Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
221/14.9SBGRD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA BOLIEIRO
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
COMETIMENTO DE NOVO CRIME
REVOGAÇÃO
AUDIÇÃO DO CONDENADO
Data do Acordão: 02/06/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (J L CRIMINAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 50.º E 56,º N.º 1, AL. B), DO CP; ART. 495.º, N.º 2, DO CPP
Sumário: I – A suspensão da execução da pena de prisão é uma pena de substituição cujo cumprimento é feito em liberdade e pressupõe a prévia determinação da pena de prisão, em lugar da qual é aplicada e executada.

II – A revogação da suspensão, acto decisório que determina o cumprimento da pena de prisão substituída, não constitui uma consequência automática da conduta do condenado, antes depende da constatação de que as finalidades punitivas que estiveram na base da aplicação da suspensão já não podem ser alcançadas através dela, infirmando-se definitivamente o juízo de prognose sobre o seu comportamento futuro.

III – A exigência de audição pessoal e presencial prevista no citado normativo [art. 495 nº 2 do CPP] se impõe sempre que esteja em causa a revogação da suspensão, quer o fundamento respeite à falta de cumprimento das condições da suspensão, prevista na alínea a) do artigo 56.º, n.º 1, do Código Penal, independentemente de tais condições terem sido sujeitas a apoio e fiscalização por determinadas autoridades ou serviços, mormente de reinserção social, com ou sem regime de prova, quer consista na condenação de crime cometido durante o período da suspensão, em que se revele que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas, nos temos previstos na alínea b) do citado artigo 56.º, n.º 1.

IV – A revogação traduz-se num acto decisório que contende com a liberdade do condenado, porquanto tem como consequência o cumprimento da pena de prisão substituída.

V – O que justifica que o direito constitucional de contraditório e de audiência subjacente ao respectivo procedimento seja sempre e em qualquer caso assegurado pela forma prevista no artigo 495.º, n.º 2 do CPP, mediante a audição pessoal e presencial do arguido.

VI – A revogação da suspensão que se processe sem ter sido dada a oportunidade de o condenando se pronunciar pessoal e presencialmente nos termos do artigo 495.º n.º 2 do CPP, revela-se atentatória das apontadas garantias de defesa constitucionalmente consagradas, pelo que a preterição do direito de audição prévia com as características estabelecidas no citado normativo constitui nulidade insanável cominada no artigo 119.º, alínea c), do CPP.

Decisão Texto Integral:
           


                  
Acordam, em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório 
1. No processo comum (tribunal singular) n.º 221/14.9SBGRD, do Juízo Local Criminal da Guarda – Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, o Mmo. Juiz decidiu, nos termos do disposto no artigo 56.º, n.os 1, alínea b), e 2 do Código Penal, revogar a suspensão da execução da pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, decretada por igual período, com regime de prova, aplicada ao arguido , com os demais sinais dos autos, e o consequente cumprimento da referida pena em que fora condenado na sentença proferida nos autos e que transitou em julgado em 22 de Maio de 2015.
2. Inconformado com a decisão, dela recorreu o arguido que finalizou a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
O douto despacho recorrido violou os comandos dos artsº 55º e 56º, do C. Penal, e dos artsº 1º, g), 61º, nº 1, b), 213º e 370º, do C. P. Penal.
De facto, é insuficiente a simples, sumária e subjectiva apreciação dele constante no sentido de que, com a prática de um novo ilícito penal, se deve, sem mais, concluir que não foram alcançadas as finalidades que estavam na base da suspensão. 
Acrescendo que os crimes são de natureza distinta já que um (roubo) é contra o património e, o outro, (ofensa à integridade física) é contra as pessoas.
Ao não ter ouvido o arguido nem ordenado a realização do relatório social, para além de violar um direito daquele, o Tribunal ficou sem os necessários elementos para proferir uma decisão fundamentada.
A qual deverá, pois, ser revogada, mantendo-se a suspensão da pena.
Julgando procedente, nos termos das conclusões supra, o presente recurso farão, Vossas Excelências, JUSTIÇA”.
3. Admitido o recurso, respondeu o Digno Magistrado do Ministério Público pugnando no sentido de que seja negado provimento, para o que alega, em síntese, que, levando-se em consideração a atitude que foi demonstrada pelo condenado no decurso de todo o período de suspensão da pena e, especialmente, a condenação em pena de prisão efectiva pela prática de crime que protege, em parte, o mesmo bem jurídico – a integridade física das pessoas, crime esse cometido no período de suspensão da execução da pena aplicada nos presentes autos, outra decisão não poderia ter tomado o Mmo. Juiz a quo, senão a revogação de tal suspensão, com cumprimento efectivo da pena de prisão em que aquele foi condenado. Se tal decisão não tivesse sido tomada, sairiam fortemente defraudadas as expectativas da sociedade, face às elevadíssimas necessidades de prevenção especial que, no caso vertente, se fazem sentir.
4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.° do Código de Processo Penal (doravante CPP), emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, em que, para além de tomar posição com a mesma linha de fundamentação que consta da resposta do Ministério Público da 1.ª instância, assinalou ainda que, não tendo a revogação dos autos sido decretada ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 56.º do Código Penal, no presente caso não é aplicável o disposto no artigo 495.º, n.os 1 e 2 do CPP, não sendo obrigatória a audição do arguido, nem a mesma se justificava, tal como a elaboração de relatório social, uma vez que a condenação posterior em pena de prisão efectiva, no período de suspensão da execução da pena, já por si só é reveladora de que as finalidades da suspensão não foram alcançadas, encontrando-se, pois, verificados os pressupostos previstos na citada alínea b).
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não foi apresentada qualquer resposta.
6. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre agora decidir.
                                                         *
II – Fundamentação 
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do CPP que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões formuladas na motivação, as quais delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar[1], sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso[2].
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, são as seguintes as questões a decidir:
- Se o despacho recorrido deveria ter sido precedido de audição presencial do arguido, nos termos previstos no artigo 495.º, n.º 2 do CPP, e qual a consequência dessa omissão.
- Não se entendendo assim, se estão preenchidos os pressupostos que fundamentam a revogação da suspensão da execução da pena de um ano e dois meses de prisão, aplicada ao recorrente nos presentes autos.
                                                          *
2. O despacho recorrido.
2.1. O despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição):
“Como refere o Ministério Público na promoção que antecede (e sobre a qual o condenado, apesar de notificado, não se pronunciou), constata-se que o aqui condenado …, nos presentes autos, por sentença transitada em julgado no dia 22 de Maio de 2015, foi condenado pela prática de um crime de roubo, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, a qual foi suspensa na sua execução pelo mesmo período de 1 ano e 2 meses, com regime de prova.
Para que a referida suspensão fosse aqui decidida, foi ponderado designadamente o seguinte: “a imagem global da factualidade em apreciação, pese embora não seja a mais favorável, reúne, ainda, elementos que a nosso ver permitem conceder uma derradeira oportunidade ao arguido de orientar a sua vida em termos conformes com o direito, sem carecer de efectiva privação da sua liberdade, nomeadamente, às dificuldades sociais e profissionais de que os mesmos padecem. Nesse sentido, entendemos que a censura e ameaça de prisão efectiva decorrentes desta decisão desempenharão um papel pedagógico, forçando o arguido a consciencializar-se da gravidade da sua conduta, sem que para tanto, necessite de sofrer os efeitos criminógenos resultantes do cumprimento de uma pena de prisão efectiva, que atenta a sua idade e situação económica e social se reputa de pouco recomendável.”.
Sucede que, por um lado, na execução do aludido regime de prova, a DGRSP viria a informar nos autos que o aqui condenado “ao longo do acompanhamento, revelou fraca consciência crítica quanto ao desvalor da sua conduta, assim como não efectuou o pagamento €85,91 à ULS da Guarda, a título de indemnização, por danos patrimoniais”.
Para além disto, resulta agora sobretudo documentado nos autos a fls. 381 a 411 que o mesmo … veio a ser novamente condenado, desta feita no âmbito do processo n.º 156/16.0SBGRD, deste mesmo Juízo Local Criminal da Guarda, pela prática no dia 24 de Março de 2016 (ou seja, dentro do período de suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada nos presentes autos) de um crime de ofensa à integridade física simples, tendo-lhe sido então aplicada a pena de 1 ano e 2 meses de prisão efectiva, mediante decisão já transitada em julgado.
Ora, assim sendo, dispõe o artigo 56º do Código Penal, sob a epígrafe “Revogação da suspensão”, que:
1. A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:
a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou
b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
2. A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença (...).”.
E assim sendo, concordamos com o expendido pelo Ministério Público no sentido de que se verifica aqui que a nova conduta e condenação ora detectadas ao condenado e que se acabam de referir permite concluir que o mesmo, no decurso do período de suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada nos presentes autos, cometeu novo crime, com uma componente de natureza idêntica ao crime pelo qual havia sido aqui condenado, e pelo qual (também por isso) foi já condenado em pena de prisão efectiva, revelando, por essa via, que as finalidades que estavam na base da suspensão (e que foram supra aludidas) não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
Será ainda de realçar a este respeito que o bem jurídico protegido com o crime da nova condenação - integridade física da pessoa humana - é o mesmo que o arguido parcialmente violou com a sua conduta pela qual foi condenado nos presentes autos (por um crime de roubo), pelo que, dúvidas não nos restam de que se impõe a efectiva e vigorosa protecção de tal bem jurídico, pelo qual o arguido não demonstra de todo suficiente respeito.
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no artigo 56º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do Código Penal, decide-se revogar a suspensão da execução da pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão que nos presentes autos foi aplicada ao condenado …, com o consequente e necessário cumprimento efectivo de tal pena.
Notifique, sendo-o o condenado quer directamente, que na pessoa da sua ilustre defensora”.                                              
                                                             *
2.2. Com relevo para a decisão do presente recurso, resulta ainda dos autos que:
a) Por sentença proferida nos presentes autos, transitada em julgado em 22-05-2015, foi o arguido … condenado pela prática, no dia 10-08-2014, em autoria material e na forma consumada, de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, suspensa pelo igual período, com regime de prova, mediante um plano de reinserção social com especial relevo no desenvolvimento de competências ao nível dos relacionamentos sociais e da inserção do arguido (à data desempregado) no mundo do trabalho, com acompanhamento pela DGRSP – cf. fls.3 a 20.
b) Na promoção referida no despacho recorrido, o Ministério Público fez constar o seguinte:
“O arguido , nos presentes autos, por douta sentença do dia 22.4.2015, devidamente transitada em julgado no dia 22.5.2015, foi condenado pela prática de um crime de roubo, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, com sujeição a regime de prova, crime este que, para além do património, também protege o bem jurídico – integridade física.
Resulta, porém, da certidão junta a fls. 381 e ss. que, o condenado, no decurso do período de suspensão da pena de prisão em que foi condenado nos presentes autos, cometeu novos factos contra a integridade física de terceira pessoa, concretamente no dia 24.3.2016, que determinaram a respetiva condenação, pela prática de crime de ofensa à integridade física, na pena de 1 ano e meses de prisão efetiva, por douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra já transitado em julgado.
Dispõe o art.º 56º do Código Penal, sob a epígrafe “Revogação da suspensão”, que:
(…)
Verifica-se que a conduta ora detetada ao condenado permite concluir que, o mesmo, no decurso do período de suspensão da pena aplicada nos presentes autos, cometeu novo crime, com uma componente de natureza idêntica ao crime pelo qual foi condenado nos presentes autos, pelo qual foi já condenado em pena de prisão efetiva, revelando, por essa via, que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
Por outro lado, o bem jurídico protegido – integridade física, é o mesmo que o arguido violou pela conduta agora conhecida, pelo que, dúvidas não restam que, se impõe a, efetiva e vigorosa, proteção de tal bem jurídico, pelo qual o arguido não demonstra qualquer respeito.
Pelo exposto, em conformidade com o art.º 56º n.º 1 al. a), do Código Penal, promove-se seja decidida a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, em que o arguido foi condenado nos presentes autos, e, em consequência, seja ordenado o cumprimento efetivo da pena de prisão, de 1 ano e 2 meses de prisão, determinada na douta sentença proferida nos presentes autos” – cf. fls.82 e v.º.

c) O Mmo. Juiz a quo ordenou a notificação da citada promoção ao arguido, quer directamente, quer na pessoa da sua defensora, para, querendo, se pronunciar a seu respeito, no prazo de 10 dias – cf. fls.83.
d) A Ilustre defensora foi notificada da dita promoção por via postal registada e o arguido foi notificado por via postal simples com prova de depósito, ao que nada disseram – cf. fls.85 a 88.
e) No processo n.º 156/16.0SBGRD, considerado no despacho recorrido, por sentença proferida em 24-02-2017, confirmada por Acórdão desta Relação, transitado em julgado em 19-03-2018, foi o arguido condenado pela prática, em 24-03-2016, de um crime de ofensa à integridade simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão efectiva – cf. fls.21 a 51.
                                                        *
3. Apreciando.
Nos presentes autos está em causa a revogação da suspensão da execução da pena de um ano e dois meses de prisão aplicada ao recorrente, com base no fundamento previsto na alínea b) do artigo 56.º, n.º 1 do Código Penal.
Como é sabido, a suspensão da execução da pena de prisão é uma pena de substituição cujo cumprimento é feito em liberdade e pressupõe a prévia determinação da pena de prisão, em lugar da qual é aplicada e executada.
Para além do pressuposto formal de que a medida da pena imposta ao agente não seja superior a cinco anos de prisão, a suspensão da execução da pena de prisão tem como pressuposto material a formulação de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento daquele, em que o tribunal conclua que, atenta a sua personalidade, as condições de vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as respectivas circunstâncias, a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal).
O juízo de prognose favorável reporta-se ao momento em que a decisão é tomada e pressupõe a valoração conjunta de todos os elementos que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do agente, no sentido de que irá sentir a condenação como uma solene advertência, ficando o eventual cometimento de novos crimes prevenido com a ameaça da prisão, daí se extraindo, ou não, que a sua socialização em liberdade é viável.
Levando-se em linha de conta que a finalidade político-criminal visada com o instituto da suspensão da execução da pena reside no “afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novo crimes”, sendo, pois, decisivo “o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização traduzida na «prevenção da reincidência»”.[3]
Por sua vez, a revogação da suspensão, acto decisório que determina o cumprimento da pena de prisão substituída, não constitui uma consequência automática da conduta do condenado, antes depende da constatação de que as finalidades punitivas que estiveram na base da aplicação da suspensão já não podem ser alcançadas através dela, infirmando-se definitivamente o juízo de prognose sobre o seu comportamento futuro.
Neste contexto, conforme dispõe o artigo 56.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
Na situação em análise, a revogação depende da verificação da dupla condição consubstanciada no cometimento de novo crime que infirmou definitivamente o juízo de prognose favorável em que a suspensão se baseou, no sentido de que deixou de ser possível esperar, fundadamente, que daí para a frente o condenado se afaste da prática de outros ilícitos.
Aquele segundo elemento pressupõe, pois, que em concreto e tendo por referência o momento em que se toma a decisão, o cometimento do crime superveniente é demonstrativo de que não se cumpriram as expectativas que motivaram a aplicação da suspensão e que esta se revela, assim, inadequada para se alcançarem as finalidades da punição, ou seja, que o arguido não volte a delinquir.
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Feito este intróito, passemos, então, à primeira questão a decidir, relativa à não audição prévia presencial do arguido.
Neste contexto, diz-se no recurso que o despacho recorrido não foi precedido da audição presencial do arguido, a qual se impõe, em obediência ao postulado no artigo 61.º, n.º 1, alínea b), do CPP, sendo que omissão de tal diligência, para além da falta de relatório social, quando é boa prática determinar a sua realização, não só viola um direito daquele, como priva o tribunal dos elementos necessários para proferir uma decisão fundamentada.
Vejamos, pois.
Por sentença proferida nos presentes autos e que transitou em julgado em 22-05-2015, foi o recorrente condenado pela prática, no dia 10-08-2014, em autoria material e na forma consumada, de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, suspensa pelo igual período, com regime de prova, mediante um plano de reinserção social com especial relevo no desenvolvimento de competências ao nível dos relacionamentos sociais e da inserção do arguido no mundo do trabalho, com acompanhamento pela DGRSP.
Perante a condenação, transitada em julgado, por crime de ofensa à integridade física simples, praticado no decurso do período de suspensão (24-03-2016), o Mmo. Juiz a quo proferiu o despacho recorrido em que, ao abrigo do disposto no artigo 56.º, n.os 1, alínea b), e 2 do Código Penal, decidiu revogar aquela suspensão da execução da pena, com o consequente e necessário cumprimento efectivo da pena de prisão.
Esta decisão revogatória não foi precedida de audição presencial do recorrente, sendo que, para o exercício do contraditório, foi o mesmo notificado por via postal simples com prova de depósito (para além da notificação por via postal registada efectuada à sua defensora), para, querendo, no prazo de dez dias se pronunciar sobre a promoção que o Ministério Público havia formulado nos autos, no sentido daquela revogação.
Ora, em matéria de revogação da suspensão da execução da pena de prisão, estatui o artigo 495.º, n.º 2 do CPP que “o tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão, bem como, sempre que necessário, ouvida a vítima, mesmo que não se tenha constituído assistente”.
Entendemos que a exigência de audição pessoal e presencial prevista no citado normativo se impõe sempre que esteja em causa a revogação da suspensão, quer o fundamento respeite à falta de cumprimento das condições da suspensão, prevista na alínea a) do artigo 56.º, n.º 1 do Código Penal, independentemente de tais condições terem sido sujeitas a apoio e fiscalização por determinadas autoridades ou serviços (cf. artigos 51.º, n.º 4 e 52.º, n.º 4, ambos do Código Penal), mormente de reinserção social, com ou sem regime de prova (cf. artigos 53.º e 54.º, ambos do Código Penal) [4], quer consista na condenação de crime cometido durante o período da suspensão, em que se revele que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas, nos temos previstos na alínea b) do citado artigo 56.º, n.º 1.
Na verdade, o apontado elemento pessoal exigido no acto preparatório da decisão de revogação emerge da necessidade de garantir um efectivo direito de defesa, sendo que a solução que impõe que o condenado se pronuncie pessoalmente na presença do juiz, e não por meio de alegação escrita (do defensor ou até mesmo do próprio), traduz um especial acautelamento do contraditório, que, relevando do interesse em jogo – a liberdade (cf. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 6/2010, de 15 de Abril de 2010[5]) – deve ser assegurado em iguais moldes, quer o fundamento em causa respeite à alínea a) do indicado artigo 56.º, n.º 1, quer tenha em vista a situação preconizada na alínea b) do mesmo normativo, como sucede nos presentes autos.
Como acima se deixou dito, a suspensão da execução da pena de prisão reveste a natureza de uma verdadeira pena autónoma, ainda que a sua aplicação ocorra por via da substituição de uma pena de prisão prévia e concretamente determinada, sendo que a sua revogação não constitui uma consequência automática da conduta do condenado, antes depende da constatação de que as finalidades punitivas que estiveram na base da aplicação da suspensão já não podem ser alcançadas através dela, infirmando-se definitivamente o juízo de prognose sobre o comportamento futuro daquele.
Ora, a revogação traduz-se num acto decisório que contende com a liberdade do condenado, porquanto tem como consequência o cumprimento da pena de prisão substituída.
O que justifica que o direito constitucional de contraditório e de audiência subjacente ao respectivo procedimento seja sempre e em qualquer caso assegurado pela forma prevista no artigo 495.º, n.º 2 do CPP, mediante a audição pessoal e presencial do arguido.
Assim, mesmo que esteja em causa a revogação por condenação por crime cometido durante o período da suspensão, que, como se disse antes, não resulta em efeito revogatório automático, antes pressupõe a constatação de que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas, sem que, porém, isso signifique rediscutir os fundamentos daquela decisão condenatória, necessariamente transitada em julgado, a garantia do contraditório deve ser observada nos mesmos moldes dos que os previstos para as situações da alínea a) do artigo 56.º, n.º 1 do Código Penal, não se vislumbrando qualquer razão que suporte uma distinção que conduz a que, no caso da alínea b) do citado normativo, a audição pessoal e presencial seja preterida.
Muito pelo contrário, o direito de defesa constitucionalmente consagrado (artigo 32.º, n.º 1 da CRP) e as suas concretizações de contraditório e de audiência, também com assento constitucional (artigo 32.º, n.º 5 da CRP)[6], impõem que seja assegurado o mesmo tratamento no correspondente iter procedimental.
Daí que a referência, no citado artigo 495.º, n.º 2, à “presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão”, tem em vista regular a participação (necessária) do aludido técnico no acto de audição do condenado e não restringir a realização desta diligência essencial ao direito de defesa do arguido apenas aos casos em que a suspensão da execução da pena tiver sido sujeita a condições apoiadas e fiscalizadas por entidades (acompanhada, ou não, de regime de prova).
A revogação da suspensão que se processe sem ter sido dada a oportunidade de o condenando se pronunciar pessoal e presencialmente nos termos do artigo 495.º. n.º 2 do CPP, revela-se atentatória das apontadas garantias de defesa constitucionalmente consagradas, pelo que a preterição do direito de audição prévia com as características estabelecidas no citado normativo constitui nulidade insanável cominada no artigo 119.º, alínea c), do CPP.
No sentido do entendimento acima enunciado, vejam-se os Acórdãos desta Relação de 16-01-2008 (processo n.º 21/03.1 GTGRDA.C1), 05-11-2008 (processo n.º 335/01.5TBTNV-D.C1), 03-12-2008 (processo n.º 70/97.7IDSTR.C1) e 18-05 2010 (processo n.º 200/04.4GTAVR.C1), da Relação do Porto de 03-12-2008 (processo n.º JTRP00041926), da Relação de Guimarães de 22-02-2011 (processo n.º 150/03.1TAGMR.G1) e da Relação de Lisboa de 24-09-2015 (processo n.º 4/01.6GDLSB.L1-9), bem como a jurisprudência citada nos dois últimos arestos indicados.[7]
Por seu turno, na doutrina, de referir Paulo Pinto de Albuquerque[8] que, no contexto do citado artigo 495.º, n.º 2, sustenta que “o arguido deve ser ouvido pessoal e presencialmente, sendo irrelevante o motivo da revogação da suspensão, sob pena da nulidade do artigo 119.º, alínea c), uma vez que a lei não relaciona a audição do arguido com motivo nenhum em especial”.
Também na doutrina, André Lamas Leite[9] assinala que, estando em causa a revogação de uma pena substitutiva não detentiva que importa uma constrição de direitos fundamentais do condenado, apenas compatível com o exaustivo apuramento dos factos que preenchem o conceito jurídico incumprimento das obrigações impostas, seja qual for a sua natureza (incluindo-se, pois, aqui a obrigação de não cometer novos delitos, comum a todas as modalidades de suspensão), não se concebe como ficaria o juiz em condições de concluir pela impossibilidade de as finalidades da suspensão serem alcançadas, quando um outro delito tenha sido praticado, sem ouvir primeiro o condenado, sendo que a imediação e a oralidade desempenham aqui um papel não despiciendo.
Donde, conclui o mesmo autor, “a sua inobservância conduz a uma nulidade insanável do art. 119.º, al. c), do CPP, dado o art. 495.º, n.º 2, do mesmo diploma, exigir a comparência do arguido (não somente entendida em sentido físico, mas também processual) perante o juiz antes de este se decidir pela revogação ou não da pena suspensa, mais se verificando que o n.º 2 do art. 495.º tem de ser lido em conjunto com o n.º 1, o qual remete para o art. 56.º in totum, no qual figura a não comissão de um novo delito como uma das obrigações impostas ao condenado. Aliás, este entendimento sai reforçado pela revisão operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, porquanto vinca o exercício do contraditório ao prever que a audição do condenado se faça «na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão» (art. 495.º, n.º 2, do CPP). Sublinhe-se que, mesmo nas hipóteses de a pena substitutiva em estudo ser aplicada na sua modalidade simples, logo, sem acompanhamento por técnicos de reinserção social, o regime permanece inalterado. De facto, a referência a esses profissionais visa somente fornecer ao juiz, por intermédio da sua intervenção, conhecimentos especializados sobre o alegado incumprimento da pena suspensa, para além do normal exercício do contraditório pelo condenado. A ratio não é, pois, a de aligeirar a exigência legal cuja violação redunda em uma nulidade insanável, sempre que a suspensão não seja acompanhada por técnicos da DGRS”
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Revertendo ao caso dos autos, temos, pois, que, apesar de o recorrente ter sido notificado, por via postal com prova de depósito, para se pronunciar sobre a revogação promovida pelo Ministério Público e que veio a ser decretada no despacho recorrido, a verdade é que foi preterido o direito à audição pessoal e presencial previsto no citado artigo 495.º, n.º 2, o que configura a nulidade insanável cominada no artigo 119.º, alínea c), do CPP, que deve ser declarada (mesmo oficiosamente, embora aqui não seja o caso) em qualquer fase do processo.
Impondo-se, por conseguinte, declarar a nulidade do despacho recorrido e determinar que o arguido, ora recorrente, seja ouvido pessoal e presencialmente sobre as razões que fundamentam a revogação da suspensão, neste caso, nos termos previstos na alínea b) do artigo 56.º, n.º 1 do Código Penal.
Após a realização das diligências que em função de tal audição venham a revelar interesse e utilidade (o que, sublinhe-se, não envolve a obrigatoriedade de elaboração de relatório social; este será solicitado se tribunal a quo o reputar útil e com interesse para a decisão a tomar), será proferida nova decisão sobre a revogação (caso se conclua no sentido de que as finalidades que estiveram na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas), ou não, da suspensão da execução da pena de prisão que foi imposta ao recorrente.
*
Em consequência, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo recorrente.
*
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência, declarar nulo o despacho recorrido e determinar que, ouvido pessoal e presencialmente o recorrente e realizadas as diligências que venham a revelar interesse e utilidade, seja proferida nova decisão sobre a revogação, ou não, da suspensão da execução da pena de prisão.
 Sem tributação.

Coimbra, 6 de Fevereiro de 2019
(O presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela primeira signatária e assinado electronicamente por ambos os signatários – artigo 94.º, n.os 2 e 3 do CPP)

Helena Bolieiro (relatora)

Brízida Martins (adjunto)

[1] Na doutrina, cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113. Na jurisprudência, cf., entre muitos, os Acórdãos do STJ de 25-06-1998, in BMJ 478, pág.242; de 03-02-1999, in BMJ 484, pág.271; de 28-04-1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193.
[2] Cf. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28-12-1995.
[3] Cf. Jorge de Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2.ª reimp., 2009, § 519, pág.343.
[4] Neste sentido, cf. o Acórdão desta Relação de 05-04-2017, proferido no processo n.º 18/15.9GTLRA.C1, também relatado pela aqui relatora.
[5] Acórdão publicado no Diário da República, 1.ª Série, n.º 99, de 21 de Maio de 2010.
[6] Cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol.I, Coimbra Editora, 2007, págs.522-523: o âmbito normativo-constitucional do princípio do contraditório (artigo 32.º, n.º 5, 2.ª parte) significa, relativamente ao destinatário arguido, “o direito de intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, o que impõe designadamente que ele seja o último a intervir no processo”. “Quanto à sua extensão processual, o princípio abrange todos os actos susceptíveis de afectar a sua posição, e em especial, a audiência de discussão e julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar, devendo este ser seleccionados sobretudo de acordo com o princípio da máxima garantia de defesa do arguido”.
[7] Todos disponíveis na Internet em <http://www.dgsi.pt>.
[8] Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção dos Direitos do Homem, 4.ª ed., Universidade Católica Editora, 2011, pág.1252.
[9] Cf. André Lamas Leite, “A Suspensão da execução da pena privativa de liberdade sob pretexto da revisão de 2007 do Código Penal”, in Stvdia Ivridica 99, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2009, págs.620-623.