Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1110/15.5T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: HERANÇA
PATRIMÓNIO AUTÓNOMO
DÍVIDAS DA HERANÇA
PARTILHA
HERDEIROS
SOLIDARIEDADE
NULIDADE DA SENTENÇA
IMPUGNAÇÃO DE FACTO
RECURSO
Data do Acordão: 12/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA - GUARDA - JC CÍVEL E CRIMINAL - 3ª SEC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.513, 524, 2097, 2098 CC, 615, 640 CPC
Sumário: 1. A sentença só é nula por contradição entre os seus fundamentos e a decisão se a contradição for lógica, isto é se na fundamentação da sentença o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente.

2. Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente.

3.Relativamente aos credores da herança, enquanto esta permanece indivisa o devedor é apenas um, ou seja, é esse património autónomo (art. 2097º do CC).

4. Mas após a partilha, esse devedor desaparece, dando lugar a uma pluralidade de devedores, tantos quantos os herdeiros, determinando-se a medida da responsabilidade destes pela proporção da quota que lhes tenha cabido na herança (art. 2098º, nº 1, do CC).

5. As obrigações dos herdeiros da herança partilhada perante os credores desta não são solidárias, pois nada na lei impõe tal solidariedade (arts. 513º e 2098º do CC), por isso, não sendo ao credor permitido exigir a cada herdeiro mais do que a proporção da sua quota na herança.

6. Nem, portanto, existe tal solidariedade internamente, não assistindo, por isso, ao herdeiro que, porventura, pague mais do que aquela proporção o direito de regresso contra os demais herdeiros (art. 524º do CC).

7. Não cabe aos tribunais de recurso conhecer de questões novas (o chamado ius novarum), mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo, com vista a confirmá-la ou revogá-la.

Decisão Texto Integral:



I – Relatório

 

1. C (…), M (…)  e V (…), todos residentes em Pinhel, interpuseram a presente acção declarativa contra A (…) e F (…), ambos residentes em Pinhel, pedindo que seja:

– reconhecido o direito de regresso que os AA detêm sobre os RR na proporção das suas responsabilidades na quantia a que solidariamente estavam obrigados por força de sentença judicial;

– o R. A (…) condenado a reconhecer tal direito de regresso dos autores e condenado na entrega aos mesmos da quantia global de 85.655,98 €, por ser esta a medida da sua responsabilidade na quantia global despendida pelos AA;

– o R. F (…) condenado a reconhecer tal direito de regresso dos AA e condenado na entrega aos mesmos da quantia global de 10.278,72 €, por ser esta a medida da sua responsabilidade na quantia global despendida pelos autores.

Para tanto, e em síntese, alegaram que tanto os AA como os RR foram executados no Processo de Execução nº 249/14.9T8GRD-A, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Guarda, sendo que o R. A (…) o foi por si e na qualidade de herdeiro da executada originária M (…), sua mulher já falecida, e os AA, a sua irmã G (…) e o réu F (…), o foram na qualidade de herdeiros habilitados da dita executada originária, sua mãe já falecida, tendo o R. A (…), ali executado e mulher sido constituídos devedores solidários dos exequentes, J (…) e M (…) por força de sentença já transitada em julgado, em quantia que se veio a apurar ser de 139.422,21 €. Por causa da inacção dos demais obrigados naquele pagamento, os AA acordaram com os exequentes o pagamento extintivo da dívida, pelo valor de 130.000 €. Para o efeito, pediram um empréstimo bancário conjunto, pondo termo à execução, com o qual despenderam a quantia global de 3.791,58 € em variadas despesas, tendo ainda despendido com a Agente de Execução, a quantia global de 3.257,99 €. Que os demais obrigados solidários, A (…), G (…) e F (…), não quiseram intervir na resolução da acção judicial pendente e a que todos estavam obrigados e são igualmente coobrigados, na respectiva proporção, cabendo ao réu A (…) o montante global peticionado e a cada um dos demais herdeiros coobrigados o montante global de 10.278,72 €, que não pagam, salvo a G (…) que já o fez.

O R. A (…) contestou, impugnando os factos alegados pelos AA e, em reconvenção, alega não ter recebido as tornas a que tinha direito, no montante de 81.399,25 €, apesar de constar o contrário na escritura de partilhas por morte da sua mulher, celebrada em Agosto de 2005, tendo um crédito sobre os autores. Mais alega que o 1º A. levantou da conta bancária do reconvinte, sem autorização, a quantia global de 15.000 € euros e que lhe deve 10.000 € referente à venda de móveis.

Pediu em reconvenção que:

- se declare que as tornas da partilha por morte da sua mulher e mãe dos autores e co-réu nunca lhe foram pagas;

- se declare que o valor das tornas a receber é de 81.399,25 €;

- se condene todos os autores a pagar-lhe a quantia de 149,25 €;

- Se condene o 1º A. C (…) a pagar-lhe a quantia de 25.000 €.

O R. F (…), também contestou, impugnando os factos alegados pelos AA e sustentando que a solidariedade do devedor originário não se prolonga aos seus herdeiros, mantendo estes em conjunto a posição do de cujus e, após a partilha, o devedor originário desaparece, dando lugar a uma pluralidade de devedores, sendo que a medida da responsabilidade se determina pela proporção da quota que lhe caiba na herança, pelo que é permitido ao credor exigir a cada herdeiro mais do que a proporção da sua quota da herança e nem assiste ao herdeiro que pague mais do que aquela proporção direito de regresso contra os demais herdeiros.

Os AA replicaram, impugnando os factos alegados na reconvenção e sustentando ter havido efectivo pagamento das tornas, nada mais havendo a reclamar, e quanto aos levantamentos/movimentos da conta foram-no feito pelo 1º A., co-titular da conta, com conhecimento do reconvinte e demais irmãos, sendo que relativamente à venda efectuada pelo reconvinte ao 1ª A. este pagou o preço acordado.

*

A final foi proferida sentença que julgou totalmente improcedentes a acção e a reconvenção e, em consequência absolveu os RR dos pedidos formulados pelos AA e absolveu os AA dos pedidos reconvencionais formulados pelo reconvinte A (...) .  

*

2. Os AA recorreram, concluindo que:

(…)

3. Inexistem contra-alegações.

II – Factos Provados

1. Por apenso ao à acção declarativa de condenação, com a forma de processo ordinário n.º 249/14.9T8GRD, no Tribunal Judicial da Comarca de Guarda correu termos o Processo de Execução n.º 249/14.9T8GRD-A, sendo exequentes J (…) e mulher M (…), contra o réu A (…), por si e na qualidade de herdeiro da executada originária M (…), sua mulher falecida em 24 de Janeiro de 2004, na pendência da acção de condenação, os autores, e os irmãos dos autores, G (…)e o réu F (…), na qualidade de herdeiros habilitados da referida executada originária, sua mãe.

2. O réu A (…), executado e mulher M (…) (herdeiros habilitados), foram condenados no processo n.º 249/14.9T8GRD (antigo processo n.º 676/01, do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Guarda), por sentença transitada em julgado, “a demolirem e reconstruírem a moradia dos autores (os exequente) a partir da primeira laje, de acordo com o projecto e memória descritiva aprovados e existentes na Câmara Municipal com os pilares e vigas em falta, num período de seis meses, sendo que na reconstrução deverão ser aplicadas as benfeitorias incorporadas pelos AA. e resultam provadas em AA) dos factos provados, as quais, na medida em que tiverem de ser retiradas por força da obra a realizar; (…) a pagarem aos AA. o valor que estes tiverem que despender com a nova habitação, enquanto as obras não forem concluídas, em cerca de 100.000$00/mês (equivalente em euros); - bem como nos prejuízos que advierem com a mudança de residência, em valor a liquidar em execução de sentença (…).”, cujo valor final de fixou, após realização de perícia, em 139.422,21 euros;

3. No processo de execução n.º 249/14.9T8GRD-A, os autores C (…), M (…) e V (…), chegaram a acordo com os Exequentes, reduzindo a quantia exequenda para o montante global de 130.000,00 euros, que pagaram, tendo contraído empréstimo bancário conjunto para o efeito, pondo termo à referida execução nos termos do requerimento junto a fls. 28, de seguinte teor e dirigido à Srª Agente de Execução:

1 Os executados, A (…) e mulher M (…) como promana dos autos, são devedores aos exequentes.

2 Pelo presente acordam os exequentes reduzir a quantia exequenda para o montante de € 130.000,00 (cento e trinta mil euros).

3 Quantia essa liquidada na sua totalidade, nesta data, por via de cheque bancário, pelos Executados, acima identificados, C (…), M (…) e V (…).

4 Apesar de devedores solidários de tal quantia, juntamente com os demais herdeiros A (…), G (…) e F (…).que neste acto não intervêm.

5 Mais declaram os Executados, acima identificados, C (…), M (…) e V (…), que se comprometem no pagamento das despesas, custas e honorários com a Agente de Execução serão por si liquidadas.

6 Apesar de igualmente neste campo devedores solidários de tais quantias, Juntamente com os demais herdeiros A (…), G (…) e F (…) .

7 Este facto determina que a presente Execução, melhor dizendo, o seu prosseguimento, deixa de ter qualquer interesse para os Exequentes.

8 Pelo que, salvo o devido respeito, deve ser ordenada a extinção da Execução.

9 Devendo considerar-se levantadas todas as penhoras existentes no âmbito da mesma.

10 Dando, neste documento quitação das quantias entregues.

11 Nomeadamente o depósito bancário penhorado, de que é titular C (…)e que servirá de garantia bancária para o presente pagamento.”

4. Requerimento que se encontra assinado pelo advogado dos exequentes e pelos executados  C (…), M (…) e V (…);

5. Os autores, despenderam no empréstimo bancário referido, a quantia global de 3.791,58 euros (despesas 4,00 euros, comissões 891,00 euros, impostos 710,80 euros, transferências 7,89 euros e juros 2.177,89);

6. Os réus A (…) e F (…), e a habilitada G (…) não quiseram intervir na resolução extra judicial da execução;

7. Os autores acordaram, ainda, no pagamento das despesas, custas e honorários com a Agente de Execução, que orçaram na quantia global de 3.257,99 euros;

8. Procedeu-se a partilha da herança deixada por óbito de M (...) , em 12 de Agosto de 2005, constando da mesma, nomeadamente, que “Declararam os outorgantes, A (…), G (…) e C (…), que já receberam as tornas a que tinham direito no valor de oitenta e um mil trezentos e noventa e nove euros e vinte e cinco cêntimos, dois mil oitocentos e oitenta e sete euros e quatro cêntimos e quatrocentos e setenta e três euros e oitenta e seis cêntimos”;

9. Não obstante tal declaração, o réu A (…) não recebeu as tornas;

10. O réu/reconvinte, A (…), vendeu ao autor C (…), Ldª uma retroescavadora da marca J.C.D. 3XX e uma viatura de mercadorias de matrícula (...) AC pelo preço global de 11.500,00 euros;

11. A quantia mencionada em 8. Foi paga mediante o cheque n.º (...) da conta n.º (...) da Caixa Geral de Depósitos, emitido em 1 de Outubro de 2010 por C (…), Unip. Ldª, descontado pelo réu A (…)

*

Factos não provados:

a) G (…) pagou aos autores a quantia de 10.278,72 euros;

*

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Nulidade da sentença.

- Alteração da matéria de facto.

- Direito de regresso dos AA sobre os RR e condenação no pagamento das quantias pedidas.

- Enriquecimento sem causa.

2. 2. Nos termos do disposto no art. 615º, nº 1, c) do NCPC, é nula a sentença cujos fundamentos estejam em oposição com a decisão.

Como ensina Lebre de Freitas (CPC Anotado, Vol. 2º, 2ª Ed., nota 3. ao artigo 668º = ao actual artigo 615º, pág. 704), “Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se.”.

Na sentença recorrida escreveu-se que:

“Por seu lado, nos termos do artigo 512º, do Código Civil “1. A obrigação é solidária, quando cada um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera, ou quando cada um dos credores tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral e esta libera o devedor para com todos eles.

2. A obrigação não deixa de ser solidária pelo facto de os devedores estarem obrigados em termos diversos ou com diversas garantias, ou de ser diferente o conteúdo das prestações de cada um deles; igual diversidade se pode verificar quanto à obrigação do devedor relativamente a cada um dos credores solidários.”.

Nos termos do artigo 513º, do mesmo código, “A solidariedade dos devedores ou credores só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes.

E, de acordo com o disposto no artigo 515º, n.º 1, do Código Civil, “Os herdeiros do devedor solidário respondem colectivamente pela totalidade da dívida; efectuada a partilha, cada co-herdeiro responde nos termos do artigo 2098º.”.

Artigo 2098º, n.º s 1 e 2, do Código Civil, que preceitua que “1. Efectuada a partilha, cada herdeiro só responde pelos encargos em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança.

2. Podem, todavia, os herdeiros deliberar que o pagamento se faça à custa de dinheiro ou outros bens separados para esse efeito, ou que fique a cargo de algum ou alguns deles.

Ora, dos factos provados resulta a qualidade de executados dos autores e réus por terem sido habilitados por óbito de M (…) e ainda o réu A (…) por ter sido condenado solidariamente no pagamento em causa no processo n.º 249/14.9T8GRD.

E subsumindo os factos ao direito, não se conclui, contrariamente ao defendido pelos autores, que se constituíram solidariamente responsáveis pelo valor dado à execução.

Na verdade, efectuada a partilha, cada herdeiro responde apenas pelos encargos em proporção da quota que lhe coube na herança.

Como bem refere o réu F (…), a solidariedade do devedor originário entretanto falecido, não se prolonga aos seus herdeiros. 1Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, 4ª edição revista e actualizada, anotação ao artigo 515º, pág. 531.

Antes da partilha não há solidariedade entre os herdeiros: estes mantêm apenas em conjunto a posição do de cujus, tal como resulta do 515º, n.º 1, do Código Civil e, após a partilha, há que atender à forma por que foi adjudicada a dívida: se foi adjudicada apenas a um herdeiro, este será um devedor solidário como já o era “de cujus”; se a dívida for adjudicada a vários herdeiros, estes mantêm a posição que tinham antes da partilha: não há entre eles solidariedade, mas, em conjunto, representam um credor solidário, aplicando-se o n.º 1, do artigo 2098º.

A lei estabelece regimes diferentes para a liquidação dos encargos da herança conforme esta se mantenha ainda indivisa ou tenha sido já partilhada.

“Se os herdeiros já se encontram determinados (embora a herança não esteja partilhada), aqueles são os representantes da herança, porque tal qualidade é-lhes conferida pelo artigo 2091.° do Código Civil. E daí que possam ser demandados por dívidas do de cujus, sendo, pois, partes legítimas em acção destinada à respectiva cobrança. Outro problema distinto é o de saber como, determinados os herdeiros, se devem liquidar os respectivos encargos. E aqui tem de se distinguir dois momentos: antes da partilha, os bens respondem colectivamente pela sua satisfação (artigo 2097.°); depois da partilha, cada herdeiro responde só pelos encargos na proporção da quota que lhe couber na herança, podendo até os herdeiros deliberar sobre a forma de efectuar esse pagamento (artigo 2098.°)”. 2Acórdão da Relação do Porto de 13/01/2003, Relator: Desembargador Paiva Gonçalves, in www.dgsi.pt/jtrp; Oliveira Ascensão, Direito das Sucessões, edição da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, págs. 613 e seguintes; Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, II, 2ª edição, págs. 118 e seguintes; e Eduardo dos Santos, O Direito das Sucessões, págs. 229/230.

A herança indivisa constitui um património autónomo ao qual a própria a lei atribui personalidade judiciária, enquanto a herança já partilhada deixou de existir como património autónomo, dissolveu-se ou diluiu-se nos patrimónios dos herdeiros, passando cada um dos bens que a integraram a confundir-se com os demais bens do herdeiro a quem foi adjudicado, sendo que após a partilha deixa de fazer sentido aludir a bens da herança, pois cada um desses bens entrou na esfera jurídica patrimonial do herdeiro a quem coube, perdendo qualquer ligação à herança que, enquanto património autónomo, deixou de ter existência jurídica.

Ou seja: relativamente aos credores da herança, enquanto esta permanece indivisa o devedor é apenas um, ou seja, é aquele património autónomo, dotado de personalidade judiciária e, por isso, susceptível de ser parte, isto é, de demandar e ser demandado; após a partilha, esse devedor desaparece, dando lugar a uma pluralidade de devedores, tantos quantos os herdeiros, sendo que a medida da responsabilidade destes determina-se pela proporção da quota que lhes tenha cabido na herança e não por qualquer outro critério, designadamente, pelo valor dos bens que lhes tenham sido adjudicados.

Conclui-se, pois, que as obrigações dos herdeiros da herança partilhada perante os credores não são solidárias, pois nada na lei impõe tal solidariedade (artºs 513º e 2098º), e também não resultou de um encontro de vontades, não sendo permitido ao credor exigir a cada herdeiro mais do que a proporção da sua quota na herança, nem assistindo ao herdeiro que porventura pague mais do que aquela proporção, direito de regresso contra os demais herdeiros. 3Acórdão da Relação de Coimbra de 12/09/2006, Proc. nº 365-B/1998.C1, in www.dgsi.pt.

E, sublinhe-se, o acordo celebrado entre os aqui autores e os exequentes, apenas é eficaz em relação aos intervenientes, sendo inócuas todas as expressões/frases onde se refira a devedores solidários com os demais herdeiros que não intervieram em tal acordo.

O que os autores deviam ter feito era pagar quantia correspondente à respectiva responsabilidade (quota herança) - como executados que eram na qualidade de herdeiros habilitados, respondem apenas pelas forças da herança, ou seja, pelos bens que hajam recebido em herança do de cujus, e não pela dívida a título pessoal ou com bens próprios.”.

Quer isto dizer que na fundamentação da dita sentença se entendeu que inexistia solidariedade entre AA e RR, pelo que aqueles não podiam pedir a estes o reembolso do que pagaram ao credor e que entendiam que os RR estavam obrigados (designadamente na parte apontada).  

Não existe, assim, qualquer contradição, mostrando-se a fundamentação de direito coerente com os factos apurados e com a decisão a que se chegou. Poderá haver erro de julgamento, por errada subsunção dos factos apurados ao direito, o que iremos verificar no infra ponto 4., mas contradição é que não existe.

Não se detecta, por isso, a nulidade apontada.

3. Pretendem os AA que o facto provado 9. passe a não provado e o facto não provado a) passe a provado.

Aquele facto provado foi alegado pelo R. A (...) , e serviu para fundamentar a compensação que peticionou reconvencionalmente. Acontece que este pedido reconvencional foi julgado improcedente. E desta parte da decisão não foi interposto recurso pelo R. A (...) .

Assim, estar provado ou não provado tal facto é irrelevante para decidir a sorte do recurso. O mesmo acontece com o facto não provado. Além de a G (...) não ser parte nesta causa, mesmo que ele passasse a provado também não interferiria com a decisão final do recurso.

Por conseguinte, na presente situação estamos perante uma impugnação da matéria de facto irrelevante. Na realidade, a impugnação da matéria de facto consagrada no art. 640º do NCPC não é uma pura actividade gratuita ou diletante.

Se ela visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorrectamente julgados, ela tem, em última instância, um objectivo bem marcado. Possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada ou não provada, para que, face à eventual nova realidade a que se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu. Isto é, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados ou não provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada.  

Assim, se por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for irrelevante para a solução da questão de direito e para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois nesse caso mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo factual anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente destituído de qualquer eficácia, por não interferir com a solução de direito encontrada e com a decisão tomada.

Por isso, nestes casos de irrelevância jurídica, a impugnação da matéria de facto não deve ser conhecida sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente (vide A. Geraldes, Recursos em Pro. Civil, Novo Regime, 2ª Ed., 2008, nota 11. ao art. 712º, pág. 298, e Ac. desta Relação de 12.6.2012, Proc.4541/08.3TBLRA, em www.dgsi.pt).

No caso dos autos, os pontos da matéria provada e não provada que os ora apelantes pretendem submeter a impugnação factual e análise por esta Relação, quedam irrelevantes, como acima ficou dito, já que, mesmo que dados por não provado e provado, respectivamente, como pretendido, nenhuma influência podem ter no mérito do recurso. Mesmo que dados como não provado e provado, como os impugnantes pretendes, não alterariam a decisão que tem e deve ser tomada sobre o objecto do recurso, com os restantes factos que estão assentes.

Desta sorte, a alteração da matéria de facto, nos pontos precisos indicados, seria inócua atento o pedido formulado pelos AA/recorrentes e a decisão sob recurso que foi proferida.  

Inexiste, por isso, motivo para alterar as respostas aos factos provados e não provados, nos termos pretendidos pelos apelantes.      

4. Como vimos no relatório supra, o fundamento da pretensão dos AA é o pagamento que os AA efectuaram para pôr termo ao Processo de Execução 249/14.9T8GRD-A (antigo proc. 676/2001), em que o R. A (…) era executado por si e na qualidade de herdeiro da executada originária M (…), sua mulher já falecida, e os AA, uma outra sua irmã (G(…)) e o R. F (…), todos executados na qualidade de herdeiros habilitados da referida executada originária, sua mãe, atento serem todos devedores solidários, tendo direito de regresso na respectiva proporção.

Ora, sob a dita problemática a sentença recorrida não merece nenhuma censura, pois decidiu correctamente com adequada fundamentação, já que levou em conta as normas legais pertinentes, a doutrina apropriada, que citou em concreto, e a jurisprudência que acertadamente invocou.

Neste particular aspecto a sentença seguiu de muito perto o aludido acórdão desta Relação de 12.9.2006, que se pronunciou sobre a mesma questão de direito em apreço nos autos, e fez muito bem, porque o dito acórdão se baseia numa análise convincente da lei e da doutrina.

Neste momento, pouco mais há que acrescentar, a não ser a falta de enfoque correcto da questão que os recorrentes patenteiam na sua conclusão de recurso F) e que os leva a distorcer inconscientemente a questão em apreço.

Assim, a sentença proferida na acção declarativa 249/14 (facto provado 2.) condenou o aí réu A (…) (e ora também réu) e a sua mulher M (…), que entretanto falecida ficou representada pelos seus herdeiros. Ou seja, a sentença condenou o dito A. (…)e o património da herança indivisa da falecida (…) (mulher daquele e mãe dos AA e do réu F. (…)). Importa, por isso, concluir que acabou por ser esta herança indivisa que foi condenada, com o A. (…) e que por isso pode responder pela prestação. Mas caso tenha havido liquidação da herança, cada um dos herdeiros só responde na proporção da quota que nela lhe coube, como se explicou claramente na decisão recorrida.

Ex abundante, recordemos, como mais um elemento de fundamentação convincente, a lição de A. Varela (CC Anotado, Vol. VI, nota 4. ao artigo 2097º, págs. 159/160), quando professa que a fórmula usada no Código de 1867 (art. 1255º), segundo a qual a herança respondia solidariamente pelas dívidas do autor dela, foi substituída neste art. 2097º do novo Código por uma outra fórmula: os bens da herança indivisa respondem colectivamente pela satisfação dos respectivos encargos. Fórmula manifestamente vantajosa.

Isto porque, por um lado, não é correcto falar em responsabilidade solidária da herança antes da partilha, porque a solidariedade pressupõe uma pluralidade de devedores com responsabilidade de cada um deles pelo cumprimento integral da prestação (art. 512º, nº 1), enquanto na herança indivisa não há ainda pluralidade de devedores; e quando com a partilha nasce a pluralidade de devedores, cada um deles passa a responder apenas, em princípio, pela quota parte da dívida correspondente à proporcionalidade da sua quota hereditária.

Acrescentando (ob. cit., nota 2. ao artigo 2098º, mesma pág. 160) que uma vez realizada a partilha da herança o panorama jurídico da responsabilidade pelos encargos dela sofre uma alteração substancial. A partir dessa divisão, passa a responder cada herdeiro, individualmente, pela satisfação de cada dívida da herança em proporção da quota que lhe coube na partilha.

Por conseguinte, como foi explicitado na sentença recorrida, não há qualquer responsabilidade solidária entre os herdeiros.

No nosso caso, sabemos que foi feita a partilha da herança (facto 8.). Passando cada herdeiro a responder individualmente pela sua quota parte da dívida e não solidariamente.

Desta sorte, a pretensão dos AA tinha que improceder, como improcedeu.  

5. Quanto ao enriquecimento sem causa, invocado pelos AA, ele não pode ser conhecido neste momento. É que esse acervo jurídico foi invocado pela 1ª vez, ora em recurso. Basta ver a p.i. e a réplica apresentada (sintetizadas no relatório supra, onde esta invocada realidade não foi alegada, antes tendo sido invocado outro fundamento).

Trata-se, pois, de uma questão nova posta em recurso. Ora, como é de todos sabido, e já foi dito e redito, infindavelmente, quer pela doutrina quer pela jurisprudência, os recursos ordinários são, entre nós, recursos de reponderação e não de reexame, visto que o tribunal superior não é chamado a apreciar de novo a acção e a julgá-la, como se fosse pela primeira vez, indo antes controlar a correcção da decisão, proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último. Não cabe, pois, aos tribunais de recurso conhecer de questões novas (o chamado ius novarum), mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo, com vista a confirmá-la ou revogá-la (vide L. Freitas, CPC Anotado, Vol. 3º, T. I, 2ª Ed., nota 5. ao art. 676º, pág. 7/8, e jurisprudência aí mencionada).

Tratando-se, por isso, de uma questão nova, não pode, agora, ser conhecida em fase de recurso. Nesta parte, improcede o recurso.         

6. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) A sentença só é nula por contradição entre os seus fundamentos e a decisão se a contradição for lógica, isto é se na fundamentação da sentença o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente;

ii) Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente;

iii) Relativamente aos credores da herança, enquanto esta permanece indivisa o devedor é apenas um, ou seja, é esse património autónomo (art. 2097º do CC);

iv) Mas após a partilha, esse devedor desaparece, dando lugar a uma pluralidade de devedores, tantos quantos os herdeiros, determinando-se a medida da responsabilidade destes pela proporção da quota que lhes tenha cabido na herança (art. 2098º, nº 1, do CC);

v) As obrigações dos herdeiros da herança partilhada perante os credores desta não são solidárias, pois nada na lei impõe tal solidariedade (arts. 513º e 2098º do CC), por isso, não sendo ao credor permitido exigir a cada herdeiro mais do que a proporção da sua quota na herança;

vi) Nem, portanto, existe tal solidariedade internamente, não assistindo, por isso, ao herdeiro que, porventura, pague mais do que aquela proporção o direito de regresso contra os demais herdeiros (art. 524º do CC);

vii) Não cabe aos tribunais de recurso conhecer de questões novas (o chamado ius novarum), mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo, com vista a confirmá-la ou revogá-la.

IV – Decisão

 

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

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Custas pelos AA recorrentes.

Coimbra, 6.12.2016

Moreira do Carmo ( Relator )

Fonte Ramos

Maria João Areias