BMJ 467, 412, de 8/02/2001 e 24/06/2003, estes dois disponíveis em www.dgsi.pt.
                        Entendimento também seguido no Ac. do STJ de 4/4/2001 (Revista 498/01), ao referir-se que a “arguição de nulidades tem se ser feita, obrigatoriamente, no requerimento de interposição do recurso, por forma explícita (ainda que sucintamente), dado que o requerimento de interposição constitui uma peça processual diferente das alegações, sendo que aquele é dirigido ao tribunal a quo e estas são-no ao tribunal ad quem”.

   Por sua vez, o Ac. do Tribunal Constitucional nº 304/2005, DR, II Série, de 05/08/2005, decidiu que, em processo do trabalho, o requerimento de interposição de recurso e a motivação deste, no caso de arguição de nulidades da sentença, deve ter duas partes, a primeira dirigida ao juiz da 1ª instância contendo essa arguição e a segunda (motivação do recurso) dirigida aos juízes do tribunal para o qual se recorre.
                        Termos em que se não conhece desse arguido fundamento de  nulidade.
                        - a inconstitucionalidade invocada.

                        Entende a recorrente que se verifica a inconstitucionalidade dos artºs 186º-K a 186º-R do Código de Processo do Trabalho, por ofenderem os princípios constitucionais do Estado de Direito (artigo 2º CRP), da igualdade (artigo 13º CRP), de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e o da liberdade da iniciativa económica, já que “não se descortina qual a natureza da intervenção do MP na acção de reconhecimento de existência de contrato de trabalho” e, por acção ser proposta independentemente da vontade do principal

interessado na decisão da causa (o pretenso trabalhador), não é equitativa, por além do mais inexistir um interlocutor do lado activo que possa confessar, desistir ou transigir.

                        Sem grande dificuldade se rebate esta argumentação da recorrente.

                        Como resulta da própria lei, esta assegura, embora adoptando um processado mais célere, todos os direitos de defesa do demandado, possibilitando-lhe exercer, em toda a sua amplitude, o contraditório.

                        Tratando-se, como vimos, de uma acção que procura assegurar valores de interesse e ordem públicos, lógica  e sequencialmente a mesma acção deve estar sujeita, em termos de parte activa, à intervenção do MºPº. Não se vislumbra outra hipótese.

                        E se é certo que o trabalhador, caso não intervenha na acção, pode ser ouvido como testemunha, ele é susceptível, como não poderia deixar de acontecer, de ser arrolado e inquirido pela parte que é demandada como pretensa entidade empregadora. Acresce que, caso intervenha, a sua capacidade de confessar, transigir e desistir está naturalmente condicionada pelos valores que se pretende obter com a acção, os quais, repete-se, se não limitam aos interesses desse trabalhador. Aliás, essas limitações de vontade processual surgem em vários tipos de acção, como é exemplo a acção especial emergente de acidente de trabalho, sem que se levante qualquer dúvida de tipo constitucional.

                        Pelo que nesta parte improcedem as conclusões do recurso.
                        - a impugnação da matéria de facto:

                        Quanto à pretensão da Ré- apelante de ver como não escritos os factos que estão na base da condenação além do pedido, valem aqui as considerações supra expendidas.

                        No que toca à argumentação de que a decisão relativa à matéria de facto não se encontra devidamente fundamentada, diremos que o dever de fundamentar impõe-se ao juiz, desde logo por imperativo constitucional - artº 205, nº1, da CRP, mas também legal -  art.º 154º do Novo CPC. Compreende-se a imposição de tal dever, pois só indicando as premissas que levaram à conclusão consubstanciada na decisão proferida poderá a mesma ser entendida em toda a sua extensão, permitindo aferir da sua legalidade, mas também da sua justeza e adequação à situação em análise, e assim prendendo-se com a própria garantia do direito de recurso bem como a legitimação da decisão judicial em si mesma.

                        Neste enquadramento mostra-se consagrado o dever de fundamentar as decisões sobre a matéria de facto, previsto no nº 4 do artº 607º, do CPC, consignando-se que a “decisão proferida declarará quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador”.

                        Diga-se que a exigência decorrente deste preceito legal não deverá ser meramente formal, antes passa pela indicação expressa das razões que levaram à formulação do decidido, ainda que não se imponha ao tribunal que descreva de forma minuciosa todo o processo de raciocínio que incidiu sobre a prova submetida à sua apreciação, bastando que sejam indicados, de forma clara e inteligível, quais os meios de prova de que se serviu para a análise crítica dos factos a decidir, enunciando-se as razões ou motivos substanciais porque os mesmos relevaram ou obtiveram credibilidade no espírito do julgador- cfr. Lopes do Rego, in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. I, pag. 545, por forma a que se possa controlar a razoabilidade da convicção expressa - cfr. Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pag. 348.

                        No caso, e como resulta clara e inequivocamente do respectivo despacho, a Sr.ª Juíza fundamentou devidamente a resposta à matéria de facto, analisando criticamente documentos juntos aos autos e a prova testemunhal.

                        E se a Srª juíza não fez referência ao depoimento das testemunhas arroladas pela Ré, foi certamente porque entendeu que as mesmas nada disserem de relevante e se não fundamentou as respostas negativas, tal deveu-se a ter considerado que não houve prova bastante para uma resposta positiva.

                        Aliás, a recorrente demonstra claramente que entendeu, no sentido de percepcionar, e contradizer, a motivação da Srª Juíza.

                        Pelo que não se verifica a reclamada insuficiência da fundamentação da fixação da matéria de facto.

                        Passando à impugnação propriamente dita, importa antes demais referir o seguinte:
                        Importa ter sempre presente que um dos princípios basilares, em termos de apreciação de prova, é o da liberdade de julgamento, segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e decide apenas com base na sua prudente convicção acerca de cada facto, não se exigindo, portanto, a este Tribunal da Relação que, no âmbito de uma reapreciação da prova produzida na audiência de discussão e julgamento levada a cabo na 1ª instância, procure formar uma nova convicção em termos de matéria de facto, circunstância que, pela própria natureza das coisas, levaria a que se devesse proceder a uma sistemática e global apreciação de toda a prova produzida em audiência, mas apenas a detecção e correcção de eventuais mas concretos erros de julgamento.

                        Na verdade, o que este Tribunal da Relação é chamado a fazer é verificar se a convicção expressa pelo Tribunal de 1ª instância na prolação de decisão sobre matéria de facto, e em relação aos pontos concretos objecto de impugnação, tem suporte razoável nos elementos de prova apresentados nos autos e produzidos em audiência, e, consequentemente, se uma tal decisão não deriva de erro de julgamento.

                        O controlo da matéria de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode deixar de respeitar a livre apreciação da prova obtida, na 1ª Instância, com base nos princípios da imediação e da oralidade.
                        A prova testemunhal é apreciada livremente pelo juiz (artºs 396º do C.C. e 607º, nº 5, do CPC) e que, como é sabido, a convicção do julgador forma-se em função da credibilidade que os depoimentos lhe merecem. Quem está em melhores condições para apreciar os depoimentos prestados em audiência é, atento o imediatismo impossível de obter na análise da matéria de facto na Relação,  o julgador de 1ª instância, que, por ser quem presencialmente conduz a audiência de julgamento, se encontra numa posição privilegiada para avaliar o depoimento em concreto, captando pormenores, reacções, hesitações, expressões e gestos, impossíveis de transparecer pela simples audição das gravações dos depoimentos.

Como refere Abrantes Geraldes, in Recursos no Processo do Trabalho, novo regime, 2010, pag. 67 “sem embargo dos naturais condicionalismos que rodeiam a tarefa de reapreciação de meios de prova oralmente produzidos, desde que a Relação acabe por formar uma diversa convicção sobre os pontos de facto impugnados, ainda que por interferência de presunções judiciais extraídas a partir de regras da experiência deve reflectir esse resultado em nova decisão”.

                        Só quando os elementos dos autos conduzam inequivocamente a uma resposta diversa da dada em 1ª instância é que deve o tribunal superior alterar as respostas que ali foram dadas, situação em que estaremos perante erro de julgamento.

                        Na reavaliação de facto o tribunal de recurso deve controlar a convicção do julgador na primeira instância quando se mostre ser contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos. Mas encontra-se impedido de controlar o processo lógico da convicção no segmento em que a prova produzida na primeira instância escapa ao seu controle, quando foi relevante o funcionamento do princípio da imediação. Como referiu o Acórdão desta Relação, de 3/10/2000, in CJ, tomo 4, pág. 27, “a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte, não pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas inserto no artigo 655, n.º 1 do C. P. Civil … E na formação dessa convicção entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova – seja áudio seja mesmo vídeo -, por mais fiel que ela seja das incidências concretas das audiência. Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis …”.

                        Vejamos, então e dentro deste condicionalismo, se se verificou qualquer erro de julgamento por parte da Mª Juíza.

                        Reage a recorrente contra as expressões, que considera conterem matéria de direito e/ou juízos de valor,  “a trabalhadora” (cfr. ponto 3);  “sob as ordens, direção e fiscalização da ré” (cfr. ponto 4);  “A referida B... recebia ordens, diretrizes e orientações dadas (...)” (cfr. ponto 6);  “com tarefas minuciosamente indicadas e definidas” (cfr. ponto 7) e por conseguinte, devem os referidos trechos ser eliminados da matéria de facto considerada provada.

                        A distinção entre aquilo que conforma matéria de facto e aquilo que corresponde a matéria de direito é uma questão deveras complexa e delicada. A linha divisória não tem carácter fixo, dependendo muito dos termos da causa, bem como da estrutura das normas aplicáveis.

                        Alberto dos Reis, no Código de Processo Civil Anotado, vol. III, pags. 206-207 refere: “a) É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior. b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei”. Mas, como o ilustre professor advertia, se é fácil enunciar critérios gerais de orientação, abundam as dificuldades de ordem prática.

                        Efectivamente, se relativamente a certas expressões podemos concluir seguramente que correspondem a matéria de facto ou a matéria de direito, outras são susceptíveis de integração ambivalente: consoante o contexto, ora se integram no campo dos factos, ora nos aparecem como categorias jurídicas.

                        As dificuldades de delimitação verificam-se, também, no que concerne aos juízos de valor que tanto integram normas jurídicas como se poderão, por vezes, situar no plano dos factos.

                        Antunes Varela (no comentário ao acórdão do STJ de 8-11-84, Rev. Leg. e Jurisp. Ano 122º, pags. 209 e segs.) considera que os factos, no campo do direito processual, abrangem, principalmente embora não exclusivamente, as ocorrências concretas da vida real. Nos juízos de facto (juízos de valor sobre a matéria de facto) haverá que distinguir entre aqueles cuja emissão se há-de apoiar em simples critérios do bom pai de família, do homem comum, e aqueles que na sua formulação apelam essencialmente para a sensibilidade ou intuição do jurista, para a formação especializada do julgador. Enquanto os primeiros estão fundamentalmente ligados à matéria de facto, os segundos estão mais presos ao sentido da norma aplicável ou aos critérios de valorização da lei.

                        Assim, entendeu-se no acórdão do STJ de 3 de Maio de 2000, publicado no BMJ nº 497, pag. 315:

                        “São factos «os juízos que contenham a subsunção a um conceito geralmente conhecido que seja de uso corrente na linguagem comum, sendo, ainda, factos “as relações jurídicas que sejam elementos da própria hipótese de facto da norma...”

                Os juízos de valor continuam, pois, a ser matéria de facto, quando baseados em critérios do homem comum ou mesmo técnico especializado, (não ligado ao mundo do direito)...».

                        E no Acórdão do mesmo Supremo Tribunal de 8/11/95, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano III, tomo 3, pag. 293 foi entendido que como critério geral de distinção «pode dizer-se que é questão de facto tudo o que vise apurar ocorrências da vida real, eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior, bem como o estado, a qualidade ou a situação real das pessoas ou das coisas»”.

                        No Ac. da Relação de Lisboa de 7/11/07- proc. 8.624/07-4, disponível em www.dgsi.pt, escreveu-se o seguinte:

                        “Se em determinadas situações, de imediato podemos integrar uma determinada afirmação no campo da matéria de direito (v.g. má fé, abuso de direito, culpa, justa causa, imprevidência, diligência do bom pai de família) ou no campo da matéria de facto (v.g. carta postal, edifício, trabalho, actividade), já, com alguma frequência, se suscitam sérias dúvidas quanto ao estabelecimento de uma linha de demarcação entre os dois terrenos nos casos em que as expressões têm, simultaneamente, um sentido técnico-jurídico, de onde o legislador retira determinados efeitos, e um significado vulgar e corrente, facilmente captado pelas pessoas comuns (v.g. consentimento; pagar; despedido; trabalhar por conta, sob as ordens e instruções; foi admitido ao serviço; trabalho extraordinário, etc.).

                Não é despicienda a opção que o juiz tiver que tomar quanto à integração de determinada expressão ou afirmação no campo da matéria de facto ou na matéria de direito, já que dela pode depender o sucesso ou insucesso da pretensão deduzida pelo autor.

                (…) a inclusão daquelas expressões numa ou noutra das categorias dependerá fundamentalmente do objecto da acção

                Se o thema decidendum da acção, no todo ou em parte, estiver precisamente dependente e localizado no significado real daquelas expressões, tem de considerar-se que estamos perante matéria de direito, insusceptível de ser incluída no despacho de condensação, na matéria de facto assente, ou de fazer parte da base instrutória e de ser objecto de instrução (arts. 508º, n.º 1, al. e), 511º, n.º 1. 513º, 522º, n.º 2, 577º, n.º 1, 623º, n.º 1 e 638º, n.º 1 do CPC) ou de integrar a decisão sobre a matéria de facto (arts. 646º, n.º 4 e 653º, n.º 2 do CPC).

                Se pelo contrário, o objecto da acção não girar à volta da resposta exacta que se dê às afirmações feitas pela parte, parece-nos que as referidas expressões (pagar, despedido; trabalhar por conta, sob as ordens e instruções, foi admitido ao serviço, trabalho extraordinário, etc.) e outras de cariz semelhante, poderão ser integradas na matéria de facto, passível de apuramento através da produção de meios de prova e de pronúncia final do tribunal que efectua o julgamento, embora com o significado vulgar e corrente e não com o sentido técnico-jurídico que possa colher-se dos textos legais”.

                        Assim, numa acção, como a presente, em que se cuida de qualificar o contrato, como de trabalho ou prestação de serviços, as expressões  “sob as ordens, direção e fiscalização da Ré”, contida no ponto 4, e “com tarefas minuciosamente indicadas e definidas”, incluída no  ponto 7, revestem carácter claramente de direito, a primeira, e conclusivo, a segunda.

                        Assim, têm-se como não escritas essas expressões.

                        O mesmo não acontece com as outras expressões apontadas pela recorrente.

                        Assim, a “trabalhadora”, usada no ponto 3º, não significa necessariamente que seja por trabalho subordinado; o prestador de serviços não deixa também de ser um trabalhador.

                        Por sua, vez, a expressão “recebia ordens, diretrizes e orientações dadas”, contida no ponto 6º, está devidamente concretizada na restante redacção desse ponto, pelo que também não há que a eliminar.

                        Prosseguindo, temos que a Ré veio pôr em causa a matéria de facto dada como provada, com base no depoimento das testemunhas B... ( a pretensa trabalhadora) e Maria da Purificação Gouveia (funcionária da Ré) e nos seguintes termos:

[…]

                        - a qualificação do contrato:

                        Discute-se na acção a natureza da relação contratual que ligava a B...  à Ré, sustentando o MºPº a existência de um contrato de trabalho, e propugnando a segunda pela qualificação como contrato de prestação de serviços.

                        A questão da qualificação contratual é uma das que mais se discute nos nossos tribunais de trabalho, porque, efectivamente, na prática, é muitas vezes extremamente difícil estabelecer a fronteira entre as duas espécies contratuais que se caracterizam pela prestação de trabalho intelectual ou manual de uma pessoa em benefício de outra (contrato de trabalho / contrato de prestação de serviços).

                        Dos conceitos vazados nos artigos 1152º e 1154º do Código Civil decorre que as diferenças entre ambos são estabelecidas através, por um lado, da obrigatoriedade da retribuição (presente no contrato de trabalho, mas não necessariamente no contrato de prestação de serviços, embora na realidade também nele exista retribuição, na maior parte dos casos); por outro, na prestação objecto do contrato - uma obrigação de meios (actividade, no contrato de trabalho) ou de resultado (no contrato de prestação de serviços) - e, por último, na existência ou não de subordinação jurídica do prestador de trabalho ao respectivo credor.

                        Os dois primeiros elementos distintivos são pouco relevantes porque, por um lado, como se disse, serão actualmente muito raros os casos de contratos de prestação de serviços sem retribuição, face à total desadequação da gratuitidade do trabalho, no contexto de uma sociedade com as características da contemporânea; por outro lado, porque, mesmo quando o objecto da prestação é a actividade, em última análise, pretende-se sempre retirar dessa actividade uma utilidade, um resultado, que não é indiferente e, por outro lado ainda, em muitos contratos de prestação de serviços cuja qualificação não oferece quaisquer dúvidas, como seja, por exemplo, o estabelecido entre o médico e o seu paciente ou entre o advogado e o seu cliente, o que aquele tem de prestar é apenas a sua actividade, não o resultado, que é aleatório.

                        Decisivo para a distinção acaba, pois, por ser o elemento "subordinação jurídica" que consiste na circunstância de o prestador do trabalho desenvolver a sua actividade sob a autoridade e  direcção do empregador, o que significa a possibilidade de o credor do trabalho determinar o modo, o tempo e o lugar da respectiva prestação. A prestação de trabalho nesses casos é heterodeterminada (pelo empregador), contrapondo-se ao trabalho autodeterminado em que, em princípio, cabe apenas ao próprio trabalhador a definição do modo, tempo e lugar da prestação. No trabalho heterodeterminado o grau de dependência do prestador do trabalho da autoridade e direcção do empregador pode ser maior ou menor, sobretudo no que se refere ao modo da prestação, diminuindo, sensivelmente à medida que aumenta a especificidade técnica exigida para o desempenho da actividade. O contrato de trabalho não é incompatível com a salvaguarda da autonomia técnica do trabalhador, sendo possível o desempenho de funções de elevada craveira técnica e intelectual em regime de subordinação jurídica.

                        A crescente flexibilização das formas de emprego tem contribuído para um aumento exponencial dos casos nebulosos, de fronteira, em que se torna por vezes extremamente difícil ajuizar se estamos perante uma situação de trabalho subordinado ou de trabalho autónomo.

                        É certo que estamos no domínio da autonomia da vontade, pelo que haverá que ter em conta o acordo das partes. Sendo, em regra, escassos os elementos que permitam identificar a vontade comum das partes no momento da celebração do contrato (frequentemente reduzida a uma expressão mínima) e dando ele início a uma relação duradoura, esses elementos terão de ser colhidos através do modo como as partes desenvolveram, na prática, essa relação.

                        No artigo 12º do CT de 2003 foi estabelecida uma presunção legal da existência de um contrato de trabalho, desde que verificados cumulativamente os cinco requisitos aí enunciados.

                        Dispunha este preceito, na redacção anterior à Lei nº 9/2006, de 20/3:

                        “Presume-se que as partes celebraram um contrato de trabalho sempre que, cumulativamente:

                a) O prestador de trabalho esteja inserido na estrutura organizativa do beneficiário da actividade e realize a sua prestação sob as orientações deste;

                b) O trabalho seja realizado na empresa beneficiária da actividade ou em local por esta controlado, respeitando um horário previamente definido;

                c) O prestador de trabalho seja retribuído em função do tempo despendido na execução da actividade ou se encontre numa situação de dependência económica face ao beneficiário da actividade;

                d) Os instrumentos de trabalho sejam essencialmente fornecidos pelo beneficiário da actividade;

                e) A prestação de trabalho tenha sido executada por um período, ininterrupto, superior a 90 dias”.

                        Tal como Ac. da Rel. do Porto de 16/3/2009, disponível in www.dgsi.pt, também nós entendemos que a melhor interpretação é aquela que via consagrada neste preceito o critério dos factos-índice.

                        Dizendo-se, a esse respeito, em tal aresto, o seguinte:

                        “Sucede, porém, que a verificação da presunção parece mais exigente que a prova directa do facto pois, logo a verificação da primeira alínea, por exemplo, conduz à prova directa do contrato, ficando as restantes alíneas do artigo como elemento perturbador, na medida em que os factos-índice constantes de todas as alíneas são de verificação cumulativa. Embora já tenham surgido divergências na interpretação da norma, certo é que uma interpretação mais conforme com o elemento literal não é compatível com a nossa tradição, tanto ao nível da doutrina e da jurisprudência, como ao nível do direito constituído. Pois, destinando-se as presunções a facilitar a prova dos factos, na medida em que permitem dar como provado um facto desconhecido, que não se conseguiu provar, através da ilação que a lei ou o julgador extrai de um facto conhecido, isto é, que se conseguiu provar, a interpretação mais ao perto da letra daquele Art.º 12.º parece conduzir a um resultado contrário. Assim, crê-se que tal norma deverá ser interpretada correctivamente, fazendo corresponder a sua aplicação ao critério dos factos-índice que a doutrina vinha ensinando e os Tribunais aplicando, antes da entrada em vigor do Cód. do Trabalho. Tal significa que, ontem como hoje, face à falta da prova directa dos factos donde se possa concluir pela existência da subordinação jurídica e consequente qualificação do contrato, há que fazer um juízo global acerca dos factos-índice provados, concluindo depois pela qualificação do contrato como de trabalho ou como de prestação de serviços, mas sem o espartilho da verificação cumulativa de todos os factos-índice constantes das cinco alíneas do Art.º 12.º do Cód. do Trabalho. Na verdade, o entendimento oposto colocará em contradição a presunção constante desta norma e a definição constante do Art.º 10.º do mesmo diploma, na medida em que a verificação da primeira é mais exigente do que a prova da segunda, o que representa um non sense na medida em que a presunção tem de estar ao serviço da definição, tanto no plano lógico da política legislativa, como no plano prático da decisão e não o contrário.

                        Sobre tal presunção dizia João Leal Amado,  in Temas Laborais, II, Coimbra, 2007, p.17. que “a disposição em apreço limitou-se a compendiar os elementos indiciários habitualmente utilizados pela jurisprudência, exigindo que todos eles apontassem para a existência de trabalho subordinado – então, e apenas então, funcionaria a presunção legal o que, em bom rigor, de pouco ou nada serviria, visto que, em tais situações, a qualificação laboral do contrato não suscitaria qualquer espécie de controvérsia, mesmo na ausência da referida presunção legal”.

                        Atentas as dificuldades registadas na aplicação desta complexa presunção, entendeu-se que a mesma deveria ser alterada, o que veio efectivamente a acontecer através da Lei nº 9/2006, de 20 de Março.

                        Assim, o artª 12º do CT de 2003, passou a ter uma nova redacção (“Presume-se que existe um contrato de trabalho sempre que o prestador esteja na dependência e inserido na estrutura organizativa do beneficiário da actividade e realize a sua prestação sob as ordens, direcção e fiscalização deste, mediante retribuição”), da qual apenas ficaram a constar dois índices, cujo preenchimento cumulativo presumiria a existência de um contrato de trabalho.

                        Com esta alteração legislativa, passou a dar-se relevo a apenas alguns dos índices que já constavam da presunção original, retirando-se outros considerados não essenciais (local e horário de trabalho, propriedade dos instrumentos de trabalho e período de execução da prestação da actividade), de forma a não onerar o trabalhador com a prova quase diabólica da presunção anterior, para provar que tem efectivamente um contrato de trabalho.

                        Ao mesmo tempo, passou a dar-se maior relevo aos poderes do empregador, na medida em que se passou a considerar, para efeitos de presunção, o poder de direcção na sua globalidade e o poder de fiscalização, até então ignorado, elementos que reforçavam a subordinação jurídica desta presunção, especialmente o poder de fiscalização.

                        Na alteração da presunção de laboralidade operada com o CT de 2009 (que é o aplicável à situação dos autos), aperfeiçoou-se a presunção de existência de subordinação jurídica e, assim, a caracterização do contrato como sendo de trabalho, baseada na verificação de alguns elementos caracterizadores daquele que possam actuar como indícios de subordinação.

                        Dispondo-se no nº 1 desse artº 12º do CT de 2009:

                “1  - Presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma actividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características:

                a) A actividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado;

                b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da actividade;

                c) O prestador de actividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma;

                d) Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de actividade, como contrapartida da mesma;

                e) O prestador de actividade desempenhe funções de direcção ou chefia na estrutura orgânica da empresa”.

                        Como se vê, os índices constantes da presunção de laboralidade constante do CT de 2009 não coincidem totalmente com aqueles que eram considerados relevantes no CT de 2003, entendendo-se que são essenciais outros índices que não a totalidade dos anteriormente previstos.

                        E ao contrário do que acontecia no CT de 2003, a verificação dos índices não é cumulativa, basta que se verifique a existência de algumas das características aí apontadas.

      No Ac. desta Relação de 10 de Julho de 2013 (relator Azevedo Mendes), disponível em www.dgsi.pt, considerou-se que “como resulta, da citada norma, basta que se verifiquem duas das características nela afirmadas para que possa operar a presunção de laboralidade (o que se retira da expressão “se verifiquem algumas das seguintes características”, que induz – do plural usado - que não basta uma, sendo necessária a reunião de mais do que uma das características).

A presunção em causa visa concerteza facilitar a demonstração da existência de contrato de trabalho, em casos de dificuldade de qualificação, e tem a sua inspiração no chamado método indiciário usado na nossa jurisprudência para alcançar a qualificação do contrato [com o recurso a índices negociais internos – p. ex., o local da actividade pertencer ao beneficiário da mesma, ou ser por ele determinado; a existência de um horário de trabalho; a utilização de bens ou de utensílios fornecidos pelo beneficiário da actividade; a existência de uma remuneração certa, com aumento periódico; o pagamento de subsídio de férias e de Natal; a integração na organização produtiva, a submissão do prestador ao poder disciplinar - e externos - p. ex., a sindicalização do prestador da actividade, a observância do regime fiscal e de segurança social próprios do trabalho por conta de outrem e a exclusividade da actividade a favor do beneficiário]. Mas, diversamente desse método indiciário, que determinava a busca de um numeroso e convincente conjunto de indícios, a presunção prevista no art. 12.º do Código do Trabalho basta-se com a verificação de dois dos indícios/características apontados.

Do nosso ponto de vista, a verificação de duas dessas características têm, apesar de tudo, de ser enquadrada num ambiente contratual genético e de execução que permita dúvidas consistentes sobre a qualificação. Só assim a presunção revestirá uma operação útil. Noutra perspectiva que parta do fim do percurso da indagação para o seu princípio, o resultado será afinal o mesmo, já que não se verificando aquele ambiente então terá de se considerar ilidida a presunção”.

                        No caso que nos ocupa, ficou provado que a B... desempenhava actos próprios de serviço doméstico, nomeadamente limpeza e cozinha, na Residência pertencente à Ré; estava obrigada a prestar a sua actividade durante 37,5 horas semanais e 7,5 horas diárias, existindo, portanto período fixo de trabalho;  a Ré determinou sempre qual a actividade que a mesma tinha de efectuar, a forma de a realizar, designadamente adquirindo os alimentos e colocando-os à disposição da referida B... e que iriam determinar a confecção dos pratos (almoços e jantares) que a mesma se encontrava obrigada a confeccionar; a execução das tarefas que lhe estavam determinadas e referidas no  “contrato de prestação de serviços” era realizada exclusivamente, com meios/instrumentos de trabalho da Ré e com materiais, matérias-primas e produtos para consumo, por esta exclusivamente fornecidos; a Ré pagava à B... a quantia fixa de € 600,00 mensais.

                        Estão assim claramente preenchidos as características das als. a), b) e d) do nº 1 do artº 12º do CT/2009, estabelecendo-se assim uma presunção de laboralidade.

                        Presunção essa que não foi  elidida por banda da Ré, sabendo-se que quem tem a seu favor – neste caso a trabalhadora - uma presunção está dispensado de fazer a prova dos correspondentes factos.

                        Ora, e como já se adiantou, o único critério incontroversamente diferenciador entre os dois tipos de contrato reside na subordinação jurídica, típica do contrato de trabalho, a qual implica uma posição de supremacia do empregador e uma correlativa posição de subordinação do trabalhador.

                        A autonomia ou subordinação é que permite, em última análise, estremar a locatio operis ou contrato de prestação de serviço da locatio operarum ou contrato de trabalho.

                        A  este  respeito  é assaz esclarecedor  o  ensinamento  de Galvão Teles (B.M.J. 83º,165):

                        "Promete‑se  (no  contrato de trabalho) a actividade na  sua raiz,  como  processo ou instrumento posto dentro  dos  limites mais  ou  menos  largos  à disposição da  outra  parte  para  a realização  dos  seus  fins,  não se  promete  este  ou  aquele efeito  a  alcançar  mediante  o emprego  de  esforço,  como  a transformação ou transporte de uma coisa.

                        Mas  como  se  pode verdadeiramente saber se se  promete  o trabalho  ou  o  resultado?  Todo o  trabalho  conduz  a  algum resultado  e  este  não  existe sem aquele.  O  único  critério legítimo  está  em averiguar se a actividade é ou não  prestada sob  a  direcção  da pessoa a quem ela aproveita,  que  dela  é credora."

                        Para  Menezes  Cordeiro (Manual de Direito  do  Trabalho) verificam‑se   duas   diferenças  essenciais  entre   os   dois contratos:  na  prestação de serviços trata‑se de  proporcionar certo  resultado do trabalho, enquanto no contrato de  trabalho se  refere  o prestar uma actividade; e na definição  legal  do primeiro  contrato não há qualquer referência à  autoridade e  direcção  de outrem. Assim, e ainda segundo este  autor, o   critério   último  da  distinção  reside  na   sujeição   à autoridade e direcção de outrem.

                        A subordinação jurídica traduz-se no poder do empregador conformar, através de ordens, directivas e instruções, a prestação a que o trabalhador se obrigou; é ao credor que cabe programar, organizar e dirigir a actividade do devedor; a ele incumbe não apenas distribuir as tarefas a realizar, mas ainda definir como, quando, onde e com que meios as deve executar cada um dos trabalhadores.

                        Sendo a subordinação jurídica um conceito integrado por um conjunto de características reveladoras dos poderes de autoridade e direcção atribuídos à entidade patronal, a sua determinação há-de fazer-se através de uma maior ou menor correspondência entre aquelas características e as da situação concreta.

                        Não esquecendo, todavia, que o valor de qualquer desses índices de subordinação não pode deixar de considerar-se relativo, quer pela insuficiência de cada um deles, isoladamente considerado, quer porque podem assumir significado muito diverso de caso para caso.

                        Assim, para a determinação da subordinação jurídica deve ter-se como decisivo um juízo de apreciação global sobre os elementos indiciários fornecidos pela sua situação concreta em correspondência com aquelas características do conceito-tipo.

                        O Acórdão do STJ de 13/11/2002, disponível em www.dgsi.pt, defende que é “a natureza da prestação acordada o ponto de partida diferenciador entre o contrato de trabalho e o contrato de prestação de serviço, embora depois o contrato de trabalho subordinado exija ainda a retribuição (subordinação económica) e a sujeição à autoridade e direcção da contra-parte (subordinação jurídica). E embora se possa argumentar que a valia daquele critério diferenciador é diminuta pois toda a actividade produz, em regra, um resultado e a obtenção de qualquer resultado pressupõe o desenvolvimento de alguma actividade, o certo é que em muitas situações se torna claro qual é o interesse do credor: nuns casos é que o devedor coloque à sua disposição o desenvolvimento de determinada actividade, enquanto noutros unicamente lhe interessa o resultado final da actividade desenvolvida, sendo-lhe indiferente o modo seguido pelo devedor para obter esse resultado”.

                        A qualificação da situação de facto, em termos de a subsumir a um contrato ou a outro, dependerá das circunstâncias concretas de cada caso. O factor decisivo será, como se disse, a existência do elemento subordinação jurídica, um juízo de apreciação global sobre os elementos fornecidos pela situação concreta.

                        No caso concreto, e recordando que se verifica a citada presunção de laboralidade, temos que a factualidade provada indicia, clara e inequivocamente, a existência daquele critério diferenciador- subordinação jurídica- designadamente os factos 2, 6 e 7, aliados à existência de um período fixo de trabalho por dia e à retribuição igualmente de montante fixo.

                        E nada provou acerca dos, pela Ré invocados, intenção da trabalhadora de outorgar um contrato de prestação de serviços, perfeita consciência da mesma em relação à diferença entre os dois tipos de contratos, total autonomia do seu trabalho (sendo altamente improvável concluir por essa mesma autonomia em funções do tipo das realizadas pela B...-  de limpeza e cozinha), estabelecimento do horário apenas preferencialmente, sem

ter sido fixado qualquer horário diário, e não necessidade da referida B... de justificar qualquer ausência.

                        Ou seja, a demonstração de factos que, clara e inequivocamente, denotassem a manifesta inexistência da subordinação jurídica.

                        Assim, sendo, nada há a apontar à sentença, quando conclui pela existência de um contrato de trabalho.
                        - a litigância de má-fé:

                        Aqui a recorrente suscita a questão de que a  sua condenação como litigante de má-fé constituiu uma “decisão surpresa”, uma vez que não foi suscitada pelas partes, nem a Ré foi, previamente, ouvida sobre tal matéria, como impõe o princípio do contraditório.

                        Desde já se adianta que assiste razão à recorrente.
                   Um dos princípios basilares do direito processual civil é  o princípio do contraditório, previsto no artº 3º, nº 3, do Cod. Proc. Civil.

                        Dispõe este normativo legal – aplicável ao caso em apreço por força do disposto no art. 1º n.º 2 al. a) do Cod. Proc. Trabalho – que o juiz “deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
                        Ao estabelecer este normativo legal, não há dúvida que o legislador impõe ao juiz, enquanto principal garante de um correcto e equilibrado desenvolvimento do processo em ordem a que se obtenha, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio, que nas suas intervenções ao longo do processo observe o princípio do contraditório, dando sempre às partes nele envolvidas a oportunidade de se pronunciarem sobre questões de direito ou de facto que se lhe suscitem, ainda que oficiosamente, antes de proferir qualquer decisão (mesmo que interlocutória), obstando, desse modo, à prolação das denominadas decisões surpresa, ou seja, decisões que se revelam completamente inesperadas para qualquer das partes envolvidas no litígio, inserindo-se, aliás, essa imposição no respeito por um primacial dever de lealdade que deve existir entre os diversos operadores judiciários, de forma a que, mais facilmente, se possa alcançar aquele objectivo último da uma justa composição do litígio.

            Dispõe o artº 542, nº 1, do CPC que “Tendo litigado de má -fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir”.

A litigância de má-fé opera oficiosamente, apenas estando a condenação em indemnização à parte contrária dependente do pedido do beneficiário.

                        Verificando o tribunal a litigância com má-fé, material ou processual, cumpre-lhe condenar o litigante doloso ou que agiu com negligência grave, mesmo que a outra parte não haja requerido tal condenação.

              Não obstante a parte contrária nada ter requerido, a Srª Juíza, porque entendeu que estavam verificados os respectivos pressupostos, condenou a Ré como litigante de má fé.

            Mas fê-lo sem dar oportunidade à Ré para, previamente, se pronunciar sobre tal matéria.
                        Ora, como vem sendo unanimemente entendido na jurisprudência, mesmo quando haja condenação oficiosa, o litigante de má fé deve ser previamente ouvido ao abrigo do princípio do contraditório - Neste sentido, cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 17/11/98,  in www. dgsi.pt, do STJ de 28/02/2002 in CJ- ACSTJ, Ano X, Tomo I, pag, 111, do STJ de 28/02/2002,  da Rel. Lisboa de 5/5/05 e de 12/03/2009, da Rel. Porto de 6/10/2005, de 06/06/2006 e de 04/07/2007,  todos in www.dgsi.pt.
                        O Ac. n.º 440/94 do Tribunal Constitucional, publicado no DR, II Série de 01/09/1994, condicionou a constitucionalidade da norma constante do art. 456º, nºs 1 e 2 do Velho CPC, na parte relativa à condenação oficiosa em multa por litigância de má-fé, à sua interpretação e aplicação em termos de tal condenação depender de prévia audição dos interessados sobre tal  matéria.

                        Como se escreveu no referido acórdão “seja qual for a natureza que se atribua à sanção imposta aos litigantes condenados por má fé, o certo é que tal condenação representa, não só uma oneração pecuniária com determinada expressão económica mais ou menos significativa, mas constitui também, ou ao menos na generalidade dos casos pode constituir, uma forte lesão moral susceptível de afectar gravemente a dignidade pessoal e profissional daquele que a sofreu. E assim sendo, parece justificar-se plenamente no âmbito de disposição material daquele preceito (fazendo-se referência ao art. 3º do CPC) que aos interessados no juízo de censura ali previsto seja assegurado o exercício da contradição perante o tribunal onde litigam”.
                         No mesmo sentido os Acs. do TC n.º 357/98 de 12/05/1998 e n.º 289/02 de 03/07/2002, in www.tribunalconstitucional.pt..
                        Impõe-se, assim, a revogação, nesta parte, da decisão recorrida.
                                                                       x

                        Decisão:

                        Nestes termos, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida na parte em que condenou a Ré em 30 UC por litigância de má-fé, e confirmando-se, na parte restante, a mesma sentença.

                        Custas do recurso pela Ré- apelante.

                       

                                                          

                                                                       Coimbra, 26/09/2014

                                                            (Ramalho Pinto - Relator)

                                                            (Azevedo Mendes)

                                                            (Joaquim José Felizardo Paiva)