Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
45/11.5TASRT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOURAZ LOPES
Descritores: BUSCA DOMICILIÁRIA
REQUISITOS
Data do Acordão: 02/17/2011
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA SERTÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 174º E 177º CPP
Sumário: 1. Para que se ordene a realização de uma busca domiciliária, a lei exige a verificação dos seguintes requisitos:
a) só é admitida quando houver indícios de que os objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontrem em lugar reservado ou não livremente acessível ao público;
b) tem que ser efectuada entre as 7 e as 21 horas (com excepção das situações a que se refere o artigo 177º n.º 2);
c) antes de se proceder à busca é entregue, salvo nos casos do n.º 5 do artigo 174º, a quem tiver a disponibilidade do lugar em que a diligência se realize, cópia do despacho que a determinou, na qual se faz menção de que pode assistir à diligência e fazer-se acompanhar ou substituir por pessoa da sua confiança e que se apresente sem delonga.
2.- O juízo a efectuar pelo juiz exige uma fundamentação mínima, sustentada nos «indícios», não sendo necessário que os mesmos atinjam o grau de «indícios suficientes» , mas também não são simples “suspeitas”.
Decisão Texto Integral: Em decisão sumária, ao abrigo do disposto no artigo 417º n.º 6 do CPP, decide-se:

I. RELATÓRIO.
No processo Comum n.º 45711.5tasrt o senhor Juiz de instrução indeferiu uma promoção do Ministério Público no sentido de ser realizada uma busca domiciliária a um suspeito da prática de um crime de abandono e/ou maus tratos, previsto e punido pelo artigo 138º, nº 1 alínea b) e 152º A do Código Penal.
Não se conformando com a decisão o Ministério Público veio interpôr recurso da mesma para este Tribunal, concluindo na sua motivação nos seguintes termos:
«1- A M. Juiz indeferiu a promovida busca, sustentando que, por um lado, não existem indícios do crime de abandono e/ou maus tratos.
2- Todavia, do recente relatório de ocorrência n° 51/10 da GNR de ..., elaborado em 15-12-2010 resulta que, na residência de MJ..., sita em …, ..., nesta comarca e desde há cerca de dois meses, funciona um lar ilegal que acolhe três idosas (com idades aproximadas de 74, 85 e 94, respectivamente), onde é frequente ouvir as referidas pessoas de idade avançada a gritar.
3- E que a suspeita MJ... tem vindo a recusar as visitas dos familiares.
4- Mais, não permitiu a entrada na mencionada casa à Segurança Social, nem prestou qualquer informação (vide documento proveniente da Segurança Social, elaborado no recentíssimo dia 18-01-201 1).
5- Daqui resultam indícios da prática, por parte de MJ..., de eventual crime de abandono e/ou de maus tratos, previstos e punidos, respectivamente, pelos artigos 138°, n° 1, ai. b) e 152°-A, n° 1, ai. a), ambos do Código Penal.
6- Na casa de MJ..., suspeita-se que possam ser encontrados objectos relacionados com o crime ou importantes para a prova de tais crimes. 7- Por outro lado, a M. Juiz sugere a audição prévia da médica do Centro de Saúde.
8- Acontece que das duas uma: esta diligência levaria à confirmação dos indícios, sendo, por isso, inútil.
9- Ou no caso da médica do Centro de Saúde não vislumbrar elementos de prova indiciários de abandono e/ou maus tratos, também daqui não resultaria uma negação dos indícios já existentes (gritos das idosas, recusa por parte dona do «lar ilegal” em permitir o acesso aos elementos da Segurança Social e até mesmo a familiares das idosas que as querem visitar).
10- A busca domiciliária é, pois, a única forma de descobrir a verdade, seja ela qual for.
11- A M. Juiz, ao indeferir a promovida busca, violou o disposto nos artigos 138°, n° i, ai. b) e 152°-A, no 1, ai. a), ambos do Código Penal e artigos 174°, nos i a 4, 176° e 177°, n° 1, estes do Código de Processo Penal, no sentido de que, como defendemos nós, existem indícios, suspeitas da prática, por parte de MJ..., de eventual crime de abandono e/ou de maus tratos.

O senhor Procurador Geral-Adjunto nesta Relação limitou-se a colocar «visto», evitando o cumprimento do disposto o artigo 417º nº 2, justificando para isso razões de celeridade.

II. FUNDAMENTAÇÃO
Face às alegações de recurso apresentadas, maxime às suas conclusões, a questão em apreciação prende-se com a constatação da existência ou não de pressupostos legais, no caso, que permitam autorizar a busca domiciliária solicitada pelo Ministério Público.

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Importa, antes de tudo atentar no despacho objecto de recurso.
«Pelo Digno Magistrado do M.P., a fls. 8 a 9, é promovida a realização de uma busca ao domicílio da suspeita MJ..., por, em seu entender, se extrai dos autos indícios da prática, por parte de MJ..., de eventual crime de abandono e/ou de maus tratos, previstos e punidos, respectivamente, pelos artigos 138°, n° 1, ai. b) e 152°-A, no 1, ai. a), ambos do Código Penal e se suspeitar que possam ser encontrados objectos relacionados com o crime ou importantes para a prova, tais como vestígios de sangue, observar as condições de higiene e sanitárias do “lar” ou até mesmo o aspecto fisico das idosas e se estão bem alimentadas, etc.
Cumpre apreciar.
Atenta a inviolabilidade do domicílio (n.° 1 do artigo 34.° da C.R.P.), a busca domiciliária só pode ser ordenada ou autorizada pelo Juiz, nos termos dos artigos 34.°, 2 da C.R.P., artigo 174.°, 3, artigo 177.°, 1 e 269.°, 1, c) e 2 do CPP.
Todavia, para que a busca seja ordenada ou autorizada, é necessário, de acordo com o n.° 2 do artigo 174.° CPP, que haja indícios de que objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, ou o arguido ou outra pessoa que deve ser detida, se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público.
Ou seja, em primeira linha, exige-se que haja indícios da prática de um crime, o que não se verifica, a nosso ver, nos autos.
A prova recolhida, até ao momento, é manifestamente escassa para se concluir nesse sentido.
Não se mostra, de todo, suficiente o facto da suspeita não ter acedido à solicitação da Segurança Social de visitar a sua casa, nem o facto de ter recusado, segundo o que se sabe, por uma vez, a visita de familiares das pessoas alegadamente acolhidas em sua casa (sem se apurar em que circunstâncias tal recusa ocorreu), nem, ainda e sem mais, o facto de se ouvirem gritos (alegadamente das idosas).
É que, em lado algum, no relatório de ocorrência é relatado que as idosas estão a ser maltratadas, se apresentam mal-nutridas, etc.
Ademais, resulta do relatório de ocorrência junto aos autos que as idosas serão assistidas por uma médica do Centro de Saúde, pelo que se nos afigura que, previamente, se deverá diligenciar pela sua inquirição, estando esta especialmente habilitada para se pronunciar sobre o estado de saúde e demais condições de acolhimento das idosas.
Pelo exposto, à míngua de mais elementos, indefere-se à promovida busca.
Notifique.
Devolva os autos ao M.P.
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Comece por referir-se que no âmbito da estrutura normativa do CPP vigente a prática de determinados actos processuais necessários à investigação criminal a serem praticados nas fases preliminares do processo, exigem a intervenção do juiz de instrução.
Trata-se, como se sabe, de um reflexo directo do princípio da garantia judiciária ou seja, da atribuição constitucional da competência para realizar ou autorizar actos que possam colidir com os direitos fundamentais do cidadão a um Juiz, que decorre directamente do artigo 32.º n.º 4 da CRP: “Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais”.
Nesse contexto a busca domiciliária, acto processual em causa no recurso, consubstanciador de um meio de obtenção de prova, só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz desde que verificados determinados requisitos e obviamente no âmbito do principio geral da ponderação e proporcionalidade.
Assim e no que respeita àqueles requisitos, a busca (i) só é admitida quando houver indícios de que os objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontrem em lugar reservado ou não livremente acessível ao público; (ii) tem que ser efectuada entre as 7 e as 21 horas (com excepção das situações a que se refere o artigo 177º n.º 2); e (iii) antes de se proceder á busca é entregue, salvo nos casos do n.º 5 do artigo 174º, a quem tiver a disponibilidade do lugar em que a diligência se realize, cópia do despacho que a determinou, na qual se faz menção de que pode assistir à diligência e fazer-se acompanhar ou substituir por pessoa da sua confiança e que se apresente sem delonga.
Ora o que está em causa, nos autos é saber se existem indícios a que se refere o artigo 174º n.º 1 e 2, ou seja, «de que os objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontrem em lugar reservado ou não livremente acessível ao público».
Face ao conjunto factual disponível em que sustenta o despacho em apreciação, existem neste caso os seguintes indícios:
a) Está identificada uma pessoa (MJ...) em cuja habitação funcionará um lar onde se encontram pelo menos 3 idosos a quem é paga uma contraprestação (cf. relatório da ocorrência efectuada pela GNR e declarações prestadas por uma participante e informação da Segurança Social ao Ministério Público – fls. 11);
b) Tal «lar» é ilegal, na medida que não tem autorização da Segurança Social (cf. doc. de fls 11 da segurança social).
c) A pessoa identificada em 1) recusou-se a consentir na entrada dos serviços de fiscalização da Segurança Social e recusou-se a prestar qualquer informação.
d) Houve queixas (identificadas) de que teriam sido ouvidas «as idosas a gritar» no interior da residência.
e) A um familiar de uma das idosas terá sido recusada a entrada no «lar».
Como referimos em anterior publicação, «a valoração sobre a existência de um substracto «mínimo» que possibilite a conclusão de que há alguma relação entre factos sobre os quais se permitam conclusões sobre a existência de crimes não pode, por isso, deixar de ser efectuada pelo juiz, no momento da decisão. Trata-se, no entanto, de um juízo de natureza perfunctória que pode ser feito a partir de segmentos de prova existentes sem uma consolidação que permita já o conhecimento global do objecto do processo. (…) O juízo a efectuar pelo juiz, se bem que não se funde na utilidade do meio de obtenção de prova, exige uma fundamentação mínima, sustentada nos «indícios», que como se referiu supra, não revestindo o grau de «indícios suficientes» também não são simples «suspeitas» - cf. José Mouraz Lopes, A tutela da imparcialidade endoprocessual no processo penal português, Coimbra Editora, Coimbra, 2005 p.153 .
Ora é absolutamente inequívoco que a factualidade referida consubstancia a existência de indícios de que no interior da residência em causa podem existir objectos relacionados com a prática do crime de maus tratos previsto e punido pelos artigos 138º n.º 1 alínea b) e 152º A n.º 1 alínea d) do Código Penal.
Recordem-se os elementos típicos daqueles crimes: «quem colocar em perigo a vida de outra pessoa: a) expondo-a em lugar que a sujeite a uma situação de que ela só por si não possa defender-se; ou abandonando-a sem defesa, sempre que ao agente coubesse o dever de a guardar, vigiar ou assistir (…)» (artigo 138º nº 1 do CP) e «quem, de modo reiterado ou não, inflingir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais (…) a pessoa particularmente indefesa, em razão da idade …) que com ele coabite» (artigo 152º n.º 1 alínea d) do CP).
O que se quer dizer é que, sem qualquer dúvida, no caso dos autos esse juízo de natureza perfunctória está absolutamente sustentado porquanto aquele conjunto de segmentos (indícios) que se referem, sem necessidade de outro tipo de meio de prova, são suficientes para sustentar a o juízo perfunctório referido relacionado com aqueles eventuais crimes e, por isso passíveis de fundar a admissibilidade da busca à habitação indicada.
E, nessa medida existem claros fundamentos para autorizar a busca requerida.

III. Dispositivo.

Nesta conformidade decide-se revogar a decisão de primeira instância e ordenar que seja efectuada nova decisão, agora, deferindo a requerida busca domiciliária nos termos legalmente admissíveis.
Sem tributação.
Notifique.


Mouraz Lopes