Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
49/13.3GCCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS DESCRITOS NA ACUSAÇÃO
LEITURA DA SENTENÇA
Data do Acordão: 11/18/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (INSTÂNCIA LOCAL DE CALDAS DA RAINHA – SECÇÃO CRIMINAL - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 358.º, N.º 1, DO CPP
Sumário: Até à leitura da sentença, é legítima a aplicação, pelo tribunal, do instituto legal previsto no artigo 358.º, n.º 1, do CPP.
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo n.º 49/13.3GCCLDdoJudicial da Comarca de Leiria, Instância Local de Caldas da Rainha – Secção Criminal, mediante acusação pública, foi o arguido A... , filho de (...) e de (...) , natural da freguesia de (...) , concelho de Caldas da Rainha, nascido a 4/5/1947, casado, dentista, residente no x(....), Óbidos, submetido a julgamento, sendo-lhe, então, imputada a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, no decurso do qual foi comunicada uma alteração não substancial dos factos [cf. fls.220 e 221], por sentença de 16-01-2015 [depositada na mesma data] o tribunal decidiu [transcrição parcial]:


A) «Condenar o arguido A... pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;

B) Sob ponderação do disposto nos artigos 50.º, n.ºs 1 e 5, 51.º, n.º 1, alínea a), 52.º, n.º 1, alínea b), 53.º, n.ºs 2 e 3, e 152.º, n.º 4 in fine, todos do Código Penal, suspender, por idêntico período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses, a aludida pena de prisão, com sujeição do arguido a regime de prova assente em plano de reinserção social a elaborar pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, que vigiará e apoiará a respectiva execução, plano esse que, obedecendo ao disposto no citado artigo 54.º do Código Penal, deverá ir ao encontro das necessidades de reinserção do arguido que do relatório social de fls. 177 a 180 e, sobretudo, dos sobreditos factos provados em 37 a 39 e, nesse contexto, incluir a obrigação de o arguido frequentar o(s) programa(s) específico(s) de prevenção da violência doméstica que a D.G.R.S.P. venha a considerar adequado(s) para que altere a sua postura a atitude crítica face ao crime de violência doméstica, ficando ainda a suspensão subordinada ao dever de o arguido, até ao termo do aludido período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses, pagar à assistente/demandante a quantia e juros de mora infra referidos em E);

C) Condenar o arguido, quanto à parte criminal, em taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UC´s e, bem assim, nas demais custas do processo, incluindo nos honorários devidos à Ilustre defensora oficiosa - artigos 513.º, n.ºs 1 e 3, do Cód. Proc. Penal, e 8.º, n.º 9, e Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais;

D) Determinar que, após o trânsito em julgado do presente acórdão, nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 8.º, n.ºs 1 e 2, e 18.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro, e sem prejuízo do prévio cumprimento ao direito de informação nos termos do artigo 9.º do mesmo diploma legal, no caso de o ADN do arguido ainda não constar na base de dados de perfis de ADN, se diligencie no sentido de se proceder à recolha de amostras tendo em vista a obtenção de perfil de ADN do mesmo e a sua introdução na base de dados de perfis de ADN, conjuntamente com os seus dados pessoais, para efeitos de identificação criminal;

E) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por B... e, em consequência, condenar o demandado A... a pagar à demandante, a título de indemnização devida por danos não patrimoniais, a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), acrescida de juros moratórios à taxa legal de 4% desde a presente data de prolação deste acórdão até efectivo e integral pagamento;

F) Condenar demandante e demandado nas custas da parte cível, na proporção dos respectivos decaimentos - artigos 523.º do Cód. Proc. Penal e 527.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil.

*

     Notifique, procedendo-se ao imediato depósito nos termos do artigo 372.º, n.º 5, do Cód. Proc. Penal.

*

Após trânsito:

- Remeta boletim ao registo criminal;

- Comunique à Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 53.º, n.º 2, e 54.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, e 494.º, n.ºs 2 e 3, do Cód. Proc. Penal;

- Proceda à comunicação a que alude o artigo 37.º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16/9; e

- Cumpra o determinado na alíneas D) supra, devendo tomar-se em consideração que, em caso de alteração da medida da pena única em sede de eventual recurso, a recolha de ADN apenas deve ser efectuada se a pena concreta vier a ser fixada em medida igual ou superior a 3 anos de prisão.

(…)».

3. Inconformado com a decisão recorreu o arguido, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

I     - Das nulidades (invocável a título principal):

Ia - O acto de apossamento pela assistente (comprovado nos autos), da notificação da acusação (que havia sido correctamente expedida para a morada indicada pelo arguido aquando da sua sujeição ao TIR, nos termos do artigo 196°, n.º 2 do CPP, sem que tenha sido por ele comunicada qualquer alteração conforme exigido pela alínea c) do n.º 3 do artigo 196° do CPP) com a consequente entrega/devolução aos autos, fechada e intactamente, sem vestígios de abertura do correspondente envelope (significando, inquestionavelmente, que o arguido nunca lhe acedeu), consubstancia inexorável violação do direito à notificação da acusação - corolário inultrapassável das garantias constitucionais de defesa, nos termos das disposições conjugadas do artigo 32°, n.º 1 da CRP, do 277°, n.º

3, ex vi n.º 3-la parte, do artigo 283°, e do artigo 113°, n.º 9, do CPP.

1.1a - Perante esta realidade, terá de ceder o argumento do Mmo. Juiz a quo, baseado na parte final do n.º 3 do artigo 113°, do CPP de que a notificação ao arguido se deve considerar efectuada no 5o dia posterior à data indicada na declaração lavrada pelo distribuidor do serviço postal, porquanto tal realidade destrói, irrefutavelmente, a presunção contida neste normativo.

1.2a - Qualquer interpretação distinta da que preconizamos, mormente aquela que o Mmo. Juiz a quo fez do artigo 113°, n.º 3, do CPP, terá de reputar-se inconstitucional, por violação do artigo 32°, n.º 1 da CRP, na medida em que não pode considerar-se regularmente notificado da acusação, na morada objecto do TIR, indicada pelo arguido, sem que tenha sido comunicada por este qualquer alteração, se a notificação para aí expedida foi, comprovadamente, apossada pela assistente, constituída no mesmo processo, e por ela devolvida, fechada, intactamente e sem vestígios de abertura do correspondente envelope - o que, desde já, se suscita.

1.3a - In casu, está, pois, verificada a nulidade, não sanada, de falta de notificação da acusação (do M.P. e da assistente) ao arguido, a qual deverá determinar a invalidade e a anulação do acto dessa notificação e de todos os actos praticados subsequentemente à apresentação do requerimento da assistente de 27-05-2014, incluindo este requerimento, a audiência de julgamento e a sentença, renovando-os, com início na notificação das preditas acusações ao arguido (artigo 121°, n.°s 1 e 2, e 122°, n°s 1 e 2, do CPP).

2a - Conforme resulta da acta de fls. 219 a 221 (leitura da sentença), previamente a conferir à defesa a faculdade de se pronunciar nos termos do artigo 358°, n.º 1 do CPP, o Tribunal a quo:

a)   Já tinha, antecipadamente, formado uma convicção probatória absoluta quanto à demonstração dos factos caracterizadores da alteração não substancial dos narrados na acusação;

b)   Já tinha, antecipadamente, elaborado e redigido a sentença, nela integrando a posteriormente comunicada alteração não substancial dos factos descritos na acusação.

2.1a - Assim, se, como sucede in casu, a demonstração dos factos alterativos já estava, previamente ao cumprimento da comunicação exigida pelo citado n.º 1 do artigo 358° do CPP, consolidada no texto da sentença (pré-elaborada e redigida), o denunciado procedimento terá de constituir violação do regime desse normativo, o que, por inerência, fere a sentença de nulidade, nos termos do artigo 379°, n.º 1-b), do CPP - o que, na hipótese de não ser declarada invocada nas conclusões Ia a 1.3a (o que não se admite prevendo-se apenas por mera cautela e dever de patrocínio), a título subsidiário, também se invoca.

2.2a- Suscitando-se, igualmente, a inconstitucionalidade do artigo 358°, n.° 1, do CPP, por violação do artigo 32°, n.º 2 da CRP e do princípio in dubio pro reo que lhe subjaz, na medida em que o primeiro seja interpretado, como o Tribunal a quo o interpretou, no sentido de se permitir a elaboração e redacção da sentença, nela se integrando uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, com relevo para a decisão da causa, previamente ao cumprimento do estatuído nesse normativo; ou, dito de outro modo, na medida em que o artigo 358°, n.° 1, do CPP seja interpretado no sentido de que se permita que a comunicação pelo mesmo exigida seja efectuada após a sentença ter sido elaborada e redigida (ainda que não lida) com a inclusão, naquela, dos mencionados factos alterativos dos narrados na acusação.

II - Impugnação de fundo da decisão recorrida (subsidiariamente em relação às nulidades anteriormente invocadas):

3a - A matéria contida nos PONTOS 2 a 4 dos factos provados, tem uma formulação genérica, vaga, imprecisa, indefinida e destituída da densidade material necessária à superação do princípio in dubio pro reo e ao cumprimento dos princípios enformadores das garantias de defesa do arguido, onde se inserem, também, os princípios do acusatório e do contraditório, com consagração constitucional, no artigo 32°, n°s 1, 2 e 5-la parte da CRP.

3.1a - Tal matéria, traduz, dessa forma, meras imputações indeterminadas, que a jurisprudência dos nossos tribunais superiores tem decidido ser insusceptível de sustentar uma condenação penal, encontrando-se, neste conspecto, a sentença recorrida, a par da violação desses princípios, afectada do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do artigo 410°, n.º 2-a) do CPP, pelo que a matéria vertida nos PONTOS 2 a 4, não pode, nem poderia, ser valorada para efeitos de fundamentação da condenação do arguido, restando os PONTOS 5 a 17, cujos episódios não podem subsumir-se, para além de qualquer dúvida razoável, quer conjunta, quer individualmente apreciados, à conceptualização normativa de maus-tratos necessária ao preenchimento do tipo previsto no artigo 152°, n.°s 1-a) e 2 do CP

3.2a - A conclusão a extrair da matéria provada nos PONTOS 5 a 17 é a de que estaremos perante a prática isolada dos crimes de ofensa à integridade física simples, previsto no artigo 143°, n.º 1 do CP, e do crime de injúria, previsto no artigo 181°, n.º 1 do mesmo Código, punidos, respectivamente, com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa e com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa.

3.3a - Está é a única solução jurídico-penal compatível com princípio in dubio pro reo, consagrado no sobejamente citado artigo 32°, n.º 2, da CRP.

3.4a - Acontece que o prosseguimento do procedimento criminal relativamente a tal tipologia de ilícitos depende de queixa, no que concerne ao crime de ofensa à integridade física simples (artigo 143°, n.º 2 do CP), e da dedução de acusação particular, no que concerne ao crime de injúria (artigo 188°, n.º 1 do CP).

3.5a - A matéria vazada nos PONTOS 5 a 8 não foi objecto de queixa, nem, inerentemente, de acusação particular.

3.6a - Destarte, não está essa matéria em condições de legitimar a condenação do arguido, quedando-se essa legitimidade pelos PONTOS 9 a 17, reportados aos episódios de 17-02-2013, 22-06-2013 e 02-09-2013, dos quais emergem:

d)   1 crime de ofensa à integridade física, por referência ao acorrido em 17-02-2013;

e)   1 crime de ofensa à integridade física, em concurso efectivo, heterogéneo, com um crime de injúria, por referência ao ocorrido em 22-06-2013;

f)         1 crime de injúria, por referência ao ocorrido em 02-09-2013.

3.7a - As razões impugnatórias que vimos de expor nas conclusões anteriores terão de repercutir-se:

3.7.1a - Na redefinição e no redimensionamento da pena a aplicar ao arguido, devendo dar-se preferência à pena de multa, ainda que em substituição da pena de prisão, em consonância com o previsto nas disposições conjugadas dos artigos 43°, n.º 1 e 70° do CP, a fixar, segundo o prudente critério do Tribunal ad quem, de acordo com as regras previstas nos n°s 1 e 2 do artigo 47° do mesmo Código, em função dos diversos factores que nos são revelados pela matéria provada e dos requisitos estabelecidos no artigo 71° do CP.

3.7.2a — Na condenação cível, em que, concatenando os requisitos dos artigos 496°, n°s 1 e 3o-Ia parte, e 494°, do Cód. Civil, com a matéria provada nos PONTOS 9 a 17 e nos PONTOS 28, 30 e 32, se afigura justo e equitativo fixar como montante global da compensação a pagar pelo arguido à assistente o valor de € 2.500,00, em substituição dos € 5.000,00 arbitrados pelo Tribunal.

4a - Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o artigo 152°, n°s 1-a) e 2 do CP, bem como dos artigos 143°, n°s 1 e 2, 181°, n.° 1, 188°, n.° 1, do mesmo Código - estes últimos por omissão de aplicação, e o artigo 32°, n.°s 1, 2 e 5 da CRP; e, ainda, como decorrência dessa violação, o desrespeito do regime dos artigos 43°, n.° 1, 47°, n.°s 1 e 2, 70° e 71° do CP, também por omissão de aplicação, quanto à definição da pena; e do regime dos artigos 496°, n°s 1 e 3-Ia parte e 494° do Cód. Civil, no que se refere à condenação cível pelo ressarcimento de danos não patrimoniais.

4.1a - Essa violação decorreu da circunstância de ter interpretado tais normativos no sentido de que a matéria provada continha elementos suficientes para condenar o arguido pela prática do crime previsto no citado artigo 152°, n°s 1-a) e 2 do CP e em pena de prisão.

4.2a - Deveria tê-los interpretado em sentido contrário. Justamente no sentido que ficou precedentemente expresso nas conclusões 3a a 3.7.2a.

5a - Neste enquadramento, pugna-se pela prolação de acórdão que, na procedência dos fundamentos do presente recurso, determine a revogação da sentença recorrida, declarando, a título principal e como questão prévia, as nulidades invocadas; ou, assim não sendo, que, a título subsidiário (no caso de não provimento dessas nulidades), declare a errada qualificação jurídica dos factos, convolando-a para a imputação ao arguido dos crimes de ofensa à integridade física simples, em concurso real heterogéneo com o crime de injúria, alterando a pena de prisão para pena de multa e reduzindo o pedido de indemnização para a quantia de € 2.500,00.”

4. Por despacho de 21-07-2015 - cfr fls 342 - foi o recurso admitido, fixado o respectivo regime de subida e efeito.

5. Ao recurso respondeu o Ministério Público, concluindo:

“O despacho de fls. 147 e 148, e que aqui se dá por reproduzido, não padece de qualquer nulidade, tendo sido o arguido regularmente notificado da acusação.

A sentença proferida não padece de vício, nulidades ou irregularidades.

A matéria de facto dada como provada na sentença recorrida assentou na obtenção e produção de prova válida, conseguida e interpretada em rigoroso cumprimento de todas as imposições legais.

A qualificação jurídica dos factos dados como provados na sentença recorrida, a condenação e sua medida foram justas.

O Ministério Público subscreve integralmente a decisão judicial, por com ela concordar, pelo que defende que a mesma deverá ser mantida.

Sem mais, por se confiar na superior ponderação de Vossas Exas., peço Justiça!.”

6. Remetidos os autos à Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso, por entender que:

“(…) O regime legal previsto nas normas dos artigos 196.°, n.s. 2 e 6, al. c) e 113.°,n.°l 1, al. c), ambos do Código de Processo Penal dão resposta cabal à questão, ou seja, recai sobre o Arguido a obrigação de comunicar ao Tribunal qualquer alteração da morada constante do TIR. E sendo-lhe imputável - como no caso é - o não conhecimento da notificação não pode ser considerado uma beliscadura do direito de defesa.

O arguido A... sabia que tinha obrigação de indicar a alteração da morada e deliberadamente não o fez.

Quanto à devolução da carta por parte da Assistente, também não tem razão. O douto despacho recorrido, aliás, trouxe à colação a propósito o acórdão da Relação do Porto no qual se refere lapidarmente « O legislador, no artigo 113.°, n.3 do CPP, nenhuma distinção faz para os casos em que as cartas são devolvidas. Nem se perceberia que fizesse, pois, a maior parte das vezes, a devolução é algo que está na disponibilidade e arbítrio de terceiros, que decidem, ou não, reenvia-las à procedência. Não deve o intérprete distinguir onde o legislador quis dar tratamento idêntico».

Sobre a alegada violação da norma do artigo 358. n.º l do Código de Processo Penal:

Pode ler-se no douto acórdão desta Relação de 26.10.2011, relatado pela Exma. Desembargadora Isabel Valongo “ A expressão «no decurso da audiência» é utilizada no artigo 358.°, n.° 1 do C. P. P. abrangendo todo o período que vai da respectiva abertura até à leitura da sentença. Só com tal leitura fica precludida a possibilidade de o Tribunal proceder à alteração dos factos, nos termos do artigo 358.° e 359.° do C. P. P.”

A questão colocada não tem cabimento, pois a lei nem sequer impõe a indicação dos meios de prova. Quando o Tribunal faz a comunicação a que alude o artigo 358.° citado ( alteração não substancial dos factos) reporta-se a indícios e não a factos já dados como provados, indícios perante os quais a Defesa, se assim o entender conveniente e adequado, poderá requerer prazo para gizar e apresentar os seus argumentos e eventualmente apresentar novos meios de prova.

No caso, como se pode ver da acta de fls. 219/221, o Tribunal, nos termos do disposto no artigo 358.°, n.° 1 do C. P. P., comunicou, indicou quais os factos “não descritos na acusação que não implicavam a imputação de crime diverso ou a agravação do limite máximo da sanção aplicável e que eram susceptíveis de resultar provados” ( sublinhado nosso)

Mais consta daquela acta, a fls. 221, que «Foi dada a palavra à ilustre Defensora do Arguido, tendo pela mesma sido dito nada ter a requerer e prescindir do respectivo prazo de defesa».

Sobre a impugnação da matéria de facto e invocação do vício previsto do artigo 410.°. n. 2 .alínea a) do C. P.P.:

A reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação só é possível em dois planos diferenciados. Um, a que se convencionou chamar de “revista alargada”, visa aferir da existência de algum dos vícios previstos no artigo 410.°, n. 2 do C. P. P., vícios que têm que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos externos. Trata-se da verificação de erros de julgamento que se infiram do próprio texto da decisão, cujo conhecimento aliás é de conhecimento oficioso, independentemente de haver ou não recurso da matéria de facto.

Um segundo plano existe no qual é possível “ atacar” a facticidade dada como provada, procurando convencer o Tribunal da Relação a modificar a matéria de facto, pressupondo naturalmente uma reapreciação da prova.

Só que nesta segunda opção a reapreciação da prova está contida dentro dos limites impostos pelo artigo 412.°, n.° 3 e 4 do C. P. P. que mais não constitui do que um verdadeiro ónus de especificação que impende sobre o recorrente, sob pena de, não o fazendo, o recurso da matéria de facto ficar, por este prisma, de todo inviabilizado.

E que o recurso da matéria de facto não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso de todos os elementos de prova que foram produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas os pontos de facto impugnados com base nas provas indicadas pelo recorrente (entre outros, ac. do S.T.J. de 10.01.2007, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar, in dgsi.pt).

Com o referido ónus de impugnação e consequente indicação precisa dos pontos controvertidos, a lei pretende que o recorrente identifique claramente os pontos que reputa incorrectamente julgados, os meios probatórios que estão na base da censura e que, reapreciados, imponham decisão diversa da recorrida.

Como diz o Prof. Pinto de Albuquerque no Comentário do C. P. P., 4.a edição a fls. 1444 «a especificação dos “concretos pontos de facto” só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado».

Em referência ao caso sub judice é manifesto que nada disso foi feito.

Finalmente e concretamente quanto o alegado vício da insuficiência da matéria de facto dada como provada, é preciso perceber que tal vício só existirá quando exista uma lacuna no apuramento da matéria de facto para a decisão de direito.

Apenas se verificará tal vício quando o Tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto pertinente, de tal modo a que a matéria de facto, não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso.

Diremos portanto em conclusão que, porque clamorosamente incumprida a norma do artigo 412.° citada, o recurso sobre a matéria de facto não pode ser objecto de apreciação, razão pela qual é nosso parecer que devem V. Exas. manter a douta sentença recorrida, que não contem qualquer vício ou erro de julgamento, designadamente o previsto no artigo 410.°, n.° 2, al. a) do C. P. P..

A prova foi bem avaliada, mostra-se correctamente feita a subsunção dos factos na lei penal, revelando adequação e equilíbrio a pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa por igual período e sujeita a regime de prova.”

7. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, respondeu a assistente, ao parecer do Ministério Público, com que concorda e que acompanha, nos seguintes termos:

-  Da nulidade por falta de notificação da acusação

Io - O recorrente começa por invocar a nulidade da falta de notificação da acusação (do MP e da assistente) ao arguido. Só que, contrariamente ao pretendido pelo recorrente, o arguido foi efectivamente notificado, tendo a notificação sido efectuada nos termos do art. 113°, n.º l, al. c) do CPP.

2° - O recorrente foi constituído arguido em 15-04-2013, tendo também prestado termo de identidade e residência e indicou como morada para receber as notificações o x(....), 2510 Óbidos.

3o - Sabia assim, o arguido da sua obrigação de comunicar aos autos a mudança da residência bem como das consequências que adviriam se não cumprisse tal obrigação.

4o - O arguido abandonou o lar conjugal (sito no x(....)) em 30-04-2013 (cfr. ponto 28 da matéria de facto) sem ter comunicado ao Tribunal essa mudança de residência.

Após ter sido deduzida a acusação, o arguido foi notificado, por via postal simples, com prova de depósito, na morada por si indicada para receber as notificações, tendo sido respeitados todos os pressupostos da aludida notificação.

5o - O arguido não recebeu a notificação apenas porque não informou o processo que havia mudado de residência, como estava legalmente obrigado a fazer.

6o - A interpretação que o Sr. Juiz “a quo” fez do art. 113°, n° 3, não enferma de qualquer inconstitucionalidade, não violando qualquer preceito constitucional, nomeadamente o art. 32°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa.

-  Da segunda causa de nulidade invocada

7o - Na data designada para a leitura de sentença, o Sr. Juiz a quo nos termos do art. 358° do CPP, comunicou previamente ter-se verificado, no decurso da audiência, uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, pelo que elencou um conjunto de factos que “da prova até ao momento produzida em audiência de julgamento são susceptíveis de resultar provados,” comunicação que fez “ nos termos e para os feitos do art. 358°, n° 1 do CPP”. Só que, a Ilustre Mandatária do arguido, que estava presente, prescindiu do prazo para a preparação da defesa, dizendo ainda que nada tinha a requerer. Face a esta posição da defesa, o Senhor Juiz proferiu a sentença.

8o - É certo que, por uma questão de economia processual, o Sr. Juiz “a quo” havia já redigido a sentença no pressuposto que a defesa nada diria, pelo que a leu de imediato.

9o - E obvio que se a defesa tivesse apresentado provas e/ou alegações, a leitura da sentença não poderia ter sido efectuada de imediato, tendo de ser elaborada uma nova sentença tendo em consideração os elementos apresentados pela defesa.

10° - Uma sentença só existe enquanto tal após ser tomada pública e ser notificada às partes, sendo que, antes de isto acontecer, o Sr. Juiz pode escrevê-la, alterá-la, reescrevê-la. Improcede assim também a invocada nulidade.

-  Da impugnação da decisão recorrida

11° - O recorrente foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152°, n° 1, al. a) e c) do C. Penal.

12° - Entende o recorrente não estarem correctas as “premissas em que se funda, de facto e de direito” a sentença recorrida.

13° - O art. 152° do C. Penal, na redacção introduzida pela lei 59/2007 de 04/09, entende que existe crime de violência doméstica sempre que alguém, de modo reiterado ou não, infligir ao cônjuge maus tratos físicos ou psicológicos.

2

De entre os factos provados existem alguns que revelam especial crueldade e perversidade do arguido.

Destacamos os seguintes factos:

a)   O arguido empurrou a ofendida contra a parede, e agarrou-a com força pela cabeça, forçando-a a introduzir essa parte do corpo dentro do frigorífico ao mesmo tempo que lhe chamava “cabra” e “puta de merda” (pontos 5 e 6)

b)   O arguido “não gostando” do tom de voz da assistente dirigiu-lhe a seguinte expressão “sua puta, porque estás a falar assim?” e de seguida pulverizou-lhe a cara com gás pimenta, fazendo-a perder momentaneamente a visão e provocando-lhe uma dor intensa nos olhos (pontos 7 e 8)

c)   Quando a mulher disse ao arguido que já tinha advogado, este, com a mão fechada desferiu-lhe um murro na zona da boca e do nariz, o que a fez cair ao chão. Quando a assistente tentou fugir, empurrou-a para o chão e foi buscar uma bengala de madeira para lhe bater e desferiu-lhe, na zona da cabeça e do ombro, duas a três pancadas com a bengala o que lhe provocou dores e lesões (factos 9 a 15)

d)   No dia 22 de Junho, no interior da mesma residência, desferiu-lhe uma bofetada na cara, chamou-lhe “puta”, “filha da puta”, “cabra de francesa” proferindo ainda a frase “vou-te matar” (ponto 16)

e)   No dia 2 de setembro de 2013, pelas 16h30m, no interior da mesma residência, atirou várias cartas contra a cara da assistente, dizendo-lhe “toma lá, francesa de merda” (ponto 17).

14° - Resulta obviamente dos factos supra referidos que a assistente foi vítima de maus tratos, sendo que o arguido, com a sua atuação, ofendeu a dignidade pessoal da assistente, a humilhou e ofendeu, através de actos violentos, à sua saúde física, psíquica e emocional.

15° - Não se diga, pois, como pretende o recorrente, que as consequências que resultaram para a assistente se deveriam colocar num grau de baixa/média intensidade.

16° - É que, as consequências foram graves como resulta claramente da matéria provada!

17° - O arguido foi condenado a pagar à ora alegante a título de indemnização devida por danos não patrimoniais a quantia de € 5.000,00 euros. Pretende o recorrente que esse montante seja reduzido para € 2.500,00.

18° - Como questão prévia dir-se-á que o recurso da parte da sentença relativa à indemnização cível não é admissível.

19° - E isto porque o artigo 400°, n.º 2 do CPP estabelece que “o recurso da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do Tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para a recorrente em valor superior a metade dessa alçada.

20° - E, no caso sub judice tal não acontece, razão pela qual, no que ao pedido civil respeita, o recurso é inadmissível.

21° - De qualquer modo sempre se dirá que a indemnização arbitrada não pode, de modo algum, ser considerada exagerada.

22° - Sublinhe-se que a assistente sofreu sucessivas agressões físicas, algumas das quais demonstrativas de uma especial perversidade do arguido (introdução pelo arguido do corpo da assistente dentro do frigorífico, agressão com gás pimenta, murro na zona da boca e nariz, agressão com uma bengala...)

23° - Estas agressões tiveram consequências: perda de visão e dor intensa nos olhos (ponto 8), queda no chão e dores (pontos 11 e 12), edemas e equimoses da metade direita do lábio inferior e equimose de 4 cm na face interna do joelho direito o que lhe causou 6 dias de doença, sendo um com afectação da capacidade de trabalho (facto 15). 24° - Mas para além das agressões físicas, as humilhações foram constantes, sendo que o arguido quando actuava sabia que limitava a liberdade da assistente e a humilhava na sua honra e consideração, fazendo-a sentir-se diminuída enquanto pessoa e enquanto mulher, o que sucedeu.

25° - Acresce que ainda hoje a assistente continua a manifestar sentimentos de insegurança e receio face a uma eventual abordagem agressiva do arguido (ponto 29) e que,

26° - Tem como único rendimento € 360,00 euros de duas pensões de reforma.

27° - No que concerne ao arguido há que salientar que este tinha uma especial obrigação de não praticar os factos em causa uma vez que o arguido “é oriundo de uma família de classe média, tendo sido alvo de um modelo educativo caracterizado pela definição de regras e limites...” (ponto 23) e tem formação superior em medicina dentária (ponto 24) 28° - Por outro lado, continua a revelar “estereótipos e crenças culturais de género, ilustrativas da cristalização dos papéis masculino e feminino e da subordinação da mulher ao homem” (facto 27) “continua a manifestar sentimentos negativos para com a assistente/demandante” (facto 35) e “revela fraca capacidade para efectuar uma análise crítica, relativamente a facto similares, aqueles pelos quais foi acusado” (facto 39).

29° - Acresce que, contrariamente ao referido pelo recorrente nas suas alegações, aufere não só uma pensão de 700 euros mas aufere também “as receitas provenientes da rentabilidade dos bens do casal, que ainda não foram objecto de partilha” (ponto 32) e uma pensão do tempo em que trabalhou em França, de valor não inferior a 3.000,00 €.

30° - Assim, não existe qualquer razão para que a indemnização arbitrada à recorrente seja reduzida!

3 Io - Sintetizando:

a)   Não assiste qualquer razão ao recorrente, razão pela qual deverá improceder o recurso interposto.

b)   A d. sentença recorrida não violou qualquer preceito legal, devendo manter-se nos precisos termos em que foi proferida.”

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas da respectiva motivação, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

No presente caso questiona o recorrente:

-Nulidade da notificação da acusação;

- Inconstitucionalidade da interpretação do artigo 113°, n.° 3, do CPP;

- Nulidade da comunicação da alteração não substancial dos factos, por extemporânea;

- Ausência na decisão da necessária e indispensável concretização dos factos

- Errada qualificação jurídica penal dos factos;

- Os factos provados integram a prática isolada dos crimes de ofensa à integridade física simples, previsto no artigo 143°, n.° 1 do CP, e do crime de injúria, previsto no artigo 181°, n.° 1 do mesmo Código,

- A matéria dos PONTOS 5 a 8 não foi objecto de queixa, nem, inerentemente, de acusação particular,

- Dos PONTOS 9 a 17, reportados aos episódios de 17-02-2013, 22-06-2013 e 02-09-2013, emergem:

-    um crime de ofensa à integridade física, por referência ao acorrido em 17-02-2013;

-    um crime de ofensa à integridade física, em concurso efectivo, heterogéneo, com um crime de injúria, por referência ao ocorrido em 22-06-2013;

-    um crime de injúria, por referência ao ocorrido em 02-09-2013.

- Repercussão na escolha e medida da pena;

- Repercussão no valor da indemnização cível arbitrado.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença recorrida [transcrição parcial]:

“III.1 - Os factos:

    

III.1.1 - Produzida a prova e discutida a causa, resultaram PROVADOS os seguintes factos com relevância para a decisão da mesma (desconsiderando o que, designadamente descrito na acusação e no pedido de indemnização civil deduzidos pela assistente/demandante, traduz, de forma clara, e salvo o devido respeito, meros juízos de valor ou conclusivos):

1. O arguido e a assistente/demandante B... casaram em 20 de Dezembro de 1966, em Paris, França.

2. Em 1985 vieram residir para Portugal, tendo-se a partir de então agravado a atitude de agressividade e autoritarismos que, já em França, o arguido tinha para com a sua esposa.

3. Do casamento entre ambos nasceram dois filhos, um dos quais falecido em 30-01-2004, com 24 anos de idade.

4. A partir dessa data a relação entre o casal deteriorou-se cada vez mais, aumentando as discussões entre ambos, evidenciando o arguido atitudes cada vez mais agressivas para com a esposa, dirigindo-lhe, frequentemente, as seguintes expressões: “sua cabra”, “maluca”, “puta” e “porca”.

5. Em data não concretamente apurada, mas certamente situada em meados de 2011, no interior da residência sita no x(....), o arguido empurrou a ofendida contra a parede da cozinha e agarrou-a com força pela cabeça, forçando-a a introduzir essa parte do corpo dentro do frigorífico.

6. Nessa mesma ocasião dirigiu-lhe as expressões: “cabra” e “puta de merda”.

7. No dia 4 de Outubro de 2011, ao final da tarde, no interior da mesma residência, o arguido questionou a assistente/demandante sobre onde tinha comprado um croissant e, não gostando do tom da resposta daquela, dirigiu-lhe a expressão: “sua puta, porque estás a falar assim?”.

8. Em seguida, o arguido pulverizou a cara da assistente/demandante com gás pimenta, fazendo-a perder momentaneamente a visão e provocando-lhe uma dor intensa nos olhos.

9. No dia 17 de Fevereiro de 2013, cerca das 12H00, no interior da mesma residência, o arguido exigiu à assistente/demandante que lhe confecionasse o almoço, o que ela recusou por não se sentir bem.

10. Na sequência dessa recusa, o arguido, que pretendia dissolver a sociedade imobiliária detida por ambos, disse à assistente/demandante para arranjar um advogado, ao que ela respondeu que já tinha um advogado.

11. Mal ouviu tais palavras, o arguido aproximou-se da assistente/demandante e, com a mão fechada, desferiu-lhe um murro na zona da boca e do nariz, o que a fez cair ao chão.

12. Quando ela se levantou para procurar fugir, o arguido empurrou-a para o chão, em consequência do que a mesma torceu o joelho da perna direita e um braço, o que lhe provocou dores.

13. Após, o arguido foi buscar uma bengala de madeira para lhe bater, altura em que a assistente/demandante conseguiu levantar-se e fugir para o quintal, de onde telefonou à G.N.R., tendo sido aconselhada a esconder-se.

14. Ainda assim, o arguido foi no seu encalço e desferiu-lhe, na zona da cabeça e do ombro, duas a três pancadas com a aludida bengala, o que de igual modo lhe provocou dores.

15. Em consequência da agressão, a assistente/demandante sofreu ainda edemas e equimose da metade direita do lábio inferior e equimose de cerca de quatro centímetros de diâmetro da face anteroinfero interna do joelho direito, lesões que lhe determinaram um período de seis dias de doença, sendo um com afectação da capacidade para o trabalho (geral e profissional).

16. No dia 22 de Junho de 2013, cerca das 12H30, no interior da mesma residência, no decurso de uma discussão, o arguido desferiu uma bofetada na face direita da assistente/demandante e chamou-a de “puta”, “filha da puta”, “cabra da francesa”, proferindo ainda a frase “vou-te matar”.

17. No dia 2 de Setembro de 2013, pelas 16H30, no interior da mesma residência, o arguido atirou várias cartas contra a cara da assistente/demandante, dizendo-lhe: “toma lá, francesa de merda”.

18. O arguido sabia que a sua actuação lesava o corpo e a saúde física e psíquica da assistente/demandante, ciente de que por ela ser sua esposa e mãe dos seus filhos lhe era exigível outro tipo de conduta, a qual estava ao seu alcance.

19. Sabia ainda que limitava a liberdade da assistente/demandante e a humilhava na sua honra e consideração, fazendo-a sentir-se diminuída enquanto pessoa e enquanto mulher, o que efectivamente sucedeu.

20. Não obstante, agiu como descrito, indiferente para com os deveres de respeito e cooperação com a sua cônjuge.

21. A conduta do arguido foi sempre livre, deliberada e consciente, adoptada com pleno conhecimento do seu carácter proibido e censurável.

22. O arguido não tem averbados quaisquer antecedentes no respectivo certificado de registo criminal.

23. É oriundo de uma família de classe média, tendo sido alvo de um modelo educativo caracterizado pela definição de regras e limites, num contexto relacional que recorda como pouco afectivo, dado considerar os pais como distantes a este nível.

24. Com um percurso profissional investido, emigrou para França aos 19 anos de idade, onde se habilitou com formação superior em medicina dentária, área onde depois exerceu como dentista, permitindo-lhe uma situação económica estável.

25. Quando regressou com a família a Portugal, manteve-se nessa actividade.

26. O relacionamento com a assistente/demandante é avaliado pelo próprio arguido de forma pouco gratificante.

27. Revela estereótipos e crenças culturais de género, ilustrativas da cristalização dos papéis masculino e feminino e da subordinação da mulher ao homem.

28. O arguido abandonou voluntariamente o lar conjugal em 30-04-2013, sendo que desde os factos provados em 17 supra não voltou a abordar a assistente/demandante com quaisquer comportamentos agressivos.

29. Ainda assim, a mesma continua a manifestar sentimentos de insegurança e receio face a uma eventual abordagem agressiva por parte deste.

30. Actualmente o arguido reside sozinho, em Caldas da Rainha, em habitação por cuja renda suporta a quantia mensal de € 320,00 (trezentos e vinte euros).

31. Não mantém contactos com o filho nem com o neto, com quem se encontra incompatibilizado.

32. Aufere uma pensão de reforma no valor mensal de € 700,00 (setecentos euros), a que acrescem receitas provenientes da rentabilidade dos bens do casal, que ainda não foram objecto de partilha.

33. Verbaliza dificuldades em lidar com a solidão, referindo ter feito algum investimento no sentido de estabelecer uma nova relação afectiva.

34. Sem uma ocupação estruturada do tempo livre, refere um círculo de conhecidos/amigos muito limitado, relevando o estatuto social destes e o facto de serem pessoas com estilos de vida normativos.

35. Não obstante manifestar sentimentos negativos para com a assistente/demandante que comprometem a capacidade para se colocar no papel desta, não verbaliza sentimentos de retaliação/vingança.

36. O principal elo de ligação entre ambos parece assentar na partilha dos bens do casal, situação que poderá gerar alguns desentendimentos.

37. A nível pessoal são percepcionadas competências que lhe permitem identificar causas e consequências do seu comportamento, surgindo como um indivíduo com rigidez de pensamento associada a estereótipos de género, com um auto-conceito sobrevalorizado, com dificuldades de auto controlo e de descentração, nomeadamente no que diz respeito à compreensão do ponto de vista do outro, adoptando um registo comunicacional tendencialmente agressivo, quando confrontado com situações percepcionadas como adversas.

38. O arguido verbaliza indiferença face às consequências que poderão advir da sua actual situação processual, que não teve repercussões significativas ao nível laboral e social.

39. Revela fraca capacidade para efectuar uma análise crítica relativamente a factos similares àqueles pelos quais foi acusado nos presentes autos.

40. A assistente/demandante reside na habitação pertença do casal, auferindo duas pensões de reforma no valor global mensal de cerca de € 360,00 (trezentos e sessenta euros).

*

III.1.2 - Como NÃO PROVADOS resultaram os seguintes factos:

a) O arguido também dirigia à sua esposa as expressões “vaca” e “ordinária”;

b) Na ocasião referida em 5 e 6, em decorrência da aí descrita conduta do arguido, a assistente/demandante ficou com nódoas negras;

c) A dor mencionada em 8 perdurou por mais de uma semana, tendo-se a assistente/demandante nas semanas e meses seguintes fechado em casa e vivido com medo e pânico de que o arguido a voltasse a agredir com gás pimenta;

d) Em decorrência dos factos descritos em 9 a 15, a assistente/demandante viveu durante meses com dores intensas que lhe prejudicaram o descanso e a capacidade para fazer as tarefas quotidianas;

e) Além disso, sofreu durante meses de insónias, acordando a meio da noite em pânico;

f) Na ocasião referida em 16 o arguido também dirigiu à assistente/demandante a expressão “vai-te foder”; e

g) Durante anos a assistente/demandante fechou-se em casa, isolando-se dos amigos e da vida social, chorando compulsivamente.

*

     III.2 – Apreciação crítica da prova:

Para formar a sua convicção, o tribunal, procurando observar os critérios a que alude o artigo 127.º do Cód. Proc. Penal, baseou-se no correlacionamento de toda a prova produzida em audiência de julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum e a sua livre convicção.

De acordo com a lição do Prof. Cavaleiro Ferreira, «[a] livre convicção é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade. É uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica e não limitada por prescrições formais exteriores» (Curso de Processo Penal, reimp., Lisboa, 1981, vol. II, p. 298).

E, tal como faz notar o Prof. Germano Marques da Silva, a livre valoração da prova não deve «ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão» (Curso de Processo Penal, II, Editorial Verbo, 2008, p. 151).

O mesmo é dizer que em sede de apreciação da prova, a convicção do tribunal é formada dialecticamente: para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos.

Na verdade, tal como também salienta o Prof. Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, lições coligidas por Maria João Antunes, 1988-9, p. 140), há que assumir que na convicção desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis, como seja a credibilidade que se concede a um certo meio de prova.

     Neste contexto, a actividade do juiz, como julgador, não é naturalmente a de mero espectador de depoimentos, antes devendo fazer incidir sobre os mesmos um olhar crítico em que se atenda à multiplicidade de factores a que, entre outros, nos referimos.

     Transpondo para a situação dos autos, e tendo presente que a audiência de julgamento decorreu na ausência do arguido – que a ela faltou injustificadamente, não obstante regularmente notificado na morada do termo de identidade e residência que prestou a fls. 25v.º -, importa fazer notar que a convicção do tribunal assentou, em primeira linha, e de forma determinante, no depoimento da assistente/demandante B... , todo ele prestado de forma franca, serena, detalhada e, certamente, também eivado de algum embotamento emocional - que diríamos próprio de quem vivenciou, como vítima, os factos ora em apreço -, e no qual não perscrutámos qualquer intuito persecutório ou de vingança em relação à pessoa do arguido.

     Além disso, a credibilidade intrínseca de tal depoimento, só por si suficiente para ancorar o juízo probatório subjacente a todos os factos provados em 1 a 17 – relatados pela assistente/demandante tal qual ali se mostram exarados -, mostra-se em grande parte sustentada nos demais elementos probatórios a que aludiremos já de seguida.

     Destarte, e começando pelo facto provado em 1, tem também a confirmá-lo o teor do assento de casamento junto a fls. 70.

     No que se refere aos factos provados em 2 a 4, resultam de igual modo dos depoimentos das testemunhas C... e D... – respectivamente, nora e filho do arguido e da assistente/demandante -, que não escondendo a inexistência actual de quaisquer relações com o arguido, se revelaram também absolutamente credíveis, dando vivo testemunho da personalidade agressiva e autoritária daquele, a quem continuadamente ouviram chamar à assistente/demandante as expressões mencionadas no inciso 4 em apreço, tendo também ambos afirmado, de forma convicta, que chegaram a presenciar agressões físicas, ainda que - atestando desse modo a credibilidade que lhes foi assinalada - nenhuma delas relativa às que constituem o objecto dos presentes autos.

     No contexto do que já vem dito, os factos provados em 5 e 6 emergem do relato pormenorizado e devidamente contextualizado da assistente/demandante sobre os mesmos.

     Outro tanto se diga no que respeita à ocasião a que se reportam os factos provados em 7 e 8, sendo que quanto a estes a assistente/demandante referiu ter havido a necessidade de se deslocarem à sua residência elementos do I.N.E.M. e da G.N.R., o que é atestado pelo teor do documento de fls. 28, do qual não só resulta nítida a confirmação da data e período do dia em que tais factos ocorreram, como a circunstância, ali feita constar, de a assistente/demandante logo se ter queixado de «ter sido agredida pelo seu marido, com um spray de defesa pessoal».

     O mesmo se diga, mutatis mutandis, quanto ao auto de ocorrência de fls. 29, para cujo teor nos permitimos remeter.

     Reportando-nos agora aos factos provados em 9 a 15, e sempre da perspectiva de indicação dos elementos probatórios corroborantes do relato inequívoco da assistente/demandante, temos que a circunstância de a mesma ter chamado a G.N.R. à sua residência é atestada pelo teor do auto de denúncia de fls. 2 a 6, do qual resulta, além do mais, que a mesma estava «visivelmente perturbada» e «apresentava lesões visíveis no lábio inferior e na orelha esquerda», «queixando-se de lesões no joelho da perna direita e na nuca».

     Parte dessas lesões estão também patenteadas no fotograma de fls. 21 e no auto de exame pericial de fls. 11 a 13, levado a cabo no dia imediatamente subsequente aos dos factos, e no qual se estriba a demonstração de que as lesões nele descritas determinaram para a assistente/demandante um período de seis dias de doença, sendo um com afectação da capacidade para o trabalho (geral e profissional).

     No que por sua vez diz respeito ao facto provado em 16, temos como elementos de suporte o teor do «aditamento» de fls. 53 e as declarações da já identificada testemunha C... , que afirmou ter ido com a sogra ao Hospital de Torres Vedras em decorrência do episódio ali retratado, o que se confirma pelo teor do auto de exame pericial de fls. 73 a 75, ocorrido dois dias depois do evento em causa, data em que já não eram visíveis as marcas decorrentes da bofetada na face a que aludiram a assistente/demandante e a dita testemunha.

     Claro está que essa circunstância de nessa data já não serem visíveis tais marcas não é obstativa do juízo probatório positivo que neste momento procuramos objectivar, pois facilmente decorre das regras da experiência comum que hematomas oriundos de uma bofetada na cara possam já não ser perceptíveis dois dias depois.

     Por último, quanto ao facto provado em 17, a assistente/demandante afirmou ter sido presenciado por uma sua empregada, de nome M (....), entretanto falecida, sendo este último facto confirmado pela «informação/certidão» de fls. 92.

     Certo é que, no entanto, e na defluência de tudo quanto vem exposto, as declarações da assistente/demandante foram suficientes para a demonstração do aludido facto.

     No que concerne aos factos provados em 18 a 21, tratam-se sobretudo de factos do foro interno ou subjectivo do arguido, em relação aos quais é sabido que, tal como se faz notar no Acórdão da Relação de Évora de 04-02-2014 (disponível, à semelhança de todos os demais infra citados sem indicação expressa de fonte, em www.dgsi.pt, neste caso sob Processo n.º 88/07.3TACUB.E1), «por respeitarem à vida psíquica raramente se provam directamente. Na ausência de confissão, em que o arguido reconhece ter sabido e querido os factos do tipo objectivo, a prova do dolo ter-se-á de fazer por ilações, a partir de indícios, ou seja, através de uma leitura (racional e lógica) de um comportamento exterior e visível do agente».

     É isso que claramente sucede, sem quaisquer dificuldades, na situação dos autos, em que dos factos provados em 1 a 17 se podem extrair, através de um mero processo de inferência lógica, e sem margem para dúvidas, os tais factos do foro subjectivo do arguido.

     A ausência de antecedentes criminais por parte do arguido (facto provado em 22) estriba-se, por sua vez, no certificado de registo criminal de fls. 121, ao passo que os factos provados em 23 a 39, relativos ao aquilatar das condições sociais, pessoais, económicas e de personalidade do arguido, assentam no relatório social de fls. 177 a 180, que foi elaborado com base, entre outras fontes, em entrevista realizada com o próprio arguido, constituindo retrato fiel de uma personalidade já bem definida, em termos concordantes com aquele documento, pelos três depoimentos anteriormente aludimos.

     Valorou-se, assim, o aludido relatório, salvo na parte em que o mesmo se refere ao âmago dos concretos factos que vinham imputados ao arguido, pois que nessa parte estamos em crer que jamais o aludido relatório - que tem tão-somente em vista auxiliar o tribunal na busca da correcta determinação da sanção eventualmente aplicável (cfr. artigo 370.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal) – poderia servir para colmatar a ausência do arguido em julgamento, sede própria para, caso não exercesse o seu legítimo direito ao silêncio, se pronunciar sobre os factos em causa.

     O facto provado em 40 foi mais uma vez fruto da inquestionável prestação probatória da assistente/demandante.

*

     Quanto aos factos não provados, uma frase bastará para deixar consignado que quanto aos mesmos já não foi feita qualquer prova, não tendo nomeadamente decorrido dos três depoimentos em apreço nem de qualquer outro elemento probatório que, com dose mínima de segurança, os pudesse confirmar.”

3. Apreciação

3.1 Da invocada nulidade da notificação da acusação

Importa desde logo assinalar que o despacho do tribunal recorrido proferido em 21-10-2014 - cfr fls 147 e 148, - que considerou o arguido regularmente notificado da acusação por via postal simples com prova de depósito na morada constante do termo de identidade e residência que prestou a fls 25/v, não foi objecto de recurso, nem foi arguida qualquer irregularidade e/ou nulidade, no prazo legal, após a respectiva notificação.

A falta de notificação da acusação do Ministério Público ao arguido constitui uma irregularidade com previsão no nº 1 do artº 123º do CPP, que tem de ser arguida pelos interessados no prazo de 3 dias.

Porém, do artigo 123.º do Código de Processo Penal, resulta que se pode ordenar oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que dela se tomar conhecimento e quando ela afectar o valor do acto praticado.

Revertendo aos autos, constata-se que no TIR prestado pelo arguido a fls. 25v.°, o arguido indicou como morada para efeitos de notificação o x(....), 2510 Óbidos.

Conforme se verifica a fls. 116,a notificação da acusação ao arguido através de via postal simples com prova de depósito, foi expedida para a mencionada morada, tendo o distribuidor do serviço postal lavrado declaração de depósito no respectivo receptáculo postal, em conformidade com o disposto no artigo 113.°, n.° 3 do Cód. Proc. Penal.

Posteriormente, através do requerimento de fls. 120, a assistente e demandante civil B... veio informar que o arguido já não residia na dita morada desde há alguns meses. Mais informou a nova morada do arguido (y (....) Caldas da Rainha), na qual, todavia, não se logrou a notificação pessoal do arguido, por ali ser desconhecido (cfr. certidão negativa de fls. 140).

Efectuadas consultas às bases de dados, documentadas a fls. 142 a 144, apenas resulta como morada do arguido a que consta do termo de identidade e residência.

Efectuadas as referidas diligências, o Ministério Público ordenou a remessa dos autos à distribuição nos termos do artigo 283.°, n.° 5, in fine, do Cód. Proc. Penal (cfr. despacho de fls. 141).

E bem, em nosso entender, secundando o tribunal a quo.

Com efeito, ao regular a comunicação da acusação pública aos sujeitos processuais, o artigo 283.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, determina:

“(…)

6 - As comunicações a que se refere o número anterior efectuam-se mediante contacto pessoal ou por via postal registada, excepto se o arguido e o assistente tiverem indicado a sua residência ou domicílio profissional à autoridade policial ou judiciária que elaborar o auto de notícia ou que os ouvir no inquérito ou na instrução, caso em que são notificados mediante via postal simples, nos termos do artigo 113.º, n.º 1, alínea c). [negrito nosso] (…)”

Em consonância com tal orientação, o artigo 196.º, do Código de Processo Penal, dispõe:


“(…)
2 - Para o efeito de ser notificado mediante via postal simples, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 113.º, o arguido indica a sua residência, o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha.

3 - Do termo deve constar que àquele foi dado conhecimento: (…)
b) Da obrigação de não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado;
c) De que as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada no n.º 2, excepto se o arguido comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrarem a correr nesse momento; (…)”

É manifesto que a lei concede ao arguido que presta o TIR a liberdade de escolher a residência para a qual pretende que lhe sejam feitas as notificações. E permite-lhe também a alteração da residência, através de um procedimento extremamente simples, como seja, o envio de uma carta registada dirigida ao processo, nesse sentido.

De notar que do TIR prestado pelo arguido consta que foi dado conhecimento ao arguido, além do mais:

“b) Da obrigação de não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de 5 dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado.

c) de que as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada no n.º 2, excepto se o arguido comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrarem a correr nesse momento; “

Das disposições citadas e do art 313º, nºs 2 e 3, do CPP, resulta claro que a lei admite a notificação postal simples, nos casos expressamente previstos, nomeadamente da notificação da acusação e do despacho que designa dia para julgamento, quando o arguido tenha prestado termo de identidade e residência no processo.

Ora, no caso dos presentes autos, o arguido, ora recorrente, prestou termo de identidade e residência (TIR) e foi prevenido de que seriam feitas para a residência que declarou as futuras notificações do processo, por “via postal simples”.

Dispõe o art113 sobre a notificação por via postal simples:

Nº 3: “Quando efectuadas por via postal simples x(....)o distribuidor do serviço postal deposita a carta na caixa do correio do notificando, lavra uma declaração indicando a data e confirmando o local exacto do depósito, e envia-a de imediato ao serviço ou ao tribunal remetente, considerando-se a notificação efectuada no 5º dia posterior à data indicada na declaração lavrada pelo distribuidor do serviço postal, cominação esta que deverá constar do acto de notificação”.

No caso sub judice foram observados todos os formalismos indicados.

Assim, não tendo o arguido comunicado a alteração de residência como lhe competia, a notificação considera-se efectuada, apesar de a carta ter sido devolvida, por ter sido enviada para a morada por ele indicada no termo de identidade e residência.

Defende o recorrente que a notificação não pode presumir-se, por a carta ter sido devolvida aos autos.

Conforme já se decidiu na Rel Porto em acórdão de 9 de Junho de 2004 “… a ser assim, fica sem efeito prático a obrigação de o arguido comunicar a nova morada, caso abandone a que inicialmente indicou.

Acresce que o legislador, no art. 113 nº 3 do CPP, nenhuma distinção faz para os casos em que as cartas são devolvidas. Nem se perceberia que fizesse, pois, a maior parte das vezes, a devolução é algo que está na disponibilidade e arbítrio de terceiros, que decidem, ou não, reenviá-las à procedência. Não deve o intérprete distinguir onde o legislador quis dar tratamento idêntico.”

No mesmo sentido, o acórdão citado pelo tribunal recorrido, da Relação do Porto de 28-10-2009 (Processo n.° 484/07.6geoer.pi), os dados da questão não são alterados pela circunstância de a morada constante do termo de identidade e residência coincidir, como in casu sucede, com a morada da ofendida, … Sendo assim, pretender-se que há quebra de garantia constitucional por a notificação ser dirigida para a residência do arguido, por ser também a da queixosa, é uma falsa questão, uma vez que as notificações só são feitas nessa residência porque o notificando, aqui recorrente, nisso reiteradamente consente».

Não há assim que declarar a pretendida inconstitucionalidade, porque não existe violação do artigo 32°, n.° 1 da CRP.

Improcede este segmento do recuso.

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3.2 - Nulidade da comunicação da alteração não substancial dos factos, por extemporânea;

A alteração comunicada ao arguido nos termos e para os efeitos do disposto no art.° 358°, n.° 1, do CPP, consta da acta de fls. ….e segundo a mesma foi considerado que da discussão da causa resultaram provados factos que constituem uma alteração de factos não substancial que se passam a discriminar, sem qualquer repercussão na qualificação jurídica feita na acusação.

Não há nenhum obstáculo legal que impeça até à leitura da sentença, o recurso ao instituto legal previsto no art.° 358, n.° 1 do CPP, tal como fez o tribunal recorrido.

Fundamental é que o arguido tenha pleno direito ao exercício do contraditório e direito de defesa antes de ser proferida a decisão final, sendo certo que estamos perante alterações não substanciais e que não alteram a qualificação jurídica dos factos constante da acusação.

O tribunal recorrido concedeu ao arguido a possibilidade do exercício dos referidos direitos.

Efectivamente, consta daquela acta, a fls. 221, que «Foi dada a palavra à ilustre Defensora do Arguido, tendo pela mesma sido dito nada ter a requerer e prescindir do respectivo prazo de defesa».

Não se verifica qualquer impossibilidade legal de, tal como fez o tribunal recorrido, ter usado o momento processual indicado para dar cumprimento à comunicação da alteração dos factos em relação aos quais ainda o arguido se poderia naturalmente defender, se assim o entendesse.

É certo que o arguido entendeu no caso em apreço não apresentar qualquer defesa, mas certo é também que foi salvaguardado o seu direito constitucionalmente consagrado de se defender e de exercer o contraditório, bem assim o direito a uma decisão justa.

A sentença só foi lida, notificada e depositada após a comunicação da alteração dos factos e subsequente concessão do direito de defesa ao arguido.

Pelo que não se verifica a invocada nulidade ou sequer inconstitucionalidade nas interpretações legais feitas pelo tribunal recorrido.

Improcede também neste segmento o recurso interposto pelo arguido.

3.3- Ausência na decisão da necessária e indispensável concretização dos factos

Adverte-se no acórdão desta Relação de 10-12-2014 - proc. n.º 37/13.0TAANS.C1, relatora Des. Maria José Nogueira, - que a questão consubstanciada num deficit na concretização dos factos, - circunstância idónea a colocar em crise o juízo de responsabilização do arguido/recorrente - se situa a montante dos vícios elencados no art 410º do CPP. Aí se escreve: “Com efeito, trata-se de realidade insusceptível de ser confundida com o vício a que alude a alínea a), do n.º 2, do artigo 410.º do CPP pois que enquanto na base deste se encontra uma insuficiência de factos que podendo e devendo ser apurados o não foram, impedindo, assim, uma decisão jurídica criteriosa que urge colmatar – donde a solução preconizada no artigo 426.º do CPP – a problemática que agora nos ocupa precede-a na medida em que aqui o tribunal [de julgamento] terá investigado o que podia e devia, sem que, contudo, haja logrado alcançar aquele limiar de concretização sem o qual resulta irremediavelmente comprometido o direito de defesa, o que conduz à insustentabilidade da decisão.”

Contudo, no caso presente, a análise dos factos provados, não reflecte a falha apontada pelo recorrente.

É evidente que alguns factos pelo decurso do tempo não estão completamente datados, o que não é relevante porque se referem apenas a circunstâncias - factos provados nºs 2 a 4 - que visam enquadrar os factos que integram a conduta que baseia o juízo de responsabilização do arguido - factos provados 6 a 21.

A materialidade objectiva descrita na sentença revela a necessária e indispensável concretização factual, o que aliado aos factos integradores do tipo subjectivo do crime, conduziu à condenação do recorrente. Nestes termos, conclui-se que a decisão recorrida não se fundamenta em imputações genéricas, cuja irrelevância  jurídico-penal o STJ tem vindo a afirmar - [cf. v.g. os acórdãos STJ de 05.04.2006 (proc. n.º 05P2932), de 10.05.2006 (proc. n.º 06P1190), de 24.01.2007 (proc. 06P3112), de 21.02.2007 (proc. n.º 06P3932), de 24.07.2007 (proc. n.º 08P578), de 02.04.2008 (proc. n.º 07P4197), de 20.11.2008 (proc. n.º 08P3269), de 20.06.2012 (proc. n.º 8/11.0YGLSB.S2)] - apudac RC supra citado.

Improcede também neste segmento o recurso interposto pelo arguido.

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3.4- Errada qualificação jurídica penal dos factos

Insurge-se o recorrente contra o enquadramento jurídico dos factos provados.

Defende que deveria ter sido absolvido do crime de violência doméstica, por entender que os factos apenas são susceptíveis de integrar a prática de ofensas à integridade física p. e p. no art° 143º do CP e de injúrias.

O crime de violência doméstica encontra-se p. e p. no artigo 152° do Código Penal, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro - vigente a partir de 23 de Março de 2013, sob a epígrafe "Violência doméstica".

O objectivo do tipo legal de crime em causa, como é sabido, é a de prevenir as frequentes e subtis, formas de violência no âmbito da família, saúde física e psíquica.

O bem jurídico protegido é, portanto, a saúde física e psíquica, que pode ser ofendida por toda a multiplicidade de comportamentos nomeadamente os que afectem a dignidade pessoal do cônjuge (Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Vol. I, Coimbra Editora, 1999, p. 332).

Este autor esclarece que “a função deste artigo é prevenir as frequentes e, por vezes, tão subtis quão perniciosas – para a saúde física e psíquica e/ou para o desenvolvimento harmonioso da personalidade ou para o bem-estar – formas de violência no âmbito da família (...)”. A ratio do tipo não está, pois, na defesa da paz familiar, mas na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. (ob. cit., p. 329)

O crime em análise é um crime específico, na medida em que pressupõe a existência de uma determinada relação entre o agente e a vítima.

As condutas previstas e punidas pela presente incriminação podem revestir várias espécies: maus-tratos físicos, ou seja, ofensas corporais simples, maus-tratos psíquicos, incluindo humilhações, provocações, ameaças.

O conceito de maus-tratos engloba toda a acção ou comportamento agressivos que ofendam bens jurídicos como a vida, integridade física ou psíquica, liberdade, honra e integridade moral.

Importa distinguir entre maus-tratos físicos, - qualquer forma de violência física (golpes, empurrões bruscos, bofetadas, pontapés, etc.) que provoque lesão ou doença (v.g., hematomas, feridas, fracturas, queimaduras) - e maus-tratos psíquicos, - qualquer acto ou conduta que produza sofrimento psicológico, humilhação e desvalorização (v.g., insultos, afrontas e vexações). (cfr Ac STJ de 05.02.2004, Proc. 2857/03-3, em www.dgsi.pt, e ac TRL de 27.02.2008,).

As condutas descritas, integrantes do tipo objectivo do crime de violência doméstica, podem ser susceptíveis de, isoladamente consideradas, constituírem outros crimes, nomeadamente ofensa à integridade física simples, ameaça, injúria e difamação.

Todavia, como salienta o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04.11.2004, Proc. 8948/2004-9, em www.dgsi.pt, “de acordo com a razão de ser da autonomização deste tipo de crime, as condutas que integram o tipo de ilícito não são individualmente consideradas enquanto integradoras de um tipo de crime para serem atomisticamente perseguidas criminalmente, são, antes, valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido que signifique maus tratos sobre o cônjuge ou sobre menores”.

Entre o crime de violência doméstica e os crimes acima enumerados existe uma relação de especialidade, sendo que a razão de ser que subjaz à punição mais agravada do primeiro reside na relação que liga o agente à vítima, que cria naquele uma particular obrigação de não infligir maus tratos ao familiar.

A propósito desta temática, no Ac desta Relação de 2-10-2013 foi ponderado e bem que “A degradação de relações desta natureza que, do ponto de vista dos valores que o direito penal também prossegue, impõe a exigência de um maior grau de consideração/respeito pelo outro, ainda que em situações de litígio e os excessos que essa degradação potencia, por força da maior proximidade e muitas vezes da impossibilidade de um afastamento total e efectivo, é um dos factores que justifica a criação de um tipo específico de crime que se distingue dos tipos comuns preenchidos quando não se verifica o especial relacionamento entre agente do crime e vítima e que abarca situações típicas que vão para além desses tipos de crime comuns. O que significa que eventuais injúrias, ofensas à integridade física, ameaças, coacções são já consideradas pela lei como mais graves se ocorridas dentro desse tipo de relacionamentos, mais lesivas da condição humana que se quer revestida de dignidade.

Esta consideração que patentemente emana da lei apenas excepcionalmente permite que assim se não conclua, quando tal ocorra em situações muito incidentais e que manifestamente demonstrem que a dignidade da vítima foi afectada em grau que não justifica a penalização em causa.”

Ao nível do tipo subjectivo de ilícito, o crime em causa pressupõe uma actuação com dolo (em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal), pelo que o agente terá de ter o conhecimento correcto da factualidade típica, sob pena de não se preencher o elemento intelectual do dolo.

Em relação à versão originária do Código Penal, para além de outras divergências de menor significado ou puramente formais, destaca-se o facto de não se exigir agora qualquer dolo específico, quando naquela versão se exigia por parte do autor que agisse por “malvadez ou egoísmo”. A lei basta-se, portanto, com o dolo genérico.

A reforma penal de 2007 veio consagrar a orientação segundo a qual a verificação dos crimes de violência doméstica e de maus tratos não exige a reiteração de condutas, sendo suficiente a ocorrência de “um único acto ofensivo de tal intensidade, ao nível do desvalor da acção e do resultado, que seja apto e bastante a lesar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana” (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28.04.2010, proc. 13/07.1GACTB.C1, em www.dgsi.pt).

Em face da nova redacção introduzida pela citada lei o crime de violência doméstica pode ser cometido mesmo que não haja reiteração de condutas, embora só em situações excepcionais o comportamento violento único, pela gravidade intrínseca do mesmo, preencha o tipo de ilícito (Maria Elisabete Ferreira, “Da Intervenção do Estado na Questão da Violência Conjugal em Portugal”, pp. 106/107 e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.04.2006, proc. 06P975, em www.dgsi.pt).

Em suma, para a realização do crime torna-se necessário que o agente reitere o comportamento ofensivo, em determinado período de tempo, admitindo-se, porém, que um singular comportamento bastará para integrar o crime quando assuma uma dimensão manifestamente ofensiva da dignidade pessoal do cônjuge. O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus-tratos (Cfr. Plácido Conde Fernandes, “Violência Doméstica, Novo quadro penal e processual penal”, Revista do CEJ, n.º 8, 1.º semestre de 2008, p. 305, apud acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 06.02.2012, proc. 79/10.7TAVVD, em www.dgsi.pt).

Ora de acordo com o facto provado em 1, o arguido e a ofendida encontram-se no estado relacional previsto no tipo. Mas, como se viu, não basta a existência de uma relação conjugal ou análogo para que uma ofensa caia na esfera de protecção da “violência doméstica”.

No caso, resulta da factualidade apurada sob os pontos 7 a 21 que o arguido dirigiu à ofendida insultos de forma reiterada, humilhando-a e agrediu-a fisicamente, inclusive ao murro e à bengalada, lesionando-a, não se coibindo de lançar gás pimenta nos rosto da esposa, assim intensificando o vexame, a vergonha e a humilhação da assistente.

A descrita conduta é suficiente para representar a afectação do bem jurídico protegido pela norma que incrimina a violência doméstica, porquanto o arguido não só infligiu reiteradamente maus tratos psíquicos ( e a realização do tipo não exige a imposição de maus tratos físicos), como também ofendeu fisicamente a esposa, e, não obstante neste caso estarem em causa actos isolados, certo é que os mesmos não deixam de ser reveladores de um comportamento psicológica e fisicamente agressivo e controlador, por conseguinte, assumem uma intensidade, ao nível do desvalor da acção e do resultado, suficiente para lesar o bem jurídico protegido.

É óbvio que o comportamento do arguido consubstancia uma ofensa à dignidade da ofendida susceptível de colocá-la numa situação degradante, atingindo o patamar de punibilidade, embora se reconheça que o concreto grau da ilicitude, é de considerar mediano, o que relevou em sede de medida concreta da pena.

Por tudo se conclui que os factos praticados pelo arguido integram o crime de violência doméstica de que vinha acusado. Com efeito, o arguido infligiu maus-tratos psíquicos e físicos à ofendida, humilhando-a, em violação, além do mais, do particular dever de respeito decorrente do vínculo que os unia.

Por outro lado, tendo em conta os factos descritos em 18 a 21, do ponto de vista da imputação subjectiva, o arguido agiu com dolo directo e tinha consciência da ilicitude do facto, tanto mais que resultou provado que agiu sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Estão verificados os elementos objectivos e subjectivos do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, nºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal.

Não se mostram pois violados quaisquer preceitos legais, quer os invocados pelo recorrente quer quaisquer outros.

Improcede o recurso neste segmento.

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As restantes questões suscitadas ficam portanto prejudicadas, incluindo a invocada repercussão na escolha e medida da pena e no valor da indemnização cível arbitrada, em que foram observados os critérios legais aplicáveis.

Daí que se considere improcedente o recurso na sua totalidade.

III. Decisão

Termos em que, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

Condena-se o recorrente na taxa de justiça de quatro Ucs.

Coimbra, 18/11/2015

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do C.P.P.).

(Isabel Valongo)



 (Jorge França)